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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.16 Lisboa dez. 2021  Epub 01-Dez-2021

 

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O ferro como linguagem arquitetónica e urbana na cidade de Lisboa

Iron as an architectural and urban language in the city of Lisbon

i FA/UL - FormaUrbisLAb, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, 1349-063, Lisboa, Portugal. josemiguelsilva@edu.ulisboa.pt

ii FA/UL - FormaUrbisLAb, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, 1349-063, Lisboa, Portugal. fernandogilabreu@gmail.com


Resumo

Com a fundição da indústria com a arte no século XIX, surge o ferro fundido como processo crescente na construção e ornamentação das cidades. Este processo de industrialização foi determinante na difusão de características-tipo, suporte para a transformação da cidade com novas linguagens, formas e escalas. O objetivo deste estudo é construir uma síntese desenhada que caracterize o ferro como linguagem arquitetónica e urbana na cidade de Lisboa. O estudo pretende constituir-se como uma ferramenta gráfica representativa da aplicação deste material no tecido construído, definido por elementos de linguagem arquitetónica e elementos de linguagem de espaço público. Os elementos identificados procuram traduzir a diversidade, composição e repetição de situações presentes no universo de estudo, caracterizados textual e graficamente de forma comparável com desenhos síntese em escalas idênticas.

Palavras-chave: Morfologia; Tipologia edificada; Elementos de linguagem arquitetónica; Elementos de linguagem de espaço público; Ferro

Abstract

With the merging of industry and art in the 19th century, cast iron emerges as a growing process in the construction and ornamentation of cities. This industrialization process was decisive in the diffusion of type characteristics, influencing the transformation of the city with new languages, shapes and scales. This study aims to build a drawn synthesis that characterizes iron as an architectural and urban language in the city of Lisbon. The study intends to constitute itself as a graphic tool representative of this material application in the built urban fabric, defined by elements of architectural language and stylistic elements of the public space. The identified elements seek to translate the diversity, composition and repetition of situations present in the universe of study, characterized textually and graphically in a comparable way with synthesis drawings on identical scales.

Keywords: Morphology; Built typology; Architectural language elements; Public space language elements; Iron

A imagem do ferro

A característica de um elemento marcante visível é a sua singularidade, o contraste com o seu contexto ou pano de fundo. (...) O objeto é também mais notado se tiver uma clareza de forma, como no caso de uma coluna ou de uma esfera. Se, adicionalmente, tiver ainda uma riqueza de detalhes ou de textura, atrairá, sem dúvida, a nossa atenção. Um elemento marcante não é necessariamente grande; tanto pode ser o puxador de uma porta como uma cúpula (Lynch, 1996, p. 113).

A evolução da metalurgia e a introdução da arte decorativa, particularmente em Inglaterra e França, estão na origem da disseminação do ferro como processo construtivo no século XIX. A sua capacidade plástica permitiu, de algum modo, a catalogação do elemento construtivo, a sua produção e difusão em série, muito associada a tipologias construtivas específicas na indústria, infraestruturas e comércio, como fábricas, pontes e mercados.

Acompanhando o ritmo frenético da Revolução Industrial, a estandardização do ferro e a rapidez de montagem das suas estruturas transformaram a cidade e introduziram na sociedade um novo sentido de velocidade e beleza construtiva. Significado que Álvaro de Campos eternizou de diferentes e contraditórias formas no seu poema Ode triunfal (Pessoa, 1944, p. 144-151).

A ideia de “belo” está de algum modo na base do contexto enigmático e criativo oitocentista parisiense. A arquitetura do ferro foi desenvolvida na “procura de um equilíbrio entre a arte e a indústria” (Barradas, 2010, p. 106), com um sentido público e monumental. Este processo de “arte em série” foi fortemente influenciado pela indústria Fonte d’Art na criação da linguagem dos elementos de espaço público e pela introdução da Art Nouveau na composição da linguagem dos elementos arquitetónicos. E é precisamente esta relação produtiva entre a estrutura e o ornamento que viria a ser fortemente difundida em Portugal, particularmente no espaço público da cidade de Lisboa.

O sentido de repetição de características familiares assumiram, por apropriação, o carácter específico e identitário do espaço urbano. A “imaginabilidade” (Lynch, 1996, p. 20) por repetição de diferentes realidades aparenta “evocar” uma ideia de qualidade - estética, higienista e lúdica - dos objetos na produção de tecido tal como o conhecemos.

Como contributo para a compreensão da história do ferro em Portugal podem ser assinalados alguns trabalhos de referência como os de Maria Soares da Costa (coord., 1980) com o tema a arquitetura dos engenheiros nos séculos XIX e XX; de Paulo Cruz (1997) sobre a relação da arte com o ferro na cidade do Porto; de Ana Matos (1999) no estudo da importância dos materiais emergentes na construção de estruturas inovadoras; ou de Sílvia Barradas (2010) sobre a produção de mobiliário de fundição em Portugal. No entanto, nenhum destes autores construiu uma síntese desenhada dos diferentes elementos arquitetónicos e de espaço público, existentes ou desaparecidos, na cidade de Lisboa.

Sem descurar a contribuição dos trabalhos assinalados, importa salientar a relevância do livro Paris Haussmann: modèle de ville, na realização do presente estudo. Paris Haussmann teve como objetivo compreender a forma da cidade haussmaniana, a partir da “decomposição, classificação e análise comparativa” (Jallon, Napolitano e Boutté, 2017, p. 12) dos seus elementos construtivos, organizados de acordo com categorias, entre as quais são abordados graficamente os elementos de linguagem arquitetónica e de espaço público, organização que aqui se replica.

A influência do ferro na construção da linguagem dos elementos arquitetónicos e de espaço público em Lisboa fez-se notar num período bastante assinalável, sobretudo desde a segunda metade do século XIX até cerca de 1950. A capacidade estrutural e plástica do ferro permitiu a criação de vastas referências para a leitura das tipologias, estrutura e ornamento da cidade que aqui se procura sintetizar.

Neste contexto específico, o objetivo deste trabalho iii é construir uma síntese gráfica e comparativa dos elementos construídos em ferro, em Lisboa, desde o século XIX até à atualidade. Desta maneira, acredita-se que o carácter quase enciclopédico deste inventário tipológico poderá constituir-se como uma ferramenta de apoio à compreensão do tema, a partir do qual se pretende identificar a arquitetura do ferro quer na sua composição original, quer como resultado de um processo de sedimentação num tempo longo. Ou seja, não se trata de uma abordagem conservacionista, mas de uma análise à forma que sintetiza a persistência e a sua importância na composição da cidade de hoje.

A seleção e caracterização dos elementos identificados segue uma lógica de agregação por famílias, ou seja, conjuntos edificados ou elementos de espaço público que partilham características semelhantes na aplicação do ferro nas suas diferentes dimensões estruturais ou plásticas. Os casos selecionados são representativos de um vasto universo de soluções possíveis, são referências válidas e não absolutas. A sua seleção procura abranger exemplos de diferentes formas e usos, recorrendo a casos enigmáticos da arquitetura, cultura e identidade da cidade. A representação gráfica segue os mesmos critérios e escalas idênticas, permitindo a comparação entre os diferentes elementos. Em cada desenho é indicada a data de construção/inauguração do respetivo elemento, com a representação do seu estado atual ou, quando demolido, do seu estado original. Metodologicamente, foram utilizadas como referência à representação fontes documentais, entre outras, do Arquivo Municipal de Lisboa (AML), bibliografia variada, observação e levantamento in situ, assim como material disponibilizado pelos autores do projeto.

A linguagem do ferro

A linguagem do ferro pode ser analisada de duas formas distintas: através de elementos de linguagem arquitetónica e de elementos de linguagem do espaço público. A primeira forma procura agrupar características compositivas do tecido edificado, compreendendo a relação estrutural e ornamental do ferro com a sua relação tipológica e funcional. A segunda caracteriza os elementos construídos no espaço público representando o tipo e, de algum modo, a sua repetição.

O processo de repetição destes dois tipos de elementos pode ser entendido em microelementos como uma viga, pilar, parafuso, friso, guarda-corpo, entre outros, e em situações que ocorrem à escala macro, da cidade, onde elementos de ferro semelhantes são repetidos em diferentes lugares, mas com funções idênticas. A título de exemplo, o papel de um pilar numa estrutura será sempre o mesmo, no entanto, a sua imagem, proporção e localização poderá ser variável. Do mesmo modo, um friso ou outro microelemento será suscetível de sofrer mutações imagéticas sem prejudicar a sua capacidade de produção em série.

Linguagem de Elementos Arquitetónicos

Os elementos de linguagem arquitetónica pretendem caracterizar exemplos de forte aplicação do ferro na composição dos edifícios, estrutura e ornamento, podendo ser simples ou composta no sentido em que o ferro é utilizado de forma isolada ou em simultâneo com outro material.

Como composição simples, entendem-se edifícios e elementos de espaço público cuja imagem, composição estrutural e de ornamento, são maioritariamente em ferro. Como exemplo, podem ser referidos os casos do Elevador de Santa Justa, a Torre Galp ou a Ponte 25 de Abril. Os três casos selecionados são modelos da capacidade estrutural do ferro em definir formas edificadas verticais - torre - e horizontais - vão - com diferentes variações, quer em altura quer tipológica.

A decomposição sistémica de um edifício como o Elevador de Santa Justa (1901, de Raoul Mesnier) revela-nos um esqueleto estrutural de ferro complementado por elementos ornamentais, uma camada final que adorna a estrutura. A sua semelhança com o antigo elevador de São Julião (Figura 1) constitui um exemplo de réplica de um tipo construtivo existente.

Figura 1 Comparação entre os Elevadores de Santa Justa e de São Julião: a) Elevador de Santa Justa, Paulo Guedes, [191-]. Arquivo Municipal de Lisboa (AML), PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/NUN/000355; b) Elevador de São Julião, Eduardo Portugal, [191-]. AML, PT/AMLSB/POR/059929. 

Por sua vez, a Torre Galp (1940, autor não identificado) apresenta o ferro meramente enquanto elemento estrutural, não obstante o facto da altura e do posicionamento do edifício representarem uma referência no Parque das Nações. A omnipresença deste material é evidente em ambas as estruturas.

A Ponte 25 de Abril é um exemplo evocativo da Golden Gate de São Francisco por repetição das suas características. Os pilares e o tabuleiro de ferro são elementos marcantes na construção da imagem icónica desta infraestrutura, juntamente com a presença dos cabos de aço. Tal como na Torre Galp, a ausência de ornamentação na estrutura não implica uma ausência de monumentalidade e carácter identitário idiossincrático.

Como composição composta, pretendem-se agrupar exemplos que promovam uma simbiose entre o ferro e outro material, o tijolo ou a pedra, na edificação de novas estruturas. Para exemplificar este processo serão destacados casos de diferentes formas tipológicas - industrial, infraestrutural, cultural e habitacional - para permitir a identificação das variantes possíveis na arquitetura do ferro.

A Central Tejo (1908, de Charles Vieillard e Fernand Touzet) foi a principal fornecedora de eletricidade à cidade de Lisboa durante parte do século XX. Nesta antiga central de produção, o ferro e o tijolo formam uma simbiose compositiva e estrutural que gera uma forte imagética associada à identidade do edifício. A Central Tejo é um exemplo paradigmático da capacidade do ferro ser transformado ao longo do tempo. Desde a sua fundação em 1909, o conjunto edificado conheceu quatro fases de transformação que alteraram formalmente esta tipologia de génese industrial, embora sempre correlacionando o ferro com o tijolo. A sua capacidade estrutural permitiu sistematicamente a construção de espaços amplos, por adição, para a manutenção do sistema funcional necessário à produção até à sua atual adaptação a espaço museológico. Isto é visível noutro edifício em alvenaria de tijolo e ferro, a Tabaqueira (1927, autor não identificado), cuja riqueza do ornamento do friso localizado acima do portão da entrada principal supera uma simples função estrutural. O módulo central deste edifício foi originalmente montado na Avenida da Liberdade, em 1888, para a Exposição Nacional das Indústrias Fabris. Esta estrutura foi depois relocalizada para Braço de Prata, tendo a fábrica começado a laborar apenas em 1927.

A Estação do Rossio (1891, de José Luís Monteiro), a Garagem Auto-Palace (1907, de Charles Vieillard e Fernand Touzet) e o Armazém Abel Pereira da Fonseca (1917, de Manuel Joaquim Norte Júnior) exibem fachadas onde a presença de grandes vãos de ferro é conjugada com outros materiais mais pesados. No entanto, o Armazém não se constitui como um exemplo de arquitetura/tipologia do ferro na medida em que o seu interior é em betão. Os restantes dois casos apresentam uma cobertura em ferro que abrange quase a totalidade do seu interior, diferindo na dimensão.

O Coliseu dos Recreios (1890, de Cesare Ianz e Francisco Goulard) e a Sala de Portugal da Sociedade de Geografia de Lisboa (1897, de José Luís Monteiro), espaços com funções distintas, mas que fazem parte do mesmo conjunto edificado, apresentam vários microelementos em ferro (coberturas, guardas, vigas, entre outros), formando uma só composição imagética tal como demonstrado no respetivo corte transversal e pormenores.

A plasticidade deste material permitiu a construção de diferentes formas e estruturas com repercussão na definição de tipologias que necessitam de espaços amplos, como o Coliseu e a Estufa Real do Palácio das Necessidades - com cúpulas sobre duas plantas centralizadas, uma de polígono regular octogonal e a outra circular - a Estação do Rossio (Figura 2) e a Sociedade de Geografia, com coberturas de duas águas assentes sobre uma estrutura de pilares em ferro suportando a amplitude funcional de uma planta regular retangular. Adicionalmente, importa ainda referir a cobertura de ferro e vidro da Estação do Oriente, com uma geometria mais complexa do que os casos anteriormente referidos.

Figura 2 Cais da estação do Rossio. Fotografia de José Miguel Silva, 2021. 

A amplitude do espaço atribuído pela leveza da materialidade contraria o peso e a opacidade de outros materiais como a pedra, uma oposição que se revê na permeabilidade da luz através do espaço1, uma relação interior/exterior, como por exemplo, entre a Estufa Real do Palácio das Necessidades e a Sé de Lisboa.

A relação do ferro com o espaço de habitar muda. Diminui a sua dimensão estrutural, transpõe os limites do edifício e amplia a sua condição imagética e ornamental na composição dos alçados. No entanto, é possível estabelecer relações entre o uso de uma determinada função e a sua condição compositiva. Para tal, são apresentados três casos que, apesar de serem temporalmente intervenções distintas, fazem parte de uma mesma família, ainda que possam resultar de um processo de sedimentação num tempo longo, sendo possível fazer algumas analogias na aplicação do ferro aparente.

O Edifício 104 da Avenida Duque de Loulé (início do século XX, de autor não identificado) e o Cais 24 (2010, de Aires Mateus) são edifícios onde observamos o uso do ferro em duas épocas distintas e com uma hierarquia diferente em relação à sua predominância nas respetivas fachadas. O primeiro é um exemplo de um edifício de génese habitacional construído no princípio do século XX em que o ferro é utilizado em elementos de composição dos alçados, particularmente em marquises, guarda-corpos, portas e grelhas. Por sua vez, o Cais 24, um edifício de génese industrial (data não identificada), apresentava inicialmente uma construção mista de ferro, pedra e tijolo, mas, com a intervenção de 2010, a estrutura interior em ferro foi removida, restando apenas a memória material no revestimento de parte da fachada. Podemos ainda considerar a tipologia habitacional da Vila Berta (1908, de Joaquim Francisco Tojal) que denota o ferro nas varandas, terraços e pilares, sendo então a presença deste material fundamental na composição imagética do seu conjunto.

Por último, apesar de integrada nesta categoria, considera-se que a ornamentação é uma característica presente tanto na linguagem de elementos arquitetónicos como de espaço público. A ornamentação procura adornar ou atribuir qualidades essenciais a um determinado objeto. O ornamento é utilizado na procura da beleza ou de significado, enfatizando a expressão da composição e dos sentidos do observador.

Para a sua representação foram destacadas de forma casuística partes da microescala - painéis de porta, guarda-corpos, pilares, frisos, gradeamentos - de alguns dos edifícios acima descritos, para colocar em evidência o uso do ornamento no embelezamento dos seus alçados e espaços interiores.

Acrescenta-se, por fim o portão do Palácio Fronteira como uma referência à vedação de ferro. Este material marca com solenidade o ato de entrar neste palácio, sendo complementado por um embasamento em pedra. Esta dualidade de materiais e hierarquia compositiva pode também ser verificada no perímetro de vários jardins da cidade.

Linguagem de Elementos de Espaço Público

Os elementos de linguagem de espaço público procuram assinalar exemplos da presença do ferro em ruas, praças, largos e jardins da cidade de Lisboa. São, portanto, testemunhos da aplicação deste material no mobiliário urbano da capital, predominantemente instalado no final do século XIX e início do século XX.

As políticas de desenvolvimento da cidade neste período incidiam sobre duas preocupações essenciais, uma higienista e outra lúdica, a par das questões de embelezamento. As preocupações de salubridade permitiram a introdução de novos elementos como urinóis, fontes ou candeeiros de iluminação, bem como o sentido do lazer e da usufruição dos espaços públicos e equipamentos como quiosques, coretos, estufas, bancos de jardim, entre outros. Um exemplo paradigmático é a proposta do jardineiro francês Jean Bonnard para a conceção do espaço do Passeio Público em 1848 (Figura 3). O projeto incluía diversos elementos de espaço público em ferro, tais como estufas, coreto, candeeiros, vasos ornamentais, fontes e estátuas.

Figura 3 Elementos em ferro no antigo Passeio Público. Desenho de Jean Bonnard para um novo projecto do Passeio Público, 1848. AML, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/508. 

Comparando os elementos de mobiliário urbano, inseridos no plano de Paris de 1857 (de Georges-Eugène Haussmann e Jean-Charles Adolphe Alphand), catalogados no livro Paris Haussmann: modèle de ville com aqueles encontrados no Arquivo Municipal de Lisboa e referentes a esta cidade, são notórias as similitudes dos candeeiros, fontanários, urinóis e bancos de jardim. Esta evidência demonstra que muitos destes elementos construídos em Lisboa resultaram de um processo catalogado que replicou partes da imagem urbana de Paris. Um exemplo pode ser encontrado no Fontanário dos Quatro Anjinhos, localizado na Praça D. Pedro IV (Rossio), inspirado pela Fontaine Wallace e concebido pela Fundição Durenne em Sommevoire. Importa ainda referir as duas fontes monumentais do Rossio (1889), obras de artistas franceses com destaque para a presença de diversas figuras mitológicas em ferro fundido. Podemos encontrar um modelo com algumas semelhanças na Fontaine des Fleuves, em Paris.

Relativamente aos chafarizes de ferro fundido, elementos comuns nos largos e jardins da cidade no século XX, hoje quase desaparecidos, foi possível identificar diferentes variantes do tipo, com uma quantidade assinalável de bicas de água tanto em ferro como em pedra. Assinalam-se exemplos de um uso misto do material com a existência de um tanque de pedra que circunda e delimita o chafariz.

Seguindo com a influência parisiense na paisagem lisbonense, encontramos os fontanários-bebedouro para animais, cujo topo das suas estruturas era constituído ora por candeeiros, ora por um painel informativo. Esta última versão ainda persiste nas zonas de Santa Apolónia e do Príncipe Real, em Lisboa.

Já no capítulo da higiene pessoal, importa referir os mictórios e as guaritas com urinol. Estes lugares públicos construídos em ferro apresentavam comummente formas poligonais regulares de planta pentagonal e hexagonal. Na sua maioria possuíam uma chapa e/ou uma cobertura ornamentada que protegia a privacidade necessária à sua função.

No entanto, existem outros exemplos que poderão ser constituídos por uma chapa que delimita um espaço junto de uma parede, ou de planta retangular2 contendo pedra e ferro na sua composição.

Uma parte dos mictórios caiu em desuso ou foi desmantelado, mas ainda é possível encontrar alguns exemplos destas estruturas na cidade: na Rua do Chão da Feira (planta irregular, chapa/parede), na Praça David Leandro da Silva (planta quadrada, chapa/pedra), ou na Praça Viscondessa dos Olivais (planta circular, chapa/urinol).

Relativamente à iluminação pública, é importante documentar dois aspetos num universo de exemplos muito diversificado: a influência francesa em Oitocentos e a construção de um modelo lisboeta no século XX. A influência francesa no desenho das lanternas dos candeeiros de Lisboa (Figura 4) está documentada nos múltiplos “desenhos de modelos de lanternas e candelabros”3, de coluna ou suspensos, executados pela Fundição Lacarriere Frères et Delatour em Paris. Um exemplar destas lanternas, encimada por uma coroa metálica, subsiste eletrificado na Avenida Duque de Loulé.

Figura 4 Os candeeiros a gás em Lisboa e Paris: a) Candeeiro a gás no Terreiro do Paço e acendedor de candeeiros, Henrique Maufroy de Seixas, [1862-1950]. AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000002; b) Place de la Concorde, Amadeu Ferrari. AML, PT/AMLSB/FER/008920. 

Em 1949, a Câmara Municipal de Lisboa cria um modelo de candeeiro em ferro fundido, conhecido como “caravela” por ter um coroamento com o símbolo da cidade: uma caravela sobre a qual poisam dois corvos. A presença deste emblema atesta uma personalização em relação à importação dos modelos franceses. Ao modelo são ainda reconhecidas duas variantes: uma com braço inclinado e outra com quatro braços.

Na última década do século XXI vários candeeiros do século XIX, colunas “caravela”4 em ferro fundido (da década de 1940), e consolas de iluminação em ferro forjado e em marmorite (década de 1950) têm vindo a ser substituídas por outras colunas de desenho contemporâneo e construídas em chapa galvanizada.

Em relação aos bancos de jardim da cidade, foram selecionados dois modelos distintos: um banco duplo de princípio do século XX e um outro ainda existente no Jardim do Torel. Em ambos, o ferro é utilizado na estrutura de suporte e a madeira enquanto material de encosto, sendo que a ornamentação surge apenas nos elementos metálicos.

Integrados nos elementos de espaço público, mas com uma forte componente lúdica e edificada, convém referir o Coreto do Jardim Henrique Lopes de Mendonça (1912, de José Alexandre Soares) e o Quiosque do Jardim Miradouro de São Pedro de Alcântara (data e autor não identificados). Estes exemplos de planta regular hexagonal apresentam os pilares de forma muito aparente como elementos compositivos, sendo encimados por uma cobertura de ferro com pára-raios. Existe ainda em comum uma ornamentação rendilhada no topo dos pilares.

Os registos gráficos encontrados na base documental do AML permitem identificar uma variação da forma deste tipo de elementos. Os quiosques eram construídos em ferro, madeira e vidro, de pequenas dimensões e formas decorativas, de base variável entre o polígono regular hexagonal (1894, Frederico Ressano Garcia)5 e octogonal (1869, Fróis Matos Pinto)6. Tinham, entre outras funções, a venda de jornais, tabaco, flores e bebidas7. Atualmente, a sua importância lúdica na sociedade foi renovada com a restituição dos quiosques no espaço público da cidade de Lisboa, ainda que apresentem outras variações formais.

Por sua vez, a diversidade tipológica do coreto difere entre a planta circular e poligonal - quadrado, hexagonal e octogonal -, de composições “toscas”, “cuidadas” e de “aparato”. De acordo com Eunice Relvas e Pedro Braga (1991, p. 17-47), o tosco define a imagem rudimentar de estruturas em madeira, muitas vezes efémeras, sem cobertura, onde o ferro apenas é utilizado nas escadas. Os coretos cuidado e de aparato são construídos com materiais diversificados, de cobertura e base ornada definindo imaginários de desenho “rústico’’, “clássico”, “exótico” ou “afrancesado”. O de aparato acrescenta ao anterior a monumentalidade da escala e da materialidade do ferro e do betão. Um exemplo enigmático, de inspiração francesa e de influência de Ressano Garcia, é o coreto do Jardim da Estrela (1894, de José Luís Monteiro). O coreto foi inicialmente construído na Avenida da Liberdade e, em 1955, deslocado para aquele jardim como peça fundamental na criação de um espaço evocativo do Passeio Público e da Lisboa romântica (Relvas e Braga, 1991, p. 134).

Conclusão

Apesar do ferro não ser atualmente um material de construção tão comum nas novas edificações como foi no período da Revolução Industrial, é indelével a sua marca na Lisboa contemporânea. A corrosão da sua memória foi evitada por diversas gerações que, ora no tecido edificado, ora no espaço público, reconheceram valor na sua imaginabilidade, maleabilidade e resistência.

A arquitetura do ferro oitocentista em Lisboa foi claramente influenciada pelos modelos franceses estabelecidos com a vanguarda das técnicas de fundição e arte, permitindo a transformação do tecido edificado, particularmente o industrial, em infraestruturas e detalhes em edifícios de habitação. No entanto, é no espaço público que a imaginabilidade por repetição se torna mais evidente.

Existe um efeito causal entre a capacidade estrutural do ferro e a construção de tipologias com funções específicas, quer em altura, quer na dimensão horizontal dos grandes vãos metálicos. O ferro, ao contrário da pedra, sugere uma ideia de leveza, maleabilidade estrutural e grande permeabilidade visual. Ao primeiro reconhece-se a sua condição orgânica, relação entre a linguagem do ornamento e o pensamento do observador que permite a sua contínua transformação. À segunda, uma condição inorgânica, elemento estático de difícil recomposição.

Os diferentes modelos assinalados mostram um processo de adaptação dos elementos ao tempo, da réplica à sua adequação ao século XX, culminando na substituição do ferro por outros materiais. Essa variação demonstra também diferentes complexidades e riquezas no desenho, a ideia aparente do ornamento do ferro parisiense é substituída por processos de fabrico e catálogos simplificados. Por exemplo, os candeeiros sofreram um processo de eletrificação que levou a uma mudança do lanternim, muitas vezes com a introdução de campânulas de vidro, ou mesmo a sua mudança integral.

O ferro rendilhado e orgânico da Belle Époque foi, assim, substituído pelo aço, privilegiando a simplicidade das linhas, por vezes visível para embelezamento do espaço, por outras oculto e relegado à sua condição estrutural.

Referências bibliográficas

Estudos

BARRADAS, Sílvia - A produção de mobiliário urbano de fundição em Portugal: 1850 a 1920. Barcelona: [s.n.], 2010. Tese de doutoramento, Universidade de Barcelona. [ Links ]

JALLON, Benoit; NAPOLITANO, Umberto; BOUTTÉ, Franck - Paris Haussmann: modèle de Ville. Paris: Pavillon de l’Arsenal, 2017. [ Links ]

LYNCH, Kevin - A imagem da cidade. (1ª ed. 1960). Lisboa: Edições 70, 1996. [ Links ]

PESSOA, Fernando - Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944. [ Links ]

RELVAS, Eunice; BRAGA, Pedro Bebiano - Coretos em Lisboa, 1790-1990. Lisboa: Editorial Fragmentos, 1991. [ Links ]

iii O estudo está integrado no Projeto de Investigação “Tipologia Edificada - Inventário Morfológico da Cidade Portuguesa” (FCT refª PTDC/ART-DAQ/30110/2017),última fase da construção do “Atlas Morfológico da Cidade Portuguesa” em desenvolvimento na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa.

1Analogia a partir dos conceitos de tectónico e estereotómico em APARÍCIO GUISADO, Jesús María - El muro, concepto esencial en el proyecto arquitectónico: la materialización de la idea y la idealización de la materia. Madrid: Biblioteca Nueva, 2006. p. 20.

2AML, Mictório de quatro lugares tipo francês, 1931-05, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/803.

3AML, Lanterne de ville en cuivre, s/d, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/637.

4AML, Candeeiro de ferro tipo caravela, s/d, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/766.

5AML, Alçados e plantas de quiosques, 1895-11-01, PT/AMLSB/CMLSBAH/GEGE/030/000015/01.

6AML, Desenho tipo dos quiosques para a Praça D. Pedro IV, 1869-01-15, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/820.

7AML, Documentos anexos ao parecer nº 919, 1881-08-18, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/06-01/0329.

8Lista de fontes de apoio à representação gráfica: Arquivo Municipal de Lisboa: Obra 40857, Processo 43-DMGU-EDI-2011 - Folha 28; Processo 14015--PET-1975 - Folha 4; Processo 17104-DAG-PG-1966 - Folha 6. Obra 2809, Processo 396-DMGU-POL-2010 - Folha 43. Obra 42201, Processo 16003-SEC-PG-1929 - Folha 2; Processo 42126-SEC-PG-1938 - Folha 6; Processo 63234-SEC-PG-1938 - Folha 5. Obra 8962, Processo 4088-1ªREP-PG-1906 - Folha 5; Processo 17052-DSCC-PG-1956 - Folha 12; Processo 17052-DSCC-PG-1956 - Folha 13. Obra 11299, Processo 7237-1ªREP-PG-1889 - Folha 4; Processo 7237-1ªREP-PG-1889 - Folha 5; Processo 7237-1ªREP-PG-1889 - Folha 6; Processo 16013-DAG-PG-1929 - Folha 25; Processo 52292-DAG-PG-1963 - Folha 14; Processo 52292-DAG-PG-1963 - Folha 16; Processo 52292-DAG-PG-1963 - Folha 19. Pasta nº 32/DPC/IM/2006, 2006-2012, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-OP/26/005. Levantamento parcial do coreto existente na Praça José Fontana: corte AB, s/d, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/832. Quiosque de venda de refrescos e outras bebidas, 1908-08, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001078. Alçados e plantas de quiosques, 1895-11-01, PT/AMLSB/CMLSBAH/GEGE/030/000015/0. Desenho tipo dos quiosques para a Praça D. Pedro IV, 1869-01-15, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/820. Desenho junto ao programa das condições com que é posto em praça o fornecimento de vinte urinois de tipo francês, 1890-02-25, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/798. Desenho de guarita de ferro para urinol, 1902-07-11, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/802. Candeeiro-tipo proposto pela Sociedade Anónima Gás de Lisboa: modelo nº4, 1888-12-13, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/773. Candeeiro de ferro tipo caravela 4 braços, s/d, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/769. Candeeiro de ferro tipo caravela, s/d, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/766. Desenho de candelabro e lanterna, s/d, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/635. Lanterne de ville en cuivre, s/d, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/637. Avenida da República, s/d, Amadeu Ferrari, PT/AMLSB/FER/000104. Mictório de quatro lugares tipo francês, 1931-05, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/11/803. Documentos anexos ao parecer nº 919, 1881-08-18, PT/AMLSB/CMLSB/UROB-PU/06-01/0329. Centro de Documentação Histórica e Técnica da EPAL (CDHT/EPAL): Chafariz da Rua de D. Vasco, s/d, PT/EPAL_CDHT/AH/DT/OB/021/0021/006. Outros: A Tabaqueira, levantamento arquitetónico realizado e disponibilizado pelos arquitetos Filipe Martins e Filipa Jacinto, 2018. Centro de Documentação da Fundação EDP: Central Tejo. Edifício das caldeiras de baixa pressão, Corte longitudinal e transversal, 11/03/1986, cota: Arq3/Gav9_Sem no2. Central Tejo. Edifício das caldeiras de alta pressão, cortes 09/10/1985, cota: Arq3/Gav13_EDP 86_0091. Central Tejo. Alçado e planta geral, 21/02/1973, cota: Arq3/Gav11_SEM No 7. Central Tejo. Edifício, cota: s/d, Arq3/Gav11_SEM No10.

Anexo 1

Elementos de linguagem arquitetónica e de espaço público

8

Elementos de Linguagem Arquitetónica

estrutura simples

Elementos de Linguagem Arquitetónica

estrutura composta

Elementos de Linguagem Arquitetónica

estrutura composta

Fachada

Elementos de Linguagem Arquitetónica

estrutura composta

Elementos de Linguagem Arquitetónica

fachadas

Elementos de Linguagem Arquitetónica

ornamento

Elementos de Linguagem de Espaço Público

iluminação de rua

fontanário - banco de jardim

Elementos de Linguagem de Espaço Público

quiosque - urinol

coreto

Recebido: 30 de Dezembro de 2020; Aceito: 19 de Abril de 2021

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