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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.17 Lisboa June 2022  Epub June 01, 2022

https://doi.org/10.48751/cam-7a2m-sc18 

Dossier

Do papel para a matéria: os cadernos de encargos como fontes para a interpretação da obra arquitetónica - cinco construções de Raul Lino

From paper to material: the importance of the construction specification books for the architecture study - five works of Raul Lino

i Câmara Municipal de Lisboa, Departamento Património Cultural/ Instituto História da Arte, Faculdade Ciências Sociais e Humanas, NOVA Lisboa, Lisboa, Portugal. helia.silva@cm-lisboa.pt

ii Instituto História da Arte, Faculdade Ciências Sociais e Humanas, NOVA Lisboa, Lisboa, Portugal. tborgeslourenco@gmail.com


Resumo

Tem sido reiterada a ausência da utilização dos cadernos de encargos em estudos arquitetónicos e de intervenção patrimonial. No entanto, trata-se de um documento fundamental para o entendimento da forma como se desenvolve a passagem do papel para a matéria, acrescentando dados sobre opções técnicas por parte dos arquitetos e proprietários, e elementos para as histórias, e os glossários de materiais e técnicas construtivas.

Com este artigo pretende-se valorizar a leitura e interpretação destas peças e, assim, abrir um novo campo de trabalho na interpretação da obra arquitetónica de arquitetos e mestres de obras de princípios de Novecentos. Para o efeito, toma-se o exemplo dos contratos de empreitada e respetivos cadernos de encargos de cinco obras de uma fase inicial da carreira de Raul Lino. Deles é possível extrair preocupações construtivas, domínio da técnica, escolha, aplicação e integração dos materiais, controlo da qualidade construtiva e decorativa bem como o modo de atuar perante as especificidades de implantação, localização e proprietário de cada casa.

Palavras-chave: Cadernos de encargos; Construção; Arquitetura; Empreitada; Raul Lino

Abstract

The study of a building’s architecture usually neglects the analysis of its construction specification book. Nevertheless, it is an essential document to perceive the visions and concerns of the architect as well as the application of the materials.

Giving as example the construction specifications books of five works from an early stage of Raul Lino’s career, this article aims to open a new field of the investigation of the architectural work as it demonstrates the value of these documents for the architecture study.

Keywords: Construction specification books; Construction; Architecture; Building; Raul Lino

“A grande luta do arquitecto, a sua tarefa mais difícil e importante, não é vencer problemas técnicos ou económicos; é transformar a massa inerte da construção em obra orgânica com aspecto de coisa viva” (Lino, 1992, p. 61).

A importância dos cadernos de encargos para a história da arquitetura1

Habitualmente celebrado entre proprietário e empreiteiro, o caderno de encargos é, em traços gerais, um documento no qual se enumeram as obrigações de ambas as partes e as condições técnicas para a execução de uma obra. Desvalorizado pelos historiadores de arquitetura, o seu estudo permite conhecer uma fase intermédia do projeto de um edifício que se confunde com a sua própria construção.

No âmbito de uma investigação alargada em desenvolvimento pelos autores, foram recolhidos e compilados mais de meio milhar de cadernos de encargos de construções, maioritariamente da região de Lisboa, de tipologias e autorias distintas, constituindo um universo que engloba desde alguns dos principais arquitetos do início do século XX a anónimos mestres de obras2. É justamente esta diversidade e amplitude que possibilita o desenvolvimento de um estudo comparado e global das características destes documentos entre 1890 e 1920, de que o presente artigo é o primeiro dos autores a abordar o tema.

Consultando as mais relevantes publicações portuguesas que neste período versavam sobre arquitetura, percebe-se que, apesar de serem a principal fonte de divulgação (e de identificação de autorias) de novos edifícios a construir ou em construção, se limitavam a apresentar desenhos técnicos (plantas, alçados e cortes) dos seus projetos, menosprezando a importância das peças escritas3. No entanto, já então os cadernos de encargos se constituíam como documentos fundamentais para o entendimento da forma como se desenvolve a passagem do papel para a matéria, fornecendo dados sobre elementos construtivos e opções técnicas tomadas por arquitetos e proprietários que revelam a forma de consubstanciar um projeto de arquitetura. Caracterizados por uma secura de enumeração de itens muito tipificada, quase fórmula, partilhavam entre si características genéricas sendo, no entanto, variável o grau de profundidade da informação recolhida nestes documentos, verificando-se uma heterogeneidade na pormenorização e especificações técnicas e materiais consoante o autor, a tipologia, a qualidade do projeto, o local de implantação, etc.

Embora fossem redigidos por arquitetos ou mestres de obras e refletissem fielmente a sua visão da obra e a forma como a pretendiam concretizar material e estruturalmente, só muito raramente os cadernos de encargos se encontram por estes assinados. Ainda assim, a vincada aura da omnipresença dos autores transformam-nos muitas vezes em autênticas marcas identitárias do seu trabalho, a ponto de permitirem propostas de atribuição de autorias até então desconhecidas. Por exemplo, era habitual a inclusão de um tópico dedicado à pintura decorativa em fachada nos cadernos de encargos de moradias projetadas por Norte Júnior; nos que respeitavam às obras de Ventura Terra, transparecia o absoluto controlo que este arquiteto exigia ter nos diferentes momentos construtivos das suas obras. Embora se encontrem elementos comuns nos diferentes cadernos de encargos de Raul Lino, em comparação a outros arquitetos seus contemporâneos denota-se uma maior adaptação às diferentes características de cada projeto e do seu proprietário.

Ao suscitarem também correções na datação de determinadas obras, contribuem ainda para uma nova leitura dos edifícios e da própria sequência cronológica dos trabalhos do arquiteto, concorrendo para uma mais clara perceção da evolução do seu modo de projetar.

Um dos mais interessantes tópicos abordados nestes documentos é o que reporta à gestão administrativa e financeira da obra, questão prática amplamente desconsiderada pela historiografia. Genericamente não se encontram grandes diferenças relativamente à prática presente, então e agora procedendo-se a adjudicações diretas a empreiteiros mediante a obrigação do cumprimento de um caderno de encargos por um preço global, fixo e não revisível (à forfait). Este valor era habitualmente liquidado pelo proprietário em prestações que venciam em diferentes momentos construtivos4 ou mensalmente conforme os autos de medição dos vários itens que compunham a obra e cujo preço por metro corrente, quadrado ou cúbico se encontrava previamente definido. Não obstante o estabelecimento prévio de um custo fixo, os contratos de empreitada concediam ao proprietário a liberdade para escolher e/ou fornecer alguns dos materiais no decorrer da obra, por uma questão de gosto (nas habitações unifamiliares) ou de controlo de custos (nos prédios de rendimento)5. Por outro lado, o conhecimento dos valores dos diversos itens das empreitadas permite uma análise rigorosa dos custos de construção.

Nestes documentos é também possível fazer um levantamento detalhado dos materiais e técnicas então utilizados, em aspetos tão díspares como a aplicação de asfalto (betume) nas paredes das caves para as impermeabilizar, a introdução de novos materiais ou de novas lógicas estéticas (ex.: aplicação de azulejos em frisos junto às cimalhas dos edifícios). No caso do início do século XX, tratando-se de um período particularmente sensível a este respeito, é possível compreender a forma como a introdução de novos materiais vai ocorrendo (caso do betão armado, inicialmente usado apenas em elementos pontuais). Estes (e outros) elementos fundamentais para a história da construção deste período permitem confrontar os ensinamentos da bibliografia técnica da época (caso das diversas obras da coleção da Biblioteca de Instrução Profissional) com a realidade construtiva, justificando-se o seu aproveitamento na elaboração de glossários de vocabulário técnico. Por outro lado, ao comparar cadernos de encargos de edifícios projetados e construídos para diferentes estratos sociais, é possível estabelecer uma hierarquização dos materiais e saber em que contextos eram aplicados6.

Por fim, importa alertar para a absoluta pertinência da utilização destes documentos na elaboração e execução de processos de reabilitação e conservação e restauro do edificado, visto algumas das técnicas então utilizadas serem hoje praticamente desconhecidas pelos vários intervenientes destas obras. Ao possibilitar aos seus responsáveis um conhecimento mais exato das técnicas construtivas, dos materiais originalmente escolhidos (tipo de reboco, conhecimento das pedreiras de onde foram extraídas as cantarias, etc.) e da forma como estes foram aplicados, contribui-se ativamente para uma intervenção mais respeitadora das características construtivas iniciais e para a recuperação da memória do saber fazer.

Raul Lino, construtor de casas

O meu pai era uma pessoa prática e sabia muito bem o que queria, achou que me devia mandar para a Alemanha, não só para aprender a língua, [...] mas também para fazer um curso de arquitetura, que se ligava de qualquer maneira ao seu negócio que era [...] de materiais de construção. Uma ideia muito boa! E eu lá fui...7.

É justamente, primeiro, na Alemanha, e posteriormente, da prática reiterada em Portugal, que os fundamentos teóricos da arquitetura de Raul Lino (1879-1974) foram adquiridos e aperfeiçoados. Mas a sua relação e conhecimento dos materiais são anteriores do contacto com o seu pai8, José Lino da Silva, proprietário de uma das mais reputadas casas de materiais de construção de Lisboa. Este ascendente seria responsável pela forma como a profissão do pai acabou por definir a do filho, como o último assumiria. Fundamental para o conhecimento da obra de Raul Lino, este aspeto tem sido desprezado, ou pelo menos, estado ausente da maioria dos muitos estudos que lhe têm sido dedicados9. Do mesmo modo, a escolha dos materiais, a sua aplicação e o modo como os coloca ao serviço dos seus fundamentos teóricos tem despertado pouco interesse pela historiografia, com exceção do azulejo, aspeto que tem vindo a ser trabalhado, pelo menos, desde o polémico texto Raul Lino, arquitecto moderno de Pedro Vieira de Almeida (1970) onde se afirma que “[o azulejo] nunca é empregue como [...] aquele esteriotipado e triste painel [...] [mas antes] sublinha a volumetria e a espessura das paredes e ganha ele próprio plàsticamente uma espessura, na medida em que surge incrustado nessas paredes e em que por vezes é empregue apenas para subir pontualmente a tensão plástica dum troço de construção” (Almeida, 1970, p. 142).

Mais recentemente, a aplicação azulejar nas obras de Lino foi também objeto de estudo de Maria do Carmo Lino (Lino, 2014), sua sobrinha-bisneta, cujo trabalho tem também o mérito de tocar, ainda que de forma mais fugaz, no uso de alguns materiais construtivos como decoração (painéis de madeira em paredes ou da pedra e do tijolo em lareiras)10. Mas importará levar a questão muito além do modo de emprego do azulejo ou do “gosto da parede com matéria [e das] moldurações que absorvem e adoçam as chapadas de luz” (Almeida, 1970, p. 142) a que Vieira de Almeida também alude. Dever-se-á também procurar compreender a escolha dos materiais construtivos das casas de Raul Lino para cumprir fundamentos práticos (de resistência construtiva, de conforto) e aprofundar a ideia de Maria do Carmo Lino de que, quando colocados ao serviço do bom gosto, ganhavam também uma dimensão decorativa, como é o caso da complexa aplicação de tijolo nas aduelas das janelas das suas casas marroquinas.

Estas questões foram, de resto, detalhadamente desenvolvidas em algumas das obras e textos que Lino deixou escrito, nomeadamente em A nossa casa: apontamentos sobre o bom gosto na construção das casas simples (1918) e Casas portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples (1933)11. Tratados de bem projetar e de bem construir12, abordam os princípios aos quais Lino considerava se dever submeter a construção de uma casa, neles abordando a escolha do terreno, o desenho das plantas, os materiais e as técnicas construtivas. A respeito dos dois últimos pontos, em A nossa casa disserta sobre: a enxilharia; o tijolo, “belo elemento de decoração quando aplicado criteriosamente”; pavimentos assoalhados ou ladrilhados, entendendo ser aceitável o ladrilho de uma só cor ou em singelo xadrez “porque se apresenta como simples material que é, cuja graça reside apenas no ritmo das juntas ou no contraste das duas cores, sem pretensão de ornamento engenhado sobre princípios errados”; a aplicação de azulejo; os madeiramentos, (“as vigas de madeira convenientemente tratadas e ficando à vista formam um tecto que há-de ser eternamente agradável”); e a cobertura (Lino, 2018, p. 33, 36 e 60).

Acerca deste último, transcreve-se uma breve passagem em que, a propósito de um aspeto aparentemente trivial (a telha), condensa na perfeição o seu conhecimento material, técnico e decorativo:

É preciso dizer-se que sob o ponto de vista económico a cobertura de telha de canal é ainda assim dispendiosa para ser feita com todo o esmero; podemos no entanto recomendar um certo tipo de telha, denominada “Lusa”, que apareceu há alguns anos no mercado e que, enquanto se não inventar outro melhor, é bastante satisfatório. O seu assentamento é exactamente como o da telha de Marselha; não tem porém o aspecto prensado daquela, porque é uma simples ondulação com profundo relevo. Sobre um beiral à portuguesa com suficiente balanço e ligando-se a este por meio duma sanca bem lançada, as coberturas da telha “Lusa” arrematam-se perfeitamente e, querendo gastar-se mais alguma coisa, o que vale muito a despesa é empregar telha vidrada, com vidro, transparente ou de cor verde, obtendo-se assim um belíssimo telhado sem defeito (Lino, 2018, p. 37).

Em Casas portuguesas, redige um capítulo intitulado Entre a economia e a beleza, no qual não se limita às questões inerentes ao desenho da planta ou da exposição solar, discorrendo longamente sobre: a solidez estrutural, uma das questões-chave da sua obra, que considera não ser “um luxo [...] [pois] vale mais uma construção sólida, ainda que desguarnecida, do que outra toda enfeitada onde se vejam sinais de execução deficiente”13; o isolamento, abordando questões como “o empreg[o de] argamassa hidráulica para evitar a contaminação da humidade do terreno” ou a importância da existência de pavimento cimentado nas caves; a ventilação (criação de caixas de ar); o sistema de caixilharia (“muita, toda a atenção [...] deve merecer esta obra de carpintaria que é entre nós na maioria dos casos tratada com imperdoável leviandade”); o aquecimento; e questões práticas de higiene (Lino, 1992, p. 23, 26 e 32).

À vista destes exemplos, em especial da afirmação de que Raul Lino considera mais importante as questões construtivas do que decorativas, resulta pouco clara a forma como os materiais aplicados e as técnicas construtivas têm sido pouco estudados na sua obra e na dos restantes arquitetos portugueses do seu tempo. Lino afirmava também que “chamam-se arquitectos os artistas que se especializam em delinear construções” (Lino, 2018, p. 19). E delinear construções é, na origem do seu propósito, edificá-las. Porque uma casa é, antes de tudo, matéria. E se “a grande luta do arquitecto [...] é transformar a massa inerte da construção em obra orgânica com aspecto de coisa viva” (Lino, 1992, p. 61), então os fundamentos teóricos dessa transformação não podem ser indissociáveis do seu processo prático. Assim, e de modo a procurar contrariar esta crónica omissão da historiografia e permitir uma leitura mais rigorosa ao estudo do edificado, aplica-se-lhe de seguida o conhecimento vertido dos cadernos de encargos utilizados na sua construção.

Cinco cadernos de encargos

Nestes termos, parte-se de cinco documentos de outros tantos edifícios projetados numa fase inicial da carreira de Raul Lino14. Ao trabalhar aqui somente estes, não se pretende dissertar sobre os fundamentos teóricos e interpretativos da obra de Raul Lino ou da sua importância para a história da arquitetura portuguesa. É antes intenção dos autores (com recurso a transcrição de várias passagens) utilizá-los para exemplificar o modo como permitem ler um edifício e obter um conhecimento dos materiais e técnicas utilizadas, bem como do modo de projetar e da própria evolução dos arquitetos.

Construídos, respetivamente, em 1901 e 1902, o Casal de São Roque e a Casa de Santa Maria (ambos no concelho de Cascais) são casas de veraneio, junto ao mar, desenhadas num momento em que Lino ainda buscava a sua identidade arquitetónica - seriam por si ampliadas na década seguinte.

Para Lisboa, projeta em 1903 uma casa de rendimento para Júlio de Andrade, uma proposta híbrida que resulta no mais urbano dos chalets lisboetas. Também para a capital, em 1913 é materializado um projeto para a Casa de Elisa Vaz, num terreno de gaveto na avenida da República, construção marcadamente citadina, mais contida na implantação, linguagem e volumetria.

Por fim, projetada e construída entre 1918 e 1921 e marcadamente eclética, a Torre de São Patrício (no Monte Estoril) é uma casa apalaçada composta por loggia, torre neomedieval e um claustro de recreio a tardoz.

Casal de São Roque, Estoril (1ª fase - 1901)

Quando em 1901, Carlos Francisco Ribeiro Ferreira (1875-1930) encomendou ao jovem Raul Lino o projeto de uma casa para um terreno no Estoril, estaria por certo longe de imaginar que, no decurso do tempo, este se tornaria no seu arquiteto de família15. Já depois de lhe ter feito as encomendas de uma moradia na avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa (projeto de 1904/5 com alterações em 1906)16 e da ampliação desta sua casa do Estoril (1912), em 1916 o seu irmão António Francisco (1856-1939) encarregou Lino de desenhar uma casa para o terreno contíguo ao do aludido Casal de São Roque e, em 1927, a ampliação de um prédio no Campo Grande (atual nº 170). Cinco anos depois seria o filho deste último, Carlos Machado Ribeiro Ferreira (1878-1965), a incumbir o arquiteto de um projeto para Sintra, o da Casa dos Penedos, que acabaria por se tornar numa das mais icónicas obras da arquitetura portuguesa contemporânea.

Regressando ao ponto de partida desta profícua relação, a 26 de junho de 1899, António e Carlos arremataram separadamente, à Fazenda Nacional, dois talhões contíguos do “demolido forte de São Roque, no Estoril”17 de dimensões (ca. 810m2) e valor de arrematação (ca. 3:250$000) semelhantes. Pouco depois, Carlos encomendaria a Raul Lino um dos seus primeiros projetos, para cuja execução assina, a 12 de novembro de 1901, um contrato de empreitada18 com o construtor civil Manuel Joaquim Oliveira para

um predio de rez-do-chão, primeiro andar e agua-furtada [...] [a ser] construido pela fórma e nos termos designados no projecto que em duplicado foi nes[s]e acto assignado por ambos os outorgantes para ficar um exemplar em poder de cada um depois da approvação pela Camara Municipal de Cascaes, e bem assim nos termos dos respectivos detalhes que forem fornecidos ao empreiteiro, e ainda em conformidade com o caderno d’encargos.

Por esta descrição sumária do processo é possível compreender que, de entre a diversa documentação a arquivar nos serviços camarários, não constaria o caderno de encargos19. Tal como se verifica no concelho de Lisboa, a apresentação deste documento não era uma exigência destes serviços que, quanto muito, apenas requeriam uma versão abreviada na qual fosse asseverado o cumprimento da legislação em vigor e o tipo e qualidade de alvenaria, de vigamento, de cobertura, etc., a aplicar.

Assim, os cadernos de encargos não só serviam para fornecer ao empreiteiro indicações precisas sobre os trabalhos a desenvolver e materiais a empregar, como também para regular alguns dos deveres e direitos das partes envolvidas (arquiteto/mestre de obras, proprietário e empreiteiro). Logo no contrato de empreitada do Casal de São Roque esta questão torna-se mais clara, ao ser permitido ao primeiro outorgante (proprietário)

propôr qualquer alteração no projecto, responsabilizando-se pelo augmento que esta alteração possa representar sobre o preço fixado [...] [sendo-lhe igualmente possível a si] ou a quem suas vezes fizer e ao architecto examinar se os trabalhos são executados nas condições ajustadas, obrigando-se o empreiteiro a prestar todos os esclarecimentos que lhe forem pedidos e sendo feitas a elle exclusivamente quaesquer reclamações.

Esta passagem permite também concretizar a ideia abordada no capítulo anterior relativa à possibilidade de o proprietário (com um implícito acordo do arquiteto20) proceder a alterações em obra, desde que acauteladas as devidas questões financeiras.

O contrato de empreitada foi celebrado por 8:000$000 (oito contos de réis) a serem pagos em quatro prestações de igual montante21, devendo a obra ficar pronta até 31 de julho de 1902. Na data da assinatura foi também rubricado pelos dois outorgantes o respetivo caderno de encargos, documento relativamente resumido que englobava um total de 17 tópicos22. Se quanto à alvenaria, segue um discurso relativamente normalizado para um edifício da qualidade pretendida, estabelecendo que

as paredes serão construidas de bôa pedra, grez ou calcareo, cal cosida a matto e areia ou saibro. A dosagem da argamassa, comquanto possa variar um pouco segundo os casos, deverá ser sensivelmente de um para dois isto é, o volume de areia ou saibro o duplo do volume da cal. É absolutamente prohibido o emprego de areia da praia. Todo o tijollo que se empregar será da melhor qualidade, na passagem relativa à cantaria começa a ser revelada a identidade construtiva de Raul Lino, desde logo na forma como vinca a sua predileção pela pedra de Cabriz23 (Sintra), a ser escolhida da melhor qualidade, sem defeitos e lavrada segundo os detalhes fornecidos ao empreiteiro. [...] Como se vê no projecto, serão de cantaria as columnas das janellas, as dos alpendres e as do terraço que suportam a parreira, todos os peitoris, soleiras e degraus e os assentos marcados nos muros do terraço.

A pedra de Sintra é, no entanto, prescindida na composição de objetos de uso quotidiano (pias de despejo, lava-loiça e reservatório de águas, que deveriam ser de lioz e brunidas) e dos “elegimentos e outros trabalhos grosseiros que não fiquem á vista”, para os quais se deveria empregar “lagedo ordinario de Paço d’Arcos”, numa clara hierarquização da cantaria com objetivos artísticos (textura e cromatismo) e práticos (economia)24. Por seu turno, a riqueza da descrição dos materiais das paredes divisórias e respetiva forma de os aplicar demostram de forma fidedigna a prática construtiva do princípio de Novecentos:

os prumos, travessanhos e cruzetas dos frontaes serão de madeira do pinhal com a secção de 0,15m x 0,08m e o enchimento de alvenaria ordinaria bem feita. O taboado a empregar nos tabiques será de bôa qualidade, empregando aspas reforçadas na grossura em tôdos os pontos onde suppórtem carga, preferindo sempre o emprego de calhas e pregando de par apenas aquelles que não tenham importancia.

No tópico relativo à carpintaria, é especificado que “os caixilhos, portas, guarnecimentos, roda-pés e todos os demais limpos [deveriam] ser de casquinha vermelha de bôa qualidade [...] [e que] para todas as portas e caixilhos [deveria o] empreiteiro [cingir-se] rigorosamente ao projecto e detalhes” desenhados por Raul Lino, o que revela o seu conhecimento de carpintaria, num consolidado saber adquirido na Alemanha25 que aqui se aplica à prática arquitetónica e será transversal a todas as suas obras futuras (Figuras 1, 2 e 3).

Figura 1 Alçado, Projeto de licenciamento do Casal de São Roque, 20-11-1901. AHMCSC, Proc. CMC_L_E_001_004_0295_003. 

Figura 2 Casal de São Roque, fachada sul. (A Construção Moderna, 1904a). 

Figura 3 Casal de São Roque, detalhe de cantaria da moldura de uma porta. (A Construção Moderna, 1904a). 

Casa de Santa Maria, Cascais (1ª fase - 1902)

Raul Lino viria também a ser o arquiteto de família de Jorge O’Neill (1849-1925), para o qual projetaria a Casa de Santa Maria (Cascais, 1902) e a Torre de São Patrício (Estoril, 1918-1921 - adiante abordada). O contrato de empreitada e o caderno de encargos26 da primeira apresentam características semelhantes às do exemplo anterior, tendo sido firmados a 28 de abril de 1902 pelo proprietário e pelo empreiteiro Francisco Duarte Leitão. Pelo contrato, e pretendendo O’Neill construir uma casa de habitação no seu “terreno situado junto ao pharol de Santa Maria em Cascais”27, foi dada ao segundo “a empreitada de lavor e materiaes [...] [d]o prédio [que deveria ser] construído pela fórma e nos termos designados no projecto já approvado pela respectiva Camara Municipal, e bem assim nos termos dos detalhes que forem fornecidos ao empreiteiro, e ainda de conformidade com o caderno d’encargos”.

Regia sobretudo questões de prazos (a construção deveria ficar pronta até 31 de dezembro seguinte), pagamentos (4:600$00, a liquidar em oito prestações iguais e mensais) e penalizações ao empreiteiro em caso de incumprimento. Apenas as cláusulas quarta e quinta reportavam diretamente a assuntos técnicos da obra, a primeira imputando ao empreiteiro as despesas com as terraplanagens e a segunda clarificando que “os caboucos [deveriam] ser feitos na profundidade necessaria segundo a natureza do terreno, de modo que offerec[essem] toda a garantia de solidez”. Uma vez mais, ao proprietário era permitido “propor qualquer alteração no projecto” e, a par do arquiteto, fiscalizar o curso dos trabalhos. Comparativamente ao do Casal de São Roque, este contrato concede a Raul Lino um mais apertado controlo da execução e qualidade dos trabalhos, na forma como obriga o empreiteiro “a demolir e reconstruir á sua custa todas as partes da obra julgadas defeituosas, quer por má execução do trabalho, quer pelo emprego de materiaes de qualidade duvidosa ou que não tenham sido approvados pelo architecto”.

O caderno de encargos contempla apenas 13 tópicos, embora seja particularmente rico em pormenores e em preocupações construtivas e de inserção na envolvente do terreno, desde logo se destacando um pormenor poucas vezes visto em documentos do tipo: para além dos habituais lavatórios e tinas de banho, deveriam ser fornecidos pelo proprietário “todos os azulejos, a columna grande do alpendre sobre a entrada e 4 ½ columnas pequenas com os respectivos capiteis proprias para as janellas do andar superior”, num raríssimo caso de assunção prévia da incorporação de bens integrados de uma coleção do proprietário na decoração do edifício (Figura 4).

Figura 4 Projeto de licenciamento da Casa de Santa Maria, 1902. AHMCSC, Caixa 36893 - Proc 76-1902, Folha 1. 

A mais insigne particularidade desta casa reside na forma como é desenhada e construída num difícil terreno rochoso junto a uma falésia. Terá sido a primeira vez que Lino aproveita com mestria um lote adverso para a implantação de um edifício, o que se tornaria numa marca distintiva da sua obra, de que porventura terá nas casas do Cipreste e dos Penedos (ambas em Sintra) os exemplos maiores. A este propósito, em 1918 viria a escrever ser

um erro que muitas vezes se incorre […] o [facto] de se desprezarem condições topográficas existentes, que bem aproveitadas, podem dar grande realce às linhas gerais duma casa. Quantas vezes se vê um proprietário despender somas importantes em movimento inútil de terras só para poder começar a construir num chão raso, sacrificando árvores e acidentes de terreno que só por si dariam o maior encanto a um jardim! (Lino, 2018, p. 34-35)

No entanto, esta preocupação não encontra particular eco no caderno de encargos que, parco em palavras a este respeito, se limita a procurar garantir que “os alicerces assent[em] sobre o rochedo, tendo para isso de encher todas as brechas com boa alvenaria que existam no sitio das paredes”.

À exceção do cunhal da sala que poderia ser de pedra de Cascais, uma vez mais a cantaria deveria ser “de Cintra (por exemplo de Cabriz)” e a alvenaria de pedra “calcarea ou grés de bôa qualidade das pedreiras da localidade”. De modo a conseguir um aspeto mais consentâneo com o resultado pretendido, aplicar-se-ia telha de Alhandra “mouriscada formando beiral com sobrebeira em torno de todo o edificio menos na parte reintrante da fachada principal onde o varedo com guarda pó sahirá fóra da parede formando aba, e na parte mais alta da casa que terá platibanda recortada em ameias” - neste edifício, a utilização dos vários tipos de beirados de platibanda é feita com vista à obtenção de uma dinâmica variável conforme o escalonamento dos volumes. Também raro em cadernos de encargos é o facto de o tijolo ter um tópico integralmente dedicado, o que reflete a sua profusa utilização, principalmente enquanto elemento decorativo (Figuras 5 e 6). Para algumas das janelas deveriam ser

feitos de tijollo especial e a descoberto todos os arcos em ferradura das janellas das duas fachadas voltadas ao mar, compondo-se estes arcos de duas meias-vezes de tijolo sendo a exterior de maior diametro que a interior que por isso aparece por dentro da primeira. [Deveria ser] tambem de tijolo a descoberto o arco e as fiadas de alvenaria na parede da caixa da escada que fica dentro da sala [bem como] todos os frontaes, os arcos de resalvo de todos os vãos, as hombreiras que não tiverem cantaria e os dois arcos ogivaes da fachada principal, assim como as chaminés na sua parte superior ao beiral do telhado.

Figura 5 Casa de Santa Maria, arco de tijolo polilobado de uma janela do segundo piso. Fotografia dos autores, 2018. 

Figura 6 Casa de Santa Maria, pormenor do beirado do telhado. Fotografia dos autores, 2018. 

Para o interior, deveriam os “pavimento[s] da sala de mesa, da cozinha e da copa ser de ladrilho hydraulico sem desenho [e] os de todas as outras casas de solho do pinhal real de 0,025m”, tendo os do piso inferior sido substituídos por tijoleira com apontamentos de azulejo no decorrer das campanhas de obras subsequentes28. Interessa também abordar as preocupações técnicas manifestadas com o vigamento, nomeadamente na sala de mesa, onde atualmente ainda é possível encontrar “uma viga de pitch-pine com 0,25m de altura aproximadamente por 0,20m que corresponde ao tabique que cruza esta sala de lado a lado formando uma das divisorias do andar superior [assim como] o vigamento [...] á vista [...] bem aparelhado e com as suas arestas quebradas por um chanfre [, não devendo exceder 0,35m] a distancia entre viga e viga”.

O estudo do caderno de encargos deste edifício permite também compreender o modo de aplicar materiais e de empreender soluções que, embora clássicas na arquitetura portuguesa, haviam caído em desuso (ferragens “do systema portuguez de aldravas”, “guarnecimento das portas e janellas [e rodapés] no andar inferior [...] com azulejo” e “tecto da sala [em] maceira tendo a forma a que o telhado obrigar tambem com sua cimalha em volta”). Em sentido contrário, o edifício era dotado de pormenores de grande modernidade29 que respondiam à manifesta preocupação com “as bôas condições de hygiene”, caso dos “aparelhos de retrete com autoclismo e bidet”, lavatório e tina de banho com água encanada em dois quartos do andar superior.

Tal como o Casal de São Roque, no decorrer da década de 1910 a Casa de Santa Maria foi ampliada, circunstância que truncou o conhecimento do material e da estrutura espacial originais (Figura 7). Reportando às primeiras fases construtivas de ambas, os documentos abordados permitem fazer uma leitura dos projetos iniciais e, com isso, despir os edifícios dos seus acrescentos e recuperar a sua génese e a intenção primitiva do arquiteto.

Figura 7 Casa de Santa Maria. AHMCSC, Coleção José Santos Fernandes, 15-10-1906. PT/CMCSC-AHMCSC/AESP/CJSF/A/CAS 106. 

Casa de Júlio de Andrade, avenida António Augusto de Aguiar, 144, Lisboa (1903-1904)

No contexto do grande plano de desenvolvimento camarário da cidade de Lisboa em direção a norte, entre 1897 e 1898 foi rasgada a avenida António Augusto de Aguiar que, contando com pouco mais de um quilómetro de extensão, finalmente concretizava (embora de forma enviesada) a ligação há muito pretendida entre a avenida da Liberdade e a estrada da Circunvalação. Conforme prática habitual, a autarquia foi construindo a nova via e colocando em praça os lotes de terrenos nas suas orlas conforme ia conseguindo assinar os contratos de expropriação. Assim, apesar de ter iniciado em novembro de 1898 a venda dos mais de quarenta lotes na margem nascente da avenida (que foram sendo ocupados por prédios de rendimento e por habitações unifamiliares de média e grande dimensão), apenas em 1903 foram disponibilizados os talhões do quarteirão triangular formado pela avenida António Augusto de Aguiar, estrada da Circunvalação (atual rua Marquês da Fronteira) e estrada da Palhavã (atual rua Nicolau Bettencourt), junto do local onde a primeira terminava. Apesar de cruzada por este importante melhoramento, esta parte da cidade possuía ainda características marcadamente suburbanas, junto do Parque de Santa Gertrudes, delimitado pelos cenográficos muros ameados e no qual se localizavam o velódromo e o jardim zoológico.

A 19 de novembro de 1898, Júlio de Andrade (1838-1906) havia licitado dois dos talhões (nos 7 e 830) localizados no extremo oposto da avenida, celebrando com a autarquia as respetivas escrituras sete dias depois. Neles edificaria dois palacetes geminados da autoria de Nicola Bigaglia31. Filho do capitalista e negociante António José de Andrade e irmão do pintor Alfredo César de Andrade, notabilizou-se pela sua posição no Banco de Portugal, do qual foi acionista e diretor entre 1880 e 1887, e na Sociedade Protectora dos Animais, da qual foi presidente nos seus últimos vinte anos de vida. Em junho de 1903 acrescentaria ao seu pecúlio o lote nº 34 (também com frente para a estrada da Palhavã), no aludido quarteirão triangular no extremo norte da avenida. Para este último contratou Raul Lino para projetar o que terá sido outra casa de rendimento, considerando que habitava num edifício ao Torel (atual rua Júlio de Andrade, 7), mandado construir em 1891 segundo traço do arquiteto Sebastião Locati32. Contrariamente ao que observamos com as famílias Ribeiro Ferreira e O’Neill, Júlio de Andrade não demonstrava qualquer preferência por determinado arquiteto para as suas edificações, ainda que Lino destoe da linhagem italiana das suas outras casas.

Para o talhão 34, a 29 de agosto de 1903 foi apresentado à Câmara um projeto de uma edificação unifamiliar de três pisos e planta quadrangular, de aparente simplicidade mas carregada de inesperadas complexidades. Inserido no interior do lote, o edifício era enquadrado por um pequeno jardim, fazendo-se a entrada pela fachada lateral sul. Transpondo a porta, acedia-se a um pequeno vestíbulo, em frente do qual se localizava a escada principal (e ao lado a de serviço, mais recatada), que dividia a planta em duas áreas distintas. Este desenho de planta aparentemente conservadora, com marcação separada entre áreas de convívio e de serviço, revelar-se-ia mais complexo em corte, fruto de uma configuração diferenciada em cada piso no que concerne à separação dos espaços e ao próprio rasgamento dos vãos interiores. Esta questão estaria estruturalmente salvaguardada pelo emprego de vigas de ferro para apoio dos frontais de tijolo que não assentavam noutros (“[os frontais] serão todos feitos de tijôlo mesmo os que não tiverem outros directamente por baixo, empregando-se para estes vigas de ferro que lhe sirvam de apoio”33).

A fachada principal é definida pela configuração das coberturas, muito inclinadas e com beirado em madeira, à imagem de um chalet (Figura 8) No projeto inicial, esta intenção era vincada pela aplicação de elementos de madeira trabalhados (ou fingidos) ao nível do piso superior, à imagem dos chalets centro-europeus e do que Le Corbusier faria pouco depois na Villa Fallet (La Chaux-de-Fonds, Suiça). Esta fachada era composta por volumes discretamente desencontrados, num jogo de vãos e varandas, cujas guardas de ferro apresentavam um intrincado desenho plenamente imbuído do estilo Arte Nova. Na sua metódica carreira em Portugal, começada poucos anos antes, depois do seu regresso da Alemanha, Lino mostrava-se já um arquiteto que ousava enveredar por caminhos díspares que lhe permitiam intercalar, em anos consecutivos, os projetos das suas casas marroquinas para o Estoril e Cascais com outros, citadinos, exibindo desenhos de fachada e elementos modernos em plena conformidade com o que então se fazia internacionalmente. Urge, pois, estudar, compreender e reescrever este vincado traço da sua identidade arquitetónica, muita vezes incompreendido.

Figura 8 Alçado, Projeto de licenciamento, 1903. AML, Obra n.º 42943, Vol. 1, Proc. n.º 4559/DAG/PG/1903, p. 2. 

A 29 de fevereiro de 1904, exatamente seis meses depois da aprovação do projeto, foi celebrado o contrato para a construção da casa entre o proprietário e o construtor civil Manuel Joaquim de Oliveira, tendo Raul Lino e Inocêncio Madeira como testemunhas. A empreitada foi dada por 18:100$000 a pagar em sete prestações, devendo a obra estar concluída num prazo máximo de 12 meses.

O caderno de encargos divide-se em 20 artigos. Nele evidencia-se um cada vez maior controlo da obra através do desenho e um conhecimento profundo de Raul Lino dos materiais, por exemplo, visível na indicação de que “portas e janellas deverão ser começadas logo que se principie a obra, para dar logar a que estejam promptas bastante tempo antes da sua aplicação” de modo a criar condições ótimas de aplicabilidade.

A imagem cromática e de texturas que os cadernos de encargos permitem é geralmente muito pormenorizada. Nesta casa, são dadas indicações muito claras sobre os estuques e pintura, nomeadamente paredes forradas a papel, estuques polidos na entrada e escada principal, cor metida na massa para os quartos e fingidos de carvalho no teto e lambrim da sala de jantar (Figura 9). O reboco exterior deveria ser em tom claro, à escolha do proprietário, “do qual se destacarão os frisos e outras decorações em azulejo indicadas no projecto”.

Figura 9 Fotografias dos interiores, processo de demolição. AML, Obra nº 42943, Proc. nº 2785/PGU/2000. 

Embora efetivamente contempladas tanto nos alçados como no caderno de encargos, estes últimos elementos não foram aplicados, o que denuncia uma alteração ao projeto inicial. A aprofundar num estudo futuro, importa salientar as óbvias semelhanças com um outro chalet, também edificado em 1902 por Manuel Joaquim de Oliveira (e de arquiteto desconhecido34), atual nº 4 da estrada da Pena, em Sintra, cuja meia lua revestida por azulejos Arte Nova sobre a janela de topo antevê o resultado pretendido no projeto lisboeta.

Uma vez mais, Lino opta por “pedra das pedreiras de Cabriz (Cintra) isêntas de lizins ou outros defeitos”, levando “um aparelho de desbaste a picão [...] à excepção dos degraos e soleiras das portas, que serão escodadas”, com isto se exaltando o caráter de rusticidade da construção. Esta opção é particularmente rara em contexto urbano, onde o uso de aparelho a picão35 (o mais grosseiro usado em cantarias) era geralmente utilizado apenas nos socos.

Um outro ponto extremamente importante para a caracterização da casa e para o conhecimento do nível de conforto das habitações no princípio do século XX, é o que alude às canalizações de água, gás e esgoto. Se em relação à água a distribuição é feita para a cozinha, casas de banho (banheira, retretes e bidé), zona dos serviços no sótão, jardim e cavalariças, o esquema de distribuição do gás é, por sua vez, muito pormenorizado, mencionando-se a distribuição dos pontos por todos os compartimentos da casa para efeitos de iluminação, assim como uma segunda saída nas casas de banho para o esquentador. De todos os cadernos de encargos dos edifícios mencionados no presente artigo, apenas o da Casa de Santa Maria é omisso quanto à instalação de esquentadores, comum nestes documentos de Lino mas praticamente ausente nos dos demais arquitetos da época36.

Ao longo do século XX, a avenida António Augusto de Aguiar mudaria de configuração, perdendo o caráter eminentemente suburbano do seu último troço com a construção de novas e movimentadas vias nas imediações. Do ponto de vista construtivo, a identidade da avenida modificou-se de forma irreversível a partir das décadas de 1930 (construção do Bairro Azul) e de 1940 (abandono definitivo do projeto de moradias voltadas ao Parque37 e consequente edificação de toda a frente poente), assim se mantendo até à atualidade, com a intensiva substituição de moradias por edifícios de habitação e escritórios. A casa de Júlio de Andrade não sobreviveu às alterações do tempo, tendo sido demolida em 2003, em vésperas de cumprir o primeiro centenário (Figura 10).

Figura 10 Fotografia geral da Casa Júlio de Andrade, Paulo Guedes, [c. 1909?]. AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000693. 

Casa Elisa Vaz, avenida da República, 57, Lisboa (1912/13)

A 2 de agosto de 1910, Julieta Ribeiro Vaz (1885?-1949) permutou um terreno ao Bairro Camões por outro de gaveto entre as avenidas Ressano Garcia e José Luciano (atuais avenidas da República e Elias Garcia)38. Prestes a casar com Augusto Bernaud Alves, viveria com a sua mãe, Elisa Ferreira Vaz (1861?-1923), no nº 23 da mesma avenida Ressano Garcia. Foi justamente Elisa, nascida no Rio de Janeiro e então já viúva de António Augusto Ribeiro Vaz (conhecido pelos seus negócios da indústria do açúcar no Brasil), que pouco depois encomendou a Raul Lino um projeto para o dito terreno. Por essa altura, Lino já havia projetado as casas do seu pai José Lino (rua Garcia de Orta, 1901), de Júlio de Andrade (avenida António Augusto de Aguiar, 1903), de Joaquim de Jesus Ferreira (avenida da República, 1904) (A Construção Moderna, 1904b, p. 121-123) e de Ribeiro Ferreira (na avenida Fontes Pereira de Melo, 1904) - à exceção da primeira, todas já demolidas -, com elas dando início a uma sequência de projetos de habitações unifamiliares em Lisboa. Pelo menos até ao final da década de 1930, continuou a assinar projetos semelhantes na capital portuguesa, de entre as quais se destacam as casas Max Abecassis (rua Castilho, 1925 - demolida), António Sérgio (1925), Rodrigues Cohen (travessa do Combro, 1938) e a sua própria habitação de família (rua Feio Terenas, 1938). À exceção do chalet citadino de Júlio de Andrade, todas as casas mencionadas apresentam características formais plenamente coadunadas com as propostas modernas então em execução noutros países europeus, no que podemos apelidar de “construções urbanas” de Raul Lino. Refletindo um entendimento mais alargado dos princípios internacionais da arquitetura do seu tempo, levantam a questão da influência dos clientes no desenho dos projetos, considerando que Lino projeta a sua própria casa num desenho mais integrado numa linguagem internacional.

Para o lote da família Vaz, conhecem-se dois projetos de Lino39, ambos presumivelmente de 1912, o primeiro de um edifício com cave, dois andares e águas-furtadas, cuja fachada principal se desenvolvia ao correr da avenida da República. A sua característica principal residia na sofisticação do desenho da planta, traçada para responder à encomenda de um muito interessante e pouco comum modelo de habitação bifamiliar em que cada apartamento tinha dois pisos que se desenvolviam em torno de um saguão central40. No entanto, o processo sofreria uma inflexão que obrigaria ao desenho de um novo projeto, desta vez para uma casa unifamiliar de menores dimensões e de implantação recuada, no qual a escada principal se afirmava como o elemento central em torno do qual se desenvolvia a planta (Figura 11). Embora menos interessante, esta versão materializar-se-ia num edifício que, na opinião de Nuno Portas, era “uma concepção sóbria mas original na tradução exterior do espaço interno [...], a mais interessante das suas obras «europeias»” (Portas, 1978, p. 704-705) e que o próprio Lino considerava “já muito amadurecida como casa urbana” (apud Almeida, 1970, p. 160).

Figura 11 Corte e Alçado da Casa Elisa Vaz, 1912. Espólio Raul Lino, Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca de Arte e Arquivos, RLDA 23.1. 

A 31 de março de 1913, Elisa Ferreira Vaz e o construtor civil Fernando Touzet assinaram um contrato referente ao lavor e materiais de construção da casa41, tendo o processo dado entrada pouco depois nos serviços camarários, que o aprovam a 8 de maio42. Segundo as condições acordadas e vertidas na escritura, a empreitada a lançar no espaço de uma semana era feita pela quantia de 16:200$00, paga em seis prestações de diferente montante. Na mesma data foi também aceite e rubricado pelas duas partes o caderno de encargos da construção, que menciona a obrigatoriedade do cumprimento de um projeto previamente delineado na escala de 1:100.

A preocupação com as condições do solo enunciadas nos projetos anteriores ganha nele um especial cuidado devido à natureza do terreno que tornaria “provavel que os alicerces t[ivessem] de ir a uma profundidade relativamente grande. [Assim] se se vi[sse ser] conveniente, por falta de homogeneidade do solo, [construir-se-ia] uma sapata de beton, […] com uma altura minima de 50 centimetros, de bom cimento estrangeiro [...] e resalteando 10 centimetros para todos os lados dos pilares ou alicerces”.

Uma vez mais, os principais elementos de cantaria deveriam ser de pedra de Cabriz e os secundários de Pero Pinheiro, estes últimos “brunid[os], [e] de côr de rosa nos vãos da entrada e de 2 tons diferentes no lagedo do pavimento.” Por seu turno, “os detalhes para a cantaria moldada das columnas, etc, [deveriam] ser fornecidos pelo fiscal da obra43 à maneira que fo[ssem sendo] exigidos”, aspeto que parece indiciar uma presença em obra menos ativa de Raul Lino.

Este caderno de encargos é particularmente mais desenvolvido do que os anteriores, nele surgindo mais detalhadamente descrita a forma de aplicação do pavimento, devendo as “seis salas do res-do-chão […] [ter] solho de pitch-pine à inglesa de 0,022m de espessura minima, assente em espinhado nas duas salas da frente e na da mesa e com encabeirados nas restantes tres salas que são a antecamara, o hall e o gabinete.” No primeiro andar as divisões principais deveriam ser de casquinha à inglesa da mesma espessura, sendo aplicado na cozinha, quarto de engomados, retretes e banho “pavimento de corticite de 1ª qualidade e de uma só côr”, um novo material que havia sido introduzido nos Estados Unidos em 1890 (Reis, 2011, p. 4-5) e que, no caso de Lisboa, mais de meio século depois ainda era amplamente utilizado em novas construções (García-Pereda e Marcilla, 2021, p. 33-46). Nas duas varandas a opção recaiu em “ladrilho hydraulico nacional de cores lisas” e no átrio da entrada principal em lagedo enxadrezado em dois tons com barra em volta. No que concerne às portas interiores, Lino optou por um modelo com maior espessura (40mm) do que aquele que havia aplicado nas casas de Cascais (33mm), colocando assim em prática o seu entendimento de que “uma boa porta de razoáveis dimensões, espessa de 40 ou 42m/m com um só batente, que abra e feche na perfeição é dos melhores ornatos que uma casa possa incluir” (Lino, 1992, p. 28).

Um dos espaços nobres do edifício seria o hall que dava acesso à escada principal, cujo teto seria “o unico de madeira [em toda a casa, levando] vigas forradas por folhas a 5 fios com moldado e [...] um forro pregado entre as vigas e arrematados tudo em volta por uma moldura de nacela [...] [que poderia] ser feito no genero à portuguesa com uma facha sobreposta ao centro e contornada”.

Junto ao primeiro degrau da escada arrancava um “prumo que sustenta[va] a viga mestra com suas escoras [... e] rodapé e capitel sobrepostos”, porventura o mais interessante dos elementos interiores da casa (ver Figura 11).

A título de curiosidade, e não obstante Raul Lino defender a aplicação, “para despejo, [de um] aparelho airoso de cerâmica vidrada ou ferro esmaltado” (Lino, 1992, p. 44), encontra-se aqui uma pia de despejo de pedra na cozinha. No entanto, devido ao facto de ser fornecida pela proprietária (tal como os fogões), não é possível averiguar se se inseria dentro daquilo que o arquiteto categorizava como a típica pia das casas portuguesas, “quasi sempre de tamanho abismal, com destinos indescriminados, e pelo seu feitio parece também datar da Idade da Pedra [...] grande sumidoiro de colheres e outros objectos miúdos” (Lino, 1992, p. 43).

Já depois da morte da filha e do genro de Elisa Vaz, que habitaram na casa até ao final das suas vidas, o edifício seria demolido em 1965 (Figura 12). Tal como na casa da Júlio de Andrade, perante o desaparecimento físico, o estudo do caderno de encargos permite adicionar uma roupagem material e construtiva aos elementos desenhados do projeto, e com isso concorrer, se necessário, para uma futura reconstrução virtual que permita recuperar memórias construtivas e vivenciais de outro modo irremediavelmente perdidas.

Figura 12 Casa Elisa Vaz, Artur João Goulart, 1964. AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/AJG/S01667. 

Torre de São Patrício, Monte Estoril (1918-1921)

Mais de década e meia depois da encomenda do projeto para a Casa de Santa Maria, em 1918 Jorge O’Neill retoma a ligação com Raul Lino na Torre de São Patrício, ao Monte Estoril. Para o efeito, em 10 de janeiro e 15 de novembro de 1917, a sua esposa Maria Isabel Fernandes O’Neill adquiriu dois talhões de terreno a Joaquim José da Cunha44 num total de 3133,80m2, aos quais se somarão os adquiridos pelo próprio O’Neill à Companhia do Mont’Estoril, perfazendo uma propriedade com cerca de 15000m2.

As especificidades do projeto e as vicissitudes da construção do edifício levaram à elaboração de mais do que um caderno de encargos. O que aqui se estuda acompanha o contrato de empreitada de acabamentos celebrado a 29 de agosto de 1919 entre Maria Isabel e a Companhia de Crédito Edificadora Portuguesa45. Na verdade, embora rigoroso, o seu título acaba por induzir em erro visto se reportar à conclusão de um edifício ainda numa fase muito inicial da sua construção (fundações e algumas paredes erguidas até ao primeiro andar), num entendimento mais lato do que o que modernamente se tem de uma empreitada de acabamentos. Tendo a obra já sido iniciada, consta dele um anexo com a lista dos materiais existentes no estaleiro que a companhia empreiteira poderia empregar (pedra de alvenaria, cal, saibro, peças de cantaria e madeiras), avaliados em 4:270$82, valor a descontar dos 38:000$00 pelos quais a empreitada foi adjudicada.

O caderno de encargos abre com uma “observação primordial”:

Todos os materiaes a empregar nesta obra serão de boa qualidade, utilizar-se-hão no estado proprio aos trabalhos bem executados e de categoria superior; Toda a mão-de-obra será perfeita no seus processos e nada deve deixar a desejar nos acabamentos.

Não se faz menção especial de muitos materiaes acessorios nem se descrevem processos correntes minuciosamente porque taes coisas se subentendem como indispensaveis, dispensando referencia em contractos de boa fé.

Embora, à primeira vista, pareça um conjunto de lugares-comuns, esta passagem demonstra uma evolução substantiva na forma de trabalhar de Lino, então já com cerca de 40 anos de idade e mais de 20 de projeto e obra. Reflete uma maior segurança que permite aligeirar a minúcia da descrição em detrimento de uma sistemática remissão para desenhos de pormenor elaborados para acompanhar o caderno de encargos e posteriormente para dar apoio à obra.

Esta evolução é, de resto, visível ao longo do documento, nomeadamente na introdução de novas técnicas e materiais, caso do cimento armado nos pisos das varandas, no tabuleiro do terraço da torre, na “cupula sobre a colunata no patim da escada exterior na fachada Sul, e [n]a guarita que cobre a escada de serviço no terraço da torre”, cujo metro cúbico de betão deveria ser composto por 450kgs de bom cimento, 0,400m3 de areia lavada e 0,800m3 de cascalho.

Tal como na Casa de Santa Maria, o profuso uso do tijolo merece particular detalhe (Figura 13), ressalvando-se que “o rendilhado representado nas doze janelas do 3º andar da torre e na fuga da chaminé da cosinha será executado com tijolo proprio para ficar á vista”. Consta ainda uma indicação expressa de que todas as faces da torre deveriam ser de enxilharia. A cantaria é dividida em azul e amarela, fornecendo o empreiteiro apenas a primeira em virtude de “o canteiro Filipe Domingos esta[r] executando por empreitada toda a cantaria amarela chamada da Abodada [...] assim como a [...] de lioz”.

Figura 13 Pormenores. Espólio Raul Lino, Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca de Arte e Arquivos, RLDA 62.8. 

De entre os cincos cadernos de encargos estudados, trata-se do que melhor pormenoriza e enumera os elementos a serem executados e revestidos a cantaria (ocupando mais de uma página), cuidado também patente no capítulo dos pavimentos:

Betonilha, na cave, garage e anexo no R/ch. Tijolo de alvenaria rebatido em espinhado ou encanastrado: no rez-do-chão, atrio de entrada, capela e sacristia; no 1º andar, escritorio com aplicações de quadradinhos de azulejos e do mesmo modo no vestíbulo e terraços do 1º e 2º andar.

No terraço da torre o tijolo assente sobre uma camada de asfalto com uma pequena camada de areia intermediária; isto com o fim de evitar infiltrações das aguas pluviaes pelo taboleiro de cimento armado, razão por que se terá também o cuidado em se deixar saida fácil ás aguas, por meio de gargulas em todas as trez faces livres da torre,

que Lino aproveitaria para desenhar com a forma de um leão, de uma águia e de um animal aquático, com base numa reinterpretação do motto da família O’Neill (Coelo, Solo, Salo Potentes).

Há uma assumida distinção na escolha das madeiras e respetiva aplicação nas “casas principaes [...] frequentadas pelos patrões” ou nas “casa[s] de serviço e [de] alojamento de criados”, nomeadamente na espessura das portas e das caixilharias (0,042m/0,033m), na forma de assoalhoar o pavimento dos quartos (à inglesa/à portuguesa), nos rodapés (presença/ausência de moldura de roda-cadeira) e nas portadas das janelas (presença/ausência de “portas de madeira de castanho ou casquinho [...] almofadadas [qu]e serão de dobrar em tantas partes quantas fôr necessario para se alojarem nos enxalços dos vãos”).

A atenção aos pormenores é constante, revelando-se na indicação para a pintura da “face inferior das telhas dos beiraes [...] á côr de cal que se escolher”, na aplicação de escadas de ferro nas fugas da chaminés para facilitar a limpeza ou na dissimulação de alguns dos tubos de queda, nomeadamente o da fachada sul (“disfarçado por detraz de uma saliencia expressamente feita e á qual corresponde o largo arco por cima do vão duplo da sala”) e o da pia da cozinha e retrete do quarto das criadas (“ficará dentro de uma caixa que para esse fim se fará na parede da fachada”).

Numa opção particularmente incomum, para além das torneiras e bacias para retretes e lavatórios, “todas as canalisações para agua, gaz e electricidade [...] ser[iam] por conta do proprietário”46, no que parece prefigurar uma empreitada previamente contratada para o efeito. Também pouco comum é a aplicação de reboco áspero nas paredes exteriores e interiores (as últimas “menos ásper[as] que [as] do exterior, mas tambem com certa aspereza dada pela areia”) e nos tetos que não fossem de madeira, situação que ainda hoje se verifica.

A construção do edifício arrastar-se-ia até 1921 (Figura 14), contemplando também acrescentos a pedido do proprietário (mais um piso na torre e a adição de um claustro de recreio). Manter-se-ia na família O’Neill até 1950, ano em que foi comprado por Enrico Mantero, que posteriormente o legou, em cláusula testamentária ao município de Cascais para nele ser criado um museu com o apelido da sua falecida esposa, Verdades de Faria. É atualmente o Museu da Música Portuguesa.

Figura 14 Fachada principal. Fotografia dos autores, 2020. 

Conclusão

No estudo de um edifício é fundamental que, a par da autoria e das peças técnicas, seja tida em consideração a intenção subjacente à construção, o modo como foi construído, os materiais escolhidos e sua aplicação. A fundamentação de uma memória justificativa e descritiva encontra eco prático no caderno de encargos, complementando-se. A intenção do arquiteto plasmada no primeiro, encontra modos de ação no segundo que, ao permitir regressar ao ponto de criação e à sua intenção original, possibilita também uma leitura fiel dos espaços e materiais que o tempo e as alterações tendem a modificar. Mesmo as bem-intencionadas melhorias subsequentes podem quebrar por completo leituras e entendimentos, caso da substituição da caixilharia que pode anular a profundidade de um vão ou da simples repintura numa outra tonalidade que pode facilmente quebrar o jogo de cheios-vazios ou de claros-escuros. Os cadernos de encargos deverão, por isso, ser colocados a par dos desenhos técnicos ou das memórias descritivas e serem considerados elementos de uso obrigatório em qualquer estudo teórico ou em qualquer campanha de restauro, facto que se procurou relevar no presente artigo. Por ser a primeira vez que este tipo de trabalho é feito, espera-se que se possa constituir como um momento de charneira e abrir uma via de estudo futuro destes elementos, e do reconhecimento da sua importância para uma leitura integrada dos imóveis que realce também a sua parte construtiva, vertente muitas vezes descurada.

Os cinco cadernos de encargos aqui abordados servem sobretudo para exemplificar as potencialidades destes documentos para o conhecimento de um edifício e do modo de projetar do seu autor. Revelam um Raul Lino que desde muito jovem detinha um profundo conhecimento dos materiais e técnicas (adquirido com o seu pai) e uma notória intenção em utilizá-los para sublinhar opções de projeto, permitindo uma compreensão de aspetos da sua obra raramente abordados. Ao longo das quase duas décadas que separam o primeiro do último, é possível constatar a sua evolução profissional, assente numa forma de projetar baseada em desenhos de pormenor que complementavam e chegavam mesmo a fazer prescindir das próprias indicações escritas para os empreiteiros.

Ainda assim, a opção pelo estudo dos cadernos de encargos de um único autor que tendencialmente projetou para uma clientela homogénea e abastada permite apenas compreender como eram construídas casas de exceção desenhadas por um arquiteto de exceção. Para poder utilizar de forma plena as potencialidades da leitura destes documentos, intentamos alargar futuramente o estudo e confrontar diferentes tipos construtivos, e diferentes autores, de modo a ter uma mais ampla perceção de como se construía em Portugal no princípio do século (Figura 15).

Figura 15 Ponto 11 do Caderno de Encargo da Torre de São Patrício. ANTT, 9º Cartório Notarial de Lisboa, Livro 758.  

Referências Bibliográficas

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1 O presente estudo foi parcialmente apresentado no colóquio O gosto português do século XX: Raul Lino e a casa de Santa Maria (Cascais e Lisboa, 21 e 22 de novembro de 2018).

2Conhecem-se exemplos de cadernos de encargos de épocas anteriores, nomeadamente do século XVI em diante.

3Constitui-se como exceção a inclusão da transcrição dos cadernos de encargos de dois edifícios de Ventura Terra e do túmulo do Visconde de Valmor (de Álvaro Machado) em diferentes números de A Construção Moderna publicados em 1900.

4Vide nota de rodapé 21.

5“O mais agradável que pode haver numa casa é o adivinhar-se pelo exterior e o perceber-se pelo interior que ela foi feita à medida das ideias sensatas do seu dono, para melhor satisfação dos seus deveres e para maior alegria nos seus ócios”. LINO, Raul (2018) - A nossa casa. Sintra: Colares Editora. p. 26-27.

6Nomeadamente cantarias, azulejos ou louças sanitárias. Permite igualmente aferir as diferentes formas de conceber de arquitetos e mestres de obras.

7Excerto de entrevista a Raul Lino (40’02), Rádio Televisão Portuguesa (1970). Programa dedicado ao arquiteto Raul Lino da Silva, a propósito da exposição retrospetiva da sua obra organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito da comemoração do seu 90º aniversário. Disponível na Internet: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/raul-lino/.

8Apesar de Raul ter passado a sua adolescência na Inglaterra e Alemanha.

9Releva-se, a este respeito, QUEIROZ, Francisco - J. Lino, industrial, negociante e pai de arquitecto: notas para uma biografia de José Lino da Silva. Conferência proferida no colóquio O gosto português do século XX: Raul Lino e a casa de Santa Maria (Cascais e Lisboa, 21 e 22 de novembro de 2018), não publicada.

10Mais recentemente, os princípios construtivos enunciados por Raul Lino em A nossa casa foram analisados por ZEIN, Ruth Verde (2018) - Relendo Raul Lino: das exposições universais a uma casinha pequenina. In ANDRÉ, Paula, coord. - Celebrando a nossa casa (1918-2018) de Raul Lino: antologia de ensaios. Lisboa: ISCTE-IUL. p. 27-43.

11Consultadas na presente investigação nas suas edições de 2018 e 1992, respetivamente.

12Este tipo de obras havia-se difundido internacionalmente já ao longo do século XIX. BARATA, Ana (2018) - As edições de A nossa casa: apontamentos sobre o bom gôsto na construção das casas simples: uma análise comparativa. In ANDRÉ, Paula, coord. - Celebrando a nossa casa (1918-2018) de Raul Lino: antologia de ensaios. Lisboa: ISCTE-IUL. p. 6-26.

13Nosso sublinhado. Lino aprofunda a ideia afirmando que “quem queira [...] dispensar um plano ou um projecto completo e bem estudado antes de se meter a construir; quem julgue proceder com economia esquivando-se a empregar melhores e mais adequados materiais; quem não respeite preceitos técnicos na construção - a si próprio se engana, devendo preparar-se para variadas e desagradáveis surpresas. [...] Mesmo de olhos fechados, pelo pisar dos degraus de uma escada, pelo bater de uma porta se pode avaliar a má qualidade da construção” LINO, Raul (1992) - Casas portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples. Lisboa: Cotovia. p. 23-24. Já em 1918, em A nossa casa, havia afirmado que “mau gosto não é só a aplicação errada dum ornato; é também por exemplo um sobrado que bamboleia logo que é acabado de assentar ou um caixilho que não veda a água da chuva.” LINO, Raul (2018) - A nossa casa. Sintra: Colares Editora. p. 46-47.

14Correspondem à totalidade do universo de cadernos de encargos de obras de Raul Lino que foi possível aos autores identificar até ao momento, devendo-se a esse facto a seleção dos casos apresentados.

15Este facto ocorria então com alguma frequência, sendo possível encontrar exemplos similares na carreira de outros arquitetos seus contemporâneos (casos de Norte Júnior ou Ventura Terra).

16O projeto é originalmente delineado em 1904/5 por Lino para o seu irmão António Francisco, proprietário do terreno. No entanto, é Carlos quem, em 1907, edifica uma casa que, tirando ligeiras alterações no alçado (remoção de um torreão), segue a traça do projeto primitivo. Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Obra nº 14039.

17Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Ministério das Finanças, Livro 597, nº 27692-A e 27752-A.

18ANTT, 9º Cartório Notarial de Lisboa, Livro 334, f. 16-17v, escritura e respetivos documentos anexos. Todas as citações adiante feitas neste subcapítulo serão destes retiradas.

19Efetivamente, a consulta atual do processo no Arquivo Histórico Municipal de Cascais (PT/CMCSC-AHMCSC/AADL/CMC/L-E/001-004/0295) permite constatar que dele apenas constam desenhos técnicos (plantas e alçados), não contemplando sequer memória descritiva.

20Nestes documentos transparece a existência de uma estreita relação de entendimento entre proprietário e arquiteto (pelo menos a um nível teórico), numa espécie de aliança que procura promover, junto do empreiteiro, a concretização de um projeto previamente definido.

21“A primeira n’este acto; a segundo no dia trinta de janeiro de mil novecentos e dois e em todo o caso nunca antes do assentamento da fileira; a terceira no dia trinta de março do mesmo anno de mil novecentos e dois e em todo o caso nunca antes de começarem os trabalhos de estuque, e a quarta [...] quinze dias depois da conclusão da obra e de se verificar que este contracto foi rigorosamente cumprido pelo seguindo outorgante empreiteiro”.

22Alvenarias; Cantarias; Vigamentos; Madeiramento; Frontais e Tabiques; Telhados; Carpintaria; Ladrilhos; Chapado e Reboco; Ferragens; Canalizações de Esgoto; Estuque e Pintura; Canalização de Água; Vidros; Fossas; Terraço; Gás.

23Também largamente utilizada por Norte Júnior.

24Esta opção era comum nas construções coevas. Por questões financeiras, as cantarias mais onerosas encontravam-se vedadas à maioria dos prédios de rendimento da zona de Lisboa, que invariavelmente utilizavam pedra de Vila Verde ou de Paço de Arcos.

25“A formação que Raul Lino recebeu na Escola de Artes e Ofícios - Handwerker und Kunstgewerbeschule - incidiu particularmente no desenho de móveis e no ensino da marcenaria. […] Ensinou-o não só a desenhar tecnicamente o mobiliário, nos diversos encaixes e assemblagens, assim como no pormenor dos ornatos em talha ou embutidos”. LINO, Maria do Carmo (2014) - Raul Lino: natureza e tradição nas artes decorativas. Lisboa: Scribe. p. 68, 142.

26ANTT, 9º Cartório Notarial de Lisboa, Livro 341, f. 20v-22, escritura e respetivos documentos anexos. Todas as citações neste subcapítulo são destes retiradas (exceto quando mencionado).

27Sobre a aquisição do terreno por parte de O’Neill, consultar FERNANDES, Raquel Maria da Silva (2007) - A casa de Santa Maria: especificidades de um património arquitectónico e artístico. Lisboa: [s.n.]. p. 23-25. Dissertação de mestrado em Arte, Património e Restauro, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. p. 23-25.

28Em A nossa casa de 1918, Lino alude brevemente a “pavimentos de combinações de tijolo e azulejo” LINO, Raul (2018) - A nossa casa. Sintra: Colares Editora. p. 42.

29Ainda que não tanto como noutras casas de Lino, conforme se relevará no subcapítulo seguinte.

30Correspondendo aos atuais números 30 e 32.

31AML, Obra nº 25962, Proc. nº 4239/DAG/PG/1899.

32AML, Obra nº 27681, Proc. nº 9549/DAG/PG/1891. 

33ANTT, 14º Cartório Notarial de Lisboa, lv. 366, f. 31, escritura e respetivos documentos anexos. Todas as citações adiante feitas neste subcapítulo serão destes retiradas.

34Não sendo de excluir a autoria de Raul Lino.

35“O picão [...] é um martelo ponteagudo de ambos os lados, análogo ao picarete de duas pontas, mas muito mais reforçado e pesado; [...] é de ferro calçado de aço. Há uma grande variedade de picões que se aplicam segundo a natureza das pedras e a sua maior ou menos dureza; podem diversos picões aplicar-se gradualmente à mesma pedra, começando pelo mais grosseiro e terminando pelo mais fino. [...] É quase exclusivamente empregado no aparelho rústico das pedras”. SEGURADO, João Emílio dos Santos - Materiais de construção. 6ª ed. Lisboa: Livraria Bertrand. p. 80-81.

36Nos cadernos de encargos dos principais arquitetos consultados até ao momento para o princípio do século XX, esta solução é apenas mencionada no do Palacete Lambertini, projetado em 1901 por Nicola Bigaglia.

37Apenas tendo sido construída a Casa Pratt de Miguel Ventura Terra, a única moradia ainda existente na avenida.

38O negócio foi feito com Manuel Ferreira da Silva Brandão, que havia comprado o terreno à autarquia a 16 de julho de 1904. AML, Livro de Escrituras 49, f. 137v. De modo a compensar a diferença de avaliação dos terrenos, a permuta implicou ainda o pagamento de 1:713$50 por parte de Julieta. ANTT, 9º Cartório Notarial de Lisboa, Lv. 509, f. 65v.

39Fundação Calouste Gulbenkian, Biblioteca de Arte e Arquivos. Espólio Raul Lino, RL 23.

40Visto as cozinhas não ficarem no piso das respetivas salas de jantar, Raul Lino delineou o extraordinário artifício de incluir dois pequenos elevadores de serviço (um por casa) que partilhavam o mesmo poço.

41ANTT, 9º Cartório Notarial de Lisboa, Lv. 574, f. 55-57, escritura e respetivos documentos anexos. Todas as citações feitas neste subcapítulo são destes retiradas (exceto quando mencionado).

42AML, Obra nº 32186.

43Que reporta ao proprietário e/ou ao arquiteto.

44ANTT, 9º Cartório Notarial de Lisboa, Livro 680, f. 50 e Livro 710, f. 70.

45Este contrato apresenta dois interessantes pontos: o facto de a proprietária ficar obrigada a fazer uma hipoteca sobre os seus terrenos para garantia do pagamento da obra; e de esta poder “examinar ou fazer examinar as obras [...], não [lhe sendo, no entanto] permitido [...] ter ingerencia nos operarios ou dar-lhes qualquer ordem”. ANTT, 9º Cartório Notarial de Lisboa, Livro 758, f. 69v, escritura e respetivos documentos anexos. Todas as citações adiante feitas neste subcapítulo serão destes retiradas.

46“Ficando a cargo do empreiteiro tapar esses canos com os respectivos revestimentos”.

Recebido: 31 de Dezembro de 2020; Aceito: 26 de Novembro de 2021

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