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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.17 Lisboa June 2022  Epub June 01, 2022

https://doi.org/10.48751/cam-7xt9-mr94 

Dossier

Fábrica de Cerâmica Lusitânia: produtos inovadores na construção

Lusitânia Ceramics Factory: innovative construction products

Joaquim Pombo Gonçalvesi 
http://orcid.org/0000-0002-5533-0504

i CEC - Centro de Estudos Clássicos, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 1600-214 Lisboa, Portugal. joaquimgoncalves@campus.ul.pt


Resumo

A existência da Fábrica de Cerâmica Lusitânia encontra-se intrinsecamente associada ao desenvolvimento da construção civil nacional. A sua dinâmica empresarial, assente no desenvolvimento tecnológico, permitiu produzir materiais inovadores, mas essenciais para a construção civil, fator fundamental para os projetos previstos para a expansão da cidade de Lisboa na primeira metade do século XX. Igualmente na área da azulejaria, a Fábrica de Cerâmica Lusitânia teve um papel importante através da introdução de métodos inovadores, da realização de projetos em diversos locais de Portugal, e da contratação de um dos principais artistas nacionais: Jorge Colaço. É um percurso de inovação técnica de instalações e infraestruturas, de apoio social aos seus colaboradores, de expansão nacional, mas, fundamentalmente, da adaptação aos “novos tempos” (inclusive na decisão de deslocalização para a zona do Arco do Cego, Campo Pequeno) enquadrando-se tecnologicamente nos desenvolvimentos dos métodos produtivos que surgiam na Europa.

Palavras-chave: Cerâmica; Construção; Fábrica; Lusitânia

Abstract

The existence of the Fábrica de Cerâmica Lusitânia is intrinsically associated with the development of national civil construction. Its business dynamics, based on technological development, allowed the production of innovative but essential materials for civil construction, a fundamental fact for the projects planned for the expansion of the city of Lisbon in the first half of the 20th century. Also in the area of tiles, Fábrica de Cerâmica Lusitânia played an important role through the development of projects in different places in Portugal, the introduction of innovative methods and the hiring of one of the main national artists: Jorge Colaço. It is a journey of technical innovation in facilities and infrastructures, social support for its employees, national expansion, but fundamentally, adaptation to the “new times” (even in the decision to relocate to the Arco do Cego, Campo Pequeno) fitting technologically in the developments of the productive methods that appeared in Europe.

Keywords: Ceramics; Construction; Factory; Lusitânia

Introdução

Os desenvolvimentos tecnológicos e de produção ocorridos nos séculos XIX e XX na área da produção cerâmica resultaram de um mercado cuja dinâmica estava associada à crescente migração e à crescente capacidade económica de uma determinada classe da população, a burguesia.

O aumento das construções urbanas em Lisboa e as recuperações dos edifícios públicos, civis e religiosos, advindos dos séculos anteriores, cujo grau de degradação era manifesto devido às carências económicas, foram fatores que, associados à expansão da cidade com a instalação de novas freguesias, impulsionaram a necessidade de fornecimento de materiais de construção no sentido de corresponder ao projetado pelo Engº Ressano Garcia de renovação da cidade pretendendo, segundo Raquel Henriques da Silva, “[…] implementar novos bairros residenciais destinados à média e alta burguesia, articular expeditamente o Centro da cidade com o seu termo mais qualificado e operativo a norte” (Cit. por Magalhães, 2014, p. 88).

A cidade de Lisboa na transição do século XIX para o século XX registou o desenvolvimento de uma sociedade florescente que progressivamente se localizava na capital, originando a expansão da cidade, incentivando a construção civil e a produção cerâmica, fruto dos novos materiais que iam surgindo no mercado e de novas preocupações urbanísticas, refletindo alterações socioeconómicas que possibilitaram o surgimento da iniciativa privada através da construção de prédios de rendimento (para alugar ou vender), de moradias “[…] edificadas pelas famílias mais abastadas, onde não faltavam os quartos de dormir, a casa de jantar, as arrecadações, uma cozinha e uma casa de banho” (Magalhães, 2014, p. 113) e estabelecimentos comerciais.

Alicerçada nas inovações tecnológicas ocorridas durante os séculos XVIII e XIX no panorama europeu, a expansão urbanística da cidade, nomeadamente desde o século XVIII, foi objeto de um empenhamento político e de investimento, quer público quer privado, que permitiu dinamizar o desenvolvimento de tecnologias de produção e de construção, apoiada pela descoberta e utilização de materiais inovadores na área da construção civil, possibilitando, assim, maximizar as capacidades de produção e reduzir os custos a esta associados.

O século XIX apresentou exigências em termos de construção civil que impulsionaram o desenvolvimento dessa indústria, dinâmica demonstrada com a realização, em 1888, da Exposição Industrial Portuguesa, realizada na Avenida da Liberdade. Neste evento, a Empresa Nacional de Betonilhas da firma Castro & Cª, apresentou um produto inovador na área de construção civil em Portugal, embora já utilizado na Europa, nomeadamente em Inglaterra - o betão (O Occidente, 1885, p. 251), material que iria ter uma utilização em elevada escala a partir da década de 1930 e que possibilitaria uma alteração evolutiva na construção civil em termos de dimensões, formas e complexidades das construções.

Também a Companhia de Cerâmica Lusitânia se afirmava no mercado cerâmico português, pois

Desde muito cedo que a fábrica de Sylvain Bessière se transformou numa empresa de prestígio. Em 1893 enviou os seus produtos à Exposição Industrial Portuguesa, cujo certame se realizou no Mosteiro dos Jerónimos organizado pelo Museu Industrial e Comercial de Lisboa. Produzia telhas, telhões […], manin[l]has (exigências do saneamento básico nas cidades impõe o consumo de massa de um novo produto cerâmico), talhas para água e vasos comuns. Obtém então uma medalha de cobre1.

Deslocalização da fábrica para a rua do Arco do Cego

Em 1890, o empresário industrial de origem francesa Sylvain Bessière, casado com Marie Therèse Bessière, construiu a Fábrica de Cerâmica Bessière no Largo do Matadouro, anteriormente denominado Largo da Cruz do Tabuado, atual Praça José Fontana, ponto de cruzamento entre o caminho da Cruz do Tabuado (que se prolongava de São Sebastião) e a Carreira dos Cavalos (atual Rua Gomes Freire), onde existiu o Chafariz da Cruz do Tabuado e o Matadouro e Mercado Municipal das Picoas, construído em 1863 com projeto de Pedro José Pezerat (Viterbo, 1988, vol. II, p. 263).

A fábrica de cerâmica estava vocacionada para a confeção de tijolos, telha marselhesa - introduzida em Portugal pela Empresa de Cerâmica de Alcântara, em 1879 (Custódio, 1994, p. 476) -, manilhas, vasos e talhas para água, numa lógica de fornecimento de um mercado em expansão na cidade de Lisboa na área da construção civil e das obras públicas, assim como no desenvolvimento do saneamento básico e de higiene pública, pois

Cada rua que se abria era logo povoada de casas, rapidamente erguidas dos alicerces, como por um encanto. Uma verdadeira febre de edificar invadiu a cidade! Dessa febre resultou o bairro Camões […], o Estephania, Barata Salgueiro, Campo d’Ourique, Calvario e Campolide […] os bairros novos da avenida que se estendem para o norte de Lisboa (O Occidente, 1906, p. 59).

Denotando visão empresarial resultante da expansão da cidade na direção do Campo Grande e de Alvalade enquadrado numa linha expansionista para norte, área rural de quintas e hortas com algumas indústrias têxteis de algodão, lanifícios e cerâmica, assim como o Mercado do Gado instalado onde se localizaria a Feira Popular (Custódio, 1994, p. 480), Sylvain Bessière decidiu, no início do século XX, deslocalizar as instalações fabris para a Estrada do Arco do Cego, nº 16 (Cameira, 2008, p. 11), na área do Arco do Cego, onde possuía “[…] uma casa e anexos no seu terreno na Quinta da Palmeira de Baixo na antiga estrada real, chamada então Estrada do Arco do Cego (Era o nº 16, freguesia de Arroios), artéria fundamental na ligação de Picoas ao Campo Grande e Lumiar”2. “Segundo Charles Lepierre, no «Estudo Chimico e Techonologico sobre a Cerâmica Portuguesa Moderna» sabemos que em 1899 ainda a Fábrica de Bessière estava no Largo do Matadouro o que prova que a mudança se começou a processar entre 1900 e 1902”3, tendo os pedidos para a construção da fábrica sido dirigidos à Câmara Municipal de Lisboa (CML) nesse período. A decisão camarária surge em 11 de setembro de 1902,

Informando ácerca do requerimento junto, designado n’esta repartição pelo nº 2360 de Sylvain Bessiere, acompanhado de um projecto para construir um edifício [o construtor foi Julio Engracio Cesar, inscrito na CML com o nº 131] destinado à instalação d’uma Fabrica de Ceramica, em terreno da quinta da Palmeira de Baixo, situada na estrada do Arco do Cego4.

Em 1908 já se encontrava iniciada a construção da fábrica no espaço delimitado pela Quinta de Santo António, pela Quinta da Conceição, pela Praça de Touros do Campo Pequeno (construída em 1892) e pelo Palácio dos Condes das Galveias.

A decisão do empresário Sylvain Bessière para a implementação das novas instalações naquele local terá assentado em três motivos: localização - a zona do Campo Pequeno surgia como potencial ponto de desenvolvimento da cidade que procurava expandir-se e aproximar-se do grau de desenvolvimento das suas congéneres europeias; matéria-prima - a existência de barreiras de argila terciárias de boa qualidade na Quinta da Conceição, situada nas traseiras da Quinta da Palmeira de Baixo; encomenda - fornecimento de tijolos para a praça de touros do Campo Pequeno (informação não comprovada, pois a mesma resulta de tradição oral).

Outro motivo foi apresentado por Jorge Custódio ao considerar que a escolha teria resultado de um ambiente de euforia de construção civil urbanística que se desenvolveu na zona periférica ao local de implantação da fábrica, pois “Começa a era das fachadas e dos edifícios de tijolo aparente, gosto divulgado a partir das fábricas de cerâmica de Sylvain Bessière, no Campo Pequeno, e de todas as outras que se edificaram no filão de argilas do Campo Grande, de Palma de Cima e das Telheiras” (Custódio, 1994, p. 476).

Instalação de infraestruturas

Em 3 de julho de 1902, é apresentado à CML o Ante-projeto de instalação da Fábrica de produtos cerâmicos, realizado pela firma A Promittente e assinado pelo engenheiro Júlio Eugénio César Garcia, para a construção de edifícios e estruturas inerentes à atividade da fábrica: abegoaria (palheiro e estábulo), oficinas, armazém de madeiras, olaria, telheiros, fornos e a casa das máquinas a vapor.

Numa breve descrição, o complexo industrial apresentava as seguintes configurações:

O compartimento geral apresenta vários mecanismos e a mesma cobertura de duas águas [tal como o edifício da casa das máquinas situado em espaço separado]. No que respeita aos edifícios das naves tratava-se de um tipo muito frequente na arquitectura industrial da época: rés-do-chão e dois pisos, o último dos quais apresenta uma empena quebrada que, funciona como elemento animador da fachada, totalmente construída em tijolo-burro, juntamente com os vãos. Nas duas naves sobressai o aproveitamento dos espaços: ao nível do rés-do-chão, os fornos contínuos; nos dois pisos superiores, um dos quais a servir de sótão, as zonas de secagem de telhas e tijolos. Pode ainda observar-se que possuía um corredor em todo o perímetro (Cameira, 2008, p. 13-14).

Paralelamente, e denotando uma preocupação social e empresarial (inserida numa lógica dos empresários, dos finais do século XIX e inícios do XX, de disponibilizar alojamento para os operários não residentes em Lisboa e controlar essa mão de obra em função do ritmo e volume de trabalhos encomendados), o empresário construiu 24 habitações para os seus funcionários5, tendo obtido parecer favorável da CML em 18 de setembro de 1902: “Informando ácerca do requerimento junto, designado n’esta repartição pelo nº 2361 de Sylvain Bessiere, acompanhado de um projecto para construção d’umas barracas na estrada do Arco do Cego nº 16, destinadas a Habitação dos operários da fábrica que ali vai construir”6.

As casas, com telhados de uma única água e de pequena área útil, possuíam uma sala com lareira e um quarto e destinavam-se, inicialmente, a 35 operários, mas, posteriormente, alojaram os funcionários hierarquicamente superiores. Em 27 de abril de 1928 a Fábrica apresentou novo pedido para “[…] construir em terrenos anexos ás suas fabricas na Rua do Arco do Cego, nº 88, para dormitório gratuito dos operários”7, mas o pedido foi indeferido.

O desenvolvimento da fábrica implicou a necessidade de reforço das infraestruturas de apoio à produção, bem como das estruturas destinadas ao armazenamento dos produtos realizados, tendo sido construídas, no período entre 1910 e 1919 e após aprovações camarárias, diversas instalações relacionadas com a natureza dos produtos e da maquinaria adequada importada da Europa: 19 de junho de 1907 - construção de uma casa (153,50m²) para instalação de motores a gás “pobre”8; 14 de abril de 1908 - construção de um telheiro em zinco (650m²) para enxaguadouro de produtos cerâmicos9; 6 de dezembro de 1912 - construção de uns telheiros provisórios (400m²) para guardar ferramentas e materiais10; 2 de junho de 1919 - construção de barracões (1370m²) destinados ao enxugo e depósito dos produtos fabricados na fábrica11; 8 de outubro de 1921 - Júlio Martins, sócio gerente da Cerâmica Lusitânia solicita à CML uma licença anual para efetuar obras de conservação e reparação12; 18 de agosto de 1922 - construção de um edifício destinado ao fabrico dos produtos, sem teto e com a altura de 7,50m13; 7 de julho de 1925 - construção de um forno no quintal da sua sede, para coser os artigos cerâmicos de seu fabrico14; 15 de fevereiro de 1927 - construção de um edifício para armazém e exposição dos produtos produzidos, composto por andar térreo, 1º andar e sótão15; 4 de julho de 1927 - pedido de autorização camarária para construir uma casa para escritório da firma, deferida em Sessão da Câmara de 24 de novembro de 192716.

Todas estas edificações tinham telhados de duas águas e eram cobertas, aliás como todos os outros edifícios que constituíam a unidade fabril, com telhas do tipo marselhesa.

Desenvolvimento empresarial e tecnológico

Face à crescente concentração operária disponível e à necessidade de instalação de maquinismos resultantes do desenvolvimento tecnológico, as unidades fabris precisavam de dar resposta implementando algumas medidas como a especialização da mão de obra, a montagem de fornos verticais e o desenvolvimento técnico.

Mas a expansão do mercado implicava sucessivas adaptações e ampliações de instalações e infraestruturas, como seja o surgimento dos fornos horizontais que permitiam corresponder à procura, por parte do setor imobiliário resultante do intenso dinamismo urbanístico, de materiais construtivos e decorativos (começavam a surgir disposições camarárias acerca do tratamento das fachadas urbanas).

Com o falecimento, em 1919, do fundador, o empresário Sylvain Bessière, inicia-se uma nova forma de desenvolvimento do negócio surgindo um modelo de gestão de transição, de uma empresa familiar para a estrutura de uma companhia empresarial com objetivos de investimento tecnológico e expansão para novos mercados, com inauguração de diversas filiais no país.

Inicialmente denominada Cerâmica Luzitânia, e após um período em que a empresa se designou como Cerâmica Bessière Sucessores, depois do falecimento de Sylvain Bessière, a mesma apresentou-se ao mercado em 1922 como Companhia da Fábrica Cerâmica Lusitânia, S.A.R.L. (em 1929, a unidade fabril passou a designar-se Companhia das Fábricas Cerâmica Lusitânia, S.A.R.L.) denotando um espírito de implementação em novas áreas de fabrico de elementos cerâmicos que não eram característicos da empresa, como seja a produção de mosaicos (1923), de produtos refratários (1924), de elementos em grés (1925) e de azulejos (1926).

O fabrico de outros produtos está associado a um processo de modernização das instalações, com a inclusão de sistemas de eletrificação em diversos setores da unidade:

Fôrça motriz. - As fábricas encontram-se completamente electrificadas, estando instalados nas suas diferentes secções, 28 motores eléctricos representando a potencia global de cêrca de 500 cavalos-vapor. A energia é-lhes fornecida elas Companhias Reunidas de Gaz e Eléctricidade […]. Dispõe a Companhia de uma central própria constituída por: Uma caldeira Babcock e Wilcox que fornece vapor a uma máquina de vapor, monocilíndrica Subzes de 170 cavalos […]. A cozedura de telhas e tijolos é efectuada em dois fornos contínuos Hoffman de grande capacidade, alimentados automaticamente de combustível, por interessantíssimos dispositivos mecânicos. O seu consumo global é de cêrca de 8 toneladas de carvão por dia. O combustível empregado é carvão nacional convenientemente preparado na fábrica (Industria Portuguesa, 1929b, p. 23-24).

O consumo crescente de carvão, enquanto material combustível para uma indústria em desenvolvimento, permitiu dinamizar a produção da indústria mineira portuguesa assim como o exercício da indústria de exploração de minas, atividade que a Lei nº 677, datada de 13 de abril de 1917, procurou regulamentar (Brandão, 2011, p. 281).

Com os referidos desenvolvimentos técnicos e o aumento de produção, e de acordo com uma notícia de imprensa de 1929, na unidade fabril em Lisboa

[…] as superfícies cobertas representam a área total de algumas dezenas de milhares de metros quadrados e que os terrenos da fábrica têm uma superfície de mais de uma centena de milhares de metros quadrados. O número de pessoas a que a Companhia fornece trabalho é de cêrca de 500. A quantidade de barro manufacturada anualmente é superior a cem milhões de quilogramas (Industria Portuguesa, 1929b, p. 23-24).

Em anúncio publicado em 1933, e demonstrando ao mercado o desenvolvimento empresarial obtido à data, a Companhia informava que possuía doze fábricas; detinha armazéns de materiais para exposições nas cidades de Faro, Portimão, Setúbal, Lisboa, Coimbra, Porto e Braga; detinha uma produção anual superior a 50 milhões de unidades; a área total construída era superior a 80000m²; tinha instalado 1000 cavalos-vapor de força motriz; empregava 2000 funcionários (A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação, 1933b, p. 2).

Os investimentos da Companhia enquadravam-se no desenvolvimento tecnológico que ocorreu no século XIX através da implementação de um processo de fabrico mecânico inovador (1835) com uso de máquinas a vapor permitindo, assim, acelerar o processo de secagem e obter produtos com maior perfeição.

Em 1858, o alemão Friederich Hoffman tinha patenteado o forno contínuo (fornalha rotativa e anel circular com doze câmaras comunicantes por ventiladores e reguladores de tiragem ligados a uma chaminé central, permitindo que uma câmara esteja a cozer e, em simultâneo, a aquecer a câmara seguinte), possibilitando diminuir o tempo de cozedura e aumentar a produção, situação dinamizada pelo fabrico de tijolos furados de uma forma mecanizada, complementando a utilização dos fornos intermitentes (arrefecimento entre fornadas permitindo o seu enchimento e esvaziamento) instalados no complexo fabril.

Em resultado desta nova dinâmica tecnológica e empresarial, a empresa “[…] desejando construir dois fornos para coser produtos de grés, e azulejo, no interior da sua fábrica, sita na Rua do Arco do Cego, freguesia de Arroyos […]”17, decidiu, em 1929, investir na construção de dois fornos Hoffman representando uma atualização tecnológica inovadora em Portugal, pois

Estes fornos, os primeiros deste systema que se fazem em Portugal, são construidos pela Casa Seedorff de Paris e dos quais tem patente de invenção, serão montados sob direcção de pessoal da casa fornecedora, que para isso vem expressamente a Lisboa, pertencendo-lhe portanto os projectos, que nos não confiam, e a responsabilidade técnica da obra. A maior parte dos produtos empregados na construção são fornecidos pelos construtores e os tijolos vermelhos são produzidos na fábrica do requerente e cuja boa qualidade está suficientemente reconhecida18.

A sede e as suas estruturas criativas

A origem da opção de revestir as fachadas exteriores dos edifícios é um assunto sobre o qual existem aspetos a necessitarem de estudos que a permitam clarificar. A partir do século XIX, com a alteração de mentalidades nomeadamente a partir da década de 40 (segundo diversos autores devido à influência dos portugueses emigrados no Brasil), o impacto deste revestimento alterou significativamente “[…] a percepção do espaço citadino no que diz respeito à estética e luminosidade” (Pais, Mimoso e Campelo, 2012, p. 1), sendo a produção de azulejos assegurada, conforme referido por Charles Lepierre no seu Estudo químico e tecnológico sobre a cerâmica portuguesa moderna (1898 e reedição em 1912) por diversas fábricas, nomeadamente: Porto - Devesas, Valente, Carvalhinho e Vale da Piedade; Aveiro - Fonte Nova; Coimbra - Alberto Pessoa, Leonardo Veiga; Lisboa - Baudin, Alcântara, Viúva Lamego, Viúva José Dias, Vítor Roseira e Constância (Pais, Mimoso e Campelo, 2012, p. 3).

Face à crescente importância desta empresa no panorama industrial português, em 1927 (fevereiro e junho) surgem dois projetos da autoria do engenheiro Luís Ernesto Roqueira, para a construção do edifício sede da Fábrica de Cerâmica, projetos “[…] que foram amplamente discutidos, o último dos quais teve o total aval do Conselho de Arte e Arqueologia da I Circunscrição do país”19 e que obtiveram o parecer favorável assinado pelo arquiteto José Alexandre Sousa, membro desse mesmo Conselho.

O edifício foi inaugurado no dia 5 de janeiro de 1929, com notícia na imprensa, tendo estado presentes

O sr. general [Óscar Fragoso] Carmona [Chefe de Estado] que presidiu à cerimônia, foi ali aguardado pelos srs. presidente do Ministério, ministro do Comércio, dr. Bustorff Silva, presidente e membros da comissão administrativa da Câmara Municipal de Lisboa; Mira Feio e dr. Alvaro Machado, respectivamente, directores gerais da Industria e Comércio; Julio Martins, dr. Vasco de Vasconcelos e Augusto Tavares, directores do estabelecimento; Gustavo Leal, funcionário superior; Eduardo Maria Rodrigues, presidente da Associação de Lojistas; Jorge Colaço, director da secção artística da fábrica; António Costa, director da secção de pintura em esmalte; etc. Terminada a visita, realizou-se, numa das salas da gerência, a cerimónia da aposição da medalha «Mérito Industrial» aos srs. Luís de Oliveira […]; Augusto Domingues de Sousa […]; Manuel de Oliveira Mamede […] e Luciano Martins (Industria Portuguesa, 1929a, p. 90).

O edifício possuía uma cobertura com um telhado de quatro águas com seis janelas e três claraboias, sendo constituído por três pisos e uma mansarda, cujos acessos eram facultados por uma escadaria em madeira, e com uma distribuição hierarquizada e ocupacional que procurava a otimização dos espaços disponibilizados.

No rés do chão funcionava o atendimento ao público e a área administrativa formada pelo gabinete do diretor geral e a secção de contabilidade; nos dois pisos superiores encontravam-se os espaços de exposições dos produtos fabricados pela empresa e diversas salas de reuniões; na mansarda localizavam-se os laboratórios de engenharia e de química, e ateliers de pintura de azulejos sob a responsabilidade do artista Jorge Colaço (1868-1942), sendo que “O atelier compunha-se de um laboratório, de uma sala de pintura industrial, de uma sala de decoração industrial e outra de pintura artística”20.

A execução deste piso resultou de um acordo efetuado entre a Fábrica e Jorge Colaço no qual

A fábrica cedia as instalações para “atelier”, que eram muito precárias, pois tratava-se do primeiro andar dum barracão onde funcionava a serralharia, e em troca o Mestre utilizava o azulejo da empresa que pagava com dez por cento de desconto. É evidente que a “Lusitânia” beneficiava do prestígio do nome do Pintor. […]. As encomendas eram obtidas directamente pelo Artista, mas nalguns casos por intermédio da fábrica. No entanto, era sempre esta que facturava o valor dos painéis, procedendo à transacção e encarregando-se da cobrança. […]. No final da década de vinte […]. A oficina que tinha boas instalações e era muito ampla, pois ocupava todo o último andar do edifício principal da Sede, ficou quase vazia. O “Atelier Colaço” foi então para aí transferido, ocupando metade desse espaço (Soares, 1988, p. 19-30),

o qual era repartido entre o atelier de pintura industrial dirigido por António Costa, coadjuvado por Américo Santos, e o atelier de pintura artística liderado por Jorge Colaço, coadjuvado por Fabian Tomaz Herrera, Carlos Afonso Soares, Mário de Oliveira Soares e Justino de Sant’Ana (Cameira, 2008, p. 28).

Assim, no desenvolvimento desta atividade surge como fator fundamental a contratação do artista Jorge Colaço convidado pelo sócio da fábrica Júlio Martins, em 1932. Refira-se que Jorge Colaço se encontra referenciado como um dos artistas portugueses de renome no panorama da azulejaria nacional e internacional, sendo caracterizado pela imprensa da época nos seguintes moldes: “Ora, de todos os artistas portugueses a quem vemos conferido o nome de Mestre, Jorge Colaço é o único que, enamorado de uma tradição portuguesa, levou corajosamente a sua arte para um ramo ou mesmo aspecto da Industria: - a cerâmica” (Industria Portuguesa, 1937, p. 59).

De referir dois momentos significativos que refletem a importância da sua obra: em 7 de abril de 1915 concluiu os trabalhos de ornamentação em azulejo do interior do vestíbulo central da estação ferroviária de São Bento, no Porto; em 12 de novembro de 1915, o rei de Espanha Afonso XII visitou a exposição de azulejos de Jorge Colaço, realizada em Madrid e na qual o rei foi retratado montado a cavalo (Brandão, 2011, p. 210-224).

Paralelamente foram construídas instalações destinadas à produção de azulejos e que eram constituídas por um edifício apetrechado com prensas tipo “balançé” e um forno retangular aquecido a gasogénio, equipamentos adequados à especificidade deste tipo de produção possíveis através de dois tipos de técnicas distintas: a estampilhagem (técnica comum a outras empresas concorrentes na área da cerâmica, de produção repetitiva e mais barata) e a tubagem (técnica exclusivamente utilizada pela Fábrica Lusitânia).

A fachada principal do edifício encontrava-se dotada de um portal com arco de volta perfeita que assentava sobre duas colunas de modelo dórico idênticas, as quais descarregavam sobre um plinto retangular (Cameira, 2008, p. 17).

Sobre este portal, para além da definição da divisão entre os pisos efetuada por frisos de azulejos com decoração fitomórfica, encontrava-se aplicado um painel de azulejos em tons de azul e branco com motivos alusivos à atividade de fabrico de produtos cerâmicos, sendo salientada a figura humana e tendo a obra como cenário de fundo a diversidade da produção cerâmica desenvolvida pela Fábrica, a qual pediu autorização à CML para “Forrar a frente principal sobre a via publica de azulejo decorativo do edifício em construção destinado a lojas, escriptorios, ateliers da Companhia […]”21.

A entrada para o espaço da fábrica, possivelmente para entrada e saída de viaturas, era constituída por um portão ao qual se encontravam adossadas duas pilastras retangulares encimadas por dois capitéis tipo coríntio e a balaustrada em azulejos pintados com a técnica de Trompe-l’oeil.

Em paralelo com o fabrico de produtos cerâmicos, a empresa acompanhava a inovação na forma de revestimento das paredes exteriores e dos elementos estruturais dos edifícios (Industria Portuguesa, 1929b, p. 23-28). Esta inovação assentava na produção de azulejos com pinturas artísticas e resultava da capacidade tecnológica e artística, nomeadamente na Art Déco que se encontrava em franca expansão europeia.

Expansão Nacional e ocaso da Fábrica do Arco do Cego

Com a crise internacional ocorrida em 1929, inúmeras empresas fabris da área da cerâmica entram em falência. A Fábrica Lusitânia iniciou a compra de algumas dessas empresas, tendo por base uma política de implantação em novas zonas geográficas: Coimbra (Fábrica da Estação Velha), Alcarraques, Vala do Carregado, Massarelos (Fábrica de Roriz), Setúbal, Montijo, Arraiolos, Algoz e Funchal, num total de doze unidades fabris, bem como a instalação de centros de exposição e de armazéns de distribuição nas principais cidades.

Estas iniciativas foram acompanhadas por investimentos na fábrica sede, que se expandiu para os terrenos limítrofes da fábrica, tendo sido apresentados diversos pedidos: a instalação de dois fornos (1929), a construção de um armazém (1932) e de uma chaminé (1934), que iria substituir a chaminé existente nos fornos contínuos Hoffman, tendo a CML viabilizado o pedido pois, da análise das fotografias da década de 1960, é verificável a existência desta nova chaminé, encontrando-se já em ruínas na década seguinte, e inexistente nas fotografias da década de 1980 (Cameira, 2008, p. 19).

Com os referidos desenvolvimentos técnicos a fábrica ampliou as suas infraestruturas, sendo que na fábrica de Lisboa, em 1929, segundo notícia da imprensa contemporânea,

as superfícies cobertas representam a área total de algumas dezenas de milhares de metros quadrados e que os terrenos da fábrica têm uma superfície de mais de uma centena de milhares de metros quadrados. O número de pessoas a que a Companhia fornece trabalho é de cêrca de 500.

A quantidade de barro manufacturada anualmente é superior a cem milhões de quilogramas (Industria Portuguesa, 1929b, p. 23-24).

Na década de 1940, o complexo fabril apresentava uma organização de espaços que refletia os investimentos realizados. De acordo com o exposto na planta de “Urbanismo e Obra/Planeamento Urbanístico/Projeto de novos arruamentos entre a avenida Defensores de Chaves, ruas Carvalho Araújo, Visconde de Santarém e o bairro Social do Arco do Cego”22, aprovado em sessão da Câmara Municipal em 3 de outubro de 1935, é possível verificar a existência de diversos equipamentos, entre outros, que importa referir: fornos contínuos e intermitentes e respetivas chaminés, estufas, máquinas de vidrar e polir cerâmica e de produção de manilhas, noras, variada tipologia de moinhos, prensas e bombas hidráulicas, amassadores, misturadores de cimento, transportadores elétricos e ascensores, peneiros, serras de corte de cerâmica, central elétrica, oficinas de reparações, áreas de enxugamento dos produtos, barracões de armazenamento, etc. A zona de extração da matéria-prima situava-se na área nascente da propriedade, próxima da Praça de Londres, e as casas dos funcionários localizavam-se na zona sul, junto ao Bairro Social do Arco do Cego.

No relatório elaborado pela Comissão de Organização da Exposição de Arqueologia Industrial em 4 de maio de 1982, é solicitado ao Instituto Português Património Cultural (IPPC) a classificação do complexo fabril, sendo referidas algumas características de organização espacial e de circulação:

Desde o portão de entrada para a fábrica, situado entre o edifício do primeiro proprietário e a sede social, portão em ferro forjado que abre para uma larga rua interior, até às diversas oficinas de fabrico sectorizado (em função do produto cerâmico) há uma intricada rede de circulação interna com galerias, ruelas cobertas, túneis e pontes, que estabelecem a ligação recíproca de todos os sectores de produção […].

Quanto à estrutura da produção fabril a Cerâmica Lusitânia como diversificou os sectores de fabrico para apresentar junto do consumidor uma variedade de produtos cerâmicos, não dispõe de uma estrutura fabril homogénea, mas sim heterogénea. É o resultado da associação de várias oficinas, umas maiores, mais modernizadas e obedecendo a critérios da produção em série e outras respondem a uma limitada procura do sector, sujeitas que estão também ao estádio tecnológico que as caracteriza.

Sobressaem de todo o conjunto as duas gigantescas naves centrais que, assentando sobre dois fornos contínuos Hoffman, tinham uma função específica na produção. Nos seus três pisos, sustentados por uma estrutura complexa de madeira única em Portugal, funcionava a secagem de milhares de telha e tijolos, isto é, a principal produção de massa da Cerâmica Lusitânia e a origem das suas dimensões (Garcia, 1984).

Mas a expansão da malha urbana para a zona do Campo Pequeno, Alvalade e Campo Grande implicou o surgimento de divergências entre a CML e a Fábrica Lusitânia, situação de conflito que poderá ter estado na origem dos indeferimentos para projetos de construção de um dormitório gratuito para os seus colaboradores (1928 e 1939), de um edifício afeto a armazéns e exposição de produtos (1935) e de uma nova chaminé para substituir outra obsoleta (1939), fundamentando-se em projetos camarários para melhoramentos urbanísticos e viários previstos para a área.

Esta situação prolongou-se, conforme os pareceres emitidos: em 25 de julho de 1939 a CML negou o deferimento de construção porque “O Plano de Urbanização desta zona da cidade com a integração dos melhoramentos estudados para êste local ainda não se encontra elaborado pelo que esta Repartição é de parecer que não deve ser deferido o que se requer”23; em 7 de novembro de 1945 a CML indeferiu os pedidos alegando que “Pelo estudo de urbanização elaborado para o local é de prever que a propriedade em causa venha ser atingida pelo prolongamento da Avenida Barbosa do Bocage”24; e em 26 de maio de 1947 a CML informou que

A propriedade da Companhia das Fábricas de Cerâmica Lusitânia é abrangida não só pelo traçado da Avenida de Berne mas também pelo prolongamento da Avenida Barbosa do Bocage e encontram-se presentemente em curso negociações para a expropriação da Cerâmica referida sendo de prever que no corrente ano aquela propriedade venha à posse do Município. Em face do exposto não se julga de autorizar a execução dos melhoramentos solicitados25.

Com a abertura da Avenida João XXI em 1964, a qual foi antecedida por uma estrada entre o Campo Pequeno e a Avenida Almirante Reis, a unidade fabril foi expropriada de uma parte significativa dos seus terrenos (cerca de 5970m²), quer em termos de área útil de edificações, quer no que se refere ao espaço de extração de matéria-prima (argila).

A atividade de produção da fábrica terminou em 1971, mantendo apenas em funcionamento os serviços de cariz administrativo e comercial, tendo sido reforçada a importância das fábricas de Coimbra, Setúbal e Massarelos no grupo fabril da empresa.

A 1 de julho de 1981, no Cartório de Santa Comba Dão, foram constituídas duas sociedades onde estava envolvida a Companhia da Fábrica de Cerâmica Lusitânia: a empresa Cerâmica Lusitânia - Serviços e Participações (prestação de serviços administrativos e a elaboração de estudos e projetos financeiros) e a empresa Cerâmica Lusitânia Comercial, Lda. (comércio de materiais para a construção civil) (Diário da República nº 172, 1981).

O relatório Breve Resenha Histórica, elaborado pelo Instituto Português do Património Arquitetónico e Arqueológico e constituinte do processo de classificação da Fábrica de Cerâmica Lusitânia, apresenta uma visão abrangente das edificações na década de 1980, classificando-as em três tipologias de acordo com a sua utilização:

Habitação 1 - Moradia unifamiliar - habitação do primitivo proprietário em 3 pisos (um deles sótão); 2 - Vila operária - habitações individuais para operários desenvolvidas em piso térreo com acesso por galeria de distribuição colectiva. Escritórios 3 - Edifício sede - posto de vendas e expositor no piso térreo, escritórios nos pisos 2 e 3 e, por último, o atelier de criação dos produtos artísticos da fábrica (atelier Jorge Colaço). Produção 4 - Naves dos fornos Hoffman - cozedura e secagem de telhas e tijolos, um forno em cada uma das naves ao nível do piso térreo. Os pisos 2, 3 e 4 destinados exclusivamente à secagem. 5 - Sala de extorsão - espaço amplo destinado à produção de tijolos pelo método de extorsão. 6 - Pavilhões - 3 pavilhões destinados à produção de manilhas de grês em dois fornos circulares e um rectangular para azulejos. 7 - Pavilhão - destinado a oficinas, olaria e refeitório dos operários. 8 - Pavilhão - destinado à armazenagem de alguns produtos acabados e ao nível inferior encontram-se algumas das principais ligações à barreira por onde se conduzia o barro. 9 - Telheiros - coberturas leves (em mau estado) do espaço de manobra para cargas e descargas.

O tipo de construção assume dois carácteres, o provisório e definitivo. Em quase todas as construções os materiais utilizados são a alvenaria de tijolo como produto da fábrica (ou pedra em muito poucos casos) e madeiras de excelente qualidade. […] O conjunto de construções que englobavam as actividades de produção, comércio e habitação aparece-nos como um grande complexo interligado por um sistema de comunicações verticais e horizontais quase labirínticas, resultado de uma tentativa de minimização de esforços, desde a exploração directa do filão de barro até ao produto acabado. A tipologia dos edifícios está directamente ligada à sua função específica, para além de outros elementos construídos sejam eles de caráter provisório ou definitivo26.

Em 19 de agosto de 1981 foi publicitada, em Diário da República (nº 189, 1981), a Resolução nº 185/81 que formalizava a autorização governamental para a Caixa Geral de Depósitos adquirir o terreno pretendido, tendo a escritura de compra e venda sido lavrada em 26 de agosto desse ano.

O espólio retirado do edifício sede foi distribuído por diversas entidades, nomeadamente o Museu do Azulejo (azulejos e moldes de madeira para produção cerâmica) e a Câmara Municipal de Lisboa (elementos construtivos das varandas, ferro forjado e cantarias).

Atualmente, oriundos da Fábrica Lusitânia, poder-se-ão apreciar vários exemplares deste tipo de produção, nomeadamente os que constam nos volumes I e II da obra Azulejos de Lisboa: Largo da Anunciada, nº 9 - da autoria de António Costa (Ribeiro, 2002, vol. I, p. 83); Cais do Sodré - estação de caminho-de-ferro, azulejos de desenho Art Déco, datados de 1928 (Ribeiro, 2002, vol. II, p. 28); Rua da Boavista, nº 186 - alusiva ao comércio da loja, desenho realizado em Trompe-l’oeil (Ribeiro, 2002, vol. II, p. 44); Pavilhão dos Desportos27; Farmácia Cruz28; e o Palácio da Justiça - A Execução dos assassinos de Inês de Castro, em Coimbra (A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação, 1933a, p. 8).

Pedido de classificação pela APAI/COAI

Após a aquisição por parte da Caixa Geral de Depósitos (a escritura foi celebrada em 26 de agosto de 1981), a Comissão de Organização da Exposição de Arqueologia Industrial solicitou, a 4 de maio de 1982, ao Instituto Português Património Cultural (IPPC) um Pedido de Classificação devidamente documentado - “memória descritiva e justificativa do valor histórico, industrial e cultural dos edifícios fabris” (Cameira, 2008, p. 21) -, no qual o complexo da Fábrica de Cerâmica Lusitânia deveria ser considerado como de interesse público, enquanto testemunho importante para a Arqueologia Industrial em Portugal, pretendendo impedir a sua demolição.

Este assunto foi objeto de debate público, nomeadamente pela sua exposição em diversos órgãos de comunicação social escrita, entre outros: Diário de Notícias, de 7 de maio de 1982 (artigo intitulado Cerâmica Lusitânia); O Expresso, de 31 de julho de 1982 (artigo intitulado Demolição da Cerâmica Lusitânia); Diário Popular, de 23 de julho de 1984 (artigo intitulado A Cerâmica Lusitânia e a sua importância histórica).

No entanto, após avaliação técnica por parte do IPPC às instalações da antiga unidade fabril, que confirmou o elevado estado de degradação das instalações, em Despacho da Secretaria de Estado da Cultura, datado de 31 de maio de 1982, a Caixa Geral de Depósitos era informada da não-classificação do imóvel pois “o pedido de classificação foi apresentado numa fase tardia, em que já decorriam as obras de demolição […] da principal peça a classificar - a grande nave com os fornos Hoffman […]. Considerando, assim, este caso consumado, julgo não haver matéria suficiente para a classificação […]”29.

Esta decisão foi reforçada em 3 de julho de 1983 pela Secretaria de Estado da Cultura ao informar a Caixa Geral de Depósitos da inexistência de quaisquer imóveis classificados na área abrangida pelo projeto do complexo da instituição, encerrando a pretensão da Comissão de Organização da Exposição de Arqueologia Industrial para classificar o complexo fabril como sendo de interesse público.

A Caixa Geral de Depósitos decidiu incluir no seu projeto um forno e a respetiva chaminé da antiga fábrica de cerâmica, a qual seria integrada no lago projetado para se desenvolver ao longo da fachada norte do edifício principal do complexo, situada paralela à avenida João XXI, optando, em 1985, por não derrubar a referida chaminé e realizar trabalhos de consolidação e proteção em maio de 1987. Paralelamente, foram reaproveitados cerca de 200 mil tijolos do material sobrante do complexo fabril, que foram utilizados para a construção da zona de galerias (destinadas a exposições temporárias).

Conclusão

O século XIX caraterizou-se pela crescente utilização de azulejos na construção civil com a sua aplicação no exterior dos edifícios, predominantemente em prédios de investimento, fator que motivou a fundação de fábricas para a sua produção intensiva em Lisboa, Porto e Aveiro (correntes estéticas: Romantismo e Revivalismo - painéis historiados e padrões diversos). Esta prática de revestimento generalizou-se nas primeiras décadas do século XX com aplicação em estações de caminhos de ferro, mercados, lojas, habitações (correntes estéticas: Historicismo e Nacionalismo - cunho folclorizante); Naturalismo; Arte Nova (formas sinuosas de enorme plasticidade; exploração da cor) e Art Déco (geometrização das formas)30.

Este fenómeno desenvolveu-se em paralelo com a expansão da construção civil, motivando as empresas do setor para o desenvolvimento de produtos que correspondiam ao perfil de novos clientes oriundos de uma burguesia que ia assumindo progressivamente um papel na sociedade portuguesa, com investimento na área do imobiliário.

Enquadrando-se nas práticas das empresas congéneres, a Fábrica de Cerâmica Lusitânia, potenciando o desenvolvimento tecnológico e produtivo existente, procurou corresponder às novas solicitações de mercado e à crescente procura de materiais na área da construção civil, sendo um dos marcos durante um significativo período do século XX no qual “[…] a cidade viveu num estado de autêntico delírio, com as construções a sucederem-se [respeitando] a norma imposta em 1903 que limitou a altura máxima dos prédios a cinco andares” (Magalhães, 2014, p. 132).

Empenhada na sua expansão, adotou métodos e metodologias de trabalho, e de produção, inovadores que apoiaram o incremento da construção civil, num país que procurava colocar-se no mesmo patamar de desenvolvimento de outros países europeus, adaptando-se às constantes necessidades de construção, adquirindo equipamentos inovadores em Portugal e produzindo novos produtos de qualidade reconhecida, seja em termos de materiais de construção civil, seja no desenvolvimento de temáticas e técnicas na produção e pintura de azulejos, potencializado pela participação do artista Jorge Colaço.

Para o efeito, e num projeto de antecipação à necessidade de espaço que a expansão de Lisboa iria impor, deslocou as suas instalações para uma zona limítrofe da capital (a Estrada do Arco do Cego viria a constituir um eixo viário de extrema importância ao permitir a ligação entre o perímetro interno da cidade e os seus arredores, uma zona que se tornaria durante algumas décadas numa “cintura industrial” com a implantação de diversas indústrias, nomeadamente têxteis de algodão e lanifícios e o já existente, desde 1888, Mercado Geral de Gados, mais a norte), aproveitando a abundância de matéria-prima na nova localização (a propriedade Quinta da Palmeira de Baixo pertencia a Sylvain Bessière) e, paralelamente, a disponibilidade do espaço para a sua própria expansão quer em termos técnicos e de recursos humanos, mas também físicos, por permitir a ampliação das estruturas de produção e de armazenamento de matéria-prima e de materiais produzidos.

A importância desta empresa no panorama económico nacional ficou, sem dúvida, patente com a presença do Chefe de Estado, o General Óscar Fragoso Carmona e do Ministro do Comércio, o Dr. Bustorff Silva, aquando da inauguração das suas novas instalações em 5 de janeiro de 1929.

A expansão da cidade para a zona do Campo Pequeno, Alvalade e Campo Grande motivou divergências entre a Câmara Municipal de Lisboa e a Fábrica de Cerâmica Lusitânia, impedindo o desenvolvimento de projetos ao longo da existência da unidade fabril. Mas a expropriação de parte dos terrenos da Fábrica para projetos rodoviários afetou a extração da matéria-prima e de produção, que culminou com o encerramento da atividade em 1971 e a sua posterior venda à Caixa Geral de Depósitos.

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1Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (IPPAAR), Proposta de Classificação da Fábrica de Cerâmica Lusitânia - Breve Resenha Histórica, Processo nº 82/3 (55), 4/5/1982, p. 80.

2DGPC, IPPAAR, Processo nº 82/3 (55), 4/5/1982, p. 80.

3Idem, p. 79.

4Arquivo Municipal de Lisboa (AML), Obra nº 15727, Processo nº 3985/02, fl. 6.

5DGPC, IPPAAR, Processo nº 82/3 (55), 4/5/1982, p. 80.

6AML, Obra nº 15727, Processo nº 3984/02, f. 2.

7Idem, Processo nº 7017/02, f. 2.

8Idem, Processo nº 4182/07, f. 3.

9Idem, Processo nº 2569/08, f. 8.

10Idem, Processo nº 47230/12, f. 2.

11Idem, Processo nº 6126/19, f. 1/2.

12Idem, Processo nº 16382/21, f. 1.

13Idem, Processo nº 1626/22, f. 2.

14Idem, Processo nº 12170/28, f. 1.

15Idem, Processo nº 1567/27, f. 2.

16Idem, Processo nº 9435/27, f. 1.

17Idem, Obra nº 15727, Processo nº 91/26, f. 1.

18Idem, f. 2.

19DGPC, IPPAAR, Processo nº 82/3 (55), 4/5/1982, p. 78.

20Idem, p. 77.

21AML, Obra nº 15727, Processo nº 12134/28, f. 1.

22AML, PT/AMLSB/CMLSBAH/PURB/002/03874, p. 45-46.

23AML, Obra nº 15727, Processo nº 30502/39, f. 8.

24Idem, f. 22.

25Idem, f. 30.

26DGPC, IPPAAR, Processo nº 82/3 (55), 4/5/1982, p. 62-64.

27Idem, p. 26.

28Ibidem.

29Idem, p. 111.

30PORTUGAL. Museu Nacional do Azulejo - Cronologia do azulejo em Portugal. [Consult. 06/08/2021]. Disponível na Internet: http://www.museudoazulejo.gov.pt/Data/Documents/Cronologia%20do%20Azulejo%20em%20Portugal.pdf

Recebido: 31 de Dezembro de 2020; Aceito: 24 de Setembro de 2021

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