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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.18 Lisboa Dec. 2022  Epub July 15, 2022

https://doi.org/https://doi.org/10.48751/cam-qfh7-3j87 

Dossier

Entre Comenius e Rousseau: reflexões sobre infantes e adultos

Between Comenius and Rousseau: reflections on infants and adults

i Shirley dos Santos, FEUSP - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 05508-040 São Paulo, Brasil. shirleysantos@usp.br


Resumo

Busca-se os rastros de um enredo no qual figuram adultos e crianças durante a formação da cultura escolar na Idade Moderna. Almeja-se vislumbrar a longa duração, sem desmerecer os aspectos circunstanciais, trazendo à tona parcelas dos discursos de autores dos séculos XVII e XVIII. Espera-se adentrar o cenário esboçado nos trechos selecionados, que participaram da tessitura dos ritmos escolares em tal fragmento de tempo. Para isso, serão utilizados os contextos de Comenius e Rousseau como balizas temporais, sem precisão exagerada. Talvez, possamos, pensando no diálogo desses autores com seus ouvintes e/ou leitores da época, penetrar em partes das fontes, almejando conexão com as visões sobre infantes e adultos.

Palavras-Chave: Adultos; Crianças; Comenius; Rousseau; Modernidade

Abstract

We seek the traces of a plot in which adults and children figure during the formation of school culture in the Modern Age. The aim is to glimpse the long duration, without neglecting circumstantial aspects, bringing to light parts of the speeches of authors from the 17th and 18th centuries. We hope to penetrate the scenario outlined in the selected excerpts, which participated in the weaving of school rhythms in such fragment of time. For this, the contexts of Comenius and Rousseau will be used as temporal markers, without exaggerated precision. Perhaps, thinking about the dialogue of these authors with their listeners and/or readers of the time, we can penetrate parts of the sources, aiming at a connection with the views about infants and adults.

Keywords: Adults; Children; Comenius; Rousseau; Modernity

Introdução

O momento em que Comenius (1592-1670) fez seus escritos foi marcado por inovações científicas e, assim, as tradicionais estratégias de hierarquização, dentro das ordenações divinas, estiveram, a partir deste momento, apartadas das únicas explicações sobre a realidade. “O Sol posto no centro, abalava [...] as convicções metafísicas ancestrais. Com a ausência da referência da Terra como núcleo, onde ficaria Deus” (Boto, 2017). Figurou-se ambiente propício para que se firmasse a concepção de que era necessária a busca de constância no estudo dos fenômenos. Abriu-se espaço para a ciência moderna, de modo que os dados fossem retratados dentro de um raciocínio matemático, a fim de se procurar uma regularidade (Boto, 2017). Época de incertezas que foi marcada pela ânsia de ordenações lógicas. Engendravam-se explicações, com base nessas tendências, para o que caracterizaria a fase infantil, distinguindo-a do ser adulto. Gradativamente, as ordenações divinas caminhariam lado a lado das características de laicização do mundo, inclusive nas relações entre adultos e crianças, professores e alunos. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) enceta o momento em que se vislumbra a distinção entre vida adulta e infantil. Comenius caminha nesse sentido, mas também aparenta proximidade da ideia medieval do adulto em miniatura. Em Rousseau, há indícios do que, atualmente, se tem em vista: fases distintas para a vida humana, o que também já se esboça em Comenius.

Pensar por si mesmo e o fundo do coração

Em consonância com o estilo adquirido pela ciência moderna, delineava-se importância para a matemática e a objetividade. Paradoxalmente, entrementes, o pensamento humano dilatava-se em ventos nem sempre para uma mesma direção. Kulesza elucida a mistura entre aspectos sobrenaturais e naturais em Comenius, que “confere um sentimento evolutivo à natureza, fazendo-a progredir de formas de vida inferiores até a divindade, exorcizando assim todos os demônios” (Kulesza, 1992, p. 149).

Aspectos contraditórios também são percebidos nos processos de subjetivação. As regras coletivas deveriam ser individualizadas no interior de cada pessoa, constituindo como que uma segunda natureza, mostrando que as “transformações de comportamento inscrevem-se no vasto processo de privatização da vida, que se registrou - como já apontara Ariès (1988) - na longa duração do século XV ao século XX” (Boto, 2017, p. 83). Desse modo, sentimentos, desejos e ambições pareceriam quesitos da intimidade de cada um, mas seriam, entretanto, administrados e, por conseguinte, os seres humanos tornaram-se intensamente subjetivos (Rose, 1988, p. 33-34). De certa forma, os indivíduos sofreriam agigantamento de suas próprias representações. Quem seria mais estimulado assim a se enxergar, adultos ou infantes? Talvez esteja aí o ponto de partida para futuras reflexões acerca das imagens relacionadas aos dois. Por ora, continuemos no recorte proposto.

A salvação das almas, antes atrelada ao âmbito coletivo, sofre uma remodelação, indo ser depositada nas ações mais individualizadas. Na Didática Magna, configurava-se o prenúncio da ideia, também propagada na atualidade, de que os indivíduos podem conhecer as coisas por si mesmos. Desenhava-se uma nova concepção de igualdade. Utilizando a metáfora do espelho e da mente como olhos, afirmou-se que “Deus distribui a seu bel-prazer esses espelhos da mente, esses olhos internos” (Comenius, 1997, p. 232). A imagem da poeira é empregada como representação dos empecilhos de uma adequada visualização da realidade (Comenius, 1997, p. 232), onde os professores aí aparecem como mediadores entre jovens e realidade, sendo igualados em importância. Cada sujeito possuiria as potencialidades de enxergar a realidade em seu interior. Nisso, olhos são destacados ao invés dos ouvidos. Ver na solidão é estimulado.

Os infantes, desde a sua tenra idade, são associados a uma composição que pode ser moldada1. Comenius “compara a mente humana com a terra, um jardim e posteriormente com a cera e sua versátil moldabilidade” (Kulesza, 1992, p. 96). Desenhava-se, de certa maneira, a grandeza docente perante jovens que figuravam como facilmente contornáveis. Antes que haja a solidificação do material flexível, é preciso iniciar os contornos desejados. Há que se mencionar que o professor, como Deus, agiria como artesão do homem numa conexão entre micro e macrocosmos figurados pela relação professor-aluno.

Adentrar no universo comeniano acerca dos cultos à divindade ajuda-nos a compreender suas menções à interioridade humana, incrementando as tonalidades de uma maior proximidade entre Deus e o indivíduo. Culto e subjetividade estariam, assim, unidos na morada individual, na qual a cera e a terra foram devidamente colocadas em formas adequadas. Nasce espaço para pensar a verdade interior (também presente em Rousseau) em contato reservado com a divindade de maneira cotidiana e ininterrupta, não somente nas celebrações coletivas. Assim seria a preferência de Deus: os cultos internos se sobrepõem aos externos, já que “[...] não somos apenas espírito, mas também sentidos e corpo, é necessário que nossos sentidos sejam externamente estimulados a fazer as coisas que interiormente devem ser feitas em espírito e verdade. Por isso, Deus, ainda que prefira o culto interior, ordenou ritos exteriores e quer que sejam observados” (Comenius, 1997, p. 282-283).

O personagem peregrino de O labirinto do mundo e o paraíso da alma, que vaga pelo mundo à procura de paz de espírito, transfigura-se nessa interioridade. Trata-se de uma experiência mística em que o personagem ruma seus passos para o seu próprio interior, que está associado ao seu coração. “A obra reflete o projeto utópico comeniano de um mundo ideal que não está situado em um lugar distante, mas no próprio interior do homem” (Leodoro, 2005, p. 112). Realçavam-se as individualidades. O aprendiz demonstraria certa capacidade para “penetrar por si mesmo até o âmago das próprias coisas e a tirar delas conhecimentos genuínos [...]” (Comenius apud Kulesza, 1992, p. 105).

Para Comenius, um dos sinais para se saber se as crianças têm aptidão para frequentar a escola pública é ser revelado, de forma clara, o desejo de se instruir em outras coisas (Chiquito, 2014, p. 113-114). Versa sua indicação de que o mundo a ser conhecido, como objeto de desejo, seria como um chamado de Deus e certo teor do ser adulto se encerra nessa morada juvenil. “Esse si mesmo figuraria, assim, como uma síntese do poder pastoral, e as subjetividades aí forjadas, deste poder destinado a todos e a cada um, como uma interiorização do adulto, uma forma identitária do recolhimento, do isolamento [...]” (Chiquito, 2014, p. 114). De certa forma, ao que parece, a criança introjetaria um adulto conhecedor das regras concernentes aos aspectos religiosos e sociais, aproximando-se da criança como o adulto em miniatura2. Entrementes, a natureza estaria em constante evolução, instituindo, então, uma aprendizagem concatenada a um roteiro posto em fases. Haveria espaço, portanto, para já se esboçasse a fase da infância. Nessa, as brincadeiras recomendadas por Comenius são no intuito de despertar coisas sérias e não como mera diversão, como e “enfim, as escolas serão um prelúdio para a vida” (Comenius, 1997, p. 226).

A cada etapa do desenvolvimento, caberia infiltrar o adulto na criança, dentro do que lhe é possível absorver. É possível vislumbrar nisso, de certa forma, a associação com as atuais concepções do desenvolvimento humano em termos de fases e do currículo em espiral, no qual os mesmos assuntos são estudados em cada nível, partindo da menor para a maior engenhosidade da compreensão acerca deles.

Em Rousseau, para que os indivíduos se debruçassem sobre si mesmos, é significativa sua súplica aos leitores/ouvintes para que houvesse filiação às leis - as quais formariam quase que uma segunda natureza na constituição humana. “Penetreis profundamente em vosso coração e consulteis a voz secreta de vossa consciência, eu vos suplico. Alguém dentre vós conhecerá no universo corpo mais íntegro, mais esclarecido e mais respeitável do que o de vossa magistratura?” (Rousseau, 1989, p. 34). As leis e a tradição parecem afastar o homem da Providência e atá-lo às leis, preferencialmente rumo à esfera dos ditames republicanos. Leis e natureza parecem ganhar proximidade, quase como que, dentro do homem, estivessem os acordes de uma canção alinhavada à legislação, tornando a aprendizagem direcionada a formar adultos que amem o ordenamento da tradição. A obediência às leis e o respeito pelos ministros garantem a preservação dos seres humanos (Rousseau, 1989, p. 34).

O coração figuraria como a consciência, cuja composição traz uma voz interior, como se, no fundo do indivíduo, falasse a voz da perenidade dos costumes. Há referência para que cada um vasculhe seu interior, o fundo do seu coração, nascendo daí a preocupação com o processo de interiorização do indivíduo em sua própria consciência. O ensimesmamento traz a honra de pertencer e se conservar na sociedade republicana amadurecida. O coração despontaria como símbolo da intimidade e a atenção com ele não poderia ficar distante da ação educativa, no que tange a educadores em geral. O pai de Rousseau teria ministrado a ele uma “educação orientada pelo coração” (Rousseau, 1989, p. 35-36).

O coração é aclamado como o local do contato com a divindade, salientando-se o culto interior. “O culto que Deus pede é o do coração e, este, quando sincero, é sempre uniforme” (Rousseau, 1979, p. 338). Alegando incapacidade em elevar suas concepções até ao grande Ser, o autor teria, então, se esforçado por rebaixá-lo perante si mesmo. “[...] queria um culto exclusivo; queria que Deus me houvesse dito o que não dissera a outros [...]” (Rousseau, 1979, p. 338). O ensimesmamento também traria proteção quanto às más consequência do progresso, havendo a esperança de que o conhecimento do homem “poderá avançar quando se tornar possível no próprio homem distinguir aquele que seria se vivesse apenas segundo as forças naturais que cada indivíduo traz em si, daquilo que lhe impõem as alterações provindas do exterior e os progressos da espécie [...]” (Machado, 1968, p. 38).

Apesar de certo movimento de incredulidade em atingir a voz interior rumo à felicidade coletiva, conciliando homem à natureza, a esperança parece não abandonar as conjecturas de Rousseau. Faz-se a presença, em suas palavras, de um método para isso, a despeito do seu caráter hipotético e não absoluto quanto ao trabalho dos professores. “Retraçar esse trânsito modificador constitui o objeto essencial do conhecimento almejado; o único método adequado para atingi-lo [...] será o do rigor racional, à condição, contudo, de [...] admitir que acerca do estado natural só se poderá chegar a hipóteses” (Machado, 1968, p. 38). Dentro do desordenamento premente ao estado social, vigoraria, assim, a possibilidade de felicidade atrelada à conciliação com o estado natural. Mesmo perante as inconstâncias possíveis na história coletiva e individual, cada um tem as possibilidades de se debruçar sobre si mesmo e buscar a organização que vem da natureza.

A procura da ordenação no homem: natureza, deus e artes mecânicas

Em meio às contingências históricas, admitidas por Rousseau como elementos de afastamento do homem da racionalidade progressiva da humanidade, vemos seu esforço em ordenar o interior dos seres humanos e, assim, tornar mais objetivos os próprios processos internos de subjetivação e os sentidos inerentes a todas as vozes interiores, que, talvez, portanto, estivessem em uníssono. Enxergamos, nisso, as tensões entre coletividade e individualidade, regras e livre arbítrio, homogeneidade e heterogeneidade. Embora a subjetividade traga, em seu rastro, as possibilidades de um indivíduo mais solto em relação ao todo, espremem-se as adversidades entre o todo e a solidão da intimidade. Essa última perde seu caráter de uno. Solidão acompanhada, portanto. Tentando equilibrar tais aspectos, a “prescrição geral [...] coincidiria com a obediência a uma vontade autônoma de cada indivíduo em seu foro íntimo” (Boto, 1996, p. 93). O legislador, consequentemente, deve ser interpretado como um “homem excepcional, capaz de pôr em ato a vontade geral (subtraídos os interesses particulares), discernindo, dessa maneira o bem que o povo deseja e que sozinho não se mostra capaz de encontrar” (Boto, 1996, p. 94).

Outra estratégia organizacional de Rousseau, que também aglutina o indivíduo a uma regularidade do todo e tenta excluir o acaso, foi em direção ao próprio desenvolvimento humano. Referimo-nos à distinção entre as fases da infância e da vida adulta, em benefício de uma maior felicidade humana. Destoa-se, consequentemente, da tendência comeniana de introjetar o adulto na criança, mesmo que em diferentes e gradativos graus de intensidade.

Para não corrermos atrás de quimeras, não nos esqueçamos do que convém à nossa condição. A humanidade tem seu lugar na ordem das coisas, e a infância tem o seu na ordem da vida humana: é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança. Determinar para cada qual o seu lugar e ali fixá-lo, ordenar as paixões humanas conforme a constituição do homem, é tudo o que podemos fazer pelo seu bem-estar. [...] A infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lhe são próprias; nada é menos sensato do que querer substituir essas maneiras pelas nossas [...] (Rousseau, 2004, p. 74, 91).

Quais as consequências desse desabrochar da infância como uma etapa diferenciada? Aos adultos ficaria reservado o espaço de superioridade e tutoria absoluta em nome de uma suposta maturidade e maioridade? Ou a menoridade assumiria passos engrandecidos no decorrer da história a partir de então? Com a ampliação dos indivíduos - apesar da ainda permanência da relevância do coletivo - em suas subjetividades, quais vozes interiores seriam mais ouvidas? Algumas considerações inconclusivas talvez possam despertar lampejos de respostas, mesmo que sujeitos a reformulações. De qualquer forma, há que se considerar certa tendência ao ordenamento, onde o fundo da alma, em associação à interioridade, adquiria relevância. Afirma-se que a natureza colocou as faculdades dos seres humanos - sendo que, de início, a conservação era o único possível impulso - “como que de reserva no fundo de sua alma, para que se desenvolvessem quando necessário” (Rousseau, 2004, p. 75). Entretanto, não há segurança de que o resgate e a restauração da natureza do homem possam ser efetivados. São expostas conjecturas para a obtenção de noções adequadas sem esperanças contundentes.

Não é, pois, fácil empreendimento distinguir o que há de originário e de artificial na atual natureza do homem e conhecer profundamente um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente não existirá jamais e, do qual, deve-se contudo ter noções corretas para bem julgar de nosso estado presente (Rousseau, 1989, p. 42).

Para Durkheim, o estado de natureza não seria aquele em que o homem viveu antes da instituição das sociedades (Durkheim, 2008, p. 75). Um valor psicológico é dado a ele e não uma ligação com um período histórico no início do desenvolvimento humano. “O problema é mais psicológico que histórico, ou seja, distingue entre os elementos sociais da natureza humana e os inerentes à constituição psicológica do indivíduo. No estado de natureza, o homem consiste apenas destes últimos” (Durkheim, 2008, p. 75). Haveria, introduzindo tal ideia no campo da educação, algum método para levar os infantes à procura desse pregresso estado - mesmo sem a promessa do encontro - de originalidade dentro do espectro individual? Sobre isso, enredam-se algumas especulações.

A natureza, conforme Rousseau, adquire “uma dimensão metodológica na construção do discurso sobre a razão e sobre a moral” e, por conseguinte, na estrutura em que se assentam os atos educacionais, “seria fundamental encontrar uma alternativa para que o ser humano pudesse se reencontrar com sua suposta natureza” (Boto, 2012, p. 230). A ordem natural, tanto quanto possível, deve ser perseguida, “porquanto tudo o que de postiço entrar na conformação do homem não deixará de fertilizar um novo campo para novas necessidades subsequentes” (Francisco e Calça, 2016, p. 120). Por mais conjectural que possa ser sua obra, o autor deixou marcas de otimismo a partir da sugestão de contornos metodológicos. “O estado natural é sempre, para Rousseau, referência obrigatória” e, desse modo, o homem da natureza não teria desaparecido, permanece em cada criança (Boto, 2012, p. 242). Será necessário atentar o olhar às crianças com o fito de decifrar e respeitar a lógica interna do desenvolvimento infantil (Boto, 2012, p. 242). O aluno deverá ser exercitado na ordem e no método em seus raciocínios, buscando desenvolver um espírito de exatidão (Boto, 2012, p. 239). Conformam-se, desse modo, certas tensões com as subjetividades afloradas na época moderna e a busca de certa objetividade a reger, de forma única, todos os sujeitos. Rousseau adverte pais e professores quanto ao que ele denomina método da natureza, procurando afastar desses, respectivamente, a submissão e a severidade. “[...] aprendam uma vez o método da natureza” (Rousseau, 2004, p. 88).

O aluno, nesses direcionamentos, deve ser tratado com pertinência à idade (Rousseau, 2004, p. 93). Emergem também as figurações do adulto forte e da criança fraca - a serem imputadas junto aos ensinamentos - mas sem a pretensão de que o jovem imagine que há o objetivo de sobre ele ser imposta a autoridade (Rousseau, 2004, p. 93). “[…] sinta ele cedo sobre a sua cabeça altiva o jugo duro que a natureza impõe ao homem, o pesado jugo da necessidade” (Rousseau, 2004, p. 93). Assim agindo com a criança, aglutinam-se, contraditoriamente, infância e maturidade: o adulto precisa proporcionar que a primeira se instaure como tal, tornando-se madura (Rousseau, 2004, p. 97). A razão passa por um processo de formação na infância para se consolidar após o fim desta fase. O infante é representado como “uma águia que fende o ar num instante e torna a cair no chão no instante seguinte” (Rousseau, 2004, p. 117). Seu desordenamento nas ações segue a ordem natural. A insensatez deve ser atributo do ser infantil e um adulto não deve ser visto dentro dele. O que faria a criança se preparar para a fase adulta? Até que a razão possa nascer, a criança deve fazer “apenas o que a natureza lhe pede” e, consequentemente, “nada fará que não seja bom” (Rousseau, 2004, p. 95). Constituinte da natureza humana seria o ato de “suportar pacientemente a necessidade das coisas” (Rousseau, 2004, p. 93).

Há advertências de Rousseau no sentido de que não seja gerado o engrandecimento da criança perante o adulto, resguardando as possibilidades da relação assimétrica entre ambos e a consolidação do adulto forte e da criança fraca. Contudo, Rousseau, atualmente, é apontado pelo culto da infância, dando a entender sobre as possibilidades desconcertantes escondidas na criança bem pequena. “[...] ele faz signo em direção à existência de capacidades notáveis e uma maturidade inesperada na criança bem pequena.” (Ottavi, 2016, p. 61, 63). A criança como águia engendrava, quem sabe, um infante em tal direção.

As brincadeiras deveriam pulular o cotidiano juvenil - não no sentido de estratégia para coisas sérias como em Comenius. A infância, que é o “sono da razão”, é tempo de nada fazer. A um suposto adulto que critica o ócio na época infantil, são lançadas palavras de repreensão, com tom enfático de inconformismo. “Ficais alarmado por vê-la (a criança) consumir seus primeiros anos sem nada fazer. Como! [...] Não é nada saltar, brincar, correr o dia todo?” (Rousseau, 2004, p. 119). A criança fica, portanto, em uma instância de desprendimento em relação ao mundo adulto. As preocupações da vida ficariam alheias ao cotidiano dos infantes, que se constituem, desse modo, como seres envoltos em atmosfera de proteção quanto aos males do mundo. “Respeitai a infância e não vos apresseis em julgá-la quer para bem, quer para mal.” (Rousseau, 2004, p. 119). Conhecer o bem, o mal e a razão dos deveres dos homens não são preocupações atinentes aos mais jovens, o que difere da tendência de Comenius nas simulações de atos adultos nas brincadeiras. A criança, em Rousseau, precisa ser poupada de contato com os problemas mundanos, afastando-se, ainda mais, do jovem visto como um adulto em miniatura. O estado de preocupação com o bem-estar infantil aparece em conexão com o cuidado para que a criança não se torne autoritária.

Assim, a criança que só precisa querer para conseguir acreditar ser a proprietária do universo; considera todos os homens seus escravos e, quando finalmente somos forçados a lhe recusar alguma coisa, ela, acreditando que tudo é possível quando manda, toma essa recusa como um ato de rebeldia. Todas as razões que lhe damos numa idade incapaz de raciocinar só lhe parecem pretextos; vê por toda parte má vontade. Irritando a sua natureza o sentimento de uma pretensa injustiça, a criança passa a ter ódio de todos e, sem nunca ter gratidão pela complacência, indigna-se com qualquer oposição. Como posso conceber que uma criança de tal modo dominada pela cólera e devorada pelas paixões mais irascíveis possa algum dia ser feliz? Feliz, ela! É um déspota; ao mesmo tempo, é o mais vil dos escravos e a mais miserável das criaturas. [...] Se tais ideias de dominação e de tirania as tornam miseráveis desde a infância, que será delas quando crescerem e suas relações com os outros homens começarem a se ampliar e a se multiplicar? Habituadas a ver todos se curvarem diante delas, que surpresa terão, ao entrarem na sociedade e sentirem que tudo lhes resiste, por se verem esmagadas pelo peso desse universo que julgavam poderem mover à vontade! [...] Muitos obstáculos inabituais se repelem, muitos desprezos se aviltam; tornam-se covardes, medrosas, servis e caem tanto abaixo de si mesmas quando tinham se elevado acima do que eram. Voltemos à regra primitiva. A natureza fez as crianças para serem amadas e socorridas, mas será que as fez para serem obedecidas e temidas? (Rousseau, 2004, p. 87).

Dessa maneira, são enredadas indicações de como lidar com aprendizes, de modo que se consolide a formação de adultos de um porvir em que as relações não sejam marcadas por atos tirânicos. Emílio é, por conseguinte, o fio para a tessitura de um futuro melhor. A “noite do tempo” (Rousseau, 1989, p. 30) é empregada como metáfora que separa estado natural e civilizado. Caso Emílio seja mergulhado nela, mesmo com a escuridão, é mais fácil evitar a metamorfose do pequeno déspota em um adulto despreparado para lidar com as turbulências cotidianas. Deveriam ser formados indivíduos movidos pelo coração. “Rousseau queria que a educação resultasse numa flor saudável” (Postman, 1999, p. 74) bem guiada pelos mais velhos.

A idade adulta é associada, por Postman (1999, p. 112), ao advento da prensa tipográfica, refletindo a euforia com o funcionamento das artes mecânicas em sua regularidade ordenada, o que desponta Comenius.

Quase todas as características que associamos à idade adulta são aquelas que são (e foram) ou geradas ou ampliadas pelos requisitos de uma cultura plenamente letrada: a capacidade de auto-controle, uma tolerância para com o adiamento da satisfação, uma refinada capacidade de pensar conceitualmente e em sequência, uma preocupação com a continuidade histórica e com o futuro, uma alta valorização da razão e da ordem hierárquica (Postman, 1999, p. 112-113).

Deus, em imagem comeniana, assume os traços de um grande escritor na apresentação do teatro do universo - o que deve servir de modelo para os professores. Há também referência ao verbo tecer, em alusão às manufaturas da época. “E, assim, como toda fala é tecida por sons e letras, também dos elementos das letras divinas promana a estrutura completa da religião e da piedade” (Comenius, 1997, p. 279).

Saber ser professor é dominar a presença dos infantes no “teatro do universo” (palco da vida) sugerido por Comenius dentro do método sincrítico. Nesse, é preciso pensar nas três áreas fundamentais para o conteúdo do currículo: a natureza, o homem e Deus (Kulesza, 1992, p. 90). Mundo, divindade e homem estariam conectados pelas mesmas verdades e, juntos, são referidos como a metáfora de um teatro ordenado, representação da totalidade do universo. As imagens são aguçadas para que se adentre no palco. Ao discorrer por ele em pensamento3, é possível imaginar as palavras otimistas do autor em seu convite junto ao professorado para que caminhe lado a lado com o estudante e mostre o todo calcado nas indicações da Providência - um “prelúdio suave para toda vida” (Comenius apud Kulesza, 1992, p. 115). A metáfora do sol, no método conciso e breve para formar professores, é aludida como a personificação a ser desejável pelos futuros mestres, iluminando todos e a cada um. A metáfora da luz é recorrente nas imagens comenianas - em oposição ao pó que embaça as vistas - motivando seus leitores a serem otimistas em seu encontro com a ordem propugnada por Deus. “A luz, ao emanar da divindade, perpassa os níveis de realidade que se interpõem entre ela e o indivíduo, inclusive a razão, iluminando-o assim para o verdadeiro conhecimento” (Kulesza, 1992, p. 88). Os métodos comenianos para o ensino das ciências em geral, das artes, da moral e para infundir a piedade são organizados de modo a requisitar os seres humanos a enxergarem Deus por detrás das coisas, numa preparação para o futuro. É preciso iluminar os elementos dispostos pelo teatro do universo. “Nosso sol não é porventura comum a todos e por todos não pode ser fruído com a doutrina de Cristo? Não afasta ninguém, a não ser os que dela se afastam, odiando-se a si mesmos [...]” (Erasmo apud Comenius, 1997, p. 278).

Comenius incita quem ensina a preservar o olho de sua mente com luz suficiente para penetrar em si, no mundo e na divindade, todos conectados no “teatro” e presididos pela harmonia, com suas coisas exteriores e interiores. O aluno, motivado pela busca de si, enxergaria o próprio docente como um modelo a ser imitado. Vemos o destaque não só à fé, mas também às obras humanas. Homem e Deus estariam conectados pelo verbo “fazer”. É preciso também conferir a imagem que se tem do objeto com “[...] a imagem do objeto que tem o professor, ou mais geralmente, com a imagem social do objeto” (Kulesza, 1992, p. 165). O caminho do aluno, dentro do palco da vida, em direção ao contato com o conhecimento deve passar pelo conhecimento social do objeto, havendo uma preocupação, portanto, com “o conhecimento cristalizado no meio em que se vive” (Kulesza, 1992, p. 165). As obras divinas e os aspectos circunstanciais devem ser entrecruzados. O “teatro do universo” é obra de Deus, mas o homem também o “tece”.

Depois de entrar no teatro, o jovem poderá construir, daí para frente, ele mesmo seu caminho (Kulesza, 1992, p. 165). Pensamos no que significaria esse edificar por si mesmo e, quem sabe, ele esteja ligado à formação da imagem atual do aluno independente. Em busca de enxergar pistas sobre isso, tentamos pensar sobre o livre arbítrio em Comenius. Haveria, para nós, a tensão entre livre arbítrio, costumes, verdades reveladas e método para se chegar a Deus. Só depois de penetrar seu olhar, buscar as causas, as consequências e as essências, o aluno poderá seguir seu caminho. Parece que, depois daí, teria espaço para o livre arbítrio. Porém, há só um amparo no método comeniano tanto para adultos como para crianças: atingir Deus, finalidade de todos os seres humanos.

Livre arbítrio, temperado por prudência calcada na revelação divina, parece ser componente da árvore da independência com galhos podados já em seu nascimento. As características do homem são enumeradas a seguir: “1) a criatura mais perfeita de Deus, destinada a ser senhora das outras; 2) dotada de livre arbítrio para escolher e fazer; 3) por isso provida da razão para orientar-se com prudência em suas escolhas e opções” (Comenius, 1997, p. 240). Há que se considerar a pequenez tanto do adulto como da criança perante Deus. Esse seria colocado como o grande professor e, por conseguinte, o mundo (teatro do universo, “escola hiperfísica”) seria o lugar de ensino “na qual nenhuma criatura e nenhum homem pode ensinar nada a ninguém, mas somente Deus, que está acima de todas as coisas” (Comenius apud Kulesza, 1992, p. 155). Arremessamos nosso pensamento, a partir do excerto, aos dizeres de Santo Agostinho, a despeito das distâncias que o separam: “[...] não chamemos mestre a ninguém na terra, pois o único Mestre de todos nós está nos Céus” (Mateus 23, 8-10 apud Agostinho, 2002, p. 110). Finitas possibilidades de livre arbítrio docente e discente, numa teia de paradoxos, e infinitas reverberações do macro nas coisas e no microcosmo. O si mesmo instituído por um rumo certeiro nas formas de desempenhar a liberdade. “[...] uma autorização de ser aquilo [...] que se pode ser, um poder-ser”, esboçando-se um indivíduo “que aceita as obrigações, que crê naquilo que lhe é imposto pelo amor ou pela dor” (Chiquito, 2014, p. 114-115).

Ainda sobre o teatro do universo, resta acrescentarmos a sua associação com a metáfora de um palácio real. Escolhemos, a seguir, um excerto que vincula tal figuração ao postulado metodológico de regras bem figuradas dentro de um livre arbítrio condensado em linhas incertas de se concretizar, haja visto um único esquema para a onisciência humana.

De fato, se essas regras forem bem fixadas e seguidas, acontecerá o mesmo que se passa com alguém que, sendo introduzido num palácio real, pode admirar sem incômodos, em tempo determinado, todas as riquezas ali contidas, como pinturas, esculturas, tapeçarias e qualquer outro ornamento: assim também o adolescente, ao ser introduzido no teatro do universo, será capaz de penetrar com facilidade e agudeza à disposição geral das coisas e, portanto, de mover-se com mente aberta e vigilante entre as obras de Deus e dos homens (Comenius, 1997, p. 242).

Não é somente de ordem e otimismo que pairam os escritos da Didática Magna. Há menção ao estado de corrupção do mundo e ao fato de que mais progressos poderiam ter sido engendrados até aquele momento (Comenius, 1997, p. 285). Contudo, não só explicações históricas e racionais se fazem aí. A condição humana corrompida pela queda do Paraíso também está na lista das preocupações de Comenius. Olhar para os lados, invocando a imagem do teatro, é a chave para resolução do problema, “já que não é mais possível lançar um olhar para dentro sem que topemos com nossas decaídas inclinações adâmicas - a fim de com isso [...] reduplicar [...] a forma como opera a própria natureza” (Batista, 2013, p. 45).

A ordem comeniana engendra ligação com a vida citadina do seu tempo, calcando professores como imagens de artesãos. O uso da metáfora do relógio também desponta com admiração, peças todas funcionando no todo e dentro de si. Perfeita analogia com o modo como se deseja firmar os rituais da escola moderna e, desse modo, “o relógio representaria um calendário capaz de organizar simultaneamente os aspectos políticos, econômicos e religiosos. Por analogia, as escolas deveriam possuir a mesma organização e ritmo” (Boto, 2017, p. 192).

Comenius parece se animar com as oficinas manufatureiras como modelos a serem imitados. Entre seus dizeres e Rousseau, vemos, nesse último, certa desconfiança das novidades de sua época e das vistas que enxergavam, naquele momento, o progresso da maquinofatura com otimismo. Em elogio a Esparta, com crianças robustas, Rousseau associa a indústria à falta de exercícios e promotora de privação humana da força e agilidade (Rousseau, 1989, p. 53-54). Em um suposto embate entre o homem selvagem e o civilizado, a suscitar, no leitor, conjecturas e capacidade de imaginação sem se filiar rapidamente às máximas de seu momento, faz-se um alerta. Caso tenha tempo de serem reunidas as máquinas, o segundo venceria. Contudo, “se quiserdes ver um combate ainda mais desigual, colocai-os, um frente ao outro, nus e desarmados, e reconhecereis logo a vantagem de poder contar sempre com as próprias forças [...] e de trazer-se [...] sempre inteiro consigo mesmo” (Rousseau, 1989, p. 54). A inteireza do indivíduo em relação a si mesmo, mais uma vez desponta.

Apesar das críticas à industrialização, a metáfora da máquina ordenada agregou-se ao imaginário do que é ser professor. O homem bem ordenado rousseauniano apareceria quase como uma máquina. Interessante metáfora da mutabilidade, em seus aspectos prejudiciais ao estado de natureza, é utilizada por ele, estimulando nossa visão sobre isso. Para o autor, as instituições humanas parecem fundamentadas em areia movediça. O pó e a areia, após um olhar mais próximo dessa estrutura, podem ser retirados do edifício e, então, “aprende-se a respeitar os seus fundamentos” (Rousseau, 1989, p. 46). Solidez de um edifício, mobilidade da estrutura que se desfaz, esperança nos olhos que enxergam de perto: eis algumas imagens de otimismo, que se contorcem, no entanto, junto às formas do homem civilizado rumo a um estado talvez apenas sugerido e hipotético.

Conclusão

Do homem ordenado de Rousseau ao mestre do método conciso e breve de Comenius, configura-se um professor que não pode errar - esboçando-se as possibilidades de uma culpabilização que lhe é posta como inerente - e em constante necessidade de formação. A ideia kantiana da educação como arte - em que cada geração transmite suas experiências aos mais jovens, os quais, amadurecidos, fazem o mesmo com a nova leva humana no caminho rumo a um progresso de homens cada vez mais bem formados perante os acréscimos advindos de cada fase geracional (Kant, 2002, p. 20) - excluiu, ao olharmos num primeiro momento, a possibilidade de um adulto infantilizado, desconhecedor de seu papel de liderança com os mais novos. De qualquer forma, o discurso dele sobre professores mal formados relembra-nos as lamentações atuais sobre a despreparação docente - confrontados com crianças, por vezes, que lhes põem em estado de menoridade perpétua, o que se acirra na chamada atualidade da ágil circulação de saberes regidos pela engrenagem tecnológica4. Lamenta Kant sobre a falta de disciplina e instrução em certos homens, tornando-os “mestres muito ruins de seus educandos” (Kant, 2002, p. 15).

Certo caráter de infantilidade, talvez, possa ser associada aos adultos no viés kantiano ao pensar que o homem, para ele, “é infante, educando e discípulo” (Kant, 2002, p. 11) e, assim, paira sobre a história individual, a possibilidade de se cair em uma constante menoridade, associada à ausência de aquisição de características ilustradas. Hierarquizam-se adultos e, entre eles - inclusive, os professores, como sugerido anteriormente - há os possuidores de uma menoridade “quase natural” (Kant, 1989, p. 12) e esses não existem em pequena quantidade. A preguiça e a covardia seriam as causas pelas quais “os homens, em grande parte, [...] continuem [...], de boa vontade, menores durante toda a vida; e também porque a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus tutores. É tão cômodo ser menor” (Kant, 1989, p. 11).

Em Rousseau, compõe-se um cenário de ordem em que a piedade vigora como paixão junto aos menores, que, assim, precisariam de proteção. No outro extremo, se situaria o medo da criança que toma um tom de senhor (Rousseau, 2004, p. 88). Trata-se da já referida criança déspota, que contraria a ordem, cuja arquitetura deve estar solidificada nos adultos. Entrementes, a imagem do adulto infantil também se elucida aqui, tal como em Kant, quase que num estado constante. A associação dos homens às leis, num primeiro momento, parece trazer aos adultos a sua condição de maioridade e convivência com a liberdade. Conhecer as leis, tendo-as dentro de si mesmo, garantiria ações sem a necessidade que, sobre elas, se estabelecesse vigilância. Contudo, trata-se de uma liberdade imperfeita, tal como as crianças a possuem no estado natural. O mesmo ocorreria aos homens no estado civil. Eternos infantes, então.

Cada um de nós, não podendo dispensar os outros, volta a ser, a esse respeito, fraco e miserável. Éramos feitos para sermos homens; as leis e as sociedades voltaram a mergulhar-nos na infância. Os ricos, os grandes, os reis, todos são crianças que, vendo que se empenham em remediar sua miséria, tiram desse mesmo fato uma vaidade pueril, e se envaidecem com os cuidados que não teriam para com elas se fossem homens feitos (Rousseau, 2004, p. 82).

Assim como Kant, é possível vislumbrar, em Rousseau, certo incômodo perante as relações entre professores e alunos. Aos primeiros, são conferidos os adjetivos de “admoestadores”, “moralistas” e “pedantes”, além de serem dirigidas palavras de indignação, compondo um quadro de culpabilidade. “Deixai de criticar nos outros vossas próprias culpas [...] para cada ideia que lhes dais acreditando ser boa, dai-lhes [...] vinte outras que não valem nada; [...] não vedes o efeito que produzis na cabeça deles” (Rousseau, 2004, p. 100). Em tom de zombaria, há o alerta aos mestres, vistos como confusos e vaidosos, de que os alunos não são tão ingênuos. “Achais que elas [as crianças] não comentam à sua maneira vossas explicações difusas, e que não encontram ali o material com que construir um sistema ao seu alcance, que poderão opor a vós quando calhar?” (Rousseau, 2004, p. 100). Pede-se simplicidade aos docentes, tal como na experiência com o jardineiro Robert para “inculcar”, nas crianças, a noção primitiva de propriedade.

Apesar de não se apresentar como edificador de um método aos professores - do modo como se coloca Comenius - Rousseau elucida até os diálogos a serem engendrados com o suposto Emílio e, entre eles, o mestre chama seu aluno de “meu amiguinho” (Rousseau, 2004, p. 106). Relação de simetria é, portanto, sugerida. Diferente da experiência comeniana de acompanhar o estudante pelo teatro e fazê-lo olhar para todos os lados, Rousseau aparece como aquele que age no sentido de que Emílio possa vivenciar a experiência. Uma sugestão de relação de autoridade desponta, talvez, com maior facilidade no teatro comeniano do que no professor, com suporte em Rousseau, no contato junto aos alunos. Nesse último, parece ter que se esboçar uma abdicação da autoridade, equiparar-se ao seu “amiguinho”, não contar suas experiências, já que a fala não é vista por Rousseau como tão importante quanto os atos docentes. É mais fácil imaginar o mestre de inspiração comeniana tecendo explicações, com base em suas experiências, do que no professor rousseauniano.

Contudo, em Comenius, também se prenuncia um professor que é excluído da tessitura do que se deve ensinar, motivando a presença de um estudante que aprende por si mesmo. Isso ocorre quando se solicita que os livros didáticos sejam feitos de modo que “os alunos entendam tudo espontaneamente, mesmo sem mestre” (Comenius, 1997, p. 217). Reserva-se lugar para a ideia do professor dispensável. Cresce a criança, encolhe-se o adulto. Nos séculos XVII e XVIII, multiplicam-se os retratos de crianças sozinhas, sem a presença de seus ascendentes na tela (Chalmel, 2004, p. 60).

A mente do estudante a ser impressa, conforme Comenius, deveria seguir os mecanismos das prensas tipográficas da sua época. Isso também ganha espaço em Rousseau como caminho de uma utilidade para ser feliz na vida. Solicita-se que, no cérebro da criança - ainda com flexibilidade (a lembrar a cera comeniana) - deve se gravar “desde cedo em caracteres indeléveis [...] para que se oriente durante a vida de uma maneira que convenha a seu ser e as suas faculdades” (Rousseau, 2004, p. 127). Constatado que, no recorte temporal representado por ambos, firmaram-se os rituais da escolarização moderna, perguntamos: como detectar o que será útil à criança em seu futuro perante uma época chamada de tempos líquidos, cujos alicerces se (des)fazem com rapidez? Como apresentar o teatro do universo aos estudantes dentro de construções com areia movediça (emprestamos a metáfora de Rousseau)? Sobre a chamada liquidez atual, vejamos as palavras de Bauman. Haveria a existência de padrões dissolvidos com facilidade e uma exigência de adaptabilidade suprema como “equipamento para a vida”. Dessa forma, os seres humanos devem “ter a capacidade de, mais do que desenterrar uma lógica escondida na pilha de eventos [...], desfazer seus padrões mentais depressa e [...] lidar com suas experiências da forma que uma criança brinca com um caleidoscópio encontrado debaixo da árvore de Natal” (Bauman, 2008, p. 161).

Aos professores, por exemplo, é engendrado um ambiente no qual devem reinar a iniciativa e a renovação em detrimento de uma época remota onde as autoridades mudavam as regras do jogo pedagógico e solicitava aos docentes que aplicassem as regras (Charlot, 2005, p. 85). Perante tantas incertezas sobre os rumos da educação nos diálogos incertos na confluência entre aspectos circunstanciais atuais e longa duração, é visível, hoje, que a “infância contemporânea parece ocupar a ribalta não apenas do domínio acadêmico, mas [...] das produções de timbre cultural. Exemplo cabal disso é a efusiva cartela de artefatos culturais destinados às crianças [...]” (Aquino, 2015, p. 433). Infantilizados pela obediência regulamentada, professores são “convocados a se formar eternamente nos cursos que visam a sua melhor adaptação à criança [...]”, a qual se pode atribuir o adjetivo de pública, tendo em vista a “promoção social da infância” nas sociedades democráticas, “que veem nela o aperfeiçoamento de suas instituições e também uma vitória do Estado de Direito” e, assim, “nos autoriza a formular a expressão criança pública” (Voltolini, 2016, p. 7-8). O prefixo in da palavra infância leva nosso pensamento “a algo que não pode ser expresso discursivamente ou ainda, como parte do pensamento inacabado, e, portanto, o pensamento que não pode ser expresso em termos linguísticos” (Silva, 2007, p. 18). Curiosamente, a ideia da criança pública (“esquadrinhada por leis e saberes”) traz consigo a máxima “para que ela fale”, afastando-a do infans, “no sentido político do termo (infans, como aparece na figura do infante da infantaria, é aquele que não tem o direito de falar, porque só o general fala)” (Voltolini, 2016, p. 7). Do caráter emudecido que lhe foi imputado ao cidadão mirim que pode falar: tensões que revigoram as discussões sobre quem é a criança... Em situação de avesso da criança pública, desponta o adulto privado, “no sentido de privação da coisa pública” e, assim, restam as perguntas: “O infans agora seria o adulto?” e “Com os adultos miniaturizados, cheios de dever, diante de crianças agigantadas em seu poder, a questão da transmissão continuaria seguindo a mesma direção?”(Voltolini, 2016, p. 8, 11).

Vimos, em Comenius, a imersão do aluno em brincadeiras para antecipar a vivência de ser adulto. Ainda pulula no horizonte pedagógico, a ideia do estudante colocado em experiências de contato horizontal com o ser adulto. Professores lamentam, por vezes, uma verticalidade de outrora, um respeito antes existente na relação professor-aluno e uma nostalgia de restauração desse quadro idílico. Charlot, contudo, chama a atenção para o ato de ensinar como uma tarefa não serena e que envolve uma situação de tensão, não existindo uma idade de ouro do professor, exceto por uma ilusão retrospectiva (Charlot, 2005, p. 73).

Esperamos que nosso texto tenha despertado certa reflexão a partir da proposta inconclusiva aqui engendrada. Perante a imagem do labirinto - sugerida por Comenius - ainda restam muitas curvas e etapas fadadas a retornos ao ponto de partida, tateando, talvez, para reencontrá-lo. Não quisemos travar conexões com a atribuição de vilania ou inocência seja para o adulto como para a criança. Essa última, por exemplo, a partir do século XX, recebeu um incremento ao seu culto (se é que assim podemos nos referir) - iniciado talvez com Rousseau, como sugerido anteriormente - com os cuidados mais crescentes no que diz respeito à relação com os mais velhos. Nela, foram depositadas esperanças de continuidade e prosperidade, o que se tornou típico da família nuclear burguesa e merecedor de atenção para a atual noção de infante (Carvalho, 2004, p. 116). Como se extravasariam, pelo cotidiano, os jovens do século XXI com as premissas de se realizarem dentro de si, assegurar o futuro da humanidade e, mais recentemente, a riqueza familiar?

REFERÊNCIAS

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1 Outros autores já haviam recorrido ao caráter moldável inerente à criança para tratar da educação, tais como Montaigne e Erasmo na Renascença (Boto, 2017, p. 82). A ideia relacionava-se, nesse sentido, aos desejos de dirigir os seres humanos à civilidade. “Quero que as boas maneiras externas, e a conduta social, e o desembaraço de sua pessoa sejam moldados juntamente com a alma” (Montaigne, 2005, p. 87).

2Na Idade Média, a infância terminava aos sete anos e a idade adulta começava imediatamente e “por isso as pinturas [...] retratavam as crianças como adultos em miniatura, pois logo que as crianças deixavam de usar cueiros, vestiam-se [...] como outros homens e mulheres de sua classe social” (Postman, 1999, p. 32).

3Comenius também estimula a vivência em lugares propícios para a aprendizagem, como um campo ou uma horta, no intuito de mostrar os tipos de ervas (Comenius, 1997, p. 225).

4“Abre-se uma nova página da comunicação, que vê fragmentarem-se as audiências e erodir a onipotência das grandes mídias de massa: passou-se da tevê soberana ao internauta-rei” (Lipovetsky e Serroy, 2011, p. 78).

Recebido: 31 de Dezembro de 2021; Aceito: 13 de Maio de 2022

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