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Cadernos do Arquivo Municipal

versão On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.18 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jul-2022

https://doi.org/https://doi.org/10.48751/cam-rgbk-bf55 

Dossier

O Museu Pedagógico Municipal de Lisboa: do complexo educativo municipal aos museus dirigidos às classes trabalhadoras (1875-1892)

The Municipal Pedagogical Museum of Lisbon: from the municipal educational complex to museums for the working classes (1875-1892)

i UIDEF/IE-UL - Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação, Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, 1649-013, Lisboa, Portugal. antenriques@gmail.com


Resumo

O Museu Pedagógico Municipal de Lisboa, pensado para ser uma referência nacional, integrou um complexo educativo nos anos 80 do século XIX. Desse complexo fizeram parte instituições como o Jardim de Infância Froebel e a Escola Primária Superior, integradas numa rede de ensino municipal. Segundo o seu diretor, Adolfo Coelho, o Museu seria um instrumento na reforma da instrução popular.

Este texto procura ligar o destino efémero do Museu à lógica de três documentos sobre a ação do Estado, quanto aos museus pensados para as classes populares. Nos documentos sobressai a grande prioridade: um museu para os tesouros artísticos nacionais e para contemplação do público, em vez de museus ao serviço da pedagogia e do ensino, para uso manual das suas coleções.

Palavras-chave: Museu Pedagógico Municipal; Complexo Educativo; Instrução Popular; Lisboa

Abstract

The Municipal Pedagogical Museum of Lisbon was part of an educational complex in the 1880s and was designed to be a national reference. Institutions such as the Froebel Kindergarten and the Superior Primary School were part of this complex, which belonged to a municipal education network. According to its director, Adolfo Coelho, the Museum would be an instrument in the reform of popular education.

This paper seeks to link the Museum’s ephemeral fate to the rationale of three documents on the action of the State, concerning museums designed for popular classes. These documents highlight a main priority: a museum for national artistic treasures and for public contemplation, rather than pedagogical and teaching museums for manual use of their collections.

Keywords: Municipal Pedagogical Museum; Educational Complex; Popular Instruction; Lisbon

Introdução

A criação e duração efémera do Museu Pedagógico Municipal de Lisboa convida a tentar compreender as razões para o seu evidente insucesso como paradigma de uma instituição que devia centralizar os conhecimentos pedagógicos nacionais e internacionais e ser uma referência para o aperfeiçoamento dos normalistas. O contexto de uma política municipal diligente e expansionista quanto às funções educativas, no qual o Museu teve a sua origem, o complexo educativo ao qual o núcleo museológico pertencia e sem o qual não faria o mesmo sentido, e o êxito dos museus internacionais congéneres, torna ainda mais extravagante a diferença entre o cuidado no seu planeamento e a dispersão e posterior abandono das suas coleções.

Para lá das justificações mais ou menos óbvias que possam ter pesado no destino do Museu - a curta permanência em funções do vereador da Câmara de Lisboa, Teófilo Ferreira, o projeto de um museu vinculado ao saber e agilidade do seu diretor, a desconsideração quanto ao alcance dos objetivos pedagógicos-profissionais do Museu Pedagógico (expressa em reunião de Câmara por outro vereador, Teófilo Braga), as mudanças nas políticas educativas ou a falta de recursos financeiros - experimenta-se, neste texto, relacionar a sua sorte com um conjunto de textos, que correspondem a três momentos sobre as ideias e a prática museológica portuguesa da segunda metade do século XIX: i) Observações sobre o atual estado do ensino das artes em Portugal, a organização dos museus e o serviço dos monumentos históricos e da arqueologia (1875); ii) A reforma de belas-artes. Análise do relatório e projetos da comissão oficial nomeada em 10 de novembro de 1875 (1877), A reforma do ensino de belas-artes II (Análise da segunda parte do relatório oficial) (1878), A reforma do ensino de belas-artes III (1879); iii) as normas de criação, fundamento e extinção dos museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto (1883-1884 e 1899).

Estes documentos dão forma aos assuntos da instrução pública das classes populares-trabalhadoras, da relevância do ensino profissional e da relação das populações com os espaços museológicos. A pertinência dos documentos é dupla: permite filiar o Museu Pedagógico num pensamento genérico sobre os espaços educativos e expositivos; e proporciona informação sobre a forma como as elites cultas entendiam a existência dos museus na formação da instrução destinada aos proletários. A circulação destes textos conduz-nos, ainda, à questão central do texto, que subjaz à fatalidade do Museu Pedagógico Municipal de Lisboa: a dissociação que estava a construir-se entre os museus com uma forte componente didática-instrumental, em que o manejo das peças era tão significativo quanto a sua disposição, e os museus expositivos, para fruição das populações.

A totalidade dos saberes num museu

A representação da totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos que ajudassem ao aperfeiçoamento dos estudos pedagógicos esteve na origem da criação do Museu Pedagógico Municipal de Lisboa, formalmente inaugurado em 1883. Este espaço de exposição e experimentação dos saberes e materiais escolares, instalado numa sala da Escola Central Municipal nº 6, devia fazer parte de um grande dispositivo para o desenvolvimento do “ensino científico” (Coelho, 1872, p. 19), na terminologia do seu principal promotor, o professor do Curso Superior de Letras Francisco Adolfo Coelho (1847-1919). Por ensino científico, Adolfo Coelho entendia a exploração do conhecimento de acordo com o espírito científico, capaz de expandir a liberdade individual de cada aluno e a consciência de si no mundo.

O Museu podia ser municipal, mas não há dúvida de que foi pensado para ser uma referência nacional. Numa altura em que já sabia da sua nomeação para diretor pelo prazo de três anos, Adolfo Coelho descrevia o plano a que devia obedecer a reunião das espécies museológicas:

Os principais tipos de mobília escolar, as principais coleções dos museus das escolas primárias elementares e superiores, normais e técnicas; obras relativas à organização de todos os graus de ensino nos diversos países civilizados; os clássicos da pedagogia; os tratados de pedagogia científica mais importante, assim como os elementos das ciências sobre que ela se funda, como a psicologia e a ética; livros textos ou auxiliares das escolas primárias elementares e superiores, normais e técnicas; todos os elementos que seja possível reunir sobre o ensino em Portugal, etc. (Coelho, 1884, p. 74).

Como espaço de atualização pedagógica, este Museu central devia disponibilizar a professores, estudiosos e decisores um património que evidenciasse a circulação transnacional das ideias e práticas pedagógicas: ao pé de uma biblioteca com os livros mais importantes da história da pedagogia e das disciplinas que mais contribuíam para as bases científicas da pedagogia, das obras sobre organização do ensino e sobre legislação internacional, e de arquitetura e higiene escolares, era preciso dispor de exemplares de mobiliário escolar e de todos os materiais sobre os meios e os processos do ensino. Um tal arquivo permitiria aceder ao conjunto de operações pelas quais o conhecimento se tornaria num progresso social, e o domínio dos conhecimentos uma ação prática: “O homem tende a aproximar, comparar, coordenar, superordenar, sistematizar as experiências (no sentido amplo da palavra), estabelecendo regras, princípios, leis, corpos de doutrina” (Coelho, 1902, p. 248).

Com um tal património, a criação do Museu Pedagógico Municipal de Lisboa inscrever-se-ia num contexto internacional em que espaços semelhantes reuniam textos e objetos, para dar conta dos desenvolvimentos nacionais da instrução, e formavam espaços documentais, em que professores e educadores podiam tomar conhecimento das correntes pedagógicas em expansão.

Diversos estabelecimentos tinham sido criados até ao aparecimento do de Lisboa - só a Alemanha inaugurou museus pedagógicos em 11 cidades entre 1851 e 1881, e Londres, São Petersburgo, Viena, Roma, Zurique, Budapeste, Amesterdão, Tóquio, Berna, Paris, Bruxelas, Palermo, Washington, Graz, Génova e Rio de Janeiro também inauguraram os seus até 1883. Os museus pedagógicos tinham sido desenvolvidos a partir dos núcleos expositivos sobre instrução que eram incluídos nas feiras temporárias internacionais, a partir da primeira Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de Todas as Nações (Londres, 1851).

A Grande Exposição de 1851 reuniu um conjunto de disciplinas e de técnicas de exibição que haviam sido desenvolvidas nas experiências anteriores de museus, panoramas [grandes telas que proporcionavam aos espetadores a sensação de estarem fisicamente presentes nas cenas pintadas], exposições dos institutos de mecânica [institutos ou escolas de arte dedicados à formação técnica de adultos], galerias de arte e galerias comerciais. Ao fazê-lo, traduziu-as em formas expositivas que, ao ordenar simultaneamente os objetos para inspeção pública e ordenar o público que inspecionava, teriam uma influência profunda e duradoura no desenvolvimento posterior de museus, galerias de arte, exposições e grandes lojas (Bennett, 1995, p. 61).

“Desde a primeira dessas feiras (...) que elas se reclamaram como a montra das conquistas técnicas, materiais e científicas da era industrial e foram consideradas a forma máxima de apresentação da educação” (Fuchs, 2009, p. 52). Os museus pedagógicos foram uma solução para o depósito e salvaguarda dos materiais expostos nas exposições internacionais.

Esses aglomerados favoreceram a criação de “centros de documentação em que os professores de todas as tendências podiam atualizar-se com as notícias educativas internacionais e comparar as suas experiências com as das nações mais próximas ou mais distantes” (Fontaine e Matasci, 2015, p. 66). Num movimento social de vulgarização da educação popular, os museus pedagógicos e os respetivos centros de documentação desempenharam, ainda, um outro papel para lá dessa divulgação. “Tiveram uma relevância prática para os professores do ensino elementar”, com uma “função profissionalizante, auxiliando os professores das escolas elementares a melhorarem as suas competências” (Fuchs, 2009, p. 51-52). O que se evidenciava nesses museus não era tanto a ideia de um depósito de materiais, mas uma franca componente pedagógica e educacional em função dos acervos.

Um complexo homogeneizador

Apesar do desconforto que sentia pela instalação do Museu na Escola Central nº 6 - “em condições muito modestas e numa casa provisória, pouco adequada” (Coelho, 1884, p. 74), Adolfo Coelho tinha por certo que o Museu precisava de muitos anos para se consolidar, de forma a cumprir um desígnio reformista substancial: “Em face dos elementos ali reunidos, estudados e confrontados poderemos traçar com segurança um programa de reforma da instrução popular do nosso país e pô-lo em execução numa das escolas centrais de Lisboa, se a administração municipal no-lo permitir, como esperamos” (Coelho, 1884, p. 74).

O conhecimento, ordenação e comparação das ideias pedagógicas que favorecessem a intervenção dos Estados educadores apresentava-se como um desafio perante a diversidade de crenças, filosofias e recursos das populações. Em particular, a educação constituía um “árduo problema” (Coelho, 1902, p. 250) para as instituições que se dirigiam ao ensino das classes populares e dos filhos do povo trabalhador. Para essa maioria da população, era decisiva a existência de uma educação geral e profissional, que encaminhasse o proletariado para longe da miséria e da fome e fomentasse um princípio “regulador capital da vida coletiva” (Coelho, 1901, p. 156), a justiça social. Os diversos graus de ensino obrigavam, por conseguinte, a ponderar o destino dos empregos futuros e a relação entre aptidões adquiridas e necessidades do trabalho. Pouco depois da inauguração do Museu Pedagógico, Adolfo Coelho tornou-se diretor da Escola Primária Superior Rodrigues Sampaio, criada pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) no mesmo ano de 1883, oferecendo um ensino geral de humanidades e ciências e um ensino técnico de feição prática. Tal como o Museu, a Escola Primária Superior ficou sediada na Escola Central Municipal nº 6, embora não por muito tempo: em outubro de 1884 mudaram-se para a Lapa.

As chamadas escolas centrais nas cidades capitais de distrito tinham sido previstas na reforma da instrução de 1870. Reuniam duas ou mais escolas paroquiais - que trabalhavam com classes únicas - e um grupo de “três ou quatro professores ou professoras” (Fernandes, 2004, p. 21). A funcionar experimentalmente com três classes desde o início, a primeira escola central pública de Lisboa tinha sido proposta pelo comissário dos estudos do distrito, Mariano Ghira (1827-1877), a chamada Escola Central do Estado (1870). Juntava-se à Escola de Santo António (1860), criada para formar professores e mantida pela Real Casa de Santo António.

Se é verdade que, em meados dos anos 70, a rede escolar em funcionamento em Lisboa era a herdada do Antigo Regime com “18 escolas estatais masculinas e outras tantas mistas” (estas últimas tinham sido femininas anteriormente) (Adão, 2014, p. 167), o município iniciou então a criação de uma rede de escolas em que vários professores ensinavam grupos de alunos divididos por turmas e por salas, em função da idade e do nível de conhecimentos, as escolas graduadas ou centrais. A inovação pedagógica tanto se traduzia na procura de uma instrução primária para a maioria da população, que desenvolvesse as faculdades físicas e intelectuais dos alunos e se ligasse à necessidade de as indústrias prosperarem, como se fazia à custa da homogeneização na distribuição dos grupos de alunos.

O desenvolvimento das faculdades físicas e intelectuais das crianças e o desígnio do ensino popular, influenciados pela pedagogia alemã e, especialmente, por Froebel (1782-1852), foram amplamente defendidos pelo vereador da CML, com o pelouro da instrução a partir de 1882. Teófilo Ferreira (1840-1894), diretor e professor da Escola Normal de Lisboa, seria protagonista da formação de um complexo educativo na capital. Uso o termo complexo, que peço emprestado ao sociólogo Tony Bennett, para designar um conjunto de instituições com relações pedagógicas e funcionais, vinculadas por relações disciplinares e de exposição de materiais de ensino ao propósito comum da instrução popular: o Jardim de Infância Froebel (1882), perseguindo o objetivo de favorecer o contacto da escola infantil com a natureza e com as atividades ao ar livre ou, como disse o subdiretor da Casa Pia de Lisboa e inspetor do ensino primário, Simões Raposo (1840-1900), reivindicando as “leis da natureza em matéria educativa” (Raposo, 1882, p. 4); o Museu Pedagógico Municipal e a biblioteca anexa, com os objetivos referidos; e a Escola Primária Superior (1883) “uma escola popular superior com trabalho manual como preparação para aprendizagem” (Coelho, 1884, p. 74), com a participação direta de Adolfo Coelho.

Daquele complexo educativo, de que se ocupou nos cerca de dois breves anos enquanto vereador na Câmara (1882-83), fez parte um grupo de preocupações de valorização pessoal-profissional: a promoção de cursos (elementares, complementares, noturnos, dominicais, de desenho industrial e artístico), dando atenção à instrução infantil e à formação profissional e cultural; a formação de batalhões escolares, defendendo a educação militar nos planos de estudos; a introdução de noções de higiene, lutando pela inclusão de medidas sanitárias; a situação socioprofissional dos professores e o associativismo da classe, lutando pela melhoria de condições no exercício da docência; e o debate corporativo, com a proposta das conferências pedagógicas.

A participação de Teófilo Ferreira no Congresso Internacional do Ensino (1880), em Bruxelas, contribuiu para formar a convicção sobre a importância dos museus pedagógicos e escolares, como instrumentos do ensino de feição prática, guiado pela razão. Aí defendeu a existência de museus que acompanhassem a escola graduada - museus elementares, suplementares e superiores (estes nas escolas normais) (Ligue Belge de L´Enseignement, 1882, p. 117). Nesse ano, a cidade anfitriã inaugurava o Museu Pedagógico central, com o objetivo de reunir informação sobre o ensino oficial belga. Este acontecimento foi devidamente assinalado durante o Congresso. A criação do museu decorria da Exposição Universal de Arte e Indústria de Paris (1867), e uma grande parte das peças que tinham estado na exposição belga integraram o museu, demonstrando o enlace entre a criação de museus e a organização de exposições.

O Museu Pedagógico belga afirmava a potência do Estado como colecionador e analisador de informação, a partir de um conjunto de indagações: que instituições escolares havia, qual era o seu número e importância; quais eram as suas instalações e as ferramentas pedagógicas; em que consistiam os graus de instrução primária, média, normal e superior; qual era a legislação e regulamentação aplicáveis a cada grau; quantos professores havia, qual era o seu grau de conhecimentos e o seu mérito pedagógico; quantos alunos havia nas escolas de todas as categorias; como se regulavam os estudos do ponto de vista das disciplinas ministradas, da sua distribuição nos diferentes cursos, em relação a fatores como a disciplina e a emulação; quais eram os resultados obtidos e em função de que métodos; finalmente, se tinha havido progresso ou retrocesso com a aplicação das metodologias de ensino (Ligue Belge de L´Enseignement, 1882, p. 19). A reunião da totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos, enfaticamente propostos como empreendimento dos museus pedagógicos, constituiu a instituição formal de um olhar panorâmico, servido por uma rede de organismos (de que o complexo educativo municipal de Lisboa era um exemplo) que articulavam entre si uma supervisão graduada, constante e diferenciada nos seus fins.

Fazer mover o conhecimento mais do que colecionar

Esse olhar panorâmico, projetando-se nas espécies depositadas, sobrepunha-se, mais uma vez, à própria materialidade dos acervos museológicos, como acontecia quando serviam a profissionalização dos docentes. As espécies colecionadas não eram uma finalidade, mas depósitos para rever, de forma instrumental e a cada passo, as inovações educativas e a sua aplicabilidade. Neste sentido, a perceção de Adolfo Coelho, de que o Museu Pedagógico Municipal precisava de tempo para materializar a sua relevância, era inteiramente adequada. O Museu não era uma instituição importante pela deposição de espécies, era útil pela dinâmica com que essas espécies fariam transitar o conhecimento pedagógico por entre decisores, normalistas e alunos. Ao mesmo tempo, inscreviam-se numa espacialidade nova. Se o ensino graduado estimulava o aparecimento de espaços conformes aos graus e às idades dos alunos, os museus pedagógicos tornavam amplamente visíveis as conquistas educativas das nações. Quer os espaços ocupados pelos alunos em classes graduadas, quer os espaços museológicos exibindo espécies, autorizavam uma observação exterior constante mais confiável, mais perscrutável e mais classificável.

O programa do Museu Pedagógico belga (a sua arrumação em assuntos gerais, legislação, administração, instalações educativas, pessoal docente, organização dos estudos, alunos, estatística) (Ligue Belge de L´Enseignement, 1882, p. 22), com a qual prometia responder, ponto por ponto, à bateria de indagações, também era decalcado da representação belga na Exposição Universal de 1867. As secções organizavam a produção da racionalidade dessa observação exterior, ou seja, a construção de novas verdades educacionais e pedagógicas organizadas em temas. Do programa do Museu Pedagógico Municipal de Lisboa também se podia aferir a ambição de centralidade nacional e a ação totalizante com que se comprometia. Segundo José Feio Terenas (1850-1920), bibliotecário-geral das bibliotecas municipais de Lisboa, o Museu ocupar-se-ia em registar e conhecer os modelos da arquitetura exterior e do mobiliário das escolas dos diversos graus, das bibliotecas, salas de conferências, museus pedagógicos e museus escolares; em colecionar o material educativo para todos os graus de ensino, para cursos e para conferências públicas; em formar uma biblioteca com as obras centrais da ciência pedagógica e da história da pedagogia; e em fomentar um arquivo com documentação oficial sobre o ensino dos diversos graus, especialmente do primário, de bibliotecas que servissem as classes populares e de trabalhos de alunos das escolas primárias, particularmente das tuteladas pela CML.

Comparar, pois, os meios e os processos de ensino e educação em uso ou remotos, quer sejam de um quer de muitos países, de um determinado período ou de uma extensa época, o mesmo é que dispor de factos a que aplicar a observação, ler nas observações dos outros, e, por consequência, reunir os melhores elementos de estudo (Terenas, 1883, p. 122).

O Museu Pedagógico Municipal devia ser um espaço de visibilidade comparada das correntes da pedagogia e do estudo das antigas práticas pedagógicas, e de tudo o que compunha o dispositivo educativo, desde os edifícios aos materiais de ensino. Apesar de ser instrumental na disseminação da instrução popular - e da valorização do trabalho manual como elemento da instrução geral -, são por demais conhecidas da história da educação as dificuldades com que o Museu se deparou na instalação, no funcionamento regular e na afirmação das ideias pedagógicas. “A inauguração não significou imediata e franca abertura ao público” (Santana, 1983, p. 80).

Logo em 1883, José Feio Terenas, falando sobre o Museu Pedagógico e a biblioteca anexa, lamentava que apenas a CML se ocupasse “deste e outros assuntos, que tanto interessam à instrução e se ligam tão de perto ao movimento moderno da pedagogia” (Terenas, 1883, p. 123). O próprio diretor, Adolfo Coelho, parece ter reorientado os objetivos do Museu, na sequência da inauguração da Escola Primária Superior, em favor do ensino da Escola (Santana, 1983, p. 81). Contudo, essa reorientação não deixou de afirmar a relevância do acervo para a profissionalização dos docentes:

O ensino na Escola Rodrigues Sampaio não pode fazer-se sem uma parte das coleções existentes no Museu, ou sem outras similares, cuja aquisição importaria uma despesa inútil, porque as já adquiridas nada servem não sendo aproveitadas no ensino. Carecem também o pessoal docente e os alunos, para os seus estudos e consulta, dos livros reunidos na pequena biblioteca reunida no Museu, entre os quais há obras sobre o ensino industrial, manuais industriais e diversos compêndios. Não valeria a pena subdividir essa pequena biblioteca de 1438 obras, das quais grande parte são simples folhetos, quando demais é pequeno o número dos que não possam ser aproveitados na Escola (Coelho Cit. por Santana, 1983, p. 81).

Se era possível ver na circulação das espécies entre Museu e Escola, proposta por Adolfo Coelho, uma forma de utilizar ao máximo o acervo existente, talvez fosse igualmente necessário ponderar como os materiais estavam ao serviço da pedagogia do ensino intuitivo, mais do que do vínculo entre coleções e institutos aos quais elas pertenciam. Já depois de uma reorganização e reabertura, em meados de 1885 (Santana, 1983, p. 81), que deixa adivinhar a vida desassossegada do Museu, era em nome daquela conexão que um representante da autarquia lisboeta interpelava os seus colegas da CML. Numa discussão sobre a reorganização das bibliotecas municipais, em 1886, o vereador Teófilo Braga (1843-1924) propunha que a biblioteca pedagógica anexa ao Museu, e o próprio Museu, fossem incorporados na Biblioteca Central Municipal.

Em primeiro lugar, porque havia discordância relativamente ao público da biblioteca pedagógica: “Só era consultada pelos empregados da casa e por aquelas pessoas que obtinham concessão especial do diretor, e devia ser franqueada ao público”1. O discurso do vereador tinha em mente um entendimento da separação dos acervos, que favorecesse a consulta geral de obras gerais sobre a vida civil e o mundo, pelos proletários adultos. E não a relação entre os acervos e as componentes pedagógicas-profissionais que serviam. “A biblioteca pedagógica era uma coleção de livros especiais, científicos, de um ramo psicológico e prático”2, não lhe reconhecendo o vereador fundamento algum para funcionar junto da Escola Primária Superior Rodrigues Sampaio.

Em segundo lugar, porque não reconhecia autonomia ao próprio Museu: “Era uma ficção, que não tinha nenhuns elementos para ser considerado um museu; era uma excrescência desta organização de bibliotecas [municipais]. Compunha-se de alguns instrumentos, de alguns mapas, de uns sistemas de bancadas e de tinteiros, e de outras coisas aplicadas ao ensino, mas não eram objetos que pudessem constituir uma secção à parte”3.

A dispersão do complexo

A legislação publicada entre 1890-18924 inviabilizou a continuação da tutela do Museu Municipal pela CML, nas circunstâncias em que tinha sido idealizado. O ensino oficial da instrução primária elementar e complementar foi concentrado no novo Ministério da Instrução Pública e Belas Artes, incluindo a generalidade dos estabelecimentos anexos e do material de ensino. No entanto, no Parlamento, o ministro da Instrução, João Marcelino Arroio, fizera notar que deviam continuar na esfera da CML as escolas Rodrigues Sampaio, Maria Pia, Froebel, o Museu Pedagógico e os serviços das caixas escolares e de estatística5.

O preâmbulo da portaria que transferia para o Estado os serviços da instrução primária a cargo das câmaras municipais não poupava nas observações à gestão municipal de Lisboa. Afirmava que, na década de 1881-1891, as despesas com as escolas tinham aumentado dois mil por cento, enquanto o número de alunos não tinha chegado a triplicar; alegava que tinham sido criadas 22 escolas centrais, sem autorização; que os regentes dessas escolas recebiam gratificações pela lecionação de vários cursos (de manhã, à tarde e à noite), quando lecionavam apenas um; que os professores que viviam com professoras recebiam ambos subsídios para renda de casa; que os professores deixavam vagas casas para a sua habitação, alugando-as e recebendo o subsídio para renda; que a maioria dos professores das escolas municipais de Lisboa estava ilegalmente nomeada, por falta de concurso; e que algumas escolas centrais mais pareciam à comissão “verdadeiras academias pelo número de professores e pessoal auxiliar, do que simples escolas do ensino primário”6.

Em relação às nomeações dos professores, o texto do preâmbulo referia não conseguir apurar as datas e circunstâncias. “É, porém, certo que muitos foram nomeados apenas pelo vereador do pelouro da instrução, sem confirmação camarária, e alguns não possuem a indispensável habilitação literária para o magistério”7. O tom da crítica convergia quase inteiramente para os gastos considerados exorbitantes com a educação e era com distanciamento que o texto olhava para as escolas Rodrigues Sampaio e Maria Pia “que a Câmara denomina” escolas primárias superiores8, assinalando que o termo carecia de fundamento. A Escola Maria Pia, uma escola primária superior para o sexo feminino fundada em 1885, “é antes um instituto de instrução secundária para o sexo feminino, porque compreende quase todas as disciplinas que constituem o curso dos liceus”9.

O preâmbulo tinha sido escrito com base num relatório de uma comissão nomeada para elaborar um inquérito às escolas e estabelecimentos anexos dos ensinos elementar e complementar do município de Lisboa (1892). Os membros da comissão, que eram bem mais brandos nas apreciações do que a composição do preâmbulo sugeria, reconheciam, por exemplo, a validade dos corpos docentes em Lisboa incluírem professores especiais de caligrafia, desenho, costura, ginástica, canto coral e exercícios militares (embora contestando a validade destes últimos na instrução primária) e incluírem auxiliares (monitores de costura, de instruções militares e vigilantes).

Afirmavam que várias escolas tinham realmente demasiados professores e, se levantavam dúvidas sobre as nomeações, entendiam que o Ministério da Instrução devia ratificar as nomeações camarárias quando as escolas fossem transferidas para a gestão do governo (Machado, 1896, p. 383-389). A sua conclusão geral também não deixava dúvidas. “Não podemos deixar de pôr em relevo o generoso impulso que o município da capital, quaisquer que fossem as incertezas da sua administração, incontestavelmente deu à causa da instrução popular” (Machado, 1896, p. 401). Dada a imposição do ministro da Instrução quanto às escolas Rodrigues Sampaio, Maria Pia, Froebel e Museu, a comissão não se pronunciava sobre eles a não ser para declarar que também o Museu Pedagógico era “um estabelecimento de ensino normal” (Machado, 1896, p. 393), sustentando a clara intenção dos seus fundadores.

Já a portaria que transferia para o Estado os serviços da instrução primária a cargo das câmaras municipais, obrigava à “reorganização” do Jardim Escola Froebel, “como tipo das escolas infantis preparatórias do ensino primário”10, o que significava a redução das duas diretoras para uma e do corpo de professoras para cerca de metade; mandava remodelar a Escola Maria Pia como simples estabelecimento de instrução primária, com a consequente diminuição de despesas, com o comentário relativo às disciplinas aí existentes, que pareciam configurar um plano de ensino liceal; e mandava reorganizar a Escola Rodrigues Sampaio e o Museu Pedagógico. Ao contrário das declarações do ministro da Instrução durante a discussão da proposta de lei, de que todos estes estabelecimentos deviam permanecer na autarquia, mandava-se que a Escola Rodrigues Sampaio passasse para a tutela do Ministério das Obras Públicas, calculando-se que diminuísse o custo em um terço por passar a integrar o plano de ensino industrial11. Quanto ao Museu, devia integrar uma das escolas centrais na dependência do Ministério do Reino. Na verdade, todos os estabelecimentos municipais de instrução primária, incluindo escolas centrais e especiais, bibliotecas e Museu Pedagógico, coleções e demais material escolar, passavam para a tutela do Estado12.

Três documentos sobre museus: as observações de Holstein...

A dispersão do Museu e Escola Rodrigues Sampaio por ministérios diferentes significava, na prática, que o poder central não reconhecia o modelo pedagógico do complexo educativo instituído na CML, não estava interessado na continuação do trabalho desenvolvido pelo Museu enquanto contribuidor para a formação profissional ou sequer pensava no aproveitamento das coleções entretanto reunidas. Significava, também, que tinha rasurado a única nota sobre o Museu que a comissão nomeada pelo governo se tinha atrevido a incluir, que assinalava servir os propósitos pedagógicos de formação profissional pensados pelo diretor Adolfo Coelho.

As dificuldades da história do Museu Pedagógico Municipal, o seu definhamento com relativa rapidez em vez da lenta imposição que Adolfo Coelho antecipava, deviam conduzir-nos não a tentar compará-los com os múltiplos casos internacionais de museus pedagógicos bem-sucedidos, mas com os discursos em favor dos empreendimentos museológicos nacionais, para favorecer a educação profissional do proletariado e a melhoria das suas condições sociais e económicas.

Para circunscrever a relevância dessas iniciativas, é necessário mencionar três documentos, que correspondem a três momentos fundamentais de discussão e intervenção pública (de atores, dos poderes legislativos) acerca da preocupação do Estado com a educação das massas populares e com o destino dos museus do século XIX: um opúsculo da autoria do marquês de Sousa Holstein (1875); o conjunto de obras publicadas pelo historiador da arte e pedagogo Joaquim de Vasconcelos (1877-1879)13; e a criação e destino efémero dos dois museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto (1883-1899).

No primeiro documento, Observações sobre o atual estado do ensino das artes em Portugal, a organização dos museus e o serviço dos monumentos históricos e da arqueologia14, o vice inspetor da Academia de Belas-Artes de Lisboa, Sousa Holstein (1838-1878), defendeu a criação de diversos museus em Portugal, reprovando a sua inexistência praticamente total: “Temos pelo país vários grupos de coleções, mas não temos um só museu” (Observações..., 1875, p. 27).

Sendo certo que uma das principais inquietações era a constituição de um museu central para as belas-artes e para as antiguidades históricas e arqueológicas, Holstein tornava manifesta a necessidade de pequenos centros artísticos para servir o aperfeiçoamento da população trabalhadora: “Mas o que sobretudo é necessário organizar são os museus de arte industrial junto às escolas em que se ensina o desenho às classes operárias” (Observações..., 1875, p. 38). Vaticinava agilidade no seu aparecimento, uma vez que os acervos podiam ser constituídos com cópias e reproduções de modelos. Antevia mais obstáculos para a formação de um museu de arte industrial - pressupõe-se que central -, em função da variedade de exemplares com que devia formar-se (ourivesaria, cerâmica, objetos em madeira trabalhada, móveis, tecidos, rendas, etc.), que auxiliassem as aulas de desenho aplicado à indústria.

Este museu de arte industrial deveria possuir, ainda, oficinas para reprodução de objetos, as quais deviam abastecer os museus junto às escolas. O exemplo geral a seguir, segundo dizia, era inglês, com a fundação do Museu de South Kensington (1852), peça central de uma reforma do ensino artístico que incluía uma escola de formação de professores, um museu de instrução artística geral, a fundação pelo país de escolas de arte locais e uma coleção de exemplares de artes fabris provenientes da Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de Todas as Nações (1851).

A educação profissional das classes trabalhadoras foi uma preocupação do vereador Teófilo Ferreira. Assinalou o facto de muitas associações recorrerem à CML “para serem auxiliadas nos cívicos intuitos de disseminar pelo povo a instrução de que tanto carece, e lhe é indispensável” (Ferreira, 1883, p. 253). Em 1882, além da casa para as aulas de educação da primeira infância - que viria a ser o Jardim de Infância Froebel - propôs a criação de cursos de desenhos industrial e artístico e de cursos profissionais de aperfeiçoamento para os géneros feminino e masculino (Ferreira, 1883, p. 254-255). O ensino da disciplina de desenho era central no estabelecimento do ensino técnico elementar, acompanhando uma tendência internacional da segunda metade do século XIX.

No relatório que apresentou à CML sobre a necessidade e organização do ensino de desenho profissional, Teófilo Ferreira afirmou que as artes eram uma fonte de prosperidade pública e de riqueza das nações. “Todas as nações da Europa hoje mais robustas e florescentes assim o têm entendido. Cabe à Inglaterra a honra da iniciação deste movimento civilizador, fazendo ressurgir do limbo do esquecimento em que se achava este ramo tão importante dos conhecimentos humanos” (Ferreira, 1883, p. 303). A necessidade de escolas de desenho profissional era, quanto a si, uma certeza na formação geral e no aperfeiçoamento dos ofícios. “É geral o movimento em favor do ensino do desenho como base de todo o ensino artístico.” (Ferreira, 1883, p. 303-304). Uma das autoridades citadas pelo vereador da CML era Sousa Holstein e as suas Observações. Tal como Teófilo Ferreira, Holstein tinha escrito a favor de escolas de desenho para o sexo feminino, uma falta que precisava ser remediada em favor do progresso social e económico.

O marquês, contudo, parecia inviabilizar qualquer tendência que beneficiasse a descentralização dos poderes organizadores. Determinava a concentração no Estado da organização administrativa dos estudos para que “concorram todas para o fim comum, conjunta e harmoniosamente” (Observações..., 1875, p. 24) e a superintendência artística por um grupo de artistas, escritores e amadores de belas-artes, “que seja o grande júri do país, em matéria de arte” (Observações..., 1875, p. 24), forma de centralizar competências que se somava à anterior. Não havia, também, considerações pedagógicas que clarificassem os debates em voga sobre a instrução profissional - na qual coubessem os museus como integrantes da emancipação das classes laboriosas.

O diretor do Museu Pedagógico Municipal, por exemplo, chamava incompleta a uma educação profissional que propusesse um fim específico, profissão liberal ou profissão manual. “Essa educação, dirigida quer num quer noutro sentido exclusivo, é como uma fatalidade que se impõe ao homem e o condena desde muito cedo a uma profissão em que ele será muitas vezes apenas um medíocre” (Coelho, 1882, p. 57). A inscrição na educação geral de elementos de aprendizagem dos ofícios mais relevantes, e a sua distinção do ensino profissional propriamente dito, advogadas por Adolfo Coelho, faziam parte da lógica do complexo educativo municipal: “Assim o desenho, a ginástica, a natação, a esgrima, os exercícios militares, a jardinagem, a música, a agricultura, a escrituração comercial fazem ou começam a fazer hoje parte da educação geral” (Coelho, 1882, p. 57).

... O trabalho crítico de Joaquim de Vasconcelos...

O segundo momento que deve ser tido em conta corresponde à apreciação, pelo historiador Joaquim de Vasconcelos (1849-1936), do relatório de uma comissão nomeada pelo governo em 1875 para propor a reforma do ensino artístico e a organização dos museus e monumentos nacionais. “Os princípios em que este trabalho assenta não foram inventados por nós. Datam de 1852 e estão garantidos por uma experiência de um quarto de século” (Vasconcelos, 1877, p. VI). Conhecedor das questões do ensino artístico, da educação profissional e dos tesouros artísticos da nação, Vasconcelos não se limitou a uma análise do referido relatório. Aproveitou-a para propor “uma reforma radical do ensino do desenho” (Vasconcelos, 1877, p. 55) e do ensino das artes aplicadas à indústria - defendendo a criação de escolas de arte aplicada às indústrias ou escolas de artes industriais.

Para isso comparou os modelos internacionais de maior sucesso, descritos com abundantes dados, e incluiu, necessariamente, uma ponderação sobre como organizar as escolas de artes e ofícios e os museus das artes industriais. Tinha como certo que o ensino do desenho era fundamental, nas escolas primárias e no ensino profissional, para o melhoramento das competências técnicas e artísticas dos alunos. Proclamava, ainda, que arte e indústria não eram campos que pudessem encontrar-se, mas que a primeira provinha da segunda: “A arte nasce da indústria da arte; nesta se formam os primeiros elementos, as ideias artísticas elementares, por meio do desenho” (Vasconcelos, 1877, p. 48).

Elaborou um plano de estudos de ensino do desenho desde o grau elementar ao superior (no volume terceiro da sua trilogia), suportado pelo conhecimento das experiências internacionais e da realidade do país. Quanto aos museus, criticou os existentes, que via sem plano, método ou fins plausíveis. “Os museus deveriam ser, entre nós, museus para as artes industriais, primeiro que tudo, único modo de serem úteis, praticamente, imediatamente” (Vasconcelos, 1877, p. 20). A defesa dos museus de artes industriais afastava-o por completo dos objetivos da comissão que, como não deixou de mencionar, não fazia uma lista dos museus existentes. Na verdade, falava sempre de um único museu nacional a ser criado, para

Conservar obras de arte. Desenvolver e estimular o sentimento estético, o amor da pátria e o apreço dos monumentos do passado. Coligir os objetos interessantes à história da arte e mais particularmente à da arte portuguesa. Aperfeiçoar o ensino artístico e industrial pela exposição dos bons modelos. Aliar a arte e a indústria de modo que reciprocamente se coadjuvem no seu comum progresso e aperfeiçoamento (Relatorio..., 1876, p. 9-10).

O programa de um tal museu era claro: destinava-se a preservar e a expor obras de arte, e expor para contemplação obras provenientes do ensino industrial. Destinava-se a criar um sentimento estético oficial, que o Estado reconhecia como adjuvante para fomentar o amor pela pátria. Não imaginava a reunião de materiais para serem quotidianamente usados na instrução, como era suposto poder fazer-se no Museu Pedagógico Municipal de Lisboa, ou nos museus de artes industriais recomendados por Joaquim de Vasconcelos. “Demais, estabelecendo um único Museu em Lisboa, com que ficarão dotadas as localidades onde há indústrias tradicionais? Com nada, porque o Museu de Lisboa é Museu de Arte e Indústria, absorverá tudo” (Vasconcelos, 1877, p. 25). O relatório falava da “formação de museus nas localidades onde convier”, mas afirmava que os acervos não estavam a salvo de ser incorporados no museu nacional: “É o governo autorizado a dispor das coleções e obras de arte existentes nas províncias e que pertencendo ao Estado não forem incorporadas no museu nacional” (Relatorio..., 1876, p. 12).

A importância do Relatório não estava, pois, nas poucas ligações que estabelecia com o ensino das massas populares, mas na afirmação de um desejo antigo das elites nacionais durante praticamente todo o século XIX: a fundação de um museu nacional das belas-artes, que reunisse finalmente as coleções e tesouros artísticos representativos da nação (pinturas, esculturas, desenhos, gravuras, arte ornamental e arqueologia), situação que veio a concretizar-se em 1884.

Esse museu nacional, de vocação centralizadora, era, por um lado, contemporâneo do complexo educativo municipal, de tendência descentralizadora; e, por outro, na sua vocação de espaço para ser visitado e destinado não a produtores, mas a consumidores do conhecimento, de uma predisposição antagónica às funções profissionalizantes e imediatamente funcionais do Museu Pedagógico. Para a proposta de criação de cursos de desenhos industrial e artístico e de cursos profissionais de aperfeiçoamento, o vereador Teófilo Ferreira tinha considerado, entre outras contribuições, o trabalho de Joaquim de Vasconcelos, “Um dos homens que melhor vontade tem mostrado e mais esforços emprega para levantar as nossas indústrias do torpor que as subjuga, acordaram em nós o desejo de corresponder ao apelo que se fazia ao poder e a quantos interferiam mais ou menos diretamente na organização da indústria popular” (Ferreira, 1883, p. 256-257).

... E o destino dos museus industriais e comerciais

Um terceiro momento que requer ponderação para seguir as decisões acerca da educação popular tem a ver com a criação e o destino dos museus criados em 1883, no quadro da redefinição do ensino industrial e da disseminação do ensino do desenho industrial. Trata-se do aparecimento de museus ligados à instrução pública, embora com requisitos específicos. No mesmo ano da inauguração do complexo educativo municipal de Lisboa, em 1883, dois museus industriais e comerciais tinham sido criados, um em Lisboa, nos aposentos da Casa Pia, outro no Porto, que viria a sediar-se no Palácio de Cristal. Sendo certo que estes espaços eram essencialmente expositivos - destinavam-se à exposição permanente dos produtos da indústria e do comércio e da organização de coleções a partir de amostras dos produtos -, eles serviam um fim mais prático que contemplativo. Deviam ser o âmago do encontro entre diversos atores: fabricantes, inventores, produtores, consumidores, oradores e professores de cursos industriais, e alunos das escolas de desenho industrial e desenho com aplicação às indústrias. Essas escolas, além do mais, eram estabelecimentos de ensino anexos aos museus.

A Escola Gil Vicente, em Lisboa, e a Escola Infante D. Henrique, no Porto, estavam hierarquicamente subordinadas aos museus e deviam partilhar com eles o espaço de aprendizagem. Quanto à sua disposição, os museus deviam ser uma fonte de informação de produtos da indústria e do comércio para fabricantes e para consumidores (desde a proveniência geográfica, aos meios de transporte necessários ou à descrição sobre o fabrico); dispunham de uma secção especial com as matérias-primas e produtos regionais, do Norte e do Sul e Ilhas; e deviam constituir uma coleção histórica acerca do património de ferramentas e objetos das indústrias e da arte industrial considerados notáveis15.

A procura e exibição de um caráter nacional, que também encerrava o programa do museu nacional dedicado às belas-artes, estava igualmente presente nas escolas de desenho industrial criadas na mesma altura: “Os cursos de desenho terão tanto quanto [for] possível e útil um caráter de nacionalidade, inspirando-se nos modelos e formas artísticas dos objetos da indústria tradicional popular, e serão, por isso, relacionados com as coleções dos museus”16. Uma revisão dos regulamentos dos museus industriais e comerciais de Lisboa e do Porto (1888) criou três secções para cada museu - comercial; industrial; arte industrial - e, posteriormente (1891), cinco - comercial, industrial, tecnológica, arte industrial e pedagógica -, mantendo, no essencial, a sua disposição para serem locais de exposição permanentes.

Estas exposições serviam uma instrução com caráter prático, e a tentativa de dar a conhecer os melhores modelos das artes industriais internacionais e o que sobressaía das tradições artísticas da indústria nacional. A extensão do seu programa relacionava a exposição de artefactos da atualidade com a exibição de modelos históricos, tal como o Museu Pedagógico Municipal de Lisboa reunia materiais sobre a circulação das ideias pedagógicas correntes e da história da pedagogia. Este alcance era contemporâneo e histórico ao mesmo tempo, porque se destinava à instrução profissionalizante de alunos e professores. Os museus receberam exposições coletivas dos trabalhos das escolas industriais. E as escolas tiveram um papel relevante no fabrico de modelos de arte e de arte industrial, para fins pedagógicos e de permuta com outros institutos. O seu ocaso foi decidido em 1899, referindo-se que não tinham cumprido nem o alcance que se esperava das exposições permanentes nem o apoio ao ensino das escolas industriais. “Este insucesso que poderá, antes de mais nada, atribuir-se ao condicionalismo do meio, impõe (...) a substituição desses estabelecimentos de natureza permanente por outra instituição”17. Essa outra instituição era uma comissão superior de exposições, responsável por organizar mostras anuais de produtos agrícolas e industriais. Com o fim dos museus industriais e comerciais, os objetos aí colecionados deviam ser distribuídos pelas escolas industriais, não se mencionando que espécies deviam ser dirigidas a que escolas e em que condições.

Conclusão

Os três momentos memoráveis na intervenção pública sobre a educação das classes laboriosas trazidos aqui e, particularmente, da história dos museus a elas associados, e a sua correlação a documentos fundamentais para a história da educação, invocam mais do que um destino efémero e fugidio dessas instituições.

Os museus impuseram-se no século XIX como dispositivo para a produção e exibição de um saber, através da recolha, seleção e organização das suas coleções. As Observações de Sousa Holstein, as apreciações de Joaquim de Vasconcelos ao relatório de uma comissão nomeada pelo governo e o destino oficial dos museus industriais e comerciais, parecem assinalar uma tendência, para lá das condições momentâneas, sobretudo as financeiras, sempre lembradas, ou das contingências pessoais relacionadas com os impulsionadores das iniciativas museológicas, como Teófilo Ferreira ou Adolfo Coelho.

Essa tendência museológica une, por uma questão central, os documentos inscritos naqueles três momentos: a instrução profissional das populações trabalhadoras é-lhes mais do que comum, é o centro da sua problematização.

Sousa Holstein falou da necessidade de criar museus para as artes industriais junto a escolas, mas a grande realização para o país, do ponto de vista desse representante das elites, parecia ser a criação de um museu nacional de belas-artes. O Relatório para propor a reforma do ensino artístico e a organização do serviço dos museus, monumentos históricos e arqueologia, evidenciava-o: o título era um programa amplo, o decreto que nomeou a comissão apenas exigia, quanto aos museus, o plano de um museu central (Relatorio..., 1876), o que foi particularmente notado por Joaquim de Vasconcelos.

Existia uma diferença da natureza disciplinar e funcional que separava um museu nacional de belas-artes do Museu Pedagógico ou dos museus industriais e comerciais. Um museu nacional de belas-artes destinava-se à contemplação das peças, à filtragem dos acervos, dos quais nunca se podia tomar conhecimento senão de uma pequena parte (a parte expositiva, embora exibida como totalidade) e à exibição dos novos comportamentos públicos, adequados ao triunfo social deste tipo de espaços.

O Museu Pedagógico e os museus industriais e comerciais, que também impunham novas regras disciplinares aos seus utilizadores, detinham uma componente ensinante e profissionalizante fundamentais, em que a parte expositiva estava ao serviço de um manuseamento entre a permanência da coleção e a dispersão do trabalho prático diário.

Se uns eram, fundamentalmente, espaços para a contemplação de peças e outros espaços para manusear materiais, ambos realizavam uma representação da totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos que professores, alunos, eruditos ou visitantes deviam gerir e observar. Ambos cumpriam, também, formas de socialização em que professores, alunos e público eram mais escrutináveis (mais visíveis nos seus circuitos de aprendizagem ou de mera fruição) nas fisionomias disciplinares de encarar e estruturar o trabalho.

Essa totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos dispostos num aparato disciplinar contínuo, de uma nova organização social e do fomento pela instrução popular, não foi consequente. Dissociou a lógica de um museu dos tesouros nacionais (com a exibição das suas valiosas peças originais) da sua congruência com museus pedagógicos ou museus industriais ou pequenos centros artísticos, como referia Holstein (com o manuseamento, em grande parte, de reproduções das peças originais da nação). Enquanto os espaços ocupados pelos tesouros nacionais foram aumentados na sua relevância e publicidade, os espaços ocupados pelos materiais didáticos e pelo conhecimento pedagógico foram dispersados pela sua irrelevância. A dispersão de uma lógica que incluiria a captação de um público para fruição dos tesouros nacionais, tanto quanto o aprofundamento das habilitações profissionais de normalistas e operários, pareceu expressar a maior agilidade para conservar essas relíquias, mesmo indicando uma cisão na própria rede de saber e de aprendizagem que o Estado liberal tinha imaginado construir.

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1 Intervenção de Teófilo Braga, publicada no Diario do Governo nº 240, 1886-10-21, p. 3032.

2Ibidem

3Ibidem

4Carta de Lei de 7 de agosto de 1890 concedendo ao governo várias autorizações relativas à organização definitiva do Ministério dos Negócios de Instrução Pública e Belas Artes; Decreto de 26 de setembro de 1891 aprovando a reforma da organização administrativa do município de Lisboa; Portaria de 10 de outubro de 1891 nomeando uma comissão para inquirir sobre o estado e administração das escolas primárias do município de Lisboa e propor as providências para se efetuar a passagem dos serviços respetivos para o Estado; Decreto de 6 de maio de 1892 transferindo para o Estado todos os serviços da instrução primária que estavam a cargo das câmaras municipais.

5João Marcelino Arroio, Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, Ata Nº 51, 1890-6-26, p. 899.

6Decreto de 6 de maio de 1892 transferindo para o Estado todos os serviços da instrução primária que estavam a cargo das câmaras municipais, p. 234-235. https://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/79/126/p268

7Decreto de 6 de maio de 1892..., p. 235.

8Ibidem.

9Ibidem.

10Idem, p. 236.

11Idem, p. 235.

12Idem, p. 237.

13A Reforma de Belas-Artes: Análise do relatório e projetos da comissão oficial nomeada em 10 de novembro de 1875. Porto: Imprensa Literário-Comercial, 1877; A reforma do ensino de belas-artes II (Análise da segunda parte do relatório oficial). Porto: Imprensa Literário-comercial, 1878; A reforma do ensino de belas-artes III: Reforma do ensino do desenho seguida de um plano geral de organização das escolas e coleções do ensino artístico com os respetivos orçamentos. Porto: Imprensa Internacional, 1879.

14O documento é da autoria do marquês de Sousa Holstein, embora não seja indicado na obra.

15Portaria de 6 de maio de 1884 aprovando o regulamento dos museus industriais e comerciais, p. 125-126.

16Idem, p. 126.

17Decreto de 23 de dezembro de 1899 criando junto da Secretaria de Estado das Obras Públicas, Comércio e Indústria uma comissão permanente denominada Comissão Superior de Exposições, p. 817.

Recebido: 09 de Janeiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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