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Cadernos do Arquivo Municipal

On-line version ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.18 Lisboa Dec. 2022  Epub Aug 30, 2022

https://doi.org/https://doi.org/10.48751/cam-q9at-7j41 

Artigo

O património, a paisagem e os materiais de construção tradicionais no território de Almada

Heritage, landscape and traditional building materials in the Almada territory

i CAA - Centro de Arqueologia de Almada 2805-187 Almada, Portugal. franciscomanuelsilva66@gmail.com


Resumo

A localização geográfica do concelho de Almada determina um conjunto de condições naturais, geológicas e biológicas que, através da ação humana, deram origem à formação de diferentes unidades de paisagem cultural que caracterizaram o território até finais do século XIX. Tanto os materiais, recolhidos localmente e utilizados na construção, como os edifícios que consideramos elementos patrimoniais, constituíam parte integrante da paisagem. Nesse sentido, cada unidade de paisagem reflete formas diferentes de construir, de habitar e de viver, associadas a contextos socioeconómicos e culturais diferenciados. Considera-se, portanto, que o património construído remete também para a memória de uma paisagem, entretanto transformada.

Palavras-chave: Património; Paisagem; Geodiversidade; Biodiversidade; Arquitetura tradicional

Abstract

The geographical location of the municipality of Almada determines a set of natural, geological and biological conditions, which through human action generated the formation of different units of cultural landscape, which characterized the territory until the end of the 19th century. Both the materials, collected locally and used in construction, as well as the buildings that we consider heritage elements, constituted an integral part of the landscape. In this sense, each landscape unit reflects different ways of building, inhabiting and living, associated with different socioeconomic and cultural contexts. Therefore, it is considered that the built heritage also refers to the memory of a landscape that has since been transformed.

Keywords: Heritage; Landscape; Geodiversity; Biodiversity; Traditional Architecture

Introdução

O presente artigo propõe-se analisar e relacionar o Património Edificado com a formação da Paisagem no território do concelho de Almada. O Património sobre o qual incide a nossa abordagem compreende um conjunto alargado de construções que podemos definir como arquitetura tradicional, mas também igrejas ou fortificações militares, na medida em que, consoante o local onde foram erigidas, os materiais utilizados nas diferentes construções são idênticos. A Paisagem resulta da interligação entre manifestações culturais, biodiversidade e geodiversidade. As práticas agrícolas e de recoleção dependem dos recursos biológicos, enquanto a geologia determina o tipo de solos e a disponibilidade de materiais de construção. Enquadra-se assim o conceito alargado de Património numa perspetiva de Paisagem Cultural no âmbito do qual pretendemos desenvolver a exposição.

Como fundamento para desenvolver as propostas de interpretação apresentadas recorremos, para além da bibliografia, a documentação fotográfica e cartográfica, inventários e levantamentos de campo realizados pelo Centro de Arqueologia de Almada no território do concelho, nomeadamente a Carta do Património Cultural do Concelho de Almada: Inventário Georreferenciado (Silva, 2019), elaborada entre 2016 e 2019, através da qual foi possível obter uma visão bastante precisa sobre a distribuição geográfica do património construído. A par das fontes referidas, a presente abordagem resulta de uma reflexão assente na observação, prolongada no tempo, das paisagens e dos elementos que as constituem.

Como tentaremos demonstrar, as diferentes paisagens definem-se também pela forma de construir, ocupar e explorar o território, remetendo para contextos socioculturais diferenciados. Nessa medida, importa desde já referir que as construções analisadas se enquadram num tempo longo que integra o registo arqueológico desde a Pré-História. Contudo, a maioria das construções consideradas são datáveis do período que medeia entre o Terramoto de 1755 (particularmente destruidor na região de Almada) e o final do século XIX. A partir de então, o contexto socioeconómico associado ao início da industrialização da região (Custódio, 1995) vai transformar a forma de construir e habitar, com a introdução do tijolo furado e do cimento Portland. Nesse sentido, a análise que propomos abarca os edifícios em cuja construção foram utilizados predominantemente materiais de origem local ou resultantes de práticas artesanais. Acentua-se que a paisagem integra as construções, assim como as formas de ocupação e exploração dos solos. Assim, as paisagens culturais que nos propomos analisar, apesar de corresponderem espacialmente ao território atual, já não existem, são memória de condições pretéritas, das quais podemos observar alguns vestígios nas construções, também elas testemunhos de um passado relativamente distante, e consequentemente, elementos culturais com interesse patrimonial, enquanto portadores de memória.

Procura-se assim enquadrar as edificações em função da sua localização e funcionalidade (habitacionais, de armazenamento, processamento, cultuais, defensivas ou recreativas), mas também através da sua integração na paisagem e com os materiais tradicionalmente utilizados na sua construção.

Enquadramento

O concelho de Almada localiza-se no extremo norte da península de Setúbal. A orografia define-se genericamente por uma arriba ribeirinha virada a norte, constituindo a margem esquerda da foz do rio Tejo. A ocidente, uma arriba fóssil que se prolonga paralelamente à costa, afastada do mar por uma planície litoral e pelo respetivo cordão dunar (Rato, 2017), vai estreitando continuamente para sul até à lagoa de Albufeira, já no concelho de Sesimbra. A oriente o limite do concelho é definido pelo estuário do Tejo e pelo concelho do Seixal.

A presença humana neste território remonta à Pré-História e foi naturalmente determinada pela situação geográfica, na foz do maior rio da Península Ibérica e na margem oposta àquela onde se fundou a cidade de Lisboa, que viria a ser a capital de Portugal. Outro aspeto determinante na ocupação deste espaço e na formação da paisagem foi obviamente a geodiversidade que o carateriza (Pais, J. et al., 2006). Na Zona Norte, à exceção da estreita faixa ribeirinha, o terreno apresenta-se inclinado para sul refletindo a atitude da vertente estrutural da costeira de Almada, por sua vez ditada pela estrutura geológica subjacente, suavemente monoclinal, associada ao flanco norte do Sinclinal de Albufeira (Pais, J. et al., 2012). As formações geológicas aflorantes têm idade miocénica, sendo constituídas por rochas sedimentares com origem em ambientes marinhos e estuarinos. São sobretudo calcários (ou biocalcarenitos) e arenitos com cimento carbonatado de cor ocre que integram, por vezes em grande quantidade, fósseis de organismos marinhos e estuarinos (Figura 1).

Figura 1 Aspeto de parede em alvenaria de calcário conquífero marinho miocénico local, Fonte Santa, 2010. Arquivo Fotográfico do Centro de Arqueologia de Almada, Dig.11321. 

Na frente atlântica, que constitui o limite ocidental do concelho, o recuo do mar transformou a escarpa litoral numa arriba fóssil, atualmente afastada da praia que se estende ao longo da linha de costa. Nesta faixa do território, paralela à arriba, afloram exclusivamente areias de praia e areias dunares holocénicas.

Na zona interior sul, o relevo mais horizontalizado, caraterizado por outeiros, as formações geológicas aflorantes são predominantemente de idade plio-plistocénica, constituídas por areias grosseiras avermelhadas, frequentemente arcósicas, i.e., ricas de feldspato, e conglomerados de génese continental, resultantes de deposição em ambiente fluvial do Tejo ancestral (Figura 2).

Figura 2 Areias grosseiras com níveis conglomeráticos pliocénicos formados em regime fluvial, Sobreda, 2010. Arquivo Fotográfico do Centro de Arqueologia de Almada, Dig.11324. 

As Paisagens

As definições de paisagem variam em função das escolas de pensamento, partilhando contudo a conceção sistémica que integra a interação de diferentes elementos naturais e culturais na sua construção. Neste contexto distinguem-se duas tendências: uma naturalista e outra culturalista. A primeira corresponde a uma abordagem clássica que valoriza a estética do espaço natural, ainda que humanizado. Por outro lado, a abordagem culturalista valoriza a intervenção do homem enquanto agente construtor da paisagem.

Tomando por base os diplomas internacionais que enquadram a questão das Paisagens Culturais, nomeadamente a Convenção para a Proteção do Património Mundial Cultural e Natural, de 1972, e a Convenção Europeia da Paisagem, de 2000, ambos se enquadram numa abordagem culturalista valorizando os aspetos que resultam da intervenção do homem sobre a natureza: “As paisagens culturais são bens culturais e representam as «obras conjugadas do homem e da natureza»”1 e “«Paisagem» designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e ou humanos.”2

A Convenção para a Proteção do Património Mundial define as Paisagens Culturais “com base no seu valor universal excecional e na sua representatividade em termos de região geocultural claramente definida”. Por outro lado, a Convenção Europeia da Paisagem, tanto enquadra as paisagens “que possam ser consideradas excecionais como as paisagens da vida quotidiana e as paisagens degradadas.”

Considera-se que, mais do que abordar a paisagem cultural através da valorização dos elementos patrimoniais, em detrimento de uma visão abrangente do território enquanto paisagem cultural, a Convenção da UNESCO ratificada em 1972, teve como objetivo proteger e salvaguardar Património considerado de interesse mundial. Por outro lado, reflete uma abordagem muito centrada na problemática da ameaça de destruição de herança cultural da humanidade.

Já a Convenção Europeia da Paisagem, ratificada trinta e três anos após a Convenção para a Proteção do Património Mundial, para além de ter um âmbito restrito ao espaço europeu, reflete uma visão atualizada do conceito de Paisagem Cultural, centrada nas questões de Ordenamento do Território, através da recomendação aos Estados no sentido de promover políticas de gestão e valorização das paisagens num sentido mais amplo que não especificamente as paisagens culturais.

Para além das convenções acima enunciadas, considera-se que a reflexão sobre o conceito de paisagem deve partir de um enquadramento holístico, incluindo o Património conforme o conceito de Paisagem Global defendido por Gonçalo Ribeiro Telles (2011) e na linha do pensamento de Rosário Assunto (2011), segundo a qual a paisagem não resulta de uma soma de elementos naturais e culturais, mas antes um contexto de vida, sendo o ambiente onde vivemos e no qual vivemos, um território paisagem.

Da simbiose entre o natural e o cultural, resultante da relação entre a natureza e a atividade humana, surge a paisagem enquanto manifestação cultural, conforme salienta Carl Sauer (1925): “A paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado.” (p. 59). Assim, diferentes caraterísticas, de relevo e constituição dos solos, vão contribuir para a formação de diferentes tipos de paisagem, bem como formas diversas de habitar e explorar os recursos naturais. Enquanto elementos da paisagem cultural, encontram-se manifestações como agricultura, ou construção. Nessa medida, no mesmo território, entendido como divisão administrativa, existem diferentes unidades de paisagem cultural que se distinguem entre si através de aspetos envolvendo a geodiversidade e a biodiversidade local, e antrópicos.

Para a definição de Unidades de Paisagem Cultural propostas no âmbito da elaboração da Carta do Património Cultural do Concelho de Almada (Silva, 2019), partiu-se da premissa de que estas deveriam abranger a totalidade do território do concelho, o que, dada a sua extensão, implicava uma análise fina e a uma escala reduzida. Teve por base a observação e a análise do terreno na sua orografia e geologia, enquanto aspetos naturais que influenciam diretamente a ocupação do solo ao longo da história e o modo como se formou a paisagem atual, a qual deve ser apreendida enquanto unidade, ainda que constituída por elementos diversos.

Caracterizando os processos através dos quais as condições naturais e a intervenção humana no território moldaram diferentes formas de ocupação do espaço, onde se encontram integrados os elementos patrimoniais inventariados na elaboração da Carta do Património Cultural do Concelho de Almada (Silva, 2019), nomeadamente Imóveis e Núcleos Históricos (conforme aprovada em reunião da Câmara Municipal de Almada datada de 11 de julho de 1986), definiram-se cinco unidades de paisagem cultural: Área Urbana Nascente; Terras da Caparica; Frente Atlântica; Charneca e Pinhal / Mata (Figura 3).

Figura 3 Mapa das Unidades de Paisagem Cultural do Concelho de Almada. Centro de Arqueologia de Almada, 2019. 

A partir das unidades de paisagem identificadas consideramos que, no que respeita especificamente aos materiais de construção tradicionais, se podem identificar três áreas: Zona Norte (integrando as unidades de paisagem Área Urbana Nascente e Terras da Caparica); Frente Atlântica; e Zona Interior Sul (que integra as unidades de paisagem Charneca e Pinhal / Mata). Com base nestas três áreas geográficas iremos desenvolver a análise, considerando que podem dividir-se, grosso modo, em áreas diferenciadas, consoante o substrato geológico que os constituiu.3

Zona Norte

Até finais do século XIX o povoamento do território distribui-se pela zona norte, onde se localizam as povoações mais antigas do concelho de Almada, nomeadamente os centros históricos de Almada, sede do concelho e principal núcleo urbano, Cacilhas, Cova da Piedade, Porto Brandão, Pragal, Monte de Caparica, Murfacém e Sobreda. É igualmente na zona norte do concelho que se encontram a maioria das construções edificadas até finais do século XIX inventariadas no âmbito da Carta do Património Cultural do Concelho de Almada (Silva, 2019).

A concentração das populações na zona norte justifica-se, no caso das povoações ribeirinhas como Almada, Cacilhas, Cova da Piedade e Porto Brandão, pela proximidade ao rio Tejo, enquanto o Pragal, Monte de Caparica, Sobreda e Murfacém constituem povoações marcadamente rurais implantadas junto dos principais eixos viários estruturantes que atravessavam o território no sentido este - oeste e norte - sul. Contudo, grande parte da população encontrava-se dispersa por quintas e casais agrícolas. Sendo que até ao final do século XIX a agricultura era a principal atividade económica do concelho de Almada, justificava-se assim a maior concentração populacional e na área onde existem os melhores solos, resultantes da alteração das rochas sedimentares miocénicas, formando-se aqui os solos mais férteis da região. Esta, limitada a norte pela arriba ribeirinha que a protege dos ventos dominantes de norte, apresenta inclinação predominante para sul, beneficiando assim da exposição solar que favorece as práticas agrícolas (Cruz, 1973).

Os terrenos com maior aptidão agrícola estendem-se por uma faixa paralela à arriba com aproximadamente dois quilómetros de largura conforme refere a Memoria Economica Da Villa d’Almada e seu Termo, datada de 1835: “Terreno cultivado terá meia légua de largura, em partes menos duas léguas e meia ao longo do litoral” (Silva, 2021, p. 148). Os terrenos cultivados, divididos em pequenas e médias propriedades, predominavam na paisagem (Cruz, 1973). Dada a escassez de água disponível, devido à permeabilidade das rochas e à inclinação do terreno, as espécies vegetais cultivadas eram quase exclusivamente de sequeiro, sendo a vinha a principal cultura. Nos solos mais profundos semeava-se trigo. As culturas arvenses, com destaque para a oliveira, restringiam-se quase exclusivamente às extremas dos talhões.

Frente Atlântica

A frente atlântica do concelho é dominada pela Arriba Fóssil da Costa da Caparica, um elemento geomorfológico originalmente gerado por erosão marinha que a acompanha em toda a sua extensão. A ocupação humana desta unidade de paisagem tem início a partir do século XVI, quando em 1565 o cardeal D. Henrique mandou instalar no lugar da Trafaria um espaço para quarentenas de mercadorias e pessoas chegadas a Portugal por via marítima (Leal, 2014). Até finais do século XIX, a faixa costeira atlântica do concelho apresentava uma paisagem marcada por dunas e juncais. O solo é essencialmente regossolo êutrico4, i.e., solo mineral não consolidado com desenvolvimento pedológico incipiente, de neutro a alcalino, com forte componente de areia proveniente de dunas móveis litorais, também designadas medos. O coberto vegetal era constituído por vegetação dunar resistente à salsugem do ambiente marinho. Formadas pela escorrência de águas na base da arriba, existiam zonas pantanosas, os juncais, assim designados em virtude da presença predominante de juncos. Estes pântanos geravam um ambiente molesto favorável à proliferação de mosquitos portadores de paludismo, enfermidade que até à primeira metade do século XX afetou as populações que aqui se fixaram. Tratando-se de uma zona inóspita e insalubre, o povoamento permanente do território a sul da Trafaria só se tornou efetivo a partir do século XVIII, quando se instalaram na Costa da Caparica as primeiras companhas da Arte-Xávega oriundas da Beira Litoral (Ílhavo) e do Algarve (Olhão) (Silva, 2016). A pesca no mar e no estuário do Tejo era a única atividade económica desenvolvida pela comunidade piscatória. Em 1850, Paulo Perestrello da Camara descreve no seu Diccionario Geographico a povoação da Costa:

Consta esta pov. de mais de 100 cabanas e algumas casas de telha com 1,600 hab., todos pescadores, excellentes maritimos, porém no primitivo estado de ignorancia e rudeza, bem que apenas afastados 2 - ½ leg. da capital. O sacco ou valle que habitaõ, cercado por todos os lados, menos pelo que lhe dá ingresso nada produz; é um continuo areal (Camara, 1850, p. 155).

A partir de finais do século XIX deu-se início à drenagem dos pântanos, com abertura de valas e plantação de pinhal. As dunas de areias foram arroteadas através da incorporação de grandes quantidades de matéria orgânica, proveniente de subprodutos da pesca, criando solos adequados à atividade agrícola e atraindo novos habitantes que, contudo, constituíam uma comunidade separada da piscatória (Silva, 2013).

Zona Interior Sul

Integrando a zona sul encontram-se duas unidades de paisagem cultural, nomeadamente as que designamos Pinhal / Mata e Charneca. A primeira unidade de paisagem, embora predominantemente natural, resulta da intervenção humana através da introdução de espécies botânicas exógenas. Nesse sentido, transformou-se a paisagem pristina de dunas e matos rasteiros numa mata frondosa, que constitui um ecossistema específico e com características particulares ao nível da fauna e da flora. Estando integrada na Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica, as construções antigas são escassas, destacando-se o Convento dos Capuchos, fundado em 1558 por Lourenço Pires de Távora, erigido no cimo da arriba por se tratar de um lugar despovoado propício ao recolhimento dos frades (Nascimento, 2013).

A unidade de paisagem designada por Charneca abrange uma extensa área que se manteve despovoada até inícios do século XX, sendo que a partir da segunda metade do mesmo século este território vai ser ocupado com construção desordenada, de baixa densidade, mas de elevada taxa de ocupação do solo. O substrato geológico é constituído por rochas de idade Pliocénica formadas pela sedimentação de areias e calhaus rolados resultante de um regime fluvial. Por essa razão os solos apresentam pouca aptidão agrícola, sendo o coberto vegetal autóctone constituído por vegetação arbustiva e alguns sobreiros.

Podemos considerar que até aos finais do século XIX a maior extensão do território que abrangia o sul do concelho de Almada era praticamente desabitada, conforme refere a Memória Económica de 1835, redigida pelo provedor do concelho de Almada José Joaquim da Silva Chaves: “O terreno deste Districto hé parte cultivado, porem a maior porção he charneca inculta coberta de matto razo, e Pinheiraes extenços aos quaes dá grande valor a proximidade á Capital, e ao mar, para a facilidade de transporte, e consumo das lenhas.” (Silva, 2021, p. 147).

No interior sul do concelho, abrangendo uma área de aproximadamente 46 km2, os solos são predominantemente cambissolos associados aos arenitos grosseiros e conglomerados plio-plistocénicos das unidades Areias de Santa Marta (Pliocénico) e Conglomerado de Belverde (Plistocénico)5 de menor aptidão agrícola (Figura 2). O carácter árido do solo aliado à fraca disponibilidade de recursos hídricos, gerava um habitat ocupado por coberto vegetal xerófilo rasteiro designado Charneca, onde o mato e a vegetação rasteira imperavam, sendo o pinheiro a única espécie plantada. Desses pinhais plantados subsiste até hoje a Mata dos Medos que integra a Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica. Do ponto de vista económico, esta paisagem era explorada principalmente através da recolha de lenhas, mas também da caça e recoleção de recursos silvestres, entre as quais a grã (Kermes vermilio Planchon) (Carmona, 1985), insecto que parasita as folhas do carrasco, e a Quercus coccifera Linnaeus, utilizada na tinturaria para produzir a cor carmesim. A pastorícia, embora existisse, era fortemente condicionada por diversas posturas municipais e os pastores eram regularmente acusados de provocar incêndios para favorecer o nascimento de erva.

Ainda que seja mui vasta a extenção de charneca, ou terra inculta, contudo pela qualidade de seu terreno arenozo não fornece sustento ou pastagens, e por esta razão não tem este Districto creadores de Gado. Apenas se encontrão rebanhos de cabras de que se tira grande quantidade de leite para fornecimento da Capital. Mas elles são talvez causa dos grandes incendios dos Pinhaes, a cujo matto os malvados Pastores lanção fogo, para nas primeiras agoas do Outono rebentarem e offerecerem pastos mimosos que de outro modo não poderião obter. Afim de evitar o grande danno que fazião nas fazendas foi proibido por Postura da Camara pastarem dentro dos marcos da Villa e terrenos cultivados (Silva, 2021, p. 149).

Os Materiais de construção tradicionais

Uma vez caracterizadas, sucintamente, as unidades de paisagem cultural que definem o concelho de Almada, analisaremos seguidamente em que medida os materiais de construção tradicionais utilizados nas diferentes zonas (Zona Norte; Frente Atlântica e Zona Interior Sul), refletem as diferenças ambientais de cada uma. Dada a diversidade dos materiais utilizados na construção, que seria impossível abarcar na presente abordagem, iremos restringir a nossa análise apenas aos principais, utilizados enquanto elementos estruturais, paredes e coberturas.

Materiais tradicionalmente utilizados nas construções da zona norte do concelho de almada

O núcleo histórico da antiga vila de Almada localiza-se no extremo nordeste do concelho, numa zona elevada no topo da costeira ribeirinha, ocupando uma posição estratégica que abarca visualmente todo o estuário do Tejo. Os vestígios mais antigos de estruturas construídas identificados remontam à Idade do Bronze e correspondem a um povoado fortificado, sobranceiro à atual Cacilhas, defendido a norte pela arriba ribeirinha e, a sul, por um fosso escavado no substrato miocénico que ali aflora. Apesar das muralhas já não existirem, encontraram-se estruturas de planta quadrangular construídas com blocos de calcário conquífero recolhido localmente (Olaio, et al., 2019). Neste sítio arqueológico designado Quinta do Almaraz existiu e foi explorada uma pedreira, provavelmente tirando partido da rocha da unidade de Cotter MVa1 “Calcários de Casal Vistoso” que ali aflora, da qual se extraía a rocha que terá sido utilizado nas alvenarias da maioria das construções edificadas na vila até ao aparecimento do tijolo industrial. A existência desta pedreira permaneceu na memória e toponímia local como “Calçada da Pedreira”, atual Rua Elias Garcia, que constituía a principal ligação entre a zona ribeirinha de Cacilhas e a vila de Almada.

Estas construções, enquadráveis cronologicamente no período entre o Terramoto de 1755 e os finais do século XIX, correspondem maioritariamente a tipologias habitacionais variando entre um, dois ou três pisos, que podemos caraterizar genericamente como Casa de tipo Urbano (Silva, Garcia e Vale, 2014), integrando janelas de sacada, varandins, cimalhas, beirais duplos ou platibandas. As alvenarias das paredes portantes são predominantemente de calcário conquífero, de cor ocre, extraído das pedreiras locais, enquanto as paredes interiores, identificadas em alguns casos observados, são em gaiola pombalina. Os elementos cerâmicos integrados nas alvenarias, nomeadamente tijoleiras, são quase exclusivamente aplicados em arcos de descarga sobre os vãos ou chaminés (Figura 4). Encontram-se também nas coberturas, onde as telhas de meia cana e marselha são predominantes (Silva, Garcia e Vale, 2014). Emoldurando os vãos aplicam-se cantarias de melhor qualidade, não disponíveis localmente. Em edifícios de habitação, lintéis, ombreiras, peitoris e soleiras, elementos construtivos que exigem materiais com características físico-mecânicas superiores às rochas miocénicas locais, são frequentemente talhados em calcários acinzentados, algo margosos, não apresentando fósseis visíveis, provavelmente provenientes de formações cretácicas, e.g. do “Belasiano” (Pinto, 2005) da região de Lisboa, ou quiçá, até de formações jurássicas da Arrábida. O mesmo se observa nos edifícios religiosos, onde para além dos calcários já mencionados, se encontram rochas ornamentais mais nobres, como o calcário lioz cretácico da região de Lisboa. As três igrejas existentes no núcleo histórico (Santiago, Espírito Santo e São Sebastião), apresentam alvenarias de calcário miocénico de cor ocre. Já nos vãos, pavimentos, escadarias, cunhais e elementos decorativos são utilizados calcários lioz cretácicos compactados de cor branca a rosados extraídos na região de Lisboa (Pinto, 2005).

Figura 4 Edifício de habitação com alvenaria em calcário conquífero e arcos de descarga em tijoleira, Almada, 2018. Arquivo Fotográfico do Centro de Arqueologia de Almada, Dig.13506. 

As construções rurais que se encontram dispersas pela zona norte do concelho enquadram-se maioritariamente na tipologia designada como Casa Rural (Caldas, 1999), definida enquanto unidade de produção, espaço de afirmação social e de lazer, pelos proprietários, como Quinta de Recreio (Carapinha, 1999). Esta dualidade de funções está patente nas principais estruturas edificadas que caraterizam as Quintas da Margem Sul, sendo os edifícios principais a casa de habitação dos proprietários e o lagar destinado ao processamento da uva e armazenamento do vinho. Na qualidade de estruturas associadas à atividade agrícola encontram-se também moinhos de vento, destinados especificamente ao processamento dos cereais. Estas construções ocupam locais específicos na paisagem em função da exposição aos ventos dominantes. Visto que se destinavam a moer cereais produzidos localmente, a sua distribuição geográfica justifica-se também em função da proximidade aos locais de produção e armazenamento dos cereais (Silva, 2010).

Indiferentemente das tipologias arquitetónicas, predominantemente rurais, as estruturas edificadas localizadas na zona norte utilizam, nas alvenarias das paredes portantes, o calcário conquífero, extraído das pedreiras locais. Os vãos são guarnecidos com peças de cantaria em calcário cretácico do Belasiano da região de Lisboa e as coberturas em telha. O recurso a pedra de melhor qualidade, trazida de fora do concelho encontra-se, também, em elementos específicos que integram as estruturas de processamento, nomeadamente os lagares de vara, destinados a espremer o engaço da uva depois de pisadas, que utilizam um peso formado por um troncocone em pedra calcária branca, por vezes lioz, proveniente de formações cretácicas da região de Lisboa. Nos moinhos de vento, para além das próprias mós, existe um conjunto de elementos construtivos adaptados especificamente ao funcionamento do engenho, que implicam a utilização de peças em cantaria, de melhor qualidade, talhadas com precisão, bem como outras destinadas a segurar o engenho quando o mecanismo está em movimento, sendo estes elementos talhados em calcário compacto (Figura 5). Em alguns dos casos o piso intermédio, onde se encontra instalado o sistema de mós, é construído em cantaria, embora na maioria das situações estudadas seja em madeira. Este aspeto atesta a escolha de materiais mais acessíveis e baratos em substituição da pedra de melhor qualidade. Contudo, na alvenaria das paredes portantes, de maior espessura do que nas restantes construções, é utilizada sobretudo a pedra - calcário conquífero miocénico - disponível localmente.

Figura 5 Aspeto do interior de moinho de vento, Capuchos, 2005. Arquivo Fotográfico do Centro de Arqueologia de Almada, Dig.10473. 

Entre as construções edificadas na Margem Sul que utilizam os recursos geológicos locais destaca-se a Torre Velha de Caparica, classificada como Monumento Nacional. Esta fortificação foi mandada construir por D. João II e marca a transição da época medieval para a moderna, através da criação de estruturas defensivas adaptadas ao tiro de artilharia. Nessa medida, a sua implantação na arriba tira partido da rocha calcária miocénica aí existente, por ser suficientemente branda para ser extraída, bem como permitir a construção de alvenarias capazes de absorver o impacto de projéteis, sem provocar a derrocada dos paramentos (Cid, 2007).

Materiais tradicionalmente utilizados nas construções da Frente Atlântica do concelho de Almada

As habitações tradicionais erigidas pelas comunidades piscatórias da Costa da Caparica, em virtude da ausência no local de recursos geológicos adequados, eram originalmente construídas com materiais de origem biológica, madeira e estorno. A estrutura portante era feita com barrotes, as paredes com tábuas de pinho e a cobertura com estorno (ammophila arenaria) (Figura 6). As técnicas de construção trazidas pelos pescadores oriundos da Beira Litoral derivam dos chamados “Palheiros”, conforme proposto por Ernesto Veiga de Oliveira:

…na Costa da Caparica, a construção em madeira documenta-se amplamente. No limite sul da povoação, escondido entre casario de materiais duros de construção recente, o bairro velho dos pescadores é um conjunto de algumas dezenas de barracas térreas, de pau e pique e tabuado disposto horizontalmente, virando para a rua a empena, a meio da qual se abre unicamente a porta. A cobertura em telha Marselha é talvez a única diferença sensível entre elas e as barracas citadas por Raúl Brandão há 40 anos. Essas eram com efeito cobertas com estorno das dunas a que chamavam colmo (Oliveira e Galhano, 1964, p. 95).

Figura 6 Barracas de pescadores na Costa da Caparica, década de 20 do século XX, postal ilustrado. Arquivo Documental do Centro de Arqueologia de Almada. 

Não existe atualmente nenhum vestígio material dessas construções, embora através dos registos fotográficos, que são o único testemunho de que dispomos, se possam identificar alguns aspetos que apontam para uma tipologia específica da Costa da Caparica, localmente designadas Barracas, que as diferencia dos Palheiros do norte do país, nomeadamente, por as construções parecem estar assentes diretamente no solo e não elevadas sobre estacas.

Se corresponde à verdade, como parece, a lenda de terem sido os “ilhós” (ilhavenses), vindos do Norte, quem primeiro se estabeleceu no lugar, sobre um “medo” elevado que havia então perto do local onde estão as actuais barracas dos pescadores, eles abandonaram aqui a construção palafítica característica da sua terra de origem (…) (Oliveira e Galhano, 1964, p. 96).

Encontram-se ainda algumas casas em madeira construídas sobre as dunas nas praias da Costa da Caparica, mas foram implantadas a partir da primeira metade do século XX, destinadas a habitações de veraneio (Oliveira e Galhano, 1964), sem relação direta com as primitivas “barracas” construídas pelas comunidades piscatórias.

Materiais tradicionalmente utilizados nas construções na zona sul do concelho de Almada

Como acima se refere, a Zona Interior Sul do território de Almada, dada a sua fraca aptidão agrícola, era explorada principalmente pelos seus recursos silvícolas e cinegéticos. Nesse sentido, até ao século passado, o povoamento existente era escasso e encontrava-se disperso, não se identificando sequer qualquer conjunto edificado de cariz habitacional anterior à segunda metade do século XX. A partir de então, a procura de novas áreas para habitação na Margem Sul do Tejo conduziu à ocupação desordenada de grandes áreas do território até então despovoadas. Nesta área identificaram-se, contudo, vestígios de construções, na maioria em estado de ruína, através das quais foi possível observar e registar restos das antigas paredes. Face à inexistência, nesta zona interior sul do concelho, de pedra adequada à construção de alvenaria, por apenas aflorarem arenitos grosseiros e conglomerados plio-plistocénicos pouco consolidados (Figura 2), os edifícios eram frequentemente construídos com tijolos de adobe produzidos com materiais disponíveis no local, que podemos definir como Casas de Adobe. Contrariamente às quintas e moinhos de vento, elementos sobre os quais foi realizado um inventário sistemático, relativamente a estas construções não foi possível desenvolver uma análise sistemática nem fazer um estudo de caracterização detalhado.

Dispomos apenas de alguns registos fotográficos que testemunham a existência destas construções entretanto desaparecidas. Através desses registos é possível observar que os tijolos de adobe são constituídos principalmente por barro, areia e calhaus rolados, ligados com argamassa de cal (Teixeira e Belém, 1998). Observa-se igualmente a utilização de tijolos cerâmicos ou madeira para suporte dos vãos (Figura 7).

Figura 7 Parede em adobe, Charneca de Caparica, 2008. Arquivo Fotográfico do Centro de Arqueologia de Almada, Dig.10326. 

Análise

Uma vez identificados os principais aspetos que definem cada uma das paisagens, importa cruzá-los, a fim de determinar as interligações que constituem o Património de um território, não como um conjunto de elementos isolados, mas como uma simbiose de vários fatores naturais e culturais que se conjugam no edificado, enquanto reflexo do ambiente onde se encontra e como expressão dos seus construtores.

A paisagem mais humanizada e com a maior quantidade de construções, quer urbanas quer rurais, encontrava-se na Zona Norte. Esta situação deriva da proximidade ao rio Tejo, importante via de comunicação e de escoamento dos produtos agrícolas cultivados localmente. Por outro lado, resulta da presença de solos agrícolas de melhor qualidade, explorados intensivamente. Tratando-se da parte do território onde se concentram as principais atividades económicas, é consequentemente onde se encontrava maior disponibilidade financeira dos proprietários para construir edifícios de alvenaria, ainda que utilizando principalmente recursos locais e importando apenas os elementos de cantaria aplicados em áreas específicas da edificação. Ainda assim, quer se tratasse de pedra local ou importada, o transporte dos materiais desde as pedreiras até ao local da edificação seria obviamente uma despesa a considerar no custo total da obra. A disponibilidade de recursos financeiros por parte de alguns sectores da população está igualmente patente nos edifícios cultuais, nomeadamente nas igrejas de Santiago, em Almada, Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Cacilhas, Nossa Senhora do Monte de Caparica, e Nossa Senhora da Piedade, na Cova da Piedade. Reconstruídas após o Terramoto de 1755, todas elas ostentam no interior talha e revestimento azulejar.

Na Frente Atlântica, os dois assentamentos populacionais mais antigos são a Trafaria e a Costa da Caparica. Na Trafaria o povoamento inicia-se a partir da segunda metade do século XVI. No início do século XIX apresenta, já, um conjunto edificado composto por diversos edifícios que, pela representação cartográfica, aparentam ser de alvenaria. O lugar da Costa da Caparica, por sua vez, está identificado por Cabanas da Costa, indicando claramente a natureza das construções, conforme se pode observar na Carta Topográfica Militar do Terreno da Península de Setúbal (Figura 8).

Figura 8 Excerto da Carta Topográfica Militar do Terreno da Península de Setúbal. Arquivo Fotográfico do Centro de Arqueologia de Almada. 

Na Costa da Caparica o povoamento era concentrado e estava dividido em dois núcleos: a norte residiam os “Ílhavos” e, a sul, os “Algarvios”. Não existiam estradas ou caminhos, apenas areia. Dada a inexistência local de rochas para alvenarias ou terra para fabricação de adobes, a maioria as casas, bem como a própria igreja, eram construídas em madeira, com coberturas de estorno. Materiais leves e fáceis de transportar, que eram recolhidos sem necessidade de recursos financeiros nos pinhais e nas dunas. A escolha destes materiais de construção refletia, contudo, a situação de profunda miséria económica destas populações. Nos aglomerados de barracas eram frequentes os incêndios que facilmente se propagavam com efeitos devastadores. Por outro lado, quando a partir da década de 20 do século passado a Costa começa a ser procurada como estância balnear, os pescadores vão alugar, durante o Verão, as suas barracas aos banhistas, conseguindo assim auferir de um rendimento extra que alguns aplicaram na construção de casas em tijolo. Até então, as poucas casas de alvenaria existentes, edificadas durante o século XIX, eram habitações mandadas construir por alguns armadores das Artes de Pesca, os únicos com poder económico para adquirir os materiais e pagar a construção. A própria igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição era construída em madeira até que, em 1880, foi reedificada em alvenaria tendo a obra sido financiada por um por um benemérito local (Vieira Junior, 1897). Até às primeiras décadas do século XX, a maioria da comunidade piscatória ainda habitava em barracas de madeira, das quais, assim como dos barcos “meia-lua” e das redes estendidas a secar no areal, não restam quaisquer vestígios na atual cidade da Costa da Caparica.

O topónimo Charneca, que atualmente designa a freguesia que integra parte do extenso território na zona sul do concelho de Almada, denota claramente o tipo de paisagem que o caracterizava, onde a principal marca de humanização da paisagem eram os pinhais plantados e algumas construções dispersas. Como ficou expresso, os solos apresentam pouca aptidão agrícola e o povoamento era residual e composto por famílias de muito fracos recursos económicos, provenientes principalmente da recolha de lenhas. Assim, as poucas habitações existentes eram construídas com blocos de adobe fabricados com barro, areia e calhaus obtidos no próprio local da construção, o que mostra o domínio de técnicas de construção tradicional e o conhecimento dos materiais. Como ligante dos blocos de adobe entre si era utilizada argamassa produzida a partir de cal e areia misturadas com água. Nos casos observados, o reforço dos vão era feito com recurso a tábuas de madeira para as vergas e tijolos nas ombreiras.

Conclusão

Embora se trate de um território relativamente reduzido em área, o concelho de Almada integra unidades de paisagem diferenciadas. Observando as caraterísticas de cada uma, é possível estabelecer uma relação direta entre a geologia e os materiais utilizados nas construções tradicionais. Tendo em conta que a geografia determina a ocupação do território, em função dos recursos naturais disponíveis necessários à atividade humana, são geradas diferentes formas de construir e habitar. Por outro lado, diferentes paisagens correspondem a contextos socioeconómicos diferenciados.

As construções consideradas elementos patrimoniais que serviram de objeto à presente reflexão encontram-se, na sua maioria, em mau estado de conservação, em ruína ou mesmo desaparecidas, inseridas numa paisagem descaraterizada ou degradada. Contudo, o seu valor patrimonial reside, não na sua monumentalidade, mas sim na originalidade das relações que se podem estabelecer com o meio envolvente.

Procurando apresentar resumidamente as interligações entre o património edificado a paisagem e a arquitetura tradicional no território do concelho de Almada, apresenta-se seguidamente uma proposta de sistematização das zonas geográficas e unidades de paisagem cultural, com os tipos de construção em função do substrato geológico (Quadro 1).

Quadro 1 Relação entre zonas geográficas, substrato geológico, unidades de paisagem cultural, tipologias e materiais tradicionais de construção no concelho de almada 

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1 http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf

2https://pnap.dgterritorio.gov.pt/convencao-europeia

3Ver Carta dos Solos de Portugal, 1971, à escala 1: 1 000 000.

4Ver Carta dos Solos de Portugal, 1971, à escala 1:1 000 000.

5Ver Carta Geológica do Concelho de Almada, 2005, à escala 1:20 000.

Recebido: 31 de Dezembro de 2021; Aceito: 18 de Março de 2022

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