SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.ser2 número19Alberto, E. M., Silva, R. B. da, & Teixeira, A. (Eds.). (2021) . All Saints Royal Hospital: Lisbon and Public Health. Câmara Municipal de Lisboa; Santa Casa da Misericórdia de LisboaStumpf, R., & Monteiro, N. G. (Coords.). (2022). 1822 - Das Américas Portuguesas ao Brasil. Casa das Letras. índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Cadernos do Arquivo Municipal

versión On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.19 Lisboa jun. 2023  Epub 30-Abr-2023

https://doi.org/10.48751/cam-2022-19177 

Recensão

Araújo, A. C. (2022). Resistência patriótica e Revolução Liberal (1808-1820). Imprensa da Universidade de Coimbra.

i UAL - Universidade Autónoma de Lisboa, 1150-293 Lisboa, Portugal. josesubtil@outlook.pt


O recente livro de Ana Cristina Araújo (2022) revisita a sua singular obra sobre as invasões francesas, enriquecida com novas fontes e uma ampliação dos temas. A oportunidade da publicação é inquestionável na medida em que as invasões francesas, não muito tratadas na historiografia contemporânea, e as suas consequências, aceleraram a criação do ambiente revolucionário de 1820, o que reforça, indiscutivelmente, o interesse pela análise do período entre as invasões francesas e a revolução liberal (1808-1820).

Talvez o título pareça redutor, tendo em vista os temas tratados no livro que, no geral, não é dominado apenas pela problemática do «patriotismo e da resistência». É certo, alguns com mais desenvolvimento que outros, mas todos estimulantes e motivadores, destinados a confirmarem, matizarem ou enfatizarem as leituras historiográficas apresentadas. Talvez se impusesse um título mais condizente com o conteúdo do livro.

Justamente pela variedade dos temas tratados, o livro é, de certa forma, surpreendente, porque emerge de uma sociedade do Antigo Regime, marcada por uma cultura conservadora, mas plural do ponto de vista político e jurídico, para uma sociedade em convulsão, dominada por uma intensa complexidade política, económica, social e cultural que acabou por transformar o regime monárquico.

Mas vejamos alguns temas e problemas levantados por esta publicação de Ana Cristina Araújo.

Desde logo, a valorização da opinião pública e a sua construção social através da imprensa estruturada ou panfletária (periódicos, folhetos, caricaturas e literatura de cordel), uma opinião pública que criou condições objetivas de governo através das ideias, da circulação da informação e contrainformação, e da auditoria sobre os comportamentos individuais e coletivos.

Depois, a influência política exercida pelas novas sociabilidades de natureza iluminista, como associações culturais, clubes, lojas maçónicas e academias científicas que contaminaram as elites e os populares. Trata-se de uma abordagem já, anteriormente explorada por Ana Cristina Araújo, que volta, neste livro, a dar-lhe uma atenção oportuna e consequente.

A construção social do fenómeno do «patriotismo» (pátria, rei e religião), suas representações, autorrepresentações, antagonismos conceptuais, dinamismos restauracionistas ou revolucionários, é outro patamar historiográfico trabalhado com muito bons resultados e promissor de outras investigações sobre movimentos políticos que oscilaram entre a restauração, a rebelião, a revolta e a revolução.

Menos conhecida que a estrutura militar dos exércitos, a organização do “povo em armas” e das elites paramilitares, como os batalhões académicos e a nobilitação de algumas juntas locais, são questões de grande alcance político e social que a autora escolheu para a sua análise, deixando-nos, a propósito, alguns recados, sobretudo as putativas tomadas de poder dos municípios e a violência das mortes de juízes de fora, corregedores e provedores. À semelhança do que já foi feito para alguns concelhos do Norte, é fundamental alargar os estudos a outras áreas do país para se fazer um balanço destes movimentos. A tomada do poder pelas juntas locais e a inculcação desses movimentos na capacidade da autonomia popular ficarão para memória das guerras da Maria da Fonte e da Patuleia.

A crítica à obra de José Acúrcio das Neves, uma catequese patriótica sobre as invasões francesas, só podia ser feita por quem domina, como a autora, com erudição a multiplicidade dos acontecimentos e as suas consequências, em especial, o patriotismo que se implicava no perigo da liberdade causado pelo alvoroço da desordem dos movimentos populares.

O estudo original dos mitos, os heróis profanos e sagrados, o renascimento do sebastianismo, a evocação e invocação da sacralidade e da intervenção miraculosa do calendário religioso, são estimulantes para se compreender os vários cimentos patrióticos, religiosos, fantásticos e utópicos que ligaram as movimentações populares e os tumultos restauracionistas. E, naturalmente, motivadores de novas investigações com recurso a novas fontes. O mesmo se diga sobre o espírito de cruzada dos integristas católicos contra o aboletamento das tropas francesas em conventos, mosteiros e igrejas.

De realçar, também, novos temas como o papel das mulheres e dos espiões na resistência, a questão das diversidades dos «afrancesamentos», os movimentos migratórios, com efeitos nas dinâmicas das populações, e os colaboracionismos com os invasores. O papel das mulheres e dos espiões são territórios escondidos de que é preciso usar de competências acrescidas capazes, como, também, o que a autora nos lembra sobre a «fábrica do silêncio» histórico como forma de ocultar a turbulência política dos ajustes e recompensas.

A questão do «afrancesamento» político, social ou cultural, por inculcação das leituras de livros e jornais, através de relatos e testemunhos, por convivências sociais apetecidas ou convivências no sofrimento, é um tema estudado com contornos culturais inovadores. O mesmo se diga dos movimentos migratórios, na direção do Brasil, como fuga à perseguição política (exemplo da Setembrizada), de presos e degredados, emigrados para a França e para a Inglaterra por afinidades ideológicas, desertores dos exércitos, voluntários para a guerra peninsular, ou seja, mudanças muito rápidas e substantivas nos grupos sociais mais atingidos pela ausência da família real e pela guerra. Esta ondulação de vontades e desejos está, igualmente, presente naquilo que Ana Cristina Araújo designa por colaboracionismo falso, convicto ou obrigacionista, desencadeando tipologias comportamentais criativas, tanto das elites como do povo, como manhas, truques e fingimentos que irão alimentar as campanhas de propaganda a favor ou contra os invasores e, mais tarde, o «esquecimento histórico» como forma de sublimação.

Finalmente, Ana Cristina Araújo dedica algumas páginas à célebre questão da “Súplica Constitucional de 1808” e a deputação a Baiona, um tema que desafia a elucidação sobre o cimento que uniu a amálgama de interesses por detrás desta veneração napoleónica, como foi possível ser concretizada, como se organizou, viveu e soube esperar.

A terminar, somos conduzidos à «militarização do Estado» e, como desfecho, às confluências entre as conjunturas vividas em Portugal e Espanha no triénio liberal e a proclamação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve (1815) com a consequente alteração dos centros de decisão do império português.

Em conclusão, trata-se de uma publicação de enorme qualidade científica, oportuna e pertinente, com uma narrativa estimulante e de grande utilidade para a historiografia sobre o liberalismo e, não menos importante, a indiscutível motivação para novas investigações sobre os variados campos da complexa história da transição entre a monarquia tradicional e a monarquia constitucional.

Referência bibliográfica

Araújo, A. C. (2022). Resistência patriótica e Revolução Liberal (1808-1820). Imprensa da Universidade de Coimbra. [ Links ]

Recebido: 03 de Maio de 2022; Aceito: 16 de Setembro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons