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Cadernos do Arquivo Municipal

versión On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.20 Lisboa dic. 2023  Epub 16-Oct-2023

https://doi.org/10.48751/cam-2023-20322 

Dossier

Os “Elogios”, de João Luso, e a experiência de um intelectual português no Brasil

The “Elogios”, from João Luso, and the experience of a Portuguese intellectual in Brazil

Silvio Tamaso D’ Onofrio1 
http://orcid.org/0000-0002-6266-9354

1 USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,Universidade de São Paulo,São Paulo,Brasil. opeltrezero@gmail.com


Resumo

Publicado em 1916 pelo escritor português Armando Erse de Figueiredo, o livro de crônicas Elogios pode ser lido como portador de tripla intenção: fazer um necrológio informal e elogioso a uma pessoa recém-falecida (todas as crônicas do livro enquadram-se nesta categoria); historiar fatos e pessoas em tom memorialístico; e registrar a proximidade destas pessoas com o autor, Armando Erse. Emigrado para o Brasil por conta própria, sem família, aos 18 anos de idade, cerca de vinte anos depois Armando Erse lança Elogios. Com a publicação o autor parece buscar, eventualmente, o reconhecimento de sua atividade intelectual - quando em tela estão os falecidos ilustres -, ou o desenho da figura do ser humano capaz de cultivar a amizade mesmo com pessoas ditas “comuns” - caso dos falecidos humildes/anônimos.

Palavras-chave: Armando Erse de Figueiredo; Autobiografia; Autoficção; Elogios; João Luso

Abstract

Published in 1916 by the Portuguese writer Armando Erse de Figueiredo, the book of chronicles Elogios can be read as if it was composed with triple intention: to make an informal and praised necrology to a newly deceased person (all the chronicles of the book fall into this category); to history facts and people in a memorialistic tone; and record the proximity of these people with the author, Armando Erse. Emigrated to Brazil on his own, without a family, at the age of 18, about twenty years later Armando Erse launch Elogios. With the publication the author seems to seek, eventually, the recognition of his intellectual activity - when on screen are the deceased illustrious -, or to picture the human being able to cultivate the friendship of so-called “common” people - case of the humble/anonymous deceased.

Keywords: Armando Erse de Figueiredo; Autobiography; Autofiction; Elogios; João Luso

Introdução

Nascido em Lousã, distrito de Coimbra, em Portugal, em 18741, cerca de dezoito anos depois Armando Erse de Figueiredo, que posteriormente adotaria como um de seus pseudônimos João Luso, emigrou para o Brasil, onde desenvolveu extensa carreira intelectual até o seu falecimento em 1950, no Rio de Janeiro. Foi jornalista, tradutor, cronista, memorialista, crítico literário, contista e dramaturgo. Eleito membro correspondente da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 19322, em sucessão a Jaime de Sequeira, esta condição, poucos anos mais tarde, torna-se inusitada pois membro correspondente pode ser apenas pessoa estrangeira, e desde fevereiro de 1939 João Luso tinha também cidadania brasileira3. Aparentemente, no entanto, isso não ocasionou qualquer contratempo: nem João Luso deixou de ser membro correspondente nem foi, por outro lado, eleito membro efetivo. Continuou participando da vida acadêmica de forma ordinária como em 1939, por exemplo, quando integrou o júri, com Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo, do concurso de poesia da ABL que indicou o prêmio para Viagem, de Cecília Meireles.

Uma de suas primeiras obras, Elogios, publicada em 1916, registra crônicas ao redor das redações de jornais, no Brasil, por onde circulavam muitos dos principais vultos da intelectualidade de então. Além de historiar acontecimentos e destacar indivíduos, esta obra parece figurar, dentro do contexto da trajetória pessoal e profissional do autor, como esforço particular de divulgação de suas próprias atividades e também, eventualmente, pela busca de reconhecimento.

Elogios e a renascença portuguesa

Apesar de seu autor já residir no Brasil por cerca de duas décadas, a edição de Elogios ocorre na Biblioteca da Renascença Portuguesa, coleção de publicações do movimento sociocultural conhecido por Renascença Portuguesa, surgido na cidade do Porto em 1912, logo após o início da Primeira República portuguesa. Antes de Elogios, a referida coleção publicara Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes, António Sérgio entre outros escritores e obras que, naquele momento, demonstravam compromisso com uma agenda renovadora nas artes e no pensamento. Nas palavras de um dos integrantes da Renascença Portuguesa, o então estreante nas letras impressas Fernando Pessoa, importava notar a “completa nacionalidade e novidade do movimento”4, algo que também parece apontar para uma leitura atualizada do conceito de nacionalismo, e ainda que Pessoa se referisse inicialmente à linguagem poética. A saudade, ou o saudosismo, outro pilar filosófico da Renascença Portuguesa e supostamente retrógrado ao ter seu foco de atenção voltado para o passado, não problematiza essa corrente estética e literária da nova geração portuguesa modernizadora pois é considerado de forma mística, atemporal, esclarece Teixeira de Pascoaes:

É a saudade no seu sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-ideia, a emoção refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina. Eis a Saudade vista na sua essência religiosa, e não no seu aspecto superficial e anedótico de simples gosto amargo de infelizes […] ela é a própria Renascença original e criadora5.

Portanto, integrando uma coleção de obras de um movimento que poderíamos chamar de modernista, ainda que pleno de saudosismo, Elogios fora precedida, na produção escrita de João Luso, pelos livros Contos da minha terra; Prosa; Histórias da vida; Ao sol e à neve; O amor, tragédia e farsa, conforme informações presentes na página quatro de Elogios. No mesmo local, lê-se: “No prelo: Nó cego, peça em três atos; O despenhadeiro, extensa novela, seguida de contos” (Luso, 1916, p. 4).

Elogios ainda apresenta, em suas quatro páginas finais, uma lista de títulos publicados na coleção Biblioteca da Renascença Portuguesa, elencando cerca de 80 obras.

Autor ou pseudônimo?

A página de rosto de Elogios apresenta uma peculiaridade, na parte superior, o nome Armando Erse figura na linha imediatamente superior a outro nome, João Luso, este grafado em tipologia menor e entre parênteses. Para o leitor que não conhece nem Armando Erse nem João Luso, uma dúvida se instala: o que seriam os dois nomes grafados? São duas pessoas diferentes? Um nome está entre parênteses e o outro não, um em letras maiores do que o outro. Seria um deles pseudônimo, qual? Hoje sabemos quem é autor, quem é pseudônimo, mas as dúvidas não são resolvidas pois não existe explicação ou comentário adicional sobre a questão dos nomes ao longo do volume. A apresentação dos dois nomes, compreende-se hoje, era uma tentativa do autor de se revelar: naquele momento, em 1916, o autor podia e queria identificar a pessoa por trás do pseudônimo que fora adotado desde o início de carreira. Mas nem sempre foi assim, pois tempo houve em que o autor necessitou do pseudônimo para dar vazão à própria produção intelectual. E a existência de ao menos três outros pseudônimos, por parte do autor (J. L.; Clara Lúcia; e Leopoldo Maia, este na Revista da Semana), pode indicar inclusive esforços adicionais para assegurar a veiculação de seus escritos. A respeito do pseudônimo João Luso, assim se pronunciou posteriormente o autor Armando Erse de Figueiredo:

A questão do pseudônimo assim se explica: não agradaria à firma Martins Costa & Cia saber que o seu empregado Armando Erse se entregava à literatura. Ainda hoje os negociantes, e que no mundo inteiro, pensam do mesmo modo… E quando deixei o comércio (fins de 1897) era tarde para abandonar a assinatura que já figurava em vários jornais e na capa de um livro. Tive pena. Conservei nas letras o João Luso, e disso nunca me arrependi. Um auto-batismo de sorte. Conforme disse Paulo Barreto, em artigo para o Jornal do Commercio, sobre minha Comédia urbana, foi ele que inspirou ao cronista brilhante o nome de guerra João do Rio. E do mesmo João se originaram João do Norte, João do Sul, João de Minas, João de Talma, João Apenas, João Só, inumeráveis outros Joões espalhados pelo Brasil. Talvez este final não prime pela modéstia. Mas foi assim mesmo (Luso, 1946, p. 54, apud Pereira, 2018, p. 195).

Ao menos uma de suas obras anteriores, Amor, tragédia e farsa, de 1907, apresenta a mesma disposição de caracteres na denominação do autor, Armando Erse na primeira linha, João Luso, entre parênteses, na segunda linha. Seguindo o raciocínio, e de posse do depoimento que o autor dá de que sua principal atividade profissional não era a literatura, constata-se que desde os anos iniciais do século 20, o autor contando, portanto, entre 25 e 30 anos de idade, Armando Erse de Figueiredo se esforçava por afastar-se do pseudônimo, revelando a própria identidade, reivindicando para si - e não para um pseudônimo - a autoria de suas obras. Com essa atitude, inclusive, o autor parece emular o procedimento dos primeiros historiadores de que se tem notícia, no ocidente. Praticamente todos iniciaram obras demarcando já em suas primeiras palavras quem era o autor do texto. O grego Heródoto, um dos primeiros historiadores, inicia as Histórias desta maneira6: “Estas são as pesquisas de Heródoto de Halicarnassus” (Hutchins, 1986, p. 1), com isso o autor afasta qualquer dúvida de que a obra seria inspirada por musas, como em Homero, por exemplo, tendo com isso, por benefício - e com João Luso ocorre o mesmo -, um incremento na sensação de veracidade das informações contidas no livro, afinal um livro escrito por alguém com nome e sobrenome tende a gerar maior credibilidade do que outro ditado por seres etéreos, casos da Ilíada e da Odisseia, para seguir o exemplo. No movimento de descolamento do poético que a fixação daquilo que hoje chamamos de prosa se instala, a questão da autoria é uma das mais importantes.

Ainda no Brasil dos primeiros anos do século 20, e na maioria dos casos, a revelação da autoria, por parte de um escritor, seria no mínimo imprevidente, afinal, os primeiros intelectuais que conseguiram sobreviver da própria produção escrita foram os romancistas, anos depois. O sociólogo Sergio Miceli estudou a questão:

Dentre as mudanças que irão afetar a definição social do trabalho intelectual na conjuntura das décadas de 1930 e 1940, a mais importante delas se refere à possibilidade que encontraram alguns escritores de dedicar-se à produção literária como sua principal atividade profissional (Miceli, 2001, p. 187).

Ainda segundo Miceli, entre os raros primeiros intelectuais brasileiros a conquistarem a independência financeira com seus escritos estavam Érico Veríssimo, Jorge Amado e José Lins do Rego. Miceli também identifica, subsidiariamente, uma classe de intelectuais que, igualmente e na mesma época, principiara a conseguir sua própria manutenção econômica ao conciliar a escrita ficcional com outras atividades intelectuais, atuando na imprensa, por exemplo. Este parece ter sido o caso de João Luso pois, segundo nota jornalística, desde 1898 ele se tornou secretário do Diário de Santos e, passando a residir no Rio de Janeiro em 1900, nesta cidade passa a atuar como secretário da Imprensa, de Ruy Barbosa, jornal então em sua segunda fase; no ano seguinte torna-se empregado na redação do Jornal do Commercio7. Esses vínculos profissionais, portanto, auxiliam na compreensão da aparente precoce independência de Armando Erse perante seu pseudônimo e a adoção de postura oposta: ele efetivamente passa, como o demonstram os dois livros aqui apresentados, de 1916 e de 1907, a divulgar ostensivamente seu próprio nome associado ao pseudônimo João Luso, ainda que sem mais explicações, como se avaliou, ao menos na medida em que se pode, diante do conjunto documental mobilizado para a confecção deste capítulo, detectar.

No momento ainda do lançamento de Elogios, uma nota na revista carioca Fon Fon explora a questão da assinatura da obra:

Muitos leitores hão de estranhar o segundo nome, muito conhecido, entre parênteses em seguida ao primeiro, que pouca gente conhece. O primeiro é que parece um pseudônimo... e é de fato o pseudônimo civil do literato João Luso, nome que é para nós como o controle de excelência nos produtos da ourivesaria. […] Ainda há a notar a coragem do autor em publicar um livro de Elogios, quando hoje toda a gente cede à fácil fraqueza de escrever descomposturas. É que, como artista que é de palavra, João Luso não pode deixar de ser um pouco paradoxal…8.

Paradoxal poderia ser uma boa palavra para definir Elogios, obra que também é de saudade mas, pode-se considerar, de um outro tipo, não aquele saudosismo criador e com o olhar para o futuro, que apontou Teixeira de Pascoaes, transcrito duas páginas antes desta, mas a saudade que denota o sentimento pela perda, a marca da tristeza, aquilo mesmo que o próprio Teixeira de Pascoaes afirma que o saudosismo, na Renascença Portuguesa, não era. Sobre esse aparente paradoxo, da existência de uma obra que poderia ser chamada de passadista dentro de uma coleção eventualmente considerada modernista, não se obteve, até o momento, compreensão definitiva. Registro seja feito, o que pode promover certa ponderação: a frase escolhida para constar como única epígrafe da obra, possuidora de uma página exclusiva para ela - a de número nove -, em Elogios, parece buscar em Voltaire uma nova visada: “Les justes éloges sont un parfum que l’on réserve pour embaumer les morts” (Luso, 1916, p. 9). Então, se os elogios embalsamam os mortos, como sugere o filósofo francês, é para os preservar, mantendo sua boa forma para o presente e o futuro. A epígrafe, portanto, aponta para um movimento de afastamento do passado ou, no mínimo, de não permanência nele.

As intenções em Elogios

“Estes artigos aparecem em volume, tais quais foram publicados no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, e no Estado de S. Paulo” (Luso, 1916, p. 7). Assim se inicia uma espécie de texto de apresentação sem título e também sem assinatura, de dois parágrafos com cerca de 15 linhas cada, ocupando as duas páginas iniciais de Elogios. No pequeno texto, o redator salienta que, aquele momento, quando da publicação dos artigos em livro, seria excelente oportunidade para uma revisão apurada e o acréscimo de elementos que pudessem incutir, conforme suas próprias palavras, “valor documental” e/ou “expressão literária” aos escritos (Luso, 1916, p. 7). Em seguida, na mesma página, registra: “E seria ocasião, agora, de darmos a estes «Elogios», ditados pela comoção do momento, mais coerência, profundeza e gravidade” (Luso, 1916, p. 7). Logo adiante:

Depois, pensando melhor […] resolvemos conservar a forma primitiva, com todas as suas deficiências, todas as suas precipitações, mas, também, toda a sua espontaneidade. Assim, este livro é, sobretudo, um livro de emoções sinceras. E quem sabe? À falta de outros merecimentos, porventura os próprios defeitos lhe valerão, tornando-o, de algum modo, estimável (Luso, 1916, p. 8).

Alguns comentários poderiam ser feitos tendo por base essas primeiras linhas de Elogios. Inicialmente, parece haver certo esforço do redator/autor por retratar seu livro como obra humilde, singela, o que em princípio não é nada negativo e, mais, parece mesmo corresponder à realidade já que essas linhas iniciais afirmam que o conteúdo textual não sofreu nenhuma revisão ou aprimoramento quando de sua passagem das páginas dos jornais para o livro. Seria, portanto, segundo o autor, uma obra marcada pela “espontaneidade” e, também, eventuais “precipitações” e “defeitos” (Luso, 1916, p. 8), nas palavras do próprio texto de abertura. Como esse texto inicial também afirma, trata-se de uma obra de “emoções sinceras” (Luso, 1916, p. 8), e quem sabe foi esse espírito de sinceridade quem motivou a escrita deste texto inicial, dessas linhas de abertura a Elogios, e sinceridade, humildade, normalmente são positivos, tendem a provocar uma sensação boa na audiência, seja no leitor do livro, seja no ouvinte de um discurso. Não por acaso, este é um expediente conhecido por retóricos desde tempos imemoriais, trata-se daquilo que é conhecido na língua latina por Captatio benevolentiae, ou seja, a captação da benevolência, um método considerado essencial para convencer e persuadir a audiência ou, no caso presente, os leitores do livro. Colocando-se (ou à sua obra) como humilde, modesto, sincero, o autor cativa a generosidade de seu público e busca atrair para si e/ou para sua obra a benevolência, a atenção, a simpatia, a consideração, o bom conceito, enfim. Há episódios considerados como portadores da Captatio benevolentiae em Homero (Semêdo, 2020, p. 28), Vergílio (Powell, 2011, p. 188) e mesmo em sonetos de Luís de Camões, entre outros autores e obras, e a um autor estudado como o foi João Luso, certamente este recurso não seria algo desconhecido, o que não significa que, necessariamente, o recurso tenha sido utilizado e de forma consciente pelo autor. O segundo comentário que poderia ser feito a respeito dos destaques efetuados no texto inicial de Elogios é a referência à emoção. Assim, parecem não pouco desprovidas de intenção as palavras e construções, todas presentes no texto inicial, “sentimento inspirador” (dos escritos, que tal sentimento poderia ser perdido caso o texto sofresse alguma intervenção), “comoção do momento”, “precipitações”, “emoções sinceras” e, finalmente, “estimável” (Luso, 1916, pp. 7-8). Neste caso, parece claro que o autor do texto busca uma aproximação emocional com seu leitor, tanto no sentido de registrar que o livro foi feito, e talvez negativamente afetado, sob forte afetação emotiva, ou seja, crivado de emoções ditadas pela comoção, eventualmente precipitadas, que depois o autor preferiu não as retirar dos artigos/capítulos; quanto no sentido de que ele demonstra uma expectativa de que o livro possa se tornar “estimável” (Luso, 1916, p. 8) - e quem sabe aqui exista também uma captação da benevolência. Parece ser como se o autor pedisse, indiretamente, com artifício, engenho, para que seu livro seja apreciado, “de algum modo”, ainda que possuidor de eventuais “defeitos” (Luso, 1916, p. 8).

Feitas essas ponderações, pode-se considerar que foi ao menos iniciado o apontamento a um dos três objetivos deste estudo, qual seja, o de demonstrar que o autor buscava, com a publicação de Elogios, desenhar a figura dele próprio como um ser humano capaz de cultivar a amizade não apenas com figuras consagradas mas também de pessoas comuns, pois Elogios trata do falecimento de notáveis e também anônimos. Apresentando a obra, desde as primeiras linhas, como algo do mundo, mundana, humilde, modesta, capaz de conter defeitos, elaborada de forma sincera e no calor da “comoção do momento” da perda da amiga querida e do amigo querido, uma obra portadora de “emoções sinceras” (Luso, 1916, pp. 7-8) e não revisadas antes da publicação, o autor busca, aparentemente, e acima de tudo, a sua própria humanização, a própria desmistificação de sua imagem e, por fim, uma simpatia do público, o que abre caminho para o reconhecimento também de sua carreira intelectual, afinal de alguém sincero, humilde, espontâneo, emotivo, características normalmente associadas a pessoas de boa índole, que faz uma boa obra, de quem somente se pode esperar uma boa carreira, uma respeitada atividade - no caso dele, sua atividade intelectual. Essa atitude de se querer mostrar possuidor de virtudes pode ter origem também em uma postura defensiva, para se proteger de antemão, quem sabe, à acusação tão comumente feita aos intelectuais, de que eles vivem alijados dos acontecimentos e premências da vida cotidiana, momento em que usualmente se usa a imagem da torre de marfim, e João Luso não passou incólume a esse tipo de crítica. Um desses casos, assinado pelo conhecido poeta Jorge de Lima e impresso em coluna jornalística que teoricamente era do Barão de Itararé - afinal, o nome da seção no jornal que a imprimiu era Escreve o Barão de Itararé -, o famoso pseudônimo do escritor e jornalista Apparício Torelly. Sob o título Casos perigosos, o texto descreve três ocorrências inusitadas na capital do Rio de Janeiro, uma delas de um cidadão que passou mal:

Num desses dias de calor intolerável, um rapaz imprevidente, envergando uma roupa de casimira das grossas, arriscou-se a ir ouvir uma conferência do sr. João Luso, na Academia Brasileira. O resultado foi este: teve que ser socorrido pela Assistência. Não é possível que a uma pessoa bem ajuizada ocorra a ideia de enfrentar o verão carioca com roupas pesadas e com conferências mais pesadas ainda. Aliás, a roupa é ainda menos perigosa que a conferência9.

O alheamento social, aqui, seria equivalente a texto pesado, complexo, o que pode sinalizar, eventualmente, para o nível de erudição das conferências promovidas por João Luso. Foram cinco anos no Liceu de Coimbra, ainda no século 19, mais cerca de 50 anos de atividade intelectual incessante até esse retrato satírico, cerca de 20 livros publicados e uma infinidade de artigos na imprensa. Somando-se a isso, de um evento promovido pela Casa de Machado de Assis, seria natural esperar um discurso exigente, qualquer que fosse o palestrante. Ademais, o “peso” da conferência pode ser um dos itens a explicar por que João Luso era também membro da Associação Brasileira de Imprensa, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais, do PEN Clube do Brasil, da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e da Sociedade Brasileira de Críticos Teatrais. Além disso, foi condecorado com o Oficialato da Ordem de Santiago de Espada, de Portugal, e com a Comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul, no Brasil, a mais alta distinção atribuída a cidadãos estrangeiros.

Apesar de capaz de pronunciar conferências consideradas pesadas para os não iniciados, João Luso não era alheio ao seu tempo, ao menos esta a leitura de Maria Apparecida Franco Pereira, para quem João Luso era, ao contrário, um arguto observador do cotidiano, valorizando “costumes e formas de relacionamento entre as pessoas. Com visão acurada, registrou [...] essa vivência” (Pereira, 2018, p. 191). Fica claro, portanto, que o autor não se restringia a observar, mas deixou registros dessas observações também. E, continuando na descrição da atuação social de João Luso, Maria Pereira complementa que o autor era também “formador de opinião, e considerado mediador” (Pereira, 2018, p. 191). Este arguto “observador do cotidiano” (Pereira, 2018, p. 191), conforme as palavras da autora, teve em Elogios um importante veículo.

Amigas falecidas e amigos falecidos

Conforme se adiantou, todas as crônicas impressas em Elogios tiveram como motivo inicial o falecimento de alguém da época de João Luso, e de certa forma próximo dele. O autor aproveita o texto para elogiar a(o) desaparecida(o) e, seja por meio dos encômios, seja pelos elementos emotivos e factuais inseridos no texto, o autor parece querer se aproximar das figuras falecidas, é como se ele fosse amigo de todas e todos, ainda que, muitas vezes, isso não esteja claro no texto, o que pode motivar o leitor a duvidar se o autor ou, melhor dizendo, o narrador das crônicas, em algum momento de sua vida conseguiu trocar palavras ou olhares com a(o) falecida(o). Isso ocorre já na primeira crônica: “Nós tínhamos, como tanta gente, o pressentimento inexplicável, talvez facílimo de explicar, de que o Barão do Rio Branco não morreria assim…” (Luso, 1916, p. 11). No decorrer do texto, o narrador descreve os acontecimentos de seu próprio cotidiano ao mesmo tempo que narra a tragédia particular do Barão. “Por isso a morte tão prevista e tão anunciada, foi para todos nós que não a queríamos admitir de algum modo uma surpresa” (Luso, 1916, p. 12). Coloca-se como um admirador do Barão do Rio Branco, mas em nenhum momento diz que se conheceram ou que eram amigos. Ao redigir a crônica, parece procurar se aproximar do Barão do Rio Branco, sentimentalmente pelo menos. Na passagem seguinte, parece querer estender o conceito, de um Barão querido, para todo o povo: “Não era apenas admirado, nem apenas fervorosamente venerado; cercava-o também uma espécie de ternura, doce e familiar benquerença que os homens da sua estatura […] inspiram [...] em torno de si” (Luso, 1916, pp. 13-14).

A segunda crônica, motivada pelo passamento de Machado de Assis, em 1908, como é sabido, no Rio de Janeiro, data e local onde João Luso também estava, residia e atuava nos meios intelectuais, o autor repete um pouco a fórmula empregada na primeira crônica: expressa o espanto pelo desaparecimento de uma pessoa de grande relevância, considerado ainda hoje um dos mais importantes escritores da literatura brasileira de todos os tempos. Assim, comenta vendagens da obra, lendas sobre personagens ou o comportamento do Bruxo do Cosme Velho e parece querer dizer “fomos amigos”. Mas não o diz. Se o pudesse dizê-lo, certamente o faria já nas primeiras linhas do texto, forma como procede na terceira crônica, sobre José do Patrocínio. Compreende-se, pois em seu lugar, provavelmente qualquer pessoa teria a mesma atitude em um momento desses, testemunhando ocularmente a História. Depois, elabora comentários particulares, tece elogios - o tema do livro -, e registra alguns achados: “Era inimitável; e isto talvez, em grande parte, porque começou e acabou, sem nunca imitar ninguém” (Luso, 1916, p. 21). Virando algumas páginas de Elogios, outra situação. O ano é 1900, João Luso mora no Rio de Janeiro e fica desempregado, ele e mais três ou quatro colegas da redação de um jornal que encerrou atividades. Tomaram, então, o costume de ficar à porta da casa Fertin, à rua do Ouvidor, pois aos finais de tarde, quando havia sorte, conseguiam alguém para lhes ajudar a comprar algo para o jantar. Certa vez, neste local, passou um conhecido: “Adquirira o hábito de o abraçar; abracei-o, nessa hora de desalento, como sempre o abraçava, misturando o meu ao seu riso casquinante e franco. Mas logo ele me notou a lividez do semblante” (Luso, 1916, p. 28), era José do Patrocínio. “Falem outros da vida pública e da obra desse jornalista e desse tribuno […] as mais gloriosas que um homem pode deixar atrás de si; a mim, antes me aprouve considerar o camarada, o amigo” (Luso, 1916, pp. 33-34). Se o objetivo do narrador era fechar o elo da amizade entre ele e a pessoa pública, na terceira crônica apresentada em Elogios o narrador, ou antes - talvez (afinal, até que ponto o narrador é o autor?) -, João Luso, consegue o seu intento. Ainda que descrevendo uma situação bastante assimétrica, num momento em que ele de fato passava fome e estava, junto com outros colegas, em estado já desesperador, o “amigo” José do Patrocínio lhe estende a mão e dá-lhe uma bela quantia em dinheiro em troca da promessa pelo sigilo, com a desculpa de que comprava um poema. O narrador conta que, posteriormente, vai descobrindo recorrências, que esse tipo de generosidade era comum por parte daquele para com os necessitados. Passa, então, conforme suas próprias palavras, a ser seu escudeiro e a defendê-lo pública ou privativamente. A crônica é encerrada com forte imagem emotiva: “Tratei-o muito de perto, sinto-o muito meu; e quanto o coração me ordena, neste momento de despedida, é que o chore e lhe agradeça, singelamente e de joelhos” (Luso, 1916, p. 34).

O ciclo vai se fechando: uma pessoa modesta, vinda para o Brasil por conta própria, alguns anos depois, em um livro singelo, sincero, ainda que possuidor de “defeitos” (Luso, 1916, p. 8), registra o seu embricamento com grandes acontecimentos nacionais, como o falecimento de figuras históricas, e a sua amizade com personalidades públicas. Novamente caberia perguntar: algum problema nisso? Nenhum, a atitude e a postura são absolutamente legítimas e provavelmente a maioria das pessoas em situação assemelhada agiria da mesma maneira, talvez até mesmo com menos brio. Também novamente: isso não impede a possibilidade da leitura de eventuais estratégias nesse narrador, seja essa leitura equivocada ou não, ela parece não deixar de ser também legítima.

As crônicas se sucedem, os testemunhos e esforços, idem. A proximidade com Raymundo Corrêa fica assim registrada, em sua porção fulcral: não era “apenas a admiração extremada que as suas obras impunham a toda a gente; tendo-o conhecido pessoalmente, e de perto, a ele me ligara uma das maiores amizades do meu coração” (Luso, 1916, p. 35). Com Carmen Dolores a amizade é apresentada apenas no último parágrafo da crônica: “Quando o meu nome apareceu, pela primeira vez, nas suas crônicas, não nos conhecíamos pessoalmente e não fizemos depois outras relações senão através das obras que nos enviávamos” (Luso, 1916, pp. 69-70), que termina em tom humilíssimo: “É, pois, dalgum modo o pagamento duma dívida, esta homenagem obscura à memória radiosa de Carmen Dolores; e só me pesa não poder depor sobre o seu túmulo mais preciosa coroa que a destas rosas sem viço e sem perfume…” (Luso, 1916, p. 70). Já a partida de Ernesto Senna, veterano companheiro de redação de João Luso no Jornal do Commercio, cerca de vinte anos mais velho do que Luso, dá ensejo a uma crônica em que a amizade se faz sentir no coletivo, dando a impressão que sim, positivamente se conheciam, no mínimo como duas pessoas que trabalham na mesma empresa normalmente se cruzavam pelos corredores, mas não fica muito claro o nível de proximidade que tiveram: “o melhor riso dos nossos intervalos de folga e de palestra, vinha dele que no-lo dava, no-lo transmitia. Toda a gente no-lo dizia, como se ainda pudéssemos deixar de ter essa certeza absoluta: Senna era a alegria da Redação” (Luso, 1916, p. 84). Do poeta Thomaz Lopes, então recém-falecido, João Luso usa de outro expediente, como a querer provar para todos a existência da sua amizade, reproduzindo em meio à crônica Canção uma poesia “datada de 1905 e que, por felicidade minha e para único interesse deste artigo, julgo ser inédita” (Luso, 1916, p. 94).

De outros ilustres falecidos no tempo de João Luso, e por ele registrados em meio às 21 crônicas do seu Elogios, o procedimento do autor é basicamente o mesmo, entretece experiências pessoais com a do defunto, comenta passagens sobre a vida e a obra, algumas curiosidades, repercussões de e sobre a morte dos retratados e elogia francamente. Quando há alguma crítica de terceiros, estas são sempre rebatidas. São esses os casos de Arthur de Azevedo, Euclydes da Cunha, Barão de Werther e outros de menor fama.

Aos mortos sem fama, simplificadamente referidos como anônimos, João Luso dedica linhas delicadas. Aproveitando o falecimento do jornalista Antonio Leitão, por exemplo, que por muitos anos fora o responsável, dentro do Jornal do Commercio, pelo resumo das atividades legislativas de Senado Federal, pessoa retraída, que fazia o máximo para não aparecer e muito menos deixar transparecer as próprias opiniões, em textos enxutos e absolutamente objetivos, João Luso não apenas erige um monumento ao jornalista imparcial e avesso a espetacularidades, quanto o dedica a Antonio Leitão que, por redigir textos que eram impressos sem autoria, era praticamente desconhecido inclusive pelos próprios colegas de redação, quanto mais do público. Para tratar do falecimento do desconhecido diletante das artes escritas Camerino Rocha, João Luso inicia sua crônica reproduzindo um diálogo que ouvira dentro de um bonde no bairro das Laranjeiras, oriundo de dois cavalheiros sentados no banco defronte ao seu. Comentavam os senhores, com ares de fidalgos, que os jornais do dia noticiavam com insistência a morte de um tal Camerino Rocha, literato, pessoa de quem nenhum dos dois fazia ideia quem fosse, “E tecem-lhe tais elogios que, realmente…” (Luso, 1916, p. 107), diz um dos senhores. O narrador fica incomodado, diz que não houve, nas rodas literárias do Rio de Janeiro, uma pessoa mais culta, uma “organização tão poderosa”, um “espírito mais sutil […]. Tinha lido muito, sabia muito, tinha lido e sabia tudo; mas a sua erudição não jazia amontoada no cérebro, atulhando-o” (Luso, 1916, p. 109). Tinha, portanto, uma agilidade cristalina no manuseio das ideias e das palavras que a todos conquistava, fazendo de suas conversas verdadeiras aulas de deslumbramento e prazer. Camerino, no entanto, foi muito pouco publicado, alguns de seus textos saíram em revistas efêmeras e exóticas de poucos números e alcance, o que fez com que o autor ficasse praticamente inédito, apesar de um artista inigualável da palavra, conforme o narrador afirma. A história que se conta, e que o narrador reproduz na crônica, era de que Camerino Rocha chegara ao Rio de Janeiro com uma fortuna nos bolsos e disposto a investir em seu crescimento intelectual. Com o passar do tempo, e das ocupações boemias, o dinheiro se acabou e Camerino passou a viver modestamente numa pensão no Catete, até a morte. O narrador se rebela:

E agora, quando os seus poucos amigos, espalhados um em cada jornal, rompem com as praxes estabelecidas do necrológio, abandonam o «distinto» e o «estimado de quantos tinham a honra», para lhe dedicar palavras de mais sincera e íntima saudade, há uma grande surpresa, uma espécie de escândalo estoura, provocado por esses louvores e essas lamentações, tumultuando à volta desse nome desconhecido. Camerino Rocha! Mas, que fizera ele? Onde aparecera e triunfara? Como e a que privilegiados olhos se revelara? Se os jornais o celebravam é porque lhe reconheciam uma conquistada celebridade; se havia quem o chorasse, é, sem dúvida, porque ele se fizera amar (Luso, 1916, p. 110).

Já na figura do Otto de Alencar conviviam um anônimo burocrata Inspetor Geral de Iluminação do município, e um famoso matemático nas horas vagas, de quem as pessoas só tinham conhecimento por meio de sua assinatura. Pouquíssimos sabiam, portanto, que na figura daquele humilde servidor municipal habitava a personalidade de um excêntrico cientista. Por um acaso João Luso, ou o narrador de Elogios, conhece Otto de Alencar e este logo se muda para Teresópolis, dando início a uma amizade por correio. Falecido Otto de Alencar, eis, no livro de João Luso, uma espécie de necrológio sentimental que, segundo a categorização informal proposta no presente texto, de que em Elogios foram retratados mortos ilustres e também anônimos, talvez este seja o único caso que não se adeque a nenhum dos casos, apesar de que o texto é finalizado valorizando um dos lados dessa curiosa personalidade: “Sirva, entretanto, esta referência como mais um testemunho, embora obscuro, da rara e na verdade prodigiosa capacidade desse homem de ciência que o Brasil acaba de perder” (Luso, 1916, p. 124).

As figuras vão se enfileirando: Léo de Affonseca, elegante e distinto jornalista fundador do antigo Diário Mercantil de São Paulo, veículo que não mais existia quando o jovem João Luso chegou a esta cidade, recém-vindo de Portugal. Segundo o narrador de Elogios, Léo de Affonseca teria sido um dos primeiros incentivadores, senão o criador, da retribuição pecuniária à produção literária dos jovens autores, uma inovação assombrosa para a época. Quando Luso o conhece, Léo é um veterano que socorre os moços com conselhos, opiniões e orientações seguras. Um homem que vive já na sua boemia e que, indaga-se o narrador, como uma pessoa com “tantos ensejos de fazer fortuna, se mantivera sempre relativamente pobre” (Luso, 1916, p. 132).

Alberto Antonio da Silva Costa, ou Pad’Zé, como era carinhosamente conhecido em Lisboa, um aguerrido batalhador em prol da república, advogado, escritor, “o homem mais alegre de Portugal” (Luso, 1916, p. 133), segundo o narrador de Elogios, suicidou-se. Figueiredo Pimentel foi outro retratado em Elogios, suas colunas sociais, festivas e muitas vezes indiscretas faziam sucesso no Rio de Janeiro de então. Notório crítico e também apreciador das festas populares do Brasil, além de escritor, diplomata e ao menos por uma ocasião, referida em Elogios, colega do narrador João Luso, que assim inicia sua crônica: “Desapareceu esta semana, daquela pavorosa maneira como todos nós havemos de desaparecer, uma das mais evidentes figuras da imprensa carioca” (Luso, 1916, p. 151).

À pessoa que exerceu o cargo de porteiro do Jornal do Commercio por mais de quarenta anos, João Luso dedica a última crônica do livro, iniciando desta maneira:

Manoel José da Motta... Este nome não vos diz, decerto, coisa alguma. Nome bem banal e bem humilde, como a criatura que o usou mais de setenta anos, sem nunca lhe ser dada ocasião de o fazer sair da obscuridade, nem para a admiração, nem para a execração dos contemporâneos... (Luso, 1916, p. 191).

Homem simples, de modos rústicos e precária educação, Motta a todos conquistou por sua dedicação, sua lealdade ao trabalho e também por pequenas historietas pitorescas, que a todos faziam rir. Uma delas referia-se a uma admoestação recebida de seu chefe, sobre o modo como usava seu boné, um pouco para trás, deixando a testa livre “para refrescar as ideias” (Luso, 1916, p. 198), dizia. Nessa ocasião, “Motta deu um passo atrás e levando a mão ao peito, replicou com a maior dignidade: - No serviço, respeito o meu chefe […] mas cada um sabe se o seu boné está ou não direito na sua cabeça” (Luso, 1916, p. 198).

Entre outras crônicas não comentadas aqui, elogios a dois nomes de relevo na cultura brasileira: o artista plástico e jornalista francês Emílio Rouede, “Conheci Emílio Rouede...” (Luso, 1916, p. 171), inicia o narrador de Elogios; e o pianista, compositor e maestro Aurélio Cavalcanti que, se o narrador não conheceu, isso não o impediu de admirar e elogiar sua obra e existência, “Não duvideis, senhorinhas, Aurelio Cavalcanti foi o grande inspirador, o grande protetor, engenhoso e insinuante, dos namoros daquele tempo…” (Luso, 1916, p. 146).

Da crítica e da “escrita de si”

Não se pretendeu, neste exercício, levantar suspeitas, prejulgamentos nem muito menos preceitos sobre o comportamento ou a moralidade de um autor, de como ele deveria ou não proceder em sua vida e/ou também em sua atuação profissional, tanto mais porque o profissional da letra, da palavra, do discurso, é antes de tudo um artífice, um poeta no sentido do grego antigo ποιητής, “aquele que faz”, e este trabalhador, na gênese um artista, deve ter aplaudida e assegurada toda a liberdade possível para o desenvolvimento e a existência do seu trabalho, sem nenhum tipo de censura, dificuldade ou impedimento. O que se busca, antes, é tentar analisar possíveis consequências da elaboração e publicação de uma obra como Elogios. Neste livro, como enunciado, o autor aborda passagens da vida de pessoas recém-falecidas, em espécie de necrológio, portanto aproximando seus escritos do estilo biográfico e, por também fazer-se personagem das crônicas, autobiográfico (ou autoficção, na terminologia proposta por Doubrovski nos anos 1970).

Apontar a existência de um aspecto autobiográfico nos textos presentes em Elogios parece algo a se considerar tendo em vista a formulação do estudioso francês da autobiografia, Philippe Lejeune. Para este, a definição de autobiografia seria: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história, em particular a história de sua personalidade” (Lejeune, 2008, p. 14). Alguma distância já poderia ser evidenciada aqui, entre esta definição e Elogios, mas acompanhemos o complemento da formulação de Lejeune pois o esclarecimento estará melhor colocado. Assim, prossegue Philippe Lejeune, com destaques presentes no original:

Nesta definição entram em jogo elementos pertencentes a quatro categorias diferentes:

1. Forma da linguagem:

a) narrativa;

b) em prosa.

2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade.

3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador.

4. Posição do narrador:

a) identidade no narrador e do personagem principal;

b) perspectiva retrospectiva da narrativa.

É uma autobiografia toda obra que preenche ao mesmo tempo as condições indicadas em cada uma dessas categorias (Lejeune, 2008, p. 14).

Seguido este paradigma e genericamente considerado, ou seja, desprezando-se eventuais diferenças na construção das crônicas, o conteúdo disposto em Elogios, apesar da grande proximidade, não pode ser considerado autobiográfico pois não apresenta simultaneamente todas as condições, especialmente no que se refere ao primeiro item da quarta categoria, qual seja: “identidade do narrador e do personagem principal” (Lejeune, 2008, p. 14). Alguém poderá argumentar que isso ocorre, positivamente, mas de uma maneira indireta, velada, afinal este próprio capítulo do presente artigo argumenta que o autor ou o narrador possuía intenções. Será válido considerar, no entanto, de fato, o que ocorre é que na maioria dos textos, senão em todas as crônicas, o narrador não é apresentado como o personagem principal.

O próprio Philippe Lejeune pondera, pouco depois, que as categorias propostas não são tão rigorosas e que tais condições dificilmente são preenchidas completamente, e que tais nuances dariam margem à existência de gêneros próximos da autobiografia, mormente aqueles das “escritas de si” (Foucault, 1992, pp. 129-160): memórias, biografias, romance pessoal, autorretrato ou ensaio, diário, entre outros. Portanto parece haver margem para afirmar que, estritamente falando, Elogios não é autobiográfico, pois apesar da identidade entre autor e narrador existir de forma patente, seja pelo uso do pronome na primeira pessoa do singular, seja por outros indicadores, a terceira condição sine qua non para que exista a autobiografia é que o personagem principal seja também o autor e o narrador, e aqui, reafirmando, tal não ocorre: o personagem principal das crônicas não é nem o autor nem o narrador. Aliás o próprio narrador assim o afirma, quando dedica algumas de suas crônicas e alguns dos seus escritos, não em forma de epígrafe mas no próprio corpo do texto, aos homenageados falecidos.

Já o estilo de escrita biográfica pode ser caracterizado como portador - e em Elogios isso ocorre em profusão - daquilo que se convenciona chamar de evidência anedótica, posto que baseado em fatos muitas vezes não comprováveis, não repetíveis, eventualmente transmitidos em forma de episódios, contos, testemunhos, por terceiros ou de ouvir dizer (em contraposição à evidência científica, ou seja, aquela baseada em fatos ou estudo com metodologia). Este aspecto tende a gerar desconfiança entre os estudiosos mais sisudos, e não é exclusividade da biografia: praticamente todos os ramos da escrita de si, na proposta de Foucault, dos escritos de aspecto mais íntimo tais como memórias, diários, correspondência, entre outros, sofrem desse preconceito. Na apresentação de O pacto autobiográfico, Jovita Noronha comenta essa situação e que pode, facilmente, ser generalizada para as outras escritas de si: “os desafetos da autobiografia são frequentemente, tanto no meio acadêmico quanto no literário, os guardiões da alta cultura, da ‘verdadeira literatura’” (Noronha, 2008, p. 7).

Propositalmente ou não, publicizar a proximidade com figuras de vulto, como o são quase todas as retratadas em Elogios, poderia promover simbolicamente a própria pessoa do autor e/ou seu próprio trabalho intelectual, eventualmente em busca de benefícios como, por exemplo, a aproximação e trânsito em locais ou extratos sociais até então inacessíveis, ainda mais em um ambiente em que se confunde tanto os âmbitos privado e público como é o Brasil. A figura do homem cordial, que marca relações sociais, apresentada na obra Raízes do Brasil, publicada por Sérgio Buarque de Holanda em 1936, acrescenta elementos para se pensar com propriedade essa questão do compadrio, tão presente ainda no cotidiano nacional.

De forma concomitante, não se despreza a importância dos relatos biográficos na história da humanidade. Talvez seja uma forma um pouco exagerada de dizer, mas provavelmente a humanidade não seria o que é hoje se não fossem as biografias, elas tiveram um papel fundamental na instrução dos povos e na construção do contemporâneo. Apenas para fazer um rápido retrospecto em favor desse argumento, lembre-se que as Vidas, também conhecidas como Vidas paralelas do autor grego Plutarco, que viveu entre os anos de 45 e 120 depois de Cristo, foram o resultado de um esforço de décadas desse pesquisador e autor, um trabalho muito sério, portanto, nada anedótico, no sentido rebaixado que a palavra pode ter. Ao que tudo indica, Plutarco teve uma família próspera, em diversos sentidos, o que facilitou sua vida de viagens e estudos. Viajou pelo Egito, Ásia e depois para o local onde viria ser a Itália. Em seguida, regressando à Grécia, torna-se importante figura pública, político, espécie de embaixador em questões e missões externas e também sacerdote no templo de Delfos. Esse espectro de atividades desenvolvidas durante a vida propiciou a Plutarco o contato com todo tipo de pessoa, dos mais ricos aos mais pobres, dos mais notórios aos mais anônimos, em termos de reconhecimento público. Suas Vidas paralelas têm sido objeto de estudo desde a antiguidade, eram admiradas e foram utilizadas por Shakespeare na confecção de ao menos uma de suas obras. Também os Ensaios, de Michel de Montaigne trazem muitas referências a Plutarco e sua obra. Já Jean-Jacques Rousseau foi outro entre os admiradores de Plutarco que tiveram sua obra influenciada por ele. As figuras expostas em Vidas paralelas não eram construídas como objetos de adoração heroica, defeitos e virtudes foram ressaltados: seu objetivo era, ao mesmo tempo, apontar acertos e desacertos da política imperial, e, no âmago da atuação pública dos retratados, identificar o sentimento humano à maneira de um psicólogo, servindo, assim, como experiência para os leitores, como subsídio a propiciar melhor análise e fundamento em suas opções e atitudes perante os acontecimentos e a vida.

O grande tema a respeito da potência da biografia como material instrucional, pedagógico, para uso disseminado e irrestrito, questão que já mereceu detidos estudos de Peter Burke e Pierre Bordieu, para nomear apenas alguns autores (A invenção da biografia e o individualismo renascentista, de 1997, e A ilusão biográfica, de 1986, respectivamente), pode ser ilustrada na questão aparentemente singela elaborada por Rubem Barros quando enfrentou o tema biográfico: “até que ponto é possível escrever a vida de um indivíduo? E até que ponto uma vida pode ser significativa para a compreensão de uma época ou de um determinado contexto histórico?” (Barros, 2011, p. 2). A questão se torna mais aguda quando acompanhamos o raciocínio do sociólogo Sergio Miceli, para quem não pode haver estudo sério e fontes documentais com relevância explicativa “sem um cuidado metodológico trivial, que consiste em tentar explicitar as condições de produção das fontes com que lidamos” (Miceli, 2001, p. 349).

Não explicitando detalhadamente como as fontes foram produzidas, por quem, com que objetivos, com que premissas e sob qual enfoque, o biógrafo tem poucas chances de produzir algo que não seja apologia (contra ou a favor).

Alguém poderá argumentar que tais reflexões são equivocadamente envolvidas por um rigor científico que não existia entre as “impressões e recordações pessoais” de um jornalista que queria, ao fim e ao cabo, num livro de “emoções sinceras”, como ele é apresentado, intitulado Elogios, apenas transmitir sua “espontaneidade” por meio do espaço que tinha conquistado nas páginas dos jornais e que, portanto, são inadequadas ao serem aplicadas, pois se o jornalista fosse seguir esses preceitos científicos ele construiria artigos científicos, e não artigos de jornais “ditados pela comoção do momento” (Luso, 1916, p. 8), para amplo público, em publicação não especializada e, portanto, de fácil acesso. O argumento seria correto, não parece invalidar as reflexões, no entanto.

Conclusão

Elogios, de João Luso, livro de crônicas publicado em 1916, pode ser considerado uma obra de autopromoção do autor mas, se isso for verdade, não terá sido a primeira e nem será a última, afinal, talvez o maior desejo de todo autor, de todo escritor, seja promover o seu texto, suas ideias, sua vida, enfim, mesmo aqueles que aparentemente não estariam preocupados com isso, por exemplo os autores de um tratado de matemática ou de medicina, ou os responsáveis pela elaboração de manuais técnicos, onde muitas vezes nem sequer os autores são identificados, ainda assim o autor quer que o trabalho dele seja bom, que permaneça. “Non omnis moriar” (Nisbet & Rudd, 2004, p. 317), grafou o poeta romano Horácio em suas odes, no século primeiro antes de Cristo. “Não morrerei de todo”, ou “algo de mim permanecerá”10, este parece ser o ideal de todo escritor, que seu corpo vá, mas sua obra fique.

Com este estudo procuramos acrescentar elementos para uma leitura de Elogios que compreenda também aspectos estratégicos e intencionais, pois em uma obra apresentada como simples, humilde, não revisada e escrita sob pressão emocional, muitos leitores não esperariam encontrar um complexo tecido de elementos oriundos da escrita autobiográfica, da biografia e também da História, na medida em que são registrados fatos, acontecimentos de um tempo para o conhecimento da posteridade, envolvendo individualidades além do próprio narrador, figura claramente identificada com o autor do livro. Avesso a definições e enquadramentos em termos de estilo de escrita e gênero, trata-se de uma obra multidimensional, elaborada tensionando limites, que demanda leitura atenta e sugere profícuos novos estudos para o total desvelamento de suas diversas facetas.

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1 Este ano tem sido erroneamente divulgado como 1875, mas a página 96 do Livro de Batismos da Paróquia da Lousã atesta 1874. Arquivo da Universidade de Coimbra, Paróquia da Lousã 1577/1901, Livro de Batismos 1588/1901, União das freguesias de Lousã e Vilarinho, p. 96. https://pesquisa.auc.uc.pt/storageimage/?id=B5E27F2E13A97D14BB827B09302C88C6

2Leão, M. (1950, março). Autores e livros: Suplemento literário-João Luso. A Manhã, XI(3), p. 32. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=066559&pagfis=2912

3João Luso naturalizou-se brasileiro (1939, 26 de fevereiro). Folha da Manhã, p. 3. Secção “Estatuto dos funcionários públicos”. https://acervo.folha.com.br/compartilhar.do?numero=21294&anchor=138735&pd=2922b6c8c227f4ed2f58f7893565ec80

4Pessoa, F. (1912, abril). A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. A Águia: Revista Mensal de Literatura, Arte, Sciência, Filosofia e Crítica Social, 1(4), p. 106. https://pt.revistasdeideias.net/pt-pt/a-aguia/in-issue/iss_0000000014/8#. A grafia das transcrições foi, neste capítulo, atualizada. Os destaques e eventuais incoerências, mantidas.

5Pascoes, T. de (1912, janeiro). Renascença. A Águia: Revista Mensal de Literatura, Arte, Sciência, Filosofia e Crítica Social, 1(1), p. 2. https://pt.revistasdeideias.net/pt-pt/a-aguia/in-issue/iss_0000000011/4#

6Tradução efetuada pelo autor.

7Leão, M. (1950, março). Autores e livros: Suplemento literário-João Luso. A Manhã, XI(3), p. 32. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=066559&pagfis=2912

8A. S. (1916, dezembro 16). Livros-Armando Erse (João Luso): Elogios-1916. Fon Fon, 10(51), p. 46. http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1916/fonfon_1916_051.pdf

9Lima, J. de (1946, março 28). Casos perigosos. Folha da Manhã, p. 5. https://acervo.folha.com.br/compartilhar.do?numero=23450&anchor=176670&pd=2a5be90cad65e7e0b868029e94dd9e5d

10Traduções de non omnis moriar efetuadas pelo autor.

Recebido: 30 de Dezembro de 2022; Aceito: 05 de Maio de 2023

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