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Cadernos do Arquivo Municipal

versión On-line ISSN 2183-3176

Cadernos do Arquivo Municipal vol.ser2 no.20 Lisboa dic. 2023  Epub 06-Nov-2023

https://doi.org/10.48751/cam-2023-20327 

Recensão

Curto, D. R. (2023). Um país em bicos de pés. Escritores, artistas e movimentos culturais. Edições 70

Ana Cristina Correia Gil1 
http://orcid.org/0000-0001-5656-9798

1Centro de História de Além-Mar, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade dos Açores, 9500-321 Ponta Delgada, Portugal. ana.cc.gil@uac.pt


Constituída por oito capítulos, que perfazem cerca de 570 páginas, esta é uma obra ambiciosa, cujo arco temporal abrange desde a Geração de 70, com Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis e Fialho de Almeida à cabeça, até ao século XXI, fazendo uma revisitação e uma reinterpretação da vida cultural, social e política portuguesa. Diogo Ramada Curto, professor catedrático no Departamento de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, reúne neste volume ensaios de origens diversas, previamente publicados entre 2014 e 2022, em obras coletivas e sobretudo em jornais - Expresso, Público e Contacto - e na revista Ler, sendo que alguns dos textos foram revistos, poucos são inéditos e vários são recensões críticas de obras recentemente publicadas. Não se pense, no entanto, que esta origem na imprensa confere à obra um caráter fragmentário. Pelo contrário, o autor confere-lhe unidade temática, reunindo os textos segundo uma lógica temporal que percorre vários momentos da história nacional: as Gerações de 70 e de 90 no final do século XIX (capítulo 1), a cultura finissecular e o Primeiro Modernismo, na passagem do século XIX para o século XX (capítulos 2 e 3), o Estado Novo, o movimento neorrealista e os intelectuais e artistas - os que foram conotados com o regime e os dissidentes - (capítulos 5 e 6), e a cultura contemporânea, popular e erudita, bem como o futuro da universidade, com propostas valiosas e certeiras para a melhoria da situação atual da academia portuguesa (capítulo 8). A esta ordem cronológica acrescentam-se uma secção sobre “Mulheres escritoras” do século XX (capítulo 4) e outra sobre a “cultura da comemoração e do espectáculo”, que ameaça a “autonomia” e a “isenção” da produção do conhecimento histórico (capítulo 7, p. 443).

Para além da unidade temática e da ordem cronológica, há um outro aspeto que contribui para a coesão deste conjunto de ensaios: a perspetiva epistemológica de que parte o autor. Diogo Ramada Curto recusa o excesso de especialização em que caíram as ciências (especialmente as sociais e humanas) e defende reiteradamente a necessidade de transversalidade dos saberes. Para ele, espartilhar as áreas do conhecimento é perder a noção de conjunto, quer se trate de um movimento literário (como é o caso do Primeiro Modernismo e a relação ambígua deste com a República e com o Estado Novo) quer de uma personalidade artística ou política, de que são exemplos António Botto, Raul Brandão, Almada Negreiros, Fernando Pessoa, Armando Côrtes-Rodrigues, Jorge de Sena e outros. A apologia de uma visão de conjunto dos fenómenos culturais, sociais e políticos resulta, assim, de uma recusa em perspetivar a realidade de uma forma maniqueísta, que reduz as análises a conjuntos de “opostos” (o autor insiste de modo reiterado na recusa de oposições simplistas), sem ter em conta os vários campos de referência envolvidos. É o caso, por exemplo, da antinomia entre propagandistas e opositores no Estado Novo, entre esquerda e direita ou entre luso-tropicalismo e racismo estrutural na sociedade portuguesa. A estas oposições demasiado esquemáticas e redutoras, Ramada Curto contrapõe uma análise mais detalhada e contextualizada sobre os percursos individuais de cada intelectual e artista, os quais revelam ambiguidades, evoluções e mudanças de perspetiva. Aliás, este é o método adotado por Ramada Curto, pelo que muitos dos capítulos desta obra são constituídos por textos dedicados a estudar figuras individuais, nacionais e algumas estrangeiras, procurando analisá-las sob ângulos originais e pouco estudados. Adotando uma perspetiva heterodoxa que rompe o “respeitinho pelo consenso” (p. 11), como anuncia logo na introdução, recusa ideias feitas e pré-concebidas, combate a mediocridade, a “incapacidade de lidar com o contraditório”, “o medo de pôr em causa as instituições” e aqueles que se põem “em bicos de pés” (p. 12), expressão que dá o título ao volume.

À importância que confere ao contexto em que obras e movimentos surgem, Diogo Ramada Curto contrapõe aquilo que considera ser a limitação dos horizontes interpretativos de “críticos literários e historiadores da arte e da literatura”, só interessados em “referências estéticas e literárias” e “incapazes de colocar o trabalho dos artistas e escritores modernistas no interior de um campo de funcionamento mais vasto” (p. 168). A crítica às visões limitadoras das perspetivas unidisciplinares é recorrente ao longo da obra e torna-se visível na proliferação de vocábulos como “barreiras”, “ensimesmamento”, “estanques”, “obstáculo”, “fechamento” (p. 171), “enjaular” (p. 432), “divisões” (p. 441), etc., que impedem uma visão holística e integral dos fenómenos estudados. Diogo Ramada Curto tem como alvo preferencial os Estudos Literários, sobretudo os de âmbito académico, os quais acusa de se quererem manter num “plano intocável da transcendência” (p. 204), numa espécie de redoma que recusa a relação da literatura com as outras artes e com a sociedade. Ora, este é um olhar porventura demasiado severo sobre o campo do estudo da literatura. É certo que, na primeira metade do século XX, se procurou autonomizar o texto literário do seu autor (evitando, assim, o biografismo) e da sua época. Foram os tempos áureos do Formalismo Russo, do Estruturalismo e do New Criticism, em que se chegou a declarar a “morte do autor”. Estas escolas tiveram, por um lado, a virtude de centrar a atenção no texto, nas construções de sentido que este cria, sem ter de se estabelecer uma relação direta com a vida do autor ou com o seu tempo histórico e social. Por outro lado, sublinharam o estatuto ficcional do texto literário, determinante para a consideração deste como um mundo alternativo, com uma cosmovisão própria, verosímil ou afastada da realidade empírica. Porém, ultrapassada a vigência destas perspetivas de autonomização excessiva da literatura, hoje a teoria e a crítica literárias são marcadas pela interdisciplinaridade, uma vez que os estudos recentes, na generalidade, partem do texto como elemento fulcral, mas recorrem também a um aparato crítico de contextualização das obras na vida e na época dos autores, e de relação entre a literatura, as outras artes e a sociedade. De facto, o panorama atual da teoria e da crítica literárias é marcado não só por uma atenção e análise fundamental da construção do texto, mas também do contexto em que este se insere. Veja-se o caso dos estudos de Paula Morão, Maria das Graças Moreira de Sá, Maria Helena Santana, Helena Buescu, José Carlos Seabra Pereira, Miguel Real, bem como os dos saudosos Jacinto do Prado Coelho e António Machado Pires, entre tantos outros.

Um outro aspeto importante é que esta não é uma obra que se encerra em si própria, pois o autor não se restringe ao já feito, chamando a atenção para o que falta fazer no campo da cultura, da edição e do estudo das obras de certos autores. Apresenta pistas muito úteis aos investigadores, apontando linhas de investigação a desenvolver, como, por exemplo: as afinidades entre integralistas e modernistas (p. 178); a presença e valorização de África na obra de Almada Negreiros (p. 207); a história do moralismo em Portugal no século XX (p. 219); a obra de pintoras como Sarah Affonso, Mily Possoz, Ofélia Marques, Maria Keil, Alice Jorge, Clara Menéres, Teresa Magalhães e Luísa Correia Pereira (p. 237); o espólio de Maria Lamas, na Biblioteca Nacional (p. 258); “o inventário das memórias dos colonos, militares e administradores coloniais” (p. 296, nota 57); a sexualidade no Estado Novo (p. 312); a “história do interesse em Portugal pelo romance e pelo conto norte-americano” (p. 369); a comparação entre o retrato do país feito por Vasco Pulido Valente e o de outros cronistas, como Victor Cunha Rego, Artur Portela Filho, Eduardo Prado Coelho, Miguel Esteves Cardoso e outros (p. 413); um “estudo de conjunto” de memórias e diários de escritores portugueses (p. 452), bem como de “memórias de administradores coloniais, militares e missionários” (p. 455). É de um verdadeiro serviço público que aqui se trata, pois, para além de deixar estas pistas de investigação, Diogo Ramada Curto atenta também para o “desleixo a que tem andado sujeito o nosso património literário”, nomeadamente a escrita cronística de António Botto (p. 202), a obra de Luzia Grande (pp. 249-250), a correspondência de Maria da Graça Amado da Cunha (p. 305), o acervo de Alberto da Veiga Simões (p. 333), sem esquecer a “falta de meios” da Biblioteca Nacional, sobretudo ao nível do restauro e da conservação de espécimes literários (p. 569, nota 31).

Um país em bicos de pés. Escritores, artistas e movimentos culturais é, portanto, uma obra que confirma a grande erudição do seu autor, o seu conhecimento profundo de épocas, personalidades e obras, a sua exímia capacidade de análise, bem como a originalidade da sua perspetiva de investigação. Diogo Ramada Curto é um leitor atento e lúcido da atualidade editorial, um intelectual que participa na praça pública, na imprensa portuguesa, com habilidade para seduzir o leitor com o seu estilo fluente e simultaneamente erudito. O leitor ávido de informação optará por ler esta obra de rajada, enquanto o leitor diletante poderá deambular aleatoriamente pelos seus capítulos, ao sabor dos temas, das épocas e das figuras estudadas, na “liberdade de vagabundagem intelectual e de ócio” de que falava José Cutileiro, citado pelo autor (p. 405). Uma coisa é certa: esta é uma obra a que inevitavelmente regressaremos, em busca de informação, de inestimáveis pistas de investigação futura e de referências bibliográficas - e são tantas e tão interessantes as que são dadas ao longo dos capítulos, que é uma pena não haver uma bibliografia final (embora haja um índice remissivo), que seria muito útil como guia de leitura extensiva.

Referência bibliográfica

Curto, D. R. (2023). Um país em bicos de pés. Escritores, artistas e movimentos culturais. Edições 70. [ Links ]

Recebido: 18 de Setembro de 2023; Aceito: 22 de Setembro de 2023

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