SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24André Carvalhal (2014) A Moda Imita a Vida, Estação das Letras e Cores (278 páginas - brochura) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.24  Braga dez. 2013

https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013).1792 

LEITURAS

Michelle Lee (2003), Fashion victim: our love-hate relationship with dressing, shopping and the cost of style, New York: Broadway Books

 

 

Maria Gama*

*Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Portugal.

mgama@ics.uminho.pt

 

 

Michelle Lee, uma jornalista de moda, nova-iorquina, escreveu um livro subordinado ao título: Fashion Victim: Our Love-Hate Relationship with Dressing, Shopping, and the Cost of Style.

Através da sua leitura facilmente chegamos à conclusão que não estamos perante um receituário de como estar in ou estar out em matéria de moda; não é um roteiro de compras sobre lugares secretos, que pouca gente conhece, nem um guia de sugestões sobre o que vestir e não vestir. A autora incide sobre a obsessão feminina pela moda e pelo estilo que sustenta uma indústria milionária à escala global, afirmando que “We’recrazy about fashion… literally. Rational people are driven to near lunacy in their pursuit of style” (2003: X) eque, de uma maneira ou de outra, “We are all slaves to fashion (…)” (2003: XI). Apesar de todos nós conhecermos pessoas que pensam que não são influenciadas pela moda e que não se sentem escravas dela, nempor isso deixam de estar expostas a uma multiplicidade de mensagens que, de uma maneira ou de outra, ditam o que escolhem.

Para contextualizar, Michelle Lee aborda de modo pertinente a nossa relação com a moda, o quanto de uma maneira ou de outra somos “escravos” dela, o comportamento das suas vítimas, a febre das tendências e suas implicações, quer nos consumidores, quer na indústria, o ser ou não ser cool, o estilo, a necessidade dostatus e de poder conferido pelas roupas, o culto da socialite e das celebridades, o chique rápido, o fenómeno das Outlets, o fast-fashion, a descartabilidade e a estandardização da moda, a relação conflituosa de amor-ódioque as vítimas da moda mantêm com as tendências, a relação da moda com a arte e a sua ligação cada vez maior ao mercado onde o dia-a-dia de um designer de moda é cada vez mais medido em função dos lucros quetraz para as marcas para quem trabalha.

Para a autora “By most accepted definitions, a Fashion Victim is someone who follows trends slavishly, a person who is not necessarily captivated by the beauty of a new garment so much as by the mere novelty of it and the social standing it conveys” (2003: XI). Será que a vítima comprará o que gosta? Supomos que não. As revistas que revelam o que está in e out são uma espécie de guia; adoram olhar para os editoriais de moda e ver todas as novidades das passerelles; observam o que a socialite, as pos-stars, as celebridades usam e estão convictas de que a aquisição de determinadas peças dás-lhe acesso à esfera mágica do poder. Podem não ter um corpo que se adeque a uma determinada peça, mas aquilo que vêem nas revistas é o ideal, porque é caro,por que as pessoas que as rodeiam sabem que é caro, acham que lhes dá status e deixa-as seguras. Para umavítima da moda tudo o que está em tendência é para se ter, nada lhe escapa, e o seu guarda-roupa é uma profusão de peças, acessórios e calçado. Têm imensa roupa e muitas das vezes nem chegam a usá-la.

Mais do que consumir em função da funcionalidade dos produtos, consomem em função do queestes representam, tendo o seu significado, quer no âmbito pessoal, quer na esfera das circunstâncias sociais, uma importância decisiva. Assim, uma vítima da moda acaba por ser uma consumidora dostatus que os objetos lhe dá, numa espécie de personificação dos mesmos. Todos nós conhecemos pessoas que no plano das ideias se preocupam com o desenvolvimento sustentável, com a responsabilidade social, mas na altura da aquisição de uma determinada peça não conseguem controlar essa pulsão; não conseguem intuir que se é cúmplice desse processo. Claro, que de certa maneira todos somos cúmplices.

Michelle Lee sintetiza em 10 mandamentos o universo das vítimas da moda.

No I mandamento, Michelle Lee sublinha: “Thou Shalt Pay more to Appear Poor” “(2003: 1). Sabemos que as roupas são sujeitas a uma série de transformações que parecem ser usadas aquando da sua compra, ou seja, nada pode aparentar que a peça é nova. Assim, de um modo sarcástico a autora questiona o seguinte: se a forma como nos vestimos é uma das maneiras de mostrarmos o que somos, por que é que se quer dar a sensação de que não houve qualquer tipo de empenho na altura de decidir o que vestir? (2003).

No II mandamento, a autora salienta: “Thou Shalt Covet Useless Utility” (2003: 4). Sabemos que uma vítima da moda adquire as peças de roupa não em função das suas funcionalidades, nem em função do que precisa, mas tão-somente com uma finalidade, o gozo da aquisição. No entanto, arranja sempre explicações racionais para uma determinada compra, que estão diretamente relacionadas com a necessidade.

No III mandamento, salienta: “Thou Shalt own Minutely Differing Variations of the Same Thing” (2003: 5). Isto é, para uma vítima da moda ter peças sensivelmente iguais que muitas vezes nem chega a usar não é um problema mas uma necessidade. Trata-se de viver uma moda constantemente renovada, sedutora, que lhe possibilita viver constantemente num “universo” porestrear. Interessa salientar que tudo é experimentado na fruição do presente e nesse sentido a vítima da moda “ (… ) is willing to put up with some financial pain to experience some fashion pleasure” (2003: 47). Desconhecendo, claro, que o estilo não se adquire numa boutique e a elegância muito menos.

Relativamente ao fascínio que as marcas exercem, Michelle Lee afirma no IV mandamento: “Thou Shalt Believe Submissively in the Fashion Labe’s Reach” (2003: 6). As marcas têm uma dimensão estabilizadora; nelas depositamos tudo; há uma osmose entre nós e elas; o universo sonhado de tudo o que nos falta na relação com o outro. Na nossa fantasia pela esfera do consumo, as marcas adquirem vida; são detentoras de uma personalidade e ‘destilam’ sex-appeal. O que encanta não são assingularidades das marcas, mas o que elas significam; o “capital” de felicidade que acrescentam à nossa existência em permanente devir. Não oferecemos qualquer tipo de resistência, deixamo-nos influenciar pelas marcas; deixamo-nos seduzir por um sem número de promessas. As marcas simbolizam segurança, estabilidade, caução e espírito de pertença. A marca é, acima de tudo, umaconvicção. Tudo assenta na intangibilidade das marcas. A intangibilidade materializada na fantasia, na emoção, no sonho, em suma, no imaginário e no imaterial, ‘ganha terreno’ perante os aspetos tangíveis dos produtos.

No V mandamento, Michelle Lee acentua: “Thou Shalt Require Validation of Thine ownStylishness” (2003: 8). Isto é, segundo a autora, apesar de gostarmos de pensar que a maneira como nosvestimos é uma extensão do que somos, não deixa de ser importante registar, na linha de Goffman, que o eu é essencialmente social. É perante os outros, com base nas respostas dos outros em relação a simesmo, que o indivíduo obtém uma ideia de si próprio. Sabemos que na interação social, o indivíduo dispõe de um conjunto de máscaras que ele utiliza em função do tipo de plateia que se lhe apresenta numa determinada situação. Temos, ainda, de considerar que, no processo de autorrepresentação, a representação da posse de uma determinada caraterística é tão capital como a posse efetiva dessa mesma caraterística.

No VI mandamento frisa: “Thou Shalt Dress Vicariously through Thy Children and Pets” (2003:10). Na linha de Michelle Lee, as vítimas da moda não se contentam em vestir o “último grito”, mas simultaneamente empenham-se em compartilhar esta paixão com as suas crianças e os seus animais de estimação. É um ritual que as acompanha. Sabemos que as marcas de luxo, por exemplo, apostam cada vez mais em linhas infantis, e em acessórios para os animais. Se, hoje em dia, não se dispensa um personal trainer, como não percebermos que para uma vítima da moda o personal dog é uma necessidade indispensável para os seus animais de estimação?

No VII mandamento, destaca: “Thou Shalt Feign Athleticism” (2003: 11). Para a autora, são feitos grandes investimentos económicos no calçado desportivo, neste caso concreto os ténis que são cada vez mais polivalentes, por exemplo, quanto à eficácia e ao conforto. Mas uma vítima da moda, quando os adquire, “these supersneakers he is delighted over is purchase and can’t wait to wear them when he meets his buddies for a drink, no doubt at the local sports bar” (2003: 12).

No VIII mandamento, acentua: “Thou Shalt Be a Walking Billboard” (2003: 12). Em consonância com a autora, sabemos que muitas vezes não é necessário ostentar determinados logos uma vez que ogénero/estilo de roupa evidencia uma determinada marca concreta, denuncia o estilo de roupa de quem a veste.

No IX mandamento, a autora sublinha: “Deves Observar como a Socialite e as Celebridades se Vestem” (2003). De Paris a Milão, todas as Casas de Costura aspiram vesti-las. As capas de revistas de moda vão-lhes concedendo cada vez mais espaço, e por isso se tornam poderosas prescritoras em matéria de vestir. Podem ter mais gosto ou menos gosto em vestir-se; podem ter mais ou menos estilo, mas desencadeiam na vítima da moda um mimetismo. Na linha da autora, as vítimas da moda consomem de modo enfeitiçado as fotografias das celebridades e das socialite, “(…) knowing little about who these people are except that they’re in a magazine, they’re rich, and they’re incredibly well dressed” (2003: 15). Para as celebridades, isto justifica que tenham acesso a uma série de mordomiasporque é uma boa maneira de divulgarem as marcas mas, acima de tudo, ganharem espaço nos media, e ao mesmo tempo que conhecemos os efeitos do mimetismo, um séquito de legionários as imitarão.

No X mandamento, Michelle Lee acentua: Thou Shalt Want without Seeing” (2003: 16). Venderroupa não requer, tal como no passado, mostrar as mesmas. O branding trabalha os produtos no sentido deos transformarem em conceitos, em estilos de vida, em experiências e todas as campanhas publicitárias,por exemplo, são orientadas nesse sentido. A autora centra-se de um modo sucinto sobre o ciclo devida das tendências e afirma que “Vivemos numa era do Chique rápido” (2003: 33). Isto é,vivemos numa aceleração em que as tendências são substituídas por outras a um ritmo estonteante. E enquanto consumidores, parecemos o coelho da Alice do País das Maravilhas, sempre a correr, numa tentativa de chegarmos a uma etapa que não tem fim. A autora salienta que “O chique rápido é ocrack da moda: barato, rápido e viciante” (2003: 34). Isto é, após consumir, desencadeiam-se estados de alma ligados ao bem-estar, ao entusiasmo e à autoestima.

Mas o apetite das “The Fashion Victim’s (…) for new trends is not the only engine that keeps the wheels of Speed Chic turning” (2003: 39). Isto é, para que os mercados ligados à moda continuem a prosperar é indispensável a mudança sistemática das tendências. O consumo transformou-se numa espécie de destino coletivo em que nada é fabricado para durar e a obsolescência dos produtos garanteàs estruturas económicas a sua sobrevivência. Para Michelle Lee, “Without trends, fashion would never have grown to be a multitrilion-dollar industry” (2003: 36).

A autora aborda ainda o quanto a moda é cada vez mais marcada pela descartabilidade. Em analogia com o fast-food, afirma que esta é “fast, disposable, easy, unintimidating, entertaining, and largely homogeneus” (2003: 63). Sabemos como o fast fashion revolucionou o mercado da moda, isto é, como reeducou o consumidor a fruir cada vez mais o novo; sabemos como as cadeias low cost conquistam, cada vez mais, novos nichos do mercado e isto tem implicações substanciais, quer para os consumidores, quer para o mercado, isto é, “ When more consumers begin to buy only the same handful os mass-market brands, the smaller, individually owned labels that sell more original clothes will eventually fade away from lack of business” (2003: 85).

Michelle Lee foca ainda um aspeto essencial que se joga hoje no mundo da moda. Se no passadoa moda incidia fundamentalmente sobre as roupas, se os desfiles não estavam sujeitos ao tempomediático em que vivemos, se eram confinados aos clientes, às editores das revistas de moda e a jornalistas e estavam longe do lazer, atualmente, tudo se transformou “the worlds of fashion, media,and entertainment have collided, creating a mutually beneficial Big Bang of art, commerce, and theatrics, and saturating our daily lives with images of (and stealthy advertisements for) fashion” (2003: 95).

Outro aspeto importante que a autora salienta é a relação do corpo e a indústria da moda. Cada vez mais impera o culto do corpo belo e ao folhearmos uma publicação de moda o que se vê é omesmo corpo da moda: esbelto, modelado, trabalhado, em suma, homogeneizado. E o corpo da moda, nesse tipo de publicações, é sempre um corpo sublime. Daí a autora afirmar que “We appreciate the idea of magazines that use larger models. We’re glad that they exist. We like the idea of magazines that show more ‘realistic’ sizes. The only problem is that we don’t buy them, and then they go out ofbusiness” (2003: 144).

No entanto, se a moda “(…) makes you self-conscious about your body, it’s also right there topick up the pieces (…) it creates the problem and the solution” (2003: 166). Isto significa que o mercado se ocupa em mostrar as debilidades de um corpo e simultaneamente em desenvolver um sem número de produtos de modo a colmatar as insuficiências de um corpo imperfeito rumo à ilusão de um corpo perfeito. Esta obliquidade que perspetiva o corpo como um corpo a fazer-se, penitencia-se pelas suas restrições, pelos seus limites. Ou seja, nunca um corpo é deveras perfeito ou suficientemente belo. Está em causa punir um corpo imperfeito que não corresponde ao arquétipo de um corpo ideal. Se, porum lado, nos vão dizendo que o nosso corpo não está em consonância com aquilo que devia estar, por outro lado, surgem discursos de solicitude para com o mesmo: cuide de si, e talvez se aproxime desse seres sublimes que observa nas ruas e nas revistas de moda. Tudo isto mostra-nos como a moda tem um discurso paradoxal e nebuloso. Para a autora, “The Fashion Victim’s intellect tells her she’s being silly; her emotions tell her she needs to lose weight. She puts all her hope and energy into losing weight, yet harbors an intense hatred toward the tyranny of thinness” (2003:133). Michelle Lee sublinha um aspeto importante e cada vez mais atual: “For better or worse, fashion, if we let it, wields a massive power to shape our perceptions of our bodies” (2003: 137).

Concluímos com uma citação da autora: “Our modern-day hunger for more clothes and the latest trends, together with the premium we put on looking good, has undermined our self-esteem, our health, the environment, our finances, our morals – but we continue to be more ravenous than ever” (2003: XV). Mas, independentemente das reflexões que façamos sobre a moda, os seus aspetos bons e menos bons, não deixa de ser curioso registar, em sintonia com autora, que a moda “(…) will always succeed in convincing us to love it more” (2003: 285).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons