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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.25  Braga jun. 2014

https://doi.org/10.17231/comsoc.25(2014).1871 

NAS FRONTEIRAS DO JORNALISMO

A (não) regulação da blogosfera: a ética da discussão online

 

The (non)regulation of the blogosphere: the ethics of online debate

 

 

Elsa Costa e Silva*

*Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Portugal.

elsa.silva@ics.uminho

 

 

RESUMO

As novas tecnologias permitiram inovadoras potencialidades de comunicação, mas também colocaram novos desafios no que diz respeito a questões de natureza ética, nomeadamente em plataformas como os blogues. Partindo das reflexões e experiências sobre esta questão, o presente artigo procura mapear e analisar os questionamentos de natureza ética que atravessaram a blogosfera portuguesa, sempre prestando particular atenção à blogosfera política, de forma a refletir sobre a possibilidade e a oportunidade de um eventual código de ética dos bloggers.

Palavras-chave: Código de conduta; valores; blogues políticos; liberdade de expressão.

 

ABSTRACT

New technologies have enabled innovative possibilities of communication, but have also imposed new upon matters of ethics, particularly in regards to platforms such as blogs. This article builds upon the reflections and experiences on this issue, in an attempt to map and analyse the ethical questions underlying the Portuguese blogosphere. In order to reflect on the possibility and opportunity to create a code of ethics for bloggers, attention is permanently paid to the political blogosphere.

Keywords: Code of conduct; values; political blogs; freedom of expression.

 

 

1. Introdução

O debate em torno da ética na comunicação, um tema talvez tão velho quanto as primeiras reflexões sobre a capacidade humana para interagir com os outros, continua extremamente dinâmico nas atuais sociedades, alimentado pelas inovadoras potencialidades tecnológicas que trazem novos desafios a este interminável questionamento. A ética é, ela própria, uma construção cujos pilares oscilam entre diferentes perspetivas (Fidalgo, 2007), que variam entre um maior primado da liberdade do "eu" e da primazia da responsabilidade coletiva, entre a justificação pelas normas (do que é correto fazer-se) ou pelas finalidades (do bem que se deve atingir).

A ética supõe valores e regras, uma baliza para o comportamento humano e formas de procedimento. Não é, nunca, um processo acabado, mas o resultado de uma permanente tensão e negociações entre os membros interessados da comunidade (Christofoletti, 2011). Baseadas nas convicções, as normas éticas não deixam de responder ao questionamento do que é intelectualmente defensável e procuram propor instrumentos de análise de situações concretas. Ou seja, a ética pressupõe um raciocínio crítico, operativo e racional, não apenas a assunção de algumas considerações sobre o certo/ errado.

Um pouco por toda a parte, organizações e profissões tendem a adotar as normas éticas sob a forma de um código escrito, aceite por todos, e um documento a partir do qual se podem crítica e racionalmente avaliar condutas. No domínio da comunicação, as empresas jornalísticas, divididas entre o negócio e o serviço, têm responsabilidades éticas acrescidas perante a sociedade (Albarran, 2007; Pérez-Latre, 2007). Também os jornalistas adotaram procedimentos deontológicos que se revelaram fundamentais na afirmação da profissão (Fidalgo, 2008; Traquina, 2007). O compromisso com a verdade, o rigor e a objetividade são parte integrante da profissão do jornalista, assim como é crescente a assunção de que esse compromisso deve resultar em mecanismos de prestação de contas (McQuail, 2005), que permitam aos cidadãos escrutinar o que em muito contribui para a leitura que fazem do mundo e do que se passa em seu redor.

Na maior parte dos casos, esses procedimentos assumiram uma formulação específica, por todos reconhecível como um normativo e preceituário escrito, de iniciativa própria da comunidade (a chamada autorregulação) ou imposta por organismos externos, como Estados (a heterorregulação). Os códigos de ética podem ser considerados uma espécie de contrato, cujas partes são todos os membros da comunidade a que ele diz respeito, onde estão identificadas as normas de comportamento (a ter e não ter). Uma das fragilidades da maior parte dos códigos (resultantes de iniciativas de autorregulação) é que não têm grande poder coercivo para o seu cumprimento nem penalidades para os infratores: "o pior castigo fica no âmbito moral, na reprovação social à conduta de quem atravessa a linha do permitido" (Christofoletti, 2011: 27). Mas, apesar disso, e ainda que em muitos casos apenas um ideal, a ética e a sua ‘transcrição' para contextos específicos, em forma de códigos, pode ter como vantagem o aprofundamento do conhecimento sobre determinado campo e o estabelecimento de metas e de balizas sobre o que é aceitável. Mas deverá a ética na comunicação ser obrigatoriamente transcrita num número específico de regras, assumir a formulação de código de forma a vincular publicamente os membros da comunidade em causa?

Esta questão é tanto mais pertinente quanto a tecnologia fragmentou os espaços de comunicação, criando redes de interação social com uma grande penetração, espartilhando regras e hierarquias conhecidas, que colocam com maior acuidade as problemáticas da ética nesta nova ecologia mediática. Uma das plataformas sobre a qual a reflexão se impõe diz respeito aos blogues, espaços online de comunicação atualizados frequentemente com ordem cronológica inversa e onde uma miríade de assuntos é debatida. Este artigo procura mapear e analisar os questionamentos de natureza ética que atravessaram a blogosfera portuguesa, sempre prestando particular atenção à blogosfera política, de forma a refletir sobre a possibilidade e a oportunidade de um eventual código de ética dos bloggers.

2. Blogues – a importância dos meios

Os blogues apareceram durante a década de 90 do século XX e tornaram-se particularmente populares a partir do momento em que tecnologias – como blogger.com - disponibilizaram ferramentas que facilitaram a criação e manutenção destas páginas online. A funcionalidade destas páginas é tão diversa que nenhuma tipologia de blogues poderá provavelmente abranger a infinidade de experiências que tomam lugar na net. Há blogues de jardinagem, culinária, puericultura. Há blogues usados como diários e muitos encontraram particular audiência quando as autoras relataram as suas experiências enquanto grávidas e jovens mães. Há blogues sobre jogos, fotografia, moda. Há ainda uma categoria de blogue, a que se atribui a etiqueta de blogues políticos, mas onde, novamente, estamos a falar de um universo de diferentes configurações: blogues de candidatos e de campanhas eleitorais, blogues de eleitos políticos hospedados em sites institucionais (como parlamentos), blogues de jornalistas políticos hospedados em sites de media mainstream, blogues de movimentos cívicos ou blogues de cidadãos interessados no debate político.

Um recente relatório da Technorati[1], um motor de busca de blogues que contabiliza e monitoriza a blogosfera, dá conta que de os blogues estão bem cotados pelos consumidores no que diz respeito à confiança, popularidade e influência. Aliás, os blogues estão no top-5 das fontes mais credíveis da internet, sendo mais importantes que o Twitter para formar opinião e mais importantes que o Facebook quando se trata de decisões de compra. Constantemente, vemos razões para justificar a importância atribuída à blogosfera, quer seja pelas apreensões que gera, como pelas oportunidades que proporciona. Um dos maiores problemas diz respeito ao anonimato que estas redes permitem, sendo que sob a oclusão da identidade germinam algumas estratégias difamatórias que podem decorrer sem prejuízo para os autores. Algumas das polémicas iniciais com blogues, em Portugal, têm a ver com acusações anónimas de plágio (no caso, o blogue Freedom to Copy, que acusava o escritor Miguel Sousa Tavares de ter copiado partes do seu livro Equador) ou de campanhas de desinformação (como foi o blogue Muito Mentiroso, que acusava elementos do Ministério Público e da Polícia Judiciária de terem orquestrado acusações contra inocentes no processo Casa Pia). Em outras regiões do mundo, os blogues são também notícia em casos de manipulação e propaganda (Público, 18/03/2011)[2].

Apesar destes desvios, os blogues têm sido sobretudo referidos como espaços de liberdade onde a opinião e a informação podem circular livremente. Em países onde a liberdade de expressão está fortemente condicionada, como o Irão, os blogues têm sido descritos como florescentes, ativos e muito influentes no espaço público. A propósito da recente "Primavera Árabe", os jornais apresentaram vários relatos sobre a forma como os blogues ajudaram a construir a revolta, num processo de oposição que tem já alguns anos (New York Times, 12/10/2011[3]; Público, 14/02/2011[4]). Os conteúdos dos blogues são mesmo, em alguns casos, pretextos noticiosos (Sol, 11/10/2011[5]; Público, 27/02/2011[6]; 31/12/2009[7]).

Várias linhas de investigação, um pouco por todo o mundo, privilegiaram sobretudo as potencialidades dos blogues em termos de constituição de uma esfera pública para o debate político e discussão de alternativas sobre o governo das sociedades (ver, por exemplo, Pole, 2010, ou Tremayne, 2007). Em 2004, os blogues tiveram um papel de relevo nas eleições presidenciais norte-americanas, num crescendo de importância no espaço público que se vinha assinalando desde o ataque às Torres Gémeas, em setembro de 2001, sobretudo com os chamados "warblogs" (blogues que refletiam sobretudo sobre a invasão do Iraque). Políticos e cidadãos perceberam a importância desta nova ferramenta e enquanto muitos eleitores procuravam nos blogues discussão e informação sobre política, os candidatos começaram também a usar a plataforma, criando blogues pessoais.

A comunicação política tradicional fez o seu caminho na blogosfera, usando as novas potencialidades tecnológicas para aumentar a exposição dos potenciais eleitores à exposição das mensagens de campanha e propaganda. Mas um novo fenómeno de comunicação política, horizontal, entre pares, fora das barreiras institucionalizadas das organizações partidárias e governamentais, começou igualmente a ganhar terreno na internet. Marcada pela participação de cidadãos, esta nova forma de comunicação ficou caracterizada pela presença e interação de vozes que, sem estarem ao serviço de partidos ou outras formas de organização política, discutiam temas de interesse público, apresentavam alternativas, escrutinavam as outras vozes do espaço público (como políticos e media tradicionais). A apresentação de novas propostas, debatidas por outros bloggers, e o diálogo encetado entre eles mostraram assim a possibilidade de se constituir um espaço onde a deliberação política poderia ocorrer, de certa forma constituindo assim uma espécie de esfera pública.

3. Blogues – um código de ética?

Pela presença constante no espaço público, pelos níveis de leitura que apresentam e pela influência que demonstram ter sobre outros agentes estruturantes do espaço público (como comentadores políticos e media mainstream), os blogues são um fenómeno incontornável do novo espaço digital. E as questões de ética colocam-se aqui com relevância particular, já que podem atingir vastas audiências. Que obrigações têm os bloggers para com os leitores, para com as pessoas de quem falam, para a sociedade em geral? A resposta não é consensual e diferentes perspetivas têm surgido nas discussões sobre a possibilidade regular eticamente a blogosfera, variando entre o princípio da concordância e leituras sobre eventuais tentativas de controlar e limitar a liberdade de expressão. De uma maneira geral, "os bloggers mostram-se resistentes a regras e códigos estabelecidos por outros" (Kuhn, 2007: 34). As primeiras propostas de adoção de códigos de conduta surgiram pouco depois da popularização do fenómeno pela pena de Rebeca Blood[8], uma early blogger, em 2002, e também pelo fundador do site cyberjournalist.net, Jonathan Dube, em 2003.[9] As propostas foram alvo de muitos comentários e críticas, mas nenhuma deixou de ser uma mera sugestão.

3.1. Um possível cenário de regulação

O debate sobre a regulação da blogosfera está obviamente relacionada de forma íntima com a regulação da própria internet, uma discussão ela própria inacabada. Desde a divulgação da tecnologia, "uma coligação formada por uma comunidade de utilizadores ativa, libertários civis e tribunais norte-americanos converteu-se nos guardiões da autonomia da Internet, de forma que uma grande parte da rede seguiu sendo um vasto espaço social de experimentação, sociabilidade e expressão cultural independente" (Castells, 2009: 151). Foi dessa experimentação que nasceu a blogosfera, herdeira do espírito de liberdade da rede e, por isso também, defensora dos direitos de liberdade de expressão. Assim, escreve Silva (2005:8):

"Historicamente assistimos a uma enorme relutância em regular o mundo virtual, um tipo de «Internet–fobia» assacada à melhor doutrina, tendo-se a rede ab initio caracterizado por um espaço de anarquia, insubmisso à soberania de um governo autónomo ou de qualquer órgão centralizado passível de impor comportamentos".

É claro que a Internet, sendo uma ferramenta promissora em termos de expressão de liberdades fundamentais e promoção da cidadania e democracia, tem também problemas de foro judicial (e não apenas de conduta), nomeadamente no que diz respeito à presença de conteúdos ofensivos, pornografia infantil, terrorismo, criminalidade económica, segurança e privacidade dos cidadãos. Por isso se justifica a existência de esforços para encontrar uma governação global para a Internet, nomeadamente a nível das Nações Unidas, que datam já de meados dos anos 90 e envolveram diversos organismos internacionais, assim como instituições norte-americanas. Contudo, poucos progressos se podem assinalar no que diz respeito ao alcance de um acordo internacional sobre a matéria.

A importância atribuída à possibilidade de uma governação da Internet é sentida ainda no envolvimento de instituições internacionais, como a ONU ou a Comissão Europeia. A preocupação, contudo, tem incidido sobretudo sobre matérias que revelam a importância da internet em termos económicos ou de segurança interna dos países. A ONU suporta atualmente um grupo de trabalho com vista a melhorar o Internet Governance Fórum, um espaço de reflexão e de propostas sobre esta matéria, que promove reuniões anuais com parceiros, grupos de interesse e estados de forma a promover iniciativas de regulação. Também a Comissão Europeia tem assumido a apologia de uma governação da Internet, defendendo um modelo de governação aberto, independente e assente na responsabilização (Comissão Europeia, 2009). Problemas como a soberania dos diferentes estados, mas também a inclusão dos países menos desenvolvidos no processo da sociedade de informação ou os direitos de autor, estão no cerne das preocupações de organizações como a ONU (ONU, 2005).

Ainda que estas organizações internacionais não tenham focado os seus esforços na natureza ética dos conteúdos e das interações que têm lugar na internet, a verdade é que estas questões demonstram a dificuldade que se tem sentido quando se trata de regular a internet, quer seja em assuntos económicos ou de crime, quer seja para adotação de códigos de conduta sobre o que se deve fazer. E a blogosfera nascida sob o espectro da liberdade de expressão e livre, na sua grande maioria, de interesses empresariais, não tem escapado à discussão, mas ainda sem alcançar qualquer consenso. É que ela própria é também o espaço de expressão de problemas relacionados com a possibilidade de difamação e publicação de conteúdos ofensivos, ou seja, com matérias de natureza ética.

Algumas das primeiras iniciativas de elaboração de códigos de ética para blogues resultaram sobretudo da influência de reflexões éticas sobre a forma de comunicação pública mais disseminada, ou seja, do jornalismo. Este foi, por exemplo, o ponto de partida de Jonathan Dube, que se inspirou no código ético da norte-americana Sociedade de Jornalistas Profissionais. Em 2007, a OCDE publicou um relatório onde também refletia sobre a problemática da regulação a nível da blogosfera, mas colocando-se também sobretudo no domínio do jornalismo cidadão, assinalando problemas como a informação incorreta, não verificada, difamatória ou mesmo ilegal, defendendo este documento algum controlo, nomeadamente "soluções tecnológicas, legais e autorregulatórias podem ajudar a limitar o acesso a estes conteúdos e reduzir os impactos negativos" (OECD, 2007: 55). O problema é que estas propostas assumem valores do jornalismo profissional que, na blogosfera (exceto para blogues albergados em sites de jornais e escritos pelos seus próprios jornalistas, como acontece, por exemplo, com o Washington Post), podem não fazer sentido, nomeadamente o equilíbrio e a objetividade ou neutralidade. A vantagem do discurso dos blogues é, em muitos casos, exatamente o discurso implicado, partidário (no sentido em que toma partes), e não neutral (Woodly, 2008).

Em 2007, Martin Kuhn, baseado em conceções de moral filosófica, avançou com uma proposta que valorizava a dimensão interativa e humana dos blogues. Criticando a proposta de Blood e Dube por considerar que as soluções se aproximavam muito dos códigos de jornalistas, já que favorecem sobretudo a credibilidade, Kuhn (2007: 21) propõe uma nova abordagem que privilegia a natureza interativa dos blogues, ou seja um código "normativamente baseado e dialogicamente derivado". Verdade, identidade (contra o anonimato), prestação de contas e caráter inclusivo são alguns dos valores propostos por Kuhn (2007) no seu código de ética, que preceitua normas como postar regularmente, visitar e comentar em outros blogues, promover a liberdade de expressão, ser verdadeiro, e promover comunidade, construindo relações online. Outra proposta surgiu, em 2007, de Tim O'Reilly[10], uma personalidade conceituada a nível da web 2.0 (responsável inclusive por ter cunhado esse termo para se referir às novas potencialidades interativas da internet), com direito a uma entrada na Wikipédia – cujo fundador, Jimmy Wales, se associou à elaboração do código. O propósito destes dois ativistas digitais foi aumentar o civismo na blogosfera, que viram ameaçado no caso de uma blogger sobre tecnologia que recebeu ameaças e mensagens intimidatórias.

Pelo mundo fora, as experiências de adoção de códigos no domínio da blogosfera são escassas. No Brasil, por exemplo, a Associação Brasileira de Blogs de Viagem adotou um código de ética, que visa sobretudo assegurar transparência (relativamente, por exemplo, a números de audiência, patrocínios e textos publicitários) e o respeito pelos direitos de autor – uma iniciativa enquadrada mais pelo contexto empresarial de muitos desses blogues. No Nepal, um código de ética foi assumido e assinado pelos principais bloggers do país[11], princípios inspirados em larga escala no mundo jornalístico. Aliás, a iniciativa resultou da colaboração entre uma rede de bloggers e a Associação de Jornalistas Online do Nepal (membro da federação nepalesa de jornalistas), tendo a ideia inicial partido de um jornalista sénior, conselheiro do então presidente daquele país.

Estas iniciativas relatadas resultaram, como se viu, da iniciativa de bloggers e membros envolvidos na comunidade. Resultam, portanto, da assunção por parte dos interessados da necessidade de normalizar a conduta online, por forma a assegurar o cumprimento de certos critérios éticos, em estratégias de autorregulação. Mas iniciativas de heterorregulação também afloram o domínio da blogosfera. Duas tentativas, por enquanto, falhadas, mostrando que se a autorregulação merece grande contestação no seio dos bloggers, muito maior é a discordância quando a iniciativa vem de fora.

A necessidade de alguma forma de regulação ou, pelo menos, de registo foi levantada pelo Parlamento Europeu, que defendeu a oportunidade de clarificar o estatuto dos blogues. A iniciativa foi recebida de forma muito negativa pela comunidade de bloggers[12]. Apesar de beneficiarem de algum reconhecimento institucional (nomeadamente pelos partidos que os credenciam para os seus congressos e convenções e pelo governo federal dos Estados Unidos que aprovou uma lei, a "Free Flow of Information Act", que garante aos bloggers a mesma proteção que aos jornalistas no que diz respeito à confidencialidade das fontes), os bloggers têm recusado formalizar a sua existência e a regulação externa, considerando-a mesmo uma tentativa de censura. Quando a imprensa sueca erroneamente relatou a preocupação do Parlamento Europeu como um plano para registar todos os blogues, políticos de todos os quadrantes condenaram a iniciativa, considerando-a um novo exemplo de Big Brother. A deputada europeia Marianne Mikko esclareceu não pretender saber a identidade exata dos blogues, mas considerou serem necessárias "algumas credenciais, uma marca de qualidade", comentários de novo mal recebidos pela blogosfera (EUObserver.Com, 27/06/2008)[13].

Igual contestação mereceu uma iniciativa do governo de Singapura que, no seguimento das eleições gerais de 2011, propôs um código de conduta para a internet, de forma a combater problemas como anonimato, falsos rumores e mesmo extremismo. Para os bloggers, a iniciativa resultaria numa limitação da liberdade de expressão e foi rejeitada. Em 2013, o presidente do Conselho de Literacia Mediática deixou cair a intenção de regular o comportamento na internet, garantindo que o foco da atuação governamental deveria situar-se na educação pública[14].

Apesar da adoção de códigos de ética (por auto ou heterorregulação) não se ter generalizado pelas diferentes comunidades de bloggers (ou para cada espaço geográfico ou temático), estas preocupações não estão, de todo, ausentes da prática diária dos milhões de autores que alimentam a blogosfera. Um estudo de Cenite et al. (2009) demonstrou que os bloggers valorizam a ética e aderem a práticas como dizer a verdade, prestar contas e identificar a fonte da informação, sendo que a maioria deles seria a favor de um código de conduta. Os autores assinalam, contudo, que seria "irrealista esperar que os bloggers concordem em muitos aspetos ou que estejam obrigados por um qualquer código" (2009: 591). A razão estará na diversidade da blogosfera, que dispersa os seus membros e dilui qualquer tentativa de coesão. Por outro lado, a verdade é que natureza interativa da blogosfera permite que qualquer comportamento menos ético seja imediatamente denunciado por leitores ou outros bloggers.

3.2. Casos na blogosfera portuguesa

Preocupações de natureza ética atravessaram desde cedo a blogosfera portuguesa. Logo nos primeiros blogues, práticas difamatórias levantaram questões como a credibilidade atribuída a blogues anónimos e a forma de outros blogues lidarem com eles (Fonseca, 2007). Muitas vezes, os blogues anónimos apresentam acusações e insinuações, onde faltam provas, e nos quais os processos de identificação dos autores nem sempre são fáceis – o que pode incentivar estas práticas menos éticas. É o que demonstra o caso do blogue ‘Chicken Charles – o anti-herói', por cujos conteúdos se sentiu ofendido o presidente da Câmara da Covilhã, Carlos Pinto. Apesar de a Polícia Judiciária ter encontrado um rastro através do IP do endereço de correio eletrónico associado ao blogue, o tribunal absolveu por falta de provas o arguido, dono do computador em causa, mas que alegava uso indevido do mesmo por terceiros (Kaminhos, 28/02/2008)[15].

Em 2008, um blogue português foi notícia na blogosfera de vários países ocidentais: uma decisão judicial obrigou ao seu encerramento. O caso envolveu o Póvoa Online, um blogue anónimo sobre a política local da Póvoa de Varzim, que a Google (plataforma que albergava o blogue) fechou por uma ordem do tribunal. Na sequência de uma queixa por difamação interposta ainda pelo presidente da Câmara da Póvoa de Varzim, Macedo Vieira, dois indivíduos foram mais tarde identificados como autores (através da divulgação dos IP associados ao blogue). É claro que, fechado o blogue, logo surgiu outro pelos mesmos autores com ampla cobertura mediática, o Póvoa Offline, o que demonstra, por um lado, as dificuldades da Justiça em lidar com este novo universo e, por outro, que as políticas de limitação de dano neste meio são normalmente infrutíferas: um assunto que era local passou a nacional e mesmo mundial, amplificando assim de uma forma quase exponencial o que o presidente da Câmara em causa tentou calar. Assim, "as soluções tradicionais são de difícil aplicação para a responsabilização por actos ilícitos cometidos na Internet, nomeadamente para perseguir conteúdos ilícitos publicados em blogues" (Silva, 2005: 20), porque a identificação de autores anónimos não é fácil, sobretudo se usarem computadores de utilização coletiva. Ou seja, sendo de facto difícil à justiça, com os meios atuais de que dispõe, fazer face às novas potencialidades tecnológicas, a adoção de comportamentos éticos torna-se ainda mais relevante.

A decisão judicial de encerrar o blogue, que fez jurisprudência em Portugal, foi amplamente discutida na blogosfera, com as opiniões a dividirem-se entre os que consideraram este caso entre um ataque à liberdade de expressão e uma censura e os que lembraram, como Vital Moreira do blogue Causa Nossa, a responsabilidade associada à liberdade e o facto de a difamação ser crime[16]. Este caso alimentou a discussão sobre a eventual obrigatoriedade de a blogosfera responder a princípios de natureza ética, tal como a demonstração de provas em caso de acusações a terceiros e ponderação na linguagem. Há bloggers que assumiram ser necessária a adoção de um certo padrão de comportamento ético e de uma certa autorregulação. O blogger e jornalista Paulo Querido, por exemplo, que acompanha de perto este novo universo, defendeu a necessidade de se estabelecer um estatuto para os autores: "Queiram ou não os bloggers, e a maioria afirma claramente aos gritos que não quer, a clarificação desse estatuto é inevitável. (…) Vem com a responsabilidade crescente que os blogues, ou alguns deles pelo menos, projectam na esfera comunicacional" (Expresso, 30/09/2008)[17]. Um estatuto que seria baseado na autorregulação e na adesão livre, de forma a separar e classificar blogues. Nenhuma iniciativa, contudo, chegou a avançar.

Outra questão "regulatória" relacionada com as preocupações éticas que também suscitou algum debate sobre o papel dos blogues e de quem escreve neles é a de saber se o blogger é ou não jornalista. E sendo, se estará obrigado a seguir a ética e a deontologia profissional. As posições sobre esta matéria nem sempre foram claras e demonstram que o entendimento não é linear, com os mesmos atores a mostrarem, em momentos diferentes, perspetivas distintas. O primeiro episódio ocorreu, em 2008, com o jornalista Eugénio Queirós[18] que, na sequência de uma opinião emitida num blogue pessoal, "Bola na Área", recebeu uma comunicação do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD do SJ). Essa carta manifestava algum desconhecimento sobre o mundo dos blogues (falava numa "queixa relativa ao comentário que assinou no blogue Bola na Área, a cujo conselho de administração também pertence") e perguntava ao jornalista se se considerava "desobrigado de cumprir os princípios éticos e deontológicos e a letra da lei quando emite opiniões editadas".

Eugénio Queirós respondeu que não acreditava ter desrespeitado o código na sua opinião e que "para se suscitar a discussão por vezes é preciso ousar um pouco e a blogosfera é um espaço que permite outras liberdades". A justificação não acolheu o agrado do CD do SJ, que considerou a atitude de Eugénio Queirós merecedora de reparo e eticamente reprovável, concluindo que o "jornalista deve apresentar desculpas aos ofendidos"[19]. Ao que foi possível apurar, este foi o único caso envolvendo jornalistas e blogosfera, pelo que a falta de dimensão do caso não permitiu que se iniciasse uma discussão alargada sobre estes factos. Contudo, mais tarde, já em 2013, o próprio CD do SJ reconheceu não dispor de "competência para se pronunciar sobre a natureza e conteúdo dos blogues", mas considerou que "alguns deles são meios de expressão de jornalistas", alerta para "a necessidade de evidenciarem o respeito pelos direitos e deveres do jornalismo, a que estão vinculados", deixando como nota final: "E lamenta os comportamentos indignos que alguns aí exibem"[20].

Por outro lado, o próprio SJ considera que redes sociais e blogues pessoais não podem ser objeto de regulamentação empresarial, o que deixa algumas dúvidas sobre a obrigatoriedade de aí cumprirem igualmente regras deontológicas profissionais. A propósito de uma nota de serviço distribuída em novembro de 2009 pelo diretor de informação da RTP, com um conjunto de "recomendações de bom senso, que os jornalistas devem observar" nas redes sociais (referindo-se aos profissionais da RTP com contas pessoais em serviços de blogues, no Twiter, Facebook, etc., e não apenas às contas associadas a programas do operador), o SJ rejeitou claramente o que considerou ser uma ingerência. "Aos directores de informação cabe definir, dentro dos limites da Lei e da deontologia profissional, a orientação editorial dos serviços informativos que dirigem e mesmo das contas de redes sociais tituladas pelos órgãos de informação nas quais os jornalistas aceitem colaborar, mas a sua autoridade não se estende às iniciativas pessoais dos jornalistas nem à sua vida privada", referiu a nota do organismo.[21] Estas posições, que deixam margem para interpretações dúbias, não permitem com clareza esclarecer se um qualquer jornalista deve cumprir as regras deontológicas da profissão quando escreve num blogue pessoal: o CD parece achar que esse cumprimento é obrigatório, o SJ parece entender que esse é o domínio privado do profissional.

Outra área da blogosfera onde as matérias de natureza ética têm igualmente particular relevância é na política. Os blogues políticos são considerados um caso particular na blogosfera e responsáveis pela divulgação do fenómeno, recebendo uma maior atenção por parte dos media mainstream (Silva, 2009; Tremayne, 2007). E problemas neste campo não faltam. No que diz respeito a estratégias menos transparentes em campanhas políticas, os blogues também têm sido envolvidos em acusações de instrumentalização da opinião pública. O blogue Simplex foi, por exemplo, acusado de ser uma criação governamental (e pago com fundos do erário público) para apoiar a recandidatura de José Sócrates a primeiro-ministro em 2009, obrigando os responsáveis do blogue a justificar-se (Público, 19/02/2010)[22]. Mais tarde, foi o blogue Câmara Corporativa, que os bloggers consideram ser escrito sob identidades falsas, a ser referido na blogosfera como um espaço de propaganda ao serviço do primeiro-ministro José Sócrates.

4. Que ética para a blogosfera portuguesa?

Este mapeamento das questões levantadas à volta da ética na blogosfera, ainda que não exaustivo, permite retirar, até ao momento, duas conclusões: o tema está presente e é debatido com alguma frequência, ainda que não haja acordo sobre a que princípios ou valores dar prioridade; as iniciativas para formalizar procedimentos em códigos de conduta não têm sido bem acolhidas, excetuando casos pontuais. No entanto, a falta de conclusões ou consensualizações em questões de regulação não retira substância à matéria de facto. Assim, em primeiro lugar, estes casos mostram que o tema é relevante, discutido internamente no seio da comunidade, que mostra um espectro largo de opiniões. Em segundo lugar, a falta de uma tutela específica (à maneira da ERC), ou da adoção formal e/ou institucional de um qualquer código de boas práticas, não significa que a blogosfera seja um espaço sem regras. Uma presença credível, respeitável e atrativa na blogosfera significa o cumprimento de uma certa ética e a garantia do respeito de certos valores, como verdade ou verificação (Serra, 2006).

No âmbito de um trabalho mais vasto sobre a blogosfera política portuguesa, foram inquiridos, como fase exploratória prévia, elementos considerados como uma espécie de stakeholders da blogosfera: bloggers, jornalistas e políticos portugueses (ver Silva, 2013, para uma descrição e justificação metodológica). As questões, colocadas em contexto de entrevistas semiestruturadas, abordaram temas vastos como a influência da blogosfera política, a sua polarização e o seu caráter coletivo. Ainda que nenhuma das questões (que eram, por natureza, abertas e não diretivas) tivesse questionado diretamente os sujeitos sobre questões relacionadas com ética, as respostas evidenciaram de mote próprio algumas considerações dos bloggers sobre a matéria, mostrando como as preocupações neste domínio estão subjacentes à presença na blogosfera.

Entre os valores de natureza ética que parecem emergir deste conjunto de stakeholders – aqui com a ressalva de que, embora alguns possam ser aplicados à blogosfera em geral, outros refletem mais a preocupação com o espaço político da internet – estão: a identificação (contra o anonimato e presença encoberta por identidades falsas); atribuição (contra o plágio, pela identificação das fontes e da origem da informação publicada); qualidade (da informação e da opinião que é fornecida); diversidade (de opiniões, de ideias, contra estratégias de limitação de liberdade de expressão ou colonização por outros interesses) e racionalidade (sobretudo na discussão de natureza política, contra uma argumentação baseada na defesa da honra pessoal).

Assim, os bloggers tendem a ver com certo distanciamento a presença de anónimos (o que não quer dizer que não possa haver pessoas que usem pseudónimos, mas cuja identidade é normalmente conhecida) no espaço: a blogosfera é, segundo o jornalista e blogger Pedro Correia, "um espaço onde as opiniões são cada vez mais em nome próprio, assumidas integralmente sem a cobardia do anonimato (as exceções, públicas e notórias, servem apenas para desacreditar as fontes inspiradoras desses blogues)" (entrevista disponível em Silva, 2013). A possibilidade de fazer hiperligações, mais do que uma ferramenta de interatividade, é sobretudo um mecanismo que permite a atribuição das fontes, primeiro para a sua verificação e, em segundo lugar, como uma forma de cortesia – reconhecendo as outras vozes presentes na blogosfera. Essa prática, diz o blogger João Miranda, corresponde à "ética inicial de linkar de quem se fala" (entrevista disponível em Silva, 2013), independentemente de se gostar ou não do blogue a que se faz a hiperligação. Também o blogger Gabriel Silva assinala que linkar a outros blogues é "obrigatório: faz parte das regras básicas; ninguém comenta o post de outro blogue sem pôr o link" (entrevista disponível em Silva, 2013). Ou seja, a lógica da verificação funciona aqui como estratégia de credibilidade e de autorregulação na construção da mensagem veiculada. Para Gabriel Silva, o link funciona ainda de forma a permitir a verificação da informação, o que dá autoridade a quem fala (entrevista disponível em Silva, 2013). Nas palavras de Pedro Correia, permite contrariar o "achismo que ainda impera infelizmente juntos de alguns dos nossos comentadores" (entrevista disponível em Silva, 2013).

Parece também essencial, nessa espécie de contrato que os bloggers assumem com os seus leitores, que a informação e opinião veiculadas sejam de qualidade, porque esse é o selo de garantia que podem ostentar: "A autoridade dos blogues advém da qualidade e da relevância daquilo que se escreve", diz o blogger Gabriel Silva (entrevista disponível em Silva, 2013). A questão da diversidade, a admissão de várias tendências na blogosfera, é também essencial, já que a blogosfera é um espaço "muito fragmentado (que) representa um espectro político muito abrangente" (jornalista Jorge Pinto, entrevista disponível em Silva, 2013), onde se encontram "as mais diversas influências (…) e as mais diversas orientações" (Pedro Correia, entrevista disponível em Silva, 2013). Assim é, no dizer do político Augusto Santos Silva (entrevista disponível em Silva, 2013), "um campo relativamente plural – o que aliás, (…) parece constituir uma saudável condição para a sua afirmação". Ainda no campo da diversidade, contra a uniformidade dos pensamentos e pela liberdade de expressão, o blogger João Miranda critica a colonização da blogosfera pelos media e pelos partidos que a tornou "mais parecida com os media tradicionais" e resultará de uma tentativa de controlo por parte de "alguns jornalistas profissionais e membros de partidos políticos" (entrevista disponível em Silva, 2013). Finalmente, outro valor que parece importante na ética da discussão online é da racionalidade da argumentação, contra estratégias baseadas apenas na defesa da honra pessoal (Gabriel Silva, entrevista disponível em Silva, 2013). A argumentação racional deve ser complementada com "outros níveis de informação aos leitores", que podem ser proporcionados pelas hiperligações (Pedro Correia, entrevista disponível em Silva, 2013).

Haverá na blogosfera muitos autores que não seguem essas regras e problemas como o anonimato, a difamação ou mentiras continuarão a surgir. Mas a consequência da autorregulação para quem a adotar, acreditam os bloggers, é a adesão dos internautas aos seus blogues, ou seja, audiência e visibilidade – em última instância, o objetivo de quem publica e partilha mensagens, conteúdos e informação. Como explica a jornalista Leonete Botelho, "determinado blogue com bloggers respeitados, com opinião interessada formada, torna-se um pólo de atração" (entrevista disponível em Silva, 2013). Portanto, a ética é essencial à blogosfera, mas precisará de a ver expressa num código escrito, que funcione como chancela? Ou bastará a prática ética e deixar aos leitores a decisão sobre quem ler e confiar?

Um eventual enquadramento legal dos blogues, neste momento uma possibilidade ainda sem grande substanciação específica, deverá ser cuidadosamente considerado de forma a não ameaçar as características de diversidade que encerram. Os blogues são um espaço livre de autoexpressão, onde as pessoas podem falar sobre os mais variados assuntos que lhes interessam, onde podem constituir comunidades. No âmbito particular do debate político, podem providenciar um novo discurso, que privilegia uma abordagem interpretativa e proporciona conteúdos eles próprios mais densos menos lineares que os tradicionais discursos políticos. Os bloggers recorrem com regularidade às hiperligações e acedem ainda frequentemente a comprometer a sua "fala" a outras vozes, abdicando do controlo sobre o discurso e proporcionando aos seus leitores oportunidades incomuns em outras instâncias do jogo político. Desta forma, os blogues políticos portugueses podem proporcionar um fórum de debate ideológico, empreendido por cidadãos, sem a chancela dos partidos políticos, que revitaliza a participação e a mobilização cívica em torno do governo das sociedades.

Nesse sentido, é preciso considerar com cautela uma eventual proposta de código de conduta para os bloggers. A existência de códigos de conduta levou à profissionalização do jornalista e à sua legitimação (Traquina, 2007; Hallin, 2008), mas convém não esquecer que a adoção de práticas profissionais daí decorrentes condiciona o exercício da diversidade e, por essa via, a essência da democracia. A necessidade de um "gancho", de um pretexto para a notícia, a prevalência da personalização e do recurso a citações contribuíram para retirar o confronto ideológico da discussão política (McChesney, 2008). A necessidade de assegurar um fluxo constante de informação levou ao cultivo das fontes (McQuail, 2003; Wolf, 2003) e à proximidade entre jornalistas e, neste caso, agentes políticos (Franklin, 2003). Por outro lado, a defesa da neutralidade e da objetividade, como marca da profissão do jornalismo, colocam a tónica na perspetiva factual dos acontecimentos, o que contraria, em muito, o que é o espírito partidário – de causas, de gostos, de interesses – de muitos blogues. Nesse sentido, sendo não-profissionalizada, a intervenção do blogger é mais livre porque não está limitada pela necessidade de um pretexto que cumpra normas ou rotinas produtivas, nem depende de fontes de informação que podem produzir enviesamentos – discute ideologia, alternativas, questiona opções políticas e pode introduzir temas diferentes na agenda. É, por isso, que uma eventual regulação dos blogues deve evitar comprometer a livre iniciativa neste espaço e evitar espartilhar a participação dos cidadãos com regras que possam minar a expressão da diversidade, normalizando a sua intervenção na esfera pública.

Neste sentido, uma das regras básicas a preservar deverá ser a da liberdade, com responsabilidade, mas sem outras amarras – e a responsabilidade pode não precisar de grande imposição exterior porque é aí, como vimos, que se constrói a legitimidade do blogger e a sua capacidade de intervenção social. É nesse sentido que, por exemplo, escreve Jay Rosen, académico e professor na Universidade de Nova Iorque, num post intitulado: "If bloggers had no ethics, blogging would have failed. But it didn't. So let's get a clue" (que poderá ser traduzido como: ‘Se os bloggers não tivessem ética, a prática teria falhado. Mas não falhou. Vamos então aprender alguma coisa')[23]. Comparando jornalistas com bloggers, o académico coloca a tónica desta problemática na confiança que os novos autores da internet merecem aos seus leitores, lembrando que os bloggers têm uma prática ética (mesmo sem código escrito), nomeadamente a ética do link, a auto-correção, a transparência (e não a neutralidade), a interação com os outros e a persistência. O reconhecimento pelos outros como membro de uma comunidade obriga, por si, a uma ética, implícita e autoaceite, que joga a favor da autoridade do blogger. A avançar-se para um futuro estádio em que os bloggers se deverão "profissionalizar" ou "ajustar" a formas de atuação pré-determinadas, ferramentas importantes para a promoção da diversidade poderão perder-se.

5. Notas finais

A assunção de que existe ética na blogosfera e que os bloggers praticam uma conduta que conduz à confiança e à credibilidade, por parte da comunidade e dos seus leitores, não resulta, contudo, numa ausência de problemas na internet. O recente caso de um blogger[24] que, ao serviço da campanha eleitoral do depois eleito primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, admitiu ter mentido e manipulado perfis na internet para promover o então candidato, mostra que continua a ser necessário o debate, o alerta, a consciência. Este artigo rastreia e identifica alguns casos significativos, primeiro a nível geral, e depois no panorama português no que diz respeito às práticas éticas e problemáticas na blogosfera. Propõe ainda, a partir de uma investigação exploratória, uma escala de valores que parecem estar presentes nas práticas e nas considerações dos bloggers sobre este espaço online. Contudo, e esta será uma das limitações do presente trabalho, esta identificação de normatividade na blogosfera diz sobretudo respeito às esfera política - ainda que possamos, teoricamente, considerar que ela é extensível à blogosfera em geral, já que os valores aí expressos podem facilmente adaptar-se a qualquer contexto onde a produção de conteúdos ocorre em formato de blogue.

A blogosfera é uma realidade relativamente recente, com muitas dúvidas a pairar sobre o seu futuro e sobre a forma como os poderes públicos (nacionais e internacionais) a poderão condicionar. Há desafios que certamente não estarão a ser perspetivados com clareza. Mas em matérias de liberdade de expressão, a blogosfera continua a ser um espaço plural, o que é benéfico e essencial para uma prática ética. Credibilidade e confiança, sem a chancela de uma organização profissional ou de uma instituição, são, em último caso, uma questão pessoal. E é na relação pessoal e individual dos bloggers com os seus leitores que se jogam esses valores.

 

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Recebido a 13-03-2014

Aceite a 05-05-2014

 

 

Notas

[1] http://technoratimedia.com/report/

[2] http://www.publico.pt/Tecnologia/eua-tem-planos-para-criar-contas-de-propaganda-nas-redes-sociais-1485514

[3] http://www.nytimes.com/2011/10/13/world/africa/a-blogger-at-arab-springs-genesis.html?_r=2

[4] http://www.publico.pt/Mundo/jovem-blogger-siria-condenada-a-cinco-anos-de-prisao-1480266

[5] http://sol.sapo.pt/inicio/Sociedade/Interior.aspx?content_id=30649

[6] http://www.publico.pt/Local/provocacoes-em-formato-low-cost-para-melhorar-as-nossas-cidades-1482395

[7] http://www.publico.pt/Sociedade/palavras-da-decada--b-1415918

[8] http://www.rebeccablood.net/handbook/excerpts/weblog_ethics.html

[9] http://www.cyberjournalist.net/news/000215.php

[10] http://web.archive.org/web/20070416101941/http://radar.oreilly.com/archives/2007/04/draft_bloggers_1.html;http://news.bbc.co.uk/2/hi/technology/6502643.stm

[11] http://www.nepalivoices.com/nepal-blog/2011/07/27/historic-bloggers-sign-code-of-ethics/

[12] Ver, por exemplo, http://www.jonworth.eu/more-eu-controlling-blogging-outrage-a-more-careful-analysis/.

[13] http://euobserver.com/871/26407

[14] http://therealsingapore.com/content/mlc-no-internet-code-conduct-now%E2%80%A6

[15] http://www.kaminhos.com/artigo.aspx?id=7798&seccao=1

[16] http://causa-nossa.blogspot.pt/2008/06/pretensa-imunidade-penal-da-blogoesfera.html

[17] http://expresso.sapo.pt/erc-e-blogosfera-o-estatuto-sem-debate=f413054

[18] http://bolanaarea.blogspot.pt/2008/09/para-qu_24.html

[19] http://www.jornalistas.eu/?n=6882

[20] http://www.jornalistas.eu/?n=9207

[21] http://www.jornalistas.eu/?n=7717

[22] http://www.publico.pt/Política/coordenador-do-blogue-simplex-assegura-que-nao-ha-apoio-financeiro-externo-1423469

[23] http://archive.pressthink.org/2008/09/18/because_we_have.html

[24] http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/5848575.html

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