SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25A (não) regulação da blogosfera: a ética da discussão onlinePara além da propaganda e da Internet: a ética do jornalismo índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.25  Braga jun. 2014

https://doi.org/10.17231/comsoc.25(2014).1873 

NAS FRONTEIRAS DO JORNALISMO

Preocupações éticas no jornalismo feito por não-jornalistas

 

Ethical concerns in journalism done by non-journalists

 

 

Rogério Christofoletti*

*Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.

rogerio.christofoletti@uol.com.br

 

 

RESUMO

Em um contexto de jornalismo pós-industrial, onde funcionam sistemas facilitadores de produção, publicação e compartilhamento de conteúdos gerados por usuários (CGU) e onde atuam profissionais e amadores, é necessário questionar em que bases éticas se apoiam os gestos de cidadãos comuns que praticam atos de jornalismo. Este artigo recorre a três episódios distintos (ocorridos na Inglaterra, Cisjordânia e Brasil) para aprofundar um debate em torno da aproximação de valores de amadores e jornalistas profissionais. O texto revisa ainda exemplos onde organizações e profissionais se esforçam para assimilar a presença de novos atores no ecossistema midiático.

Palavras-chave: Deontologias; jornalismo; profissionalismo; amadorismo; desafios.

 

ABSTRACT

If journalism has become post-industrial, we observe facilitators production systems, and publication of user-generated content (UGC) and the performance of professional and amateur sharing. In this context, it is necessary to question how ordinary citizens who practice acts of journalism ethically justify their work. This article draws on three episodes (England, Brazil and the West Bank) to deepen a debate on the approximation of values of amateur and professional journalists. The text also reviews examples of organizations and professionals who strive to har- monize relations in this new media ecosystem.

Keywords: Deontology; journalism; pro-Am; challenges.

 

 

Parecia ser uma quinta-feira como outra qualquer. Milhares de pessoas seguiam para o trabalho ou para a escola, recheando os vagões do metrô e os conhecidos ônibus vermelhos de dois andares. Em menos de uma hora, quatro explosões atingiram um ônibus e três trens do metrô no centro de Londres, matando 52 pessoas e ferindo outras 700. A agitada manhã de 7 de julho de 2005 entrou para a história como um triste ato terrorista, mas foi também um marco na linha do tempo da mídia britânica. Segundo o jornalista Torin Douglas, foi um ponto de virada no uso de conteúdo não-profissional no noticiário. Para o especialista, o 7/7 "democratizou" a mídia[1].

Não foi um exagero. Os atentados provocaram muitas vítimas e uma enxurrada nas redações de material produzido por amadores. Num único dia, a BBC, por exemplo, recebeu 22 mil mensagens de textos e e-mails com relatos e informações, mais de 300 fotos e diversos vídeos feitos com câmeras fotográficas comuns e telefones celulares. Pela primeira vez, a cúpula diretiva da criteriosa e tradicional BBC considerou aqueles vídeos amadores mais jornalisticamente relevantes que o material profissional. O Conteúdo Gerado pelo Usuário (CGU) recebeu um outro tratamento.

Longe de Londres, na tumultuada Cisjordânia, um grupo de mulheres israelenses, "ativistas pela paz de todos os setores da sociedade", abastece o site Machsomwatch[2] com relatos de violações de direitos humanos ao longo do litígio na região. Elas não são jornalistas profissionais, mas desde 2001 fazem um trabalho análogo: "Documentamos regularmente o que vemos e ouvimos". São contrárias "à ocupação israelense e à negação dos direitos dos palestinos de circular livremente na sua terra". Fazem observações diárias nos postos de checagem do exército israelense, denunciam o que consideram abusos e violações, e encaminham esses relatos a funcionários públicos e representantes eleitos, chamando a atenção para o conflito na Cisjordânia. Conforme explicam, querem "influenciar a opinião pública no país e no mundo, e, assim, pôr fim à ocupação destrutiva, que causa danos à sociedade israelense e à palestina"[3].

Longe da Cisjordânia, no Brasil, um heterodoxo grupo de mídia ganhou visibilidade internacional oferecendo um conjunto de relatos independentes sobre as manifestações que chacoalharam o país em junho de 2013. Sob o nome de Mídia Ninja – sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação -, o coletivo reúne ativistas, jornalistas profissionais e comunicadores amadores em torno da ideia de oferecer uma alternativa às coberturas da mídia tradicional. Os ninjas têm ações descentralizadas, usam as redes sociais da internet, fazem coberturas ao vivo, sem cortes ou edição, e se concentram em temas sociais. O grupo surgiu em junho de 2011, a partir da Pós-TV, iniciativa que priorizava a transmissão ao vivo de conteúdos audiovisuais pela internet[4]. Dois anos depois, um turbilhão de protestos se espalhou como rastilho de pólvora pelo país, levando milhões de pessoas às ruas contra o uso de verbas públicas na construção de estádios para a Copa do Mundo de 2014, contra a impunidade e a corrupção na política, contra os aumentos nas tarifas de transporte público, entre outros temas. As chamadas Jornadas de Junho foram as maiores mobilizações populares desde as manifestações pelo impeachmente do então presidente da república Fernando Collor de Mello, em 1992. Houve passeatas em mais de 400 cidades em todos os estados brasileiros, inclusive com protestos de apoio em outras partes do mundo[5].

Em junho de 2013, os meios de comunicação tradicionais tentaram cobrir as manifestações, mas tiveram dificuldades em muitas cidades, sendo inclusive hostilizados. A Mídia Ninja ofereceu um conjunto impressionante e relevante. Tanto que suas cenas foram reproduzidas e valorizadas pelas maiores emissoras de televisão, a despeito da duvidosa qualidade técnica e da inadequação estética em muitos momentos[6].

O que há de comum entre esses três exemplos tão incomuns – os atentados em Londres, o monitoramento da ocupação da Cisjordânia e os protestos no Brasil? Do ponto de vista da comunicação, os episódios revelam traços que enaltecem a participação do público nos processos de informação, e a produção e difusão de conteúdos jornalísticos por amadores. Esses casos também reservam questionamentos de caráter ético sobre as práticas e as condutas dos sujeitos dessas ações. No que tange a uma reflexão dos limites entre profissionalidade e envolvimento amador, os episódios também contribuem para uma definição de novos valores emergentes.

1. Se não pode vencê-los…

Não faz muito tempo, mas é sempre necessário lembrar: já houve fronteiras mais nítidas entre quem produzia material jornalístico e quem se restringia a consumi-lo. Por décadas, coube a um grupo social responder pela busca, seleção, tratamento, hierarquização, contextualização e embalamento de dados dispersos, transformando-os em informações de cunho noticioso. Esse coletivo se organizou profissionalmente, estabelecendo regras de conduta, gramáticas técnicas e regras de funcionamento de forma que a sociedade pudesse distingui-lo como tal. Os jornalistas não apenas se tornaram uma categoria profissional como também justificaram sua existência e a legitimidade de suas ações. Atendendo a uma demanda das sociedades, o jornalismo se tornou necessário para a evolução das democracias e fundamental para o desenvolvimento social. A maior parte das pessoas – que não se ocupava desse ofício – se limitou a ser constantemente abastecida pelos jornalistas, reconhecendo neles os autênticos produtores das informações de cunho de interesse público.

Há pelo menos duas décadas, começou a erodir o balcão que separava jornalistas de audiência. As potencialidades tecnológicas vindas da internet, da digitalização de arquivos de texto, som e imagem, da miniaturização de equipamentos e da convergência tecnológica permitiram alguns efeitos altamente transformadores nas relações entre esses contingentes. A produção e distribuição de conteúdos mostrou-se cada vez mais descomplicada, o que alimentou e fortaleceu uma cultura cada vez mais global de participação e colaboração. A inexistência de fronteiras geográficas na internet tornou as trocas de informação mais amplas, rápidas e efetivas. Esses componentes criaram um cenário de explosão informativa e de aumento de demanda por conteúdos, derivado do também crescimento na oferta de materiais. A fartura de meios de produção e difusão de conteúdos, e as muitas oportunidades de participação do processo de comunicação propiciaram também que os usuários dispensassem os mediadores, aqueles que se interpunham entre público e fontes de informação. O balcão que separava produtores de consumidores ficou poroso, vazado.

Surpreendidos ou satisfeitos, alertados ou incomodados, profissionais do jornalismo e empresas do ramo se viram obrigados a reconhecer a cada vez mais crescente importância das audiências no mercado produtivo de conteúdos. Dan Gillmor (2004) apressou-se a rebatizar de "ex-público" esse contigente antes alijado dos processos de produção. Rosen (2006) se referiu a eles como "as pessoas anteriormente conhecidas por audiência", aquelas que escrevem em seus blogs, que postam suas fotos e vídeos, que contam as histórias que presenciam, que compartilham o que sabem. Isto é, aquelas que surgem no fim de um sistema de mídia unidirecional, que não se resignam à condição de receptáculo passivo de informações.

Bruns (2008) reuniu uso, consumo e produção num termo híbrido: "produsage". Segundo argumenta, o conceito se aplica a contextos onde há criação e extensão de informação e conhecimento lideradas por sujeitos comuns; contextos onde os papeis de consumidor e usuário final desapareceram, dando lugar a funções mistas, onde as distâncias entre produtores e meros consumidores se perderam. Nessas comunidades, "os usuários já são sempre necessariamente também produtores da base de conhecimento compartilhado, independentemente de se estão cientes desse papel, eles tornaram-se um novo, híbrido, produser[7]" (op.cit.: 2).

Keen (2008) critica a invasão desses amadores, reputando a eles perigos que podem inclusive deteriorar a cultura e a civilização contemporâneas. O escopo do autor é amplo e o ataque é dirigido sobretudo àqueles que produzem conteúdos de caráter artístico-simbólico, desapropriando os intermediários, a quem antes cabia reconhecer os talentos e os valores importantes para a sociedade.

Hargittai e Walejko (2008) chamam a atenção para distintas formas e níveis de participação na criação de conteúdos e seu compartilhamento nos tempos atuais. As autoras apontam que não se trata apenas de diferenças mas também de desigualdades, notadamente entre gêneros, o que intensifica ou pode vir a reforçar estruturas de assimetria social já existentes. O alerta é bem-vindo e é natural que ele seja formulado, a exemplo de outras tantas preocupações, dado que a vida on line cada vez mais reproduz e multiplica os dilemas da existência off line em sociedade.

Muitos outros autores abordaram os temas da colaboração e do aumento da participação pública nos processos de informação/comunicação, mas o reconhecimento das audiências teve um reforço substancial com a edição em julho de 2011 de um volumoso documento da Federal Communications Comission (FCC), a agência norte-americana de regulação da mídia. Em 468 páginas, o estudo produzido por Steven Waldman e seu grupo de trabalho aborda não só os meios de comunicação comerciais, mas também a mídia sem fins lucrativos, atores de fora do sistema (como o governo) e questões transversais (como consumo de mídia, diversidade, pessoas com deficiência, por exemplo). Em todas essas seções, o estudo tenta observar as transformações ocorridas na paisagem midiática com a chegada de novos atores e novas potencialidades. Como não poderia deixar de ser, o documento da FCC oferece ainda elementos para uma discussão sobre políticas e regulação do sistema de mídia nos Estados Unidos, abordando aspectos como radiodifusão, TV a cabo, internet e mobile systems, propriedade e controle dos meios, publicidade e propaganda, direitos autorais e propriedade intelectual. A conclusão mais básica da FCC é que o cenário midiático vem mudando tanto e tão rapidamente que algumas das regulamentações atuais "estão fora de sincronia com as necessidades de informação das comunidades e a natureza fluida dos mercados de mídia locais modernos" (op. Cit.: 6).

Entre as recomendações do documento estão a necessidade de uma maior transparência do governo para que jornalistas e cidadãos monitorem suas ações; verbas publicitárias públicas devem ser mais dirigidas às mídias locais; meios sem fins lucrativos precisam desenvolver modelos de negócios mais rentáveis; banda larga universal e internet aberta são essenciais para que a nova paisagem midiática sirva aos propósitos das comunidades; e os formuladores devem ouvir mais as comunidades historicamente carentes na elaboração de suas políticas de comunicação.

A FCC reconhece o paradoxo: há abundância de mídia e carência de relatórios e informes públicos. "As comunidades beneficiam-se enormemente pelas muitas inovações trazidas pela internet e sofrem, simultaneamente, com as mudanças sísmicas nos mercados de mídia" (op.cit.: 7). O momento é confuso, mas o relatório é otimista: reconhecendo as mídias locais e as comunidades, os EUA podem alcançar o melhor sistema de mídia que o país já teve. É importante observar que o órgão regulador das comunicações norte-americanas distribui prerrogativas e responsabilidades para chegar à excelência midiática entre atores não-profissionais. Assim, não cabe apenas à indústria a melhoria dos serviços e produtos de informação e entretenimento. Não é à toa que Anderson, Bell e Shirky (2013) analisam o cenário atual a partir da perspectiva de que não há mais uma indústria jornalística. "Antigamente, havia uma. Era uma indústria que se mantinha em pé por coisas que em geral mantêm um setor em pé: a similitude de métodos entre um grupo relativamente pequeno e uniforme de empresas e a incapacidade de alguém de fora desse grupo criar um produto competitivo. Essas condições não se cumprem mais" (op. Cit.: 32).

Antes, era perceptivo que havia uma ética específica para o jornalismo, já que a profissão estava bem delimitada e seus contornos se davam inclusive por um conjunto de valores éticos. Jornalistas agiam conforme um conjunto de recomendações, tinham claras virtudes e contraexemplos de ação, e definiam seu campo de atuação tendo em vista padrões de conduta. Poderiam ser (e eram) cobrados quando contrariavam essas normativas deontológicas. Com a chegada de novos atores e consequente porosidade no campo, as questões éticas podem ser estendidas também aos novatos, gerando novos pontos de tensão e discussão.

Nos três exemplos do início deste artigo – os atentados de 2005 em Londres, a ocupação da Cisjordânia e as ações da Mídia Ninja -, é possível observar mudanças no diálogo entre fontes, produtores de informação e consumidores, não apenas horizontalizando esse diálogo, como muitas vezes, borrando as fronteiras entre um território e outro. Nos três casos, há mais do que colaboração ou participação da audiência. Os episódios podem "contaminar" a ética jornalística (até então restrita aos profissionais) com outras preocupações ou parâmetros. Podem trazer à tona o ditado de que "se não pode vencê-los, junte-se a eles"…

2. Negociação, colisão, assimilação

O ditado revela em si uma generosa dose de resignação diante de um dilema que se considera insuperável. Mas será que jornalistas e usuários não-profissionalizados se relacionam sempre da mesma forma? Como as empresas de comunicação têm recebido e aproveitado o Conteúdo Gerado pelo Usuário (CGU) em suas plataformas e produtos? A convivência entre esses distintos contigentes sempre é entendida como um problema?

De olho na imprensa mainstream britânica do final da década passada, Hermida e Thurman (2008) vêem nessa aproximação um choque de culturas. Os autores fizeram um relato de como doze sites de jornais de âmbio nacional no Reino Unido promoviam a integração entre seus conteúdos e os materiais produzidos por usuários. Segundo perceberam, a maior proximidade vinha contribuindo para derrubar dúvidas dos staffs comercial e editorial sobre a importância e valor desses conteúdos amadores, antes vistos com bastante desconfiança. Editores de área também foram ouvidos, na tentativa de colher temores e potencialidades na integração. Entre os receios, estava o de que não usar os conteúdos do público pode ajudar a marginalizar os meios perante os leitores. Ainda entre as preocupações estavam a possibilidade de conteúdos de terceiros afetarem a imagem da marca das empresas de comunicação (com consequências à credibilidade de seus produtos e serviços) e o controle da conversação, com a clara intereferência e rigor na moderação de comentários. Identidade profissional, reputação e aspectos legais também poderiam ser afetadas com a chegada dos amadores, temiam os editores entrevistados para a pesquisa. Neste sentido, a integração dos conteúdos amadores ao cotidiano de publicações profissionais reserva desafios e o abandono de preconceitos.

Com os olhares ainda detidos na realidade britânica, Singer e Ashman (2009) se debruçam sobre o caso do The Guardian, onde os jornalistas ainda assimilam e negociam suas relações com os usuários. Jornal tradicional, o diário tem buscado se adaptar aos novos meios, investindo em novas modalidades narrativas e interatividade. Em 2008, por exemplo, The Guardian chegou a receber 350 mil comentários às suas matérias num único mês. Singer e Ashman observam que o rápido crescimento de diversas formas de CGU - "que vão de comentários em blogs hospedados no jornal a notícias hiperlocais - significa que o jornalista tem muito menos controle sobre o que antes era um processo essencialmente industrial de fazer notícias" (op.cit.: 3).

O estudo recorreu a entrevistas em profundidade e questionários. Perguntados sobre marcas essenciais para o "bom jornalismo", os jornalistas entrevistados mencionaram "boa apuração/precisão" (accuracy), seguida de "crebilidade", "responsabilidade" e "competência". Os sujeitos da pesquisa também vincularam CGU a valores como "livre expressão". Algumas preocupações foram percebidas, como o pouco compromisso com a autenticidade dos relatos, e como esses usuários têm potencial para degradar a credibilidade da publicação e seus produtos derivados. Neste sentido, a participação amadora não se mostra um perigo no que tange a competência técnica do público, mas à autoridade do jornalista e aos seus cânones. Um ponto de tensão observado é o que opõe o anonimato dos usuários - prática bastante disseminada na web – e a accountability dos jornalistas, um valor emergente.

Na pesquisa, entre os jornalistas mais tradicionais, ligados à plataforma impressa, parece vigorar uma ambivalência diante da presença e ação dos usuários: ao mesmo tempo em que os profissionais destacam a necessidade de manter distância dos leitores, são instados a interagir com eles…

Singer e Ashman concluem que os jornalistas estão lutando para "acomodar eticamente as oportunidades de liberdade e diálogo dadas pelo CGU, salvaguardando a sua credibilidade e senso de responsabilidade" (op.cit.: 18). Esses profissionais tentam incorporar questões levantadas pela presença dos amadores dentro de um quadro normativo já existente na empresa. Singer e Ashman se referem aos princípios da Scott Trust, documento que orienta os jornalistas do The Guardian há décadas. Perdura a máxima que o jornal carrega - "Comentários são livres mas os fatos são sagrados" -, porém os dilemas do CGU trazem à tona desafios inéditos, já que o produto oferecido ao público não é resultado exclusivo do trabalho e das decisões dos profissionais.

As mudanças que assistimos há duas décadas não são cosméticas, mas "movimentos tectônicos" (cf. Anderson et al., 2013). Para os autores, que se dedicaram a uma alentada análise da situação atual da realidade norte-americana, o jornalismo não depende mais de uma indústria para ser produzido e distribuído. Ele é essencial para a vida contemporânea, mas uma reestruturação é imprescindível, e muitas oportunidades de fazer um bom trabalho estão em novas formas de atuar. Os autores reconhecem que algumas atividades são melhor desempenhadas por amadores, por multidões e por máquinas; outras por jornalistas, como convencionou ter.

O processo do jornalismo vem sofrendo uma transformação tão radical pelas mãos de forças tecnológicas e econômicas que já não há algo que possa ser descrito como ‘uma indústria’ na qual o jornalista atuaria. Nos Estados Unidos, já não há um plano comum de carreira, um conjunto de ferramentas e modelos de produção ou uma categoria de trabalhadores estável e previsível. (op. cit.: 51)

Para Anderson, Bell e Shirky, a "indústria jornalística está morta, mas o jornalismo segue vivo em muitos lugares" (p.69). O advento da internet não permitiu apenas a emergência de outros atores, mas um novo ecossistema jornalístico. Assim, aos olhos dos autores, as organizações jornalísticas dos Estados Unidos não teriam mais o controle das notícias como antes, pois não podem garantir as coberturas dos fatos sozinhas. As recomendações do estudo vão de aprender a trabalhar com terceiros a reconhecer e premiar a colaboração, passando por incluir links para os materiais-fontes e usar o trabalho sistematizado pelos outros. Nada mais descentralizador…

3. Ensino, envolvimento e engajamento

Os debates sobre a chegada dos amadores, as estratégias organizacionais para o melhor aproveitamento dos conteúdos gerados pelos usuários e as experiências apoiadas em associação, colaboração ou simbiose possibilitam afirmar que, hoje, em tese, todos podem fazer jornalismo. Em distintos graus de qualidade, para diversos públicos, em escalas diferentes, mas podem oferecer produtos e serviços que competem com o que chamávamos de jornalismo profissional. Algumas questões podem se derivar dessa assertiva: O jornalismo corre risco? Ele perde com essas novas condições e com a chegada dos outsiders? Se a competência técnica não se mostra como um problema, pode-se dizer o mesmo sobre a ética? Em outras palavras, a ética jornalística foi superada? Estamos próximos disso? Pode-se esperar que o usuário siga as mesmas guias éticas dos jornalistas profissionais? O amador pode ser cobrado se vier a contrariá-las? Está preparado para atuar conforme tal gramática? Se não está, como deve se orientar?

Ward e Wasserman (2010) argumentam que o crescimento da participação dos cidadãos nos meios de comunicação está transformando o jornalismo e a sua ética, fazendo com que emerja uma "ética de mídia aberta", modalidade de interesse mais amplo. Diferente de sistemas mais fechados – geralmente, os profissionais -, essa ética "incentiva uma abordagem mais aberta e participativa", considerando que um código se aplica não só aos jornalistas, mas a todos os usuários. Uma ética aberta permite também maior envolvimento nas discussões, participação efetiva e revisão/determinação de conteúdos, por exemplo. Éticas profissionais tendem a ser mais fechadas e o jornalismo em particular erigiu suas barreiras com sua doutrina de autonomia e objetividade, lembram Ward e Wasserman. As recentes mudanças na ecologia midiática têm provocado transformações também na ética do setor. "Novos meios baseados nos cidadãos estão remodelando a ética na mídia, com o potencial de criar um discurso ético global, mais inclusivo e participativo (2010: 281).

Os autores reconhecem que se trata de uma tarefa complexa alcançar um nível mais aberto e global para a ética midiática. Para fazê-lo, é preciso mais hospitalidade – para que haja participação efetiva no processo -, sinceridade, tolerância, respeito e auto-reflexão. Deve-se buscar a verdade e alimentar um sentido que transcenda fronteiras sociais, materiais e nacionais.

Um caminho seguro pode estar na educação, no ensino de ética jornalística para os amadores. Quem sinaliza essa direção é a professora Jan Leach, para quem "os jornalistas não serão - nem devem ser - os únicos a levantarem questões éticas e descobrirem um lugar no território digital para os padrões de credibilidade dos conteúdos" (2009: 44). Segundo explica, tais questionamentos serão resultantes das "exigências e possibilidades deste novo ambiente de mídia que agora abraça o engajamento social como uma função essencial" (p. 42).

A autora sinaliza aspectos onde se percebe desconexão entre as práticas jornalísticas e as emergentes nas mídias digitais/sociais: autenticação de fontes de informação, especialmente quando os dados são fornecidos anonimamente; garantia da fiabilidade dos conteúdos publicados em sites/blogs hospedados em meios jornalísticos; dissolução de conflitos de interesse; falta de fiscalização das práticas e/ou falta de prestação de contas dos atos dos usuários[8]. Tais lacunas sugerem a necessidade de diretrizes éticas, afirma. Leach lembra Jay Rosen, que afirmou que o meio digital é um sistema aberto. "Para praticantes digitais, o desafio será encontrar formas para abraçar este sistema aberto, sem sacrificar o que for preciso para manter a credibilidade. Aqui estão duas recomendações: transparência e educação" (op.cit.: 44).

O primeiro conceito vem ganhando cada vez mais espaço na agenda das sociedades complexas, principalmente no que tange aos atos dos governos. Chamada de accountability, a demanda está baseada em ações transparentes e públicas, e prestação de contas das tomadas de decisão e resultados. Como a expectativa se espalha em todas as direções, o próprio jornalismo vem sendo contagiado por ela, gerando palavras de ordem como a de Jay Rosen, para quem "a transparência é a nova objetividade"[9].

A segunda recomendação de Jan Leach – investir em educação – requer esforços conjuntos, planejamento, perenidade de ações e boa dose de abertura por parte de organizações e profissionais. Isto é, para uma efetiva educação para a mídia (de forma geral), é necessário que empresas do setor e jornalistas estejam dispostos a abrir suas caixas pretas e apresentar ao público como são produzidas as notícias, como funcionam as redações, de que forma trabalham os profissionais, como a área se relaciona com outros grupos de interesse e centros de poder. Tal abertura pode contrariar interesses comerciais e corporativos. No que se refere a um nicho específico de educação – aquela que abordaria conteúdos e saberes de uma ética jornalística –, as mesmas dificuldades se apresentam, com alguns complicadores específicos.

Se a ética jornalística se abrir, como afirmam Ward e Wasserman, como esse processo será conduzido? Se antes fechada num grupo profissional, já não era tão fácil buscar consensos para os códigos de ética e para seguir orientações de conduta, imagine agora numa perspectiva mais ampla, que contempla usuários que podem simplesmente não aderir aos mesmos compromissos antes assumidos pelos jornalistas diante da expectativa da sociedade. Neste sentido, engajamento ético é um primeiro impasse a ser enfrentado. Como envolver usuários tão heterogêneos em um processo complexo e conflitante que é o da discussão ética sobre a conduta pessoal e levá-los a aceitar e assimilar um conjunto de valores que podem lhes parecer não-familiares? O leitor mais atento pode responder de pronto: educação é o caminho mais curto para aproximar esses contingentes distintos. Sim, mas é necessário lembrar que o processo educativo é uma via de mão dupla, que envolve ensino e aprendizagem, disposição de compartilhamento, reflexão crítica e de de assimilação de saberes. Organizações e profissionais precisam estar dispostos a abrir um arcabouço ético antes confinado; aos usuários cabe aceitar participar desse jogo, inclusive aumentando sua participação na discussão e tomadas de decisão sobre os valores mais relevantes e as práticas mais recomendadas e aceitáveis.

De alguma forma, a meu ver, o debate atualiza uma dicotomia externalizada na década de 1990 que contrapunha dois modelos de produção de software. Raymond recorreu a uma metáfora para distingui-los: catedral e bazar[10]. Segundo ele, o primeiro é mais fechado, próprio da indústria e das grandes corporações que se dedicam a programar e escrever códigos de computador. Suas equipes são restritas e o trabalho é feito segundo uma lógica verticalizada, com cadeias de comando explícitas e diretrizes claras a serem seguidas. Já o "bazar" funciona como um grande mercado de ideias, onde se trabalha com equipes muito grandes, sem fronteiras geográficas ou profissionais, sem cadeias de comando e de modo colaborativo. A lógica cooperativa e porosa permite que a produção se mova a partir dos inputs dos participantes, com decisões compartilhadas e responsabilidade plural. Seguindo a metáfora de Raymond, Microsoft é catedral, Mozilla é bazar. O Internet Explorer é um software-proprietário, resultado do modelo de produção catedral, enquanto que seu concorrente, o navegador Firefox, é derivado de uma ação de bazar, à base de desenvolvedores profissionais, amadores, diletantes…

A história recente mostra que usuários dispersos e heterogêneos são capazes de se articular, discutir e definir bases de condutas aceitáveis em web, na forma de netiquetas, por exemplo (cf. Christofoletti, 2011). Mas ressalto que o caso do jornalismo reserva cuidados adicionais, já que a prática afeta terceiros, incide em reputações de organizações e pessoais, e também contribui para a formação do entendimento da realidade e das ideias, conceitos e juízos que a compõem. Quer dizer: é maior a escala de ação, e potenciais riscos e prejuízos.

As observadoras da ocupação da Cisjordânia, os amadores que ajudam a compor a Mídia Ninja e os cidadãos londrinos que "cobriram" os atentados em 2005 podem ter se ocupado de produzir relatos jornalísticos ou parajornalísticos. Tecnologicamente, estavam munidos de aparelhos que lhes permitissem fazê-los. Emocionalmente, estavam envolvidos e dispostos a oferecer tais relatos. Mas estariam também eticamente engajados para refletir sobre cuidados e dilemas derivados da ação jornalística? Esses contingentes sentem necessidade desses cinturões morais para justificar suas ações? Sentem que devem satisfações aos públicos e demais grupos de interesses sobre tais ou quais escolhas e decisões?

Os questionamentos não cessam neste artigo. Estamos todos em pleno processo de redefinição de bases sociais, culturais e éticas neste novo ecossistema midiático. Os amadores fazem parte da realidade atual e constituem um fenômeno irreversível. Nesses tempos em que se discute a natureza do jornalismo e de quem pode ajudar a provê-lo, é essencial inserir mais uma indagação: Quem está disposto a discutir bases para uma nova ética jornalística? Tal questão não será respondida apenas pelos profissionais. Aliás, eles dependem também que os amadores participem dessa discussão para, inclusive, redeterminar os limites de suas ações cotidianas.

 

Referências bibliográficas

Anderson, C.W.; Bell, E. & Shirky, C. (2013) "O Jornalismo Pós-Industrial: adaptação aos novos tempos", Revista de Jornalismo ESPM, 5, abril-maio-junho, pp. 30-89.         [ Links ]

Bruns, A. (2008) Blogs, Wikipedia, Second Life, and Beyond: From Production to Produsage. New York: Peter Lang Ed.         [ Links ]

Christofoletti, R. (2011). "O caso do Brasil: Valores, códigos de ética e novos regramentos para o jornalismo nas redes sociais". Cuadernos de Información, v. 29, p. 25-34.         [ Links ]

Christofoletti, R. & Giovanaza, D. (2013). "Tecnología y Zonas de Tensión Ética para Periodistas". Cuadernos de Información, v. 32, p. 27-38.         [ Links ]

Gillmor, D. (2004) We the Media: Grassroots Journalism By the People, For the People. Sebastopol: O’Reilly Media.

Hargittai, E. & Walejko, G. (2008). "The Participation Divide: Content creation and sharing in the digital age", Information, Communication & Society, 11:2, 239-256.         [ Links ]

Hermida, A. & Thurman, N. (2008) "A clash of cultures: The integration of user-generated content within professional journalistic frameworks at British newspaper websites", Journalism Practice, 2: 3, 343-356.         [ Links ]

Keen, A. (2008) O culto do amador. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Leach, J. (2009) "Creating Ethical Bridges From Journalism to Digital News". Nieman Reports, Fall        [ Links ]

Rosen, J. (2006) "The People Formerly Known as the Audience". 27 de junho. Disponível em http://archive.pressthink.org/2006/06/27/ppl_frmr.html Acesso em 10 de fevereiro de 2014.         [ Links ]

Singer, J. B. & Ashman, I. (2009) "‘Comment Is Free, but Facts Are Sacred’: User-generated Content and Ethical Constructs at the Guardian", Journal of Mass Media Ethics, 24: 3-21.

The Information Needs Communities. The changing media landscape in a broadband age. Edited by Steven Waldman and Working Group. Federal Communications Comission, july 2011.

Ure, M. (2013) "Dilemas éticos y modelos deontológicos para el periodista usuario de medios sociales", Cuadernos.Info, 32, 67-76.         [ Links ]

Ward, S. J. & Wasserman, H. (2010) "Towards an Open Ethics: Implications of New Media Platforms for Global Ethics Discourse", Journal of Mass Media Ethics, 25:275–292.         [ Links ]

Wiesslitz, C. & Ashuri, T. (2011). "Moral journalists": The emergence of new intermediaries of news in an age of digital media. Journalism, 12: 8, 1-17.         [ Links ]

 

 

Recebido a 13-03-2014

Aceite a 06-05-2014

 

 

Notas

[1] A constação se deu um ano depois, num ruidoso artigo de 4 de julho de 2006, publicado no site da BBC News: "How 7/7 ‘democratized’ media". Ver: http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/5142702.stm Acesso em 28 de fevereiro de 2014.

[2] http://www.machsomwatch.org/en

[3] http://www.machsomwatch.org/en/about-us

[4] O jornalista Bruno Torturra, um dos principais articuladores da Mídia Ninja, fez um relato pulsante sobre o coletivo na edição 87 da revista piauí, de dezembro de 2013. "Olho da rua" está disponível em http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-87/questoes-de-midia-e-politica/olho-da-rua Acessado em 10 de março de 2014.

[5] Para uma lista das manifestações nas cidades, consultar http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Cidades_participantes_dos_ protestos_no_Brasil_em_2013 Acessado em 11 de março de 2014.

[6] Ver: http://www.adnews.com.br/midia/globo-desmente-policia-do-rio-usando-video-do-midia-ninja Acessado em 11 de março de 2014.

[7] Na verdade, o termo "produser" foi criado por Alvin Toffler em A Terceira Onda (Rio de Janeiro: Record, 1980), e foi reapropriado por Bruns quase trinta anos depois.

[8] Existem diversos autores que enumeram novos/velhos dilemas e preocupações para jornalistas em meios digitais. Algumas dessas listas são coincidentes e também sinalizam zonas de descompasso entre as práticas decantadas no jornalismo e os hábitos que vão se consolidando nas mídias sociais. Cito Ure (2013), para quem a administração de contas em redes sociais, relação com as fontes, interação com usuários, confirmação de informações, gestão de erros, inserção de links e a distinção entre conteúdos informativos e publicitários são alguns dos dilemas mais importantes para os jornalistas que se aventuram como usuários de mídias sociais. Ver ainda Christofoletti e Giovanaz (2013).

[9] Consultar: http://journalism.colorado.edu/2014/03/14/jay-rosen-transparency-is-the-new-objectivity/ Acessado em 09 de março de 2014.

[10] Em maio de 1997, Eric S. Raymond apresentou no Linux Kongress "A catedral e o bazar", texto que se tornou uma referência obrigatória para os movimentos pelos softwares livres no mundo. O documento foi atualizado diversas vezes e acabou se notabilizando como uma espécie de manifesto para os ativistas que se opunham ao modelo único do software proprietário. Uma versão pode consultada em http://www.catb.org/~esr/writings/cathedral-bazaar/cathedral-bazaar/ Acessado em 10 de março de 2014.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons