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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.30  Braga dez. 2016

https://doi.org/10.17231/comsoc.30(2016).2483 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Os meios públicos de comunicação e a construção da esfera pública

 

The public service broadcasting and the construction of a public sphere

 

 

Márcia Detoni*

*Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.

Marcia.detoni@gmail.com

 

 

RESUMO

Em uma era marcada por múltiplas plataformas de distribuição de conteúdo, oligopolização dos setores midiáticos e transnacionalização das indústrias culturais, não basta mais, para a mídia pública, informar, educar e entreter com independência e qualidade ética e estética como propôs a britânica BBC em 1927. Veículos financiados por recursos públicos precisam encontrar uma nova função social que os diferencie dos meios privados e justifique investimentos do Estado em comunicação. Para um crescente número de pesquisadores e analistas do tema, essa nova função é justamente a criação e fortalecimento de uma esfera pública midiática ampla, capaz de garantir aos cidadãos um espaço para o debate das questões coletivas, num processo que estimule a participação cidadã e a ação transformadora. Este artigo examina o papel dos serviços públicos de comunicação no século XXI a partir do pensamento do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, cujo conceito de esfera pública, aperfeiçoado por outros autores, tornou-se central nas discussões sobre a construção de espaços midiáticos emancipatórios.

Palavras-chave: Mídia pública; rádio e TV; esfera pública; interesse público.

 

ABSTRACT

In an age marked by multiple distribution platforms of content, oligopoly of media sectors and transnational nature of cultural industries it is not any longer enough for the Public Broadcast to inform, educate and entertain with independence and technical, ethics and aesthetics quality, as proposed by the British BBC in 1927. Public Radio and Television need to find a new social function that distinguishes them from the private media and justify state investment in communication. A rising number of scholars point out that this new function is the creation and strengthening of a broad media public sphere able to guarantee citizens a space for debate on common issues, a process that encourages citizen participation and transformative action. This article examines the role of Public Broadcasting in the twenty-first century according to the media theories influenced by the thought of the German philosopher and sociologist Jürgen Habermas, whose concept of the public sphere has become central in discussions about building dialogic media spaces.

Keywords: Public media; radio and TV; public sphere; public interest.

 

 

Introdução

Desde os anos 1980, com o fortalecimento das ideias neoliberais no Ocidente, a mídia financiada por verbas públicas enfrenta uma séria crise de identidade e legitimidade, com cortes nos orçamentos e pressão por audiência. Em vários países europeus, a mídia pública, que no século XX desempenhou uma atividade fora da lógica do lucro – um espaço não capitalista dentro do capitalismo, como apontou Mattelart (1974) – tornou-se uma cópia dos canais privados, com ênfase no entretenimento fácil. Dramas leves e populares, quizzes e eventos esportivos ganharam o horário nobre, enquanto programas culturais e documentários perderam espaço na programação. No Canadá, em uma estratégia desesperada para aumentar a audiência, a Canadian Broadcasting Corporation (CBC), passou a transmitir programas e filmes popularescos produzidos pela TV comercial americana. Na América Latina e especificamente no Brasil – onde a legislação exige das emissoras públicas um enfoque educativo-cultural para não ameaçar a hegemonia da mídia comercial –, as críticas aos veículos financiados pelo Estado se referem principalmente à utilização política das emissoras, à baixa audiência e ao pouco impacto sócio-cultural das transmissões.

Esse cenário de banalização da programação dos meios públicos na Europa e na América do Norte e de manipulação política de emissoras estatais nos países em desenvolvimento levou estudiosos e comunicadores a declararem no final do século XX – com pesar ou contentamento – a morte iminente da mídia pública (Raboy, 1998, p. 167). Num cenário midiático em transformação e altamente competitivo, no qual emissoras comerciais passam a assumir responsabilidades públicas para cumprir exigências legais ou para agregar valor a seus produtos, qual é a necessidade de o Estado continuar investindo em comunicação? Canais especializados já oferecem, via cabo, satélite, internet e até via terrestre, programas culturais e informativos semelhantes aos produzidos pela mídia pública. No Brasil, o Canal Futura, um projeto de TV educativa da Fundação Roberto Marinho via cabo, satélite e UHF, tornou-se referência de investimento social privado, conquistando vários prêmios nacionais e internacionais pelo espírito comunitário e pela relevância pública de seu conteúdo.

Liberais, defensores do estado mínimo, apresentam argumentos contundentes contra gastos públicos em mídia. O mercado livre, na visão liberal, é o mecanismo ideal para a satisfação das necessidades individuais e sociais; por ser mais produtivo e eficiente, mostra-se superior à intervenção estatal na oferta daquilo que o público necessita e deseja. Um número crescente de acadêmicos, de organizações internacionais de desenvolvimento, como a Unesco, e de entidades do movimento social aponta, no entanto, uma preocupante lacuna na mídia em geral, tanto pública quanto privada: a ausência de um fórum plural para o debate das questões coletivas e o incentivo à participação cidadã, fundamental numa democracia vibrante.

Dois grandes fenômenos na mídia mundial neste início de século corroem as bases da democracia ocidental: a redução dos espaços de informação dentro de conglomerados globais e o crescente afastamento do jornalismo de suas responsabilidades públicas, com a notícia virando entretenimento e o entretenimento, notícia (Kovach & Rosenstiel, 2007). Ao suprimir da programação questões essenciais à vida pública ou abordá-las apenas pelo ponto de vista de determinados grupos, a mídia dominante acentua exclusões e inviabiliza acordos e soluções para o desenvolvimento de todos.

No Brasil, a crise política que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 mostrou, por sua vez, os prejuízos para a democracia de uma mídia hegemônica e partidarizada. Faltou, na mídia brasileira, espaço equilibrado e plural de informação e discussão política. Enquanto a grande imprensa manipulou contextos, selecionou denúncias, apresentou acusações sem provas e impôs uma visão unilateral dos problemas políticos e econômicos, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), controlada pelo governo federal, assumiu a defesa do Palácio do Planalto, oferecendo-se como contraponto aos meios conservadores na guerra de narrativas.

A prevalência do infoentretenimento e, em alguns países como o Brasil, de um jornalismo matizado por interesses políticos representa, no entanto, uma oportunidade para reafirmarmos a importância de veículos de serviço público editorialmente independentes e conectados com as aspirações sociais. Vários autores, como Marc Raboy (1997), Dave Atkinson (1997), Patricia Aufderheide (2000), Douglas Kellner (2000), Robert McChesney (2003) e Karol Jakubowicz (2007), defendem a revitalização das emissoras públicas para a garantia de uma democracia verdadeiramente participativa, na qual cidadãos bem informados, ativos e organizados possam atuar de forma transformadora. Este artigo apresenta uma análise exploratória sobre o papel da mídia pública no século XXI a partir do pensamento do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, cujo conceito de esfera pública, popular entre pensadores do Ocidente nas últimas décadas, impulsionou os debates sobre a função de “praça pública” da mídia nas sociedades democráticas. O objetivo é oferecer contexto, fundamentos teóricos e relatos de ações bem sucedidas para uma reflexão mais ampla sobre a construção de espaços midiáticos emancipatórios.

O conceito de esfera pública

O entendimento de que a mídia tem entre suas funções oferecer um espaço de debate de questões públicas para a consolidação da cidadania e da democracia ganhou ímpeto nas discussões acadêmicas a partir da tese de livre docência do filósofo e sociólogo Jürgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, editada em alemão em 1962 e popularizada nos anos 1980, após tradução para o inglês e outros idiomas. Embora muitos dos primeiros pensadores liberais e liberais-democratas tivessem assinalado a importância de uma imprensa independente para a democracia, o tema havia praticamente desaparecido nas obras dos mais recentes teóricos sociais e políticos (Thompson, 2008, p. 67). A investigação de Habermas mostrou-se, assim, pioneira não só por estabelecer a esfera pública burguesa como categoria que emerge da sociedade capitalista criando, pela primeira vez, um espaço de busca de consenso racional em torno de questões políticas, mas por evidenciar a importância da imprensa no desenvolvimento das instituições do Estado Moderno e sua transformação, no século XX, num meio que fabrica opinião pública e consensos a serviço da elite dominante (Thompson, 2008).

O trabalho de Habermas, como aponta o filósofo americano Douglas Kellner (2000), inspirou muitos a imaginar e cultivar espaços e fóruns mais democráticos, inclusivos, igualitários. Suas ideias deram um novo estímulo às discussões sobre a democratização da sociedade e da esfera pública, principalmente a partir do surgimento de tecnologias interativas de informação e comunicação. É importante ressaltar, no entanto, que, antes de Habermas, a filósofa e pensadora política alemã Hannah Arendt já havia discutido os conceitos de esfera pública e privada em A condição humana. Na obra, publicada em 1958, a autora não relaciona a esfera pública moderna à mídia, mas contribui para o estabelecimento do conceito de espaço público, retomado e aprofundado, logo depois, por Habermas.

Em A condição humana, Arendt define a esfera pública como um espaço com duas dimensões essenciais à prática da cidadania: a aparência, ou seja, “aquilo que pode ser visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos”, um espaço de fala, de liberdade política, e o mundo comum, relacionado às instituições, aos negócios, ao mundo que reúne os seres humanos e evita que colidam uns com os outros (Arendt, 2005, pp. 59-62). A autora, decepcionada com o nazi-fascismo, critica a sociedade de massa por ter descaracterizado a esfera pública ao enfraquecer o elo que mantém as pessoas relacionadas umas às outras.

Na visão de Arendt, a reativação da cidadania no mundo moderno depende tanto do resgate do mundo comum como da criação de inúmeros espaços de visibilidade (aparência) nos quais os indivíduos possam revelar suas identidades, trocar opiniões e estabelecer relações de reciprocidade e solidariedade. Já Habermas, em sua tese de livre docência, dá ênfase à esfera pública não como espaço de visibilidade, de reconhecimento, de troca de opiniões, mas como espaço de disputa entre discursos, um fórum de comunicação essencialmente política, formado por pessoas privadas que buscam um consenso sobre questões de interesse coletivo com base na força do melhor argumento e fora do poder político e econômico.

Habermas observa que essa esfera pública argumentativa, racional, constituída de um público pensante, crítico, interessado no bem comum, capaz de se contrapor ao poder estatal e de se reunir para debater as normas da sociedade e da condução da administração do Estado, só existiu uma vez na história da humanidade e por um breve período: na Europa do século XVIII, mais especificamente na Inglaterra, na França e na Alemanha.

O desenvolvimento do capitalismo mercantil, a ascensão econômica da burguesia e o declínio do absolutismo, segundo o autor, criaram as condições para o surgimento, na Inglaterra, na virada para o século XVIII, de um novo tipo de esfera pública, crítica do Estado, formada por pessoas privadas reunidas num público para defender sua liberdade econômica e a racionalidade na gestão pública. A burguesia instruída (com hegemonia econômica, mas sem poder político) interagia entre si e com a nobreza, (detentora de cargos públicos por força da superioridade hereditária), em posição de certa igualdade, em salões, cafés, casas de chá e associações para discutir a regulamentação da sociedade civil e obter a própria emancipação política e humana, inspirada nos ideais iluministas de igualdade, liberdade e universalidade de direitos.

A imprensa, que se desenvolvia a partir da politização de um público que reivindicava ter direito de acesso ao atos do Estado, alimentava a troca de ideias e informações e teve papel preponderante na formação da esfera pública burguesa e, consequentemente, na configuração institucional do Estado moderno. O surgimento de jornais e de outras publicações autônomas que comentavam a vida pública e faziam críticas à Coroa e ao Parlamento, modificaram a natureza do poder público, forçando-o a publicar seus atos e a prestar contas sobre eles. “A imprensa se estabelece propriamente como órgão crítico de um público que pensa a política: como quarto Estado” (Habermas, 1984, p. 78).

Na interpretação do filósofo alemão (1984, p. 213), esse espaço de argumentação racional e de formação de uma opinião pública informada acaba, no entanto, se dissolvendo no século seguinte. Com as revoluções democráticas e a implantação do Estado burguês de Direito, a esfera pública burguesa foi institucionalizada. Leis constitucionais foram criadas para garantir os direitos políticos, enquanto as disputas entre indivíduos, ou entre indivíduos e grupos e o Estado passaram a ser mediadas pelo sistema jurídico. A imprensa crítica se alivia de suas pressões pela liberdade de opinião, podendo, assim, abandonar posições polêmicas e assumir as chances de lucro de uma empresa comercial.

Na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, a transformação de uma imprensa politizante em uma imprensa comercializada ocorre mais ou menos na mesma época, nos anos 1830. Os jornais assumem caráter de um empreendimento que produz espaço para anúncios e se torna vendável como mercadoria por meio da parte destinada às notícias, ficando subordinado a pontos de vista da economia de mercado (Habermas, 1984, pp. 217-216).

A invasão da esfera pública pela publicidade por razões comerciais a partir do século XIX não precisaria, segundo Habermas, provocar a sua transformação. As funções jornalísticas poderiam continuar separadas das atividades publicitárias, mas isso não ocorreu; “a representação jornalístico-publicitária de privilegiados interesses privados esteve desde o começo plenamente amalgamada com interesses políticos” (1984, p. 225). Além disso, o surgimento das atividades de relações públicas no início do século XX teve forte impacto sobre o conteúdo midiático. Os profissionais de relações públicas passaram a usar a mídia para trabalhar a opinião pública e produzir consenso e aceitação em torno de uma pessoa, um produto, uma organização ou uma ideia com vistas à manutenção do controle social.

Se antes, a mídia intermediava e reforçava o raciocínio de pessoas privadas reunidas em público, ela passa, numa sociedade de comunicação de massa, como observa Habermas, a cunhar esse raciocínio. A esfera pública de debates, dominada pela mídia, se transforma em um meio de propaganda de ideias e produtos e a crítica competente cede lugar ao conformismo. Em vez de uma opinião pública formada num debate político aberto interessado no bem comum, o que se configura no capitalismo contemporâneo é, segundo Habermas, uma atmosfera pronta para a aclamação dos interesses privados da elite. Com o declínio da esfera pública, os cidadãos se transformam em consumidores, dedicando-se mais à aquisição de bens e ao mundo privado que às questões públicas e à participação democrática.

A investigação do jovem Habermas sobre a esfera pública foi objeto de intensas críticas que o levaram, anos mais tarde, a esclarecimentos e revisões. Na publicação de 1962, o autor já se referia à esfera pública burguesa como uma estilização, reconhecendo suas contradições, mas o modelo adotado por ele foi considerado utópico. Os críticos argumentam que Habermas idealizou a esfera pública burguesa ao apresentá-la como um fórum aberto e amplo de debate, quando as discussões, na verdade, restringiam-se a homens brancos, afluentes e letrados. O autor alemão teria ignorado a importância de outras atividades públicas existentes na época envolvendo movimentos sociais plebeus, sindicatos de trabalhadores e a luta das mulheres por emancipação política.

Cientistas políticos e historiadores observam que movimentos populares de grande vitalidade desenvolveram-se concomitantemente à esfera pública burguesa e em oposição a ela para representar vozes e interesses excluídos daquele fórum. Outra forte limitação da análise habermasiana apontada pelos críticos é o fato de o filósofo alemão apresentar os consumidores de mídia como figuras passivas e facilmente manipuladas pelas técnicas midiáticas, quando estudos nessa área mostram espaços de resistência e pensamento crítico por parte dos receptores, que decodificam as mensagens de acordo com o grau de instrução e conhecimento e também são influenciados por trocas ocorridas no meio social, como na escola, na igreja ou no clube (Avritzer & Costa, 2006; Brigs & Burke, 2006).

Em 1990, no prefácio à reedição alemã, Habermas faz uma revisão de sua análise sobre a esfera pública burguesa dizendo perceber que, desde o começo, o público burguês dominante colidiu com o público plebeu e que sua análise subestimou a importância das esferas públicas oposicionistas e não burguesas. Portanto, mais do que conceber uma esfera pública liberal e democrática é mais produtivo, segundo ele, teorizar uma multiplicidade de esferas públicas, algumas vezes em sobreposição, mas também em contraposição. Isso inclui esferas de grupos excluídos, como movimentos sociais periféricos, e também configurações dominantes, como o Parlamento e a imprensa (Kellner, 2000).

Em obras posteriores, Habermas continua buscando uma esfera pública autêntica, livre dos interesses do mercado e da burocracia do Estado para uma formação mais racional da vontade e da opinião. Em “Três modelos normativos de democracia” (1995), o autor vai defender a constituição de um novo mecanismo de integração social, além do dinheiro e da administração: a solidariedade e a orientação para o bem comum. Esse poder, com base na sociedade civil, emanaria de esferas públicas autônomas, formadas por novos sujeitos solidários em contraposição ao Estado burocrático e ao capital.

A retomada do conceito de mídia como esfera pública

O pensamento de Habermas em relação ao papel da mídia na sociedade e sua transformação em um espaço a serviço da manutenção do status quo tem por base as análises da indústria cultural de dois importantes pensadores da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Max Horkheimer e Theodor Adorno, para quem o espaço público havia sido transformado pelas grandes corporações em um espaço manipulador de consumo passivo de entretenimento e informação. Habermas também foi influenciado por outros autores que discutiram a cultura e a comunicação de massas nos Estados Unidos na década de 1950, entre eles C. Wright Mills, que estudou a transformação do público em uma massa na sociedade de consumo contemporânea e a capacidade da mídia de moldar comportamentos e induzir a classe média ao conformismo (Kellner, 2000).

Para Kellner, Habermas falhou ao não pensar a natureza e as funções sociais da mídia contemporânea, excluída totalmente por ele da democracia e da possibilidade de contribuir para a transformação democrática. O acadêmico americano observa que, para a criação de uma democracia genuinamente participativa, os cidadãos precisam estar informados e ser capazes de argumentar e participar. Informados, ativos e organizados, eles podem se transformar numa força política democrática:

Habermas, […] não vislumbra como as novas mídias e tecnologias poderiam levar a uma expansão e revitalização de uma esfera pública nova e mais democrática. De fato – e isso é o crucial de minha crítica às posições dele –, Habermas simplesmente não teoriza as funções da mídia na esfera pública contemporânea, formulando seu modelo mais da comunicação e discussão face a face do que da interação da mídia ou da comunicação mediada pela mídia e pela tecnologia. (Kellner, 2000, s/p)

Apesar de Habermas ignorar em suas análises o potencial das tecnologias de comunicação na construção de uma esfera pública democrática, vários autores veem na mídia contemporânea a possibilidade de resgate de sua função de “ágora” nos termos apresentados pelo filósofo alemão, ou seja, de espaço de discussão de temas de interesse comum e de influência nas decisões políticas num mundo que envolve um número crescente de pessoas e de grupos culturais e sociais, cujo encontro extrapola os espaços físicos da esfera civil e é cada vez mais dependente do espaço midiático.

A partir dos apontamentos de Habermas, o pesquisador canadense na área de mídia Dave Atkinson (1997), consultor da Unesco, define esfera pública como local de democracia ativa onde todos podem expressar seus pontos de vista com igualdade; um local protegido dos interesses comerciais e políticos onde os cidadãos encontram a informação e o conhecimento necessários para o próprio desenvolvimento e adequação ao ambiente cultural e onde o público é formado por meio da comunicação. É fundamental para a democracia, segundo ele, que esses elementos sejam resgatados pela mídia no exercício de sua função social.

Fackson Banda, professor da Universidade de Rodhes, na África do Sul, e especialista da Unesco em mídia e participação cívica, observa que o conceito de esfera pública oferece a possibilidade de redefinirmos as funções da mídia na sociedade. “Isso indica que a mídia pode exercer funções de apoio à participação cidadã e à democracia” (Banda, 2009, p. 18). O acadêmico salienta que, para atuar como esfera pública, a mídia precisa estar aberta a todos os tipos de opinião e a todas as pessoas, independentemente da posição que ocupem na sociedade, devendo, assim, incluir as mulheres, encorajar a participação voluntária dos que querem contribuir para a formação da opinião pública, facilitar a discussão de questões políticas e ações do Estado e permitir a crítica à organização do Estado ou a qualquer setor.

É importante, segundo ele, que os meios de comunicação de massa abram espaço para os diversos posicionamentos, sem favorecer uma visão específica e excluir perspectivas políticas alternativas. Banda salienta ainda que a mídia não deve ignorar a existência de contestações e disputas políticas, que refletem a existência de pluralismo agonístico, um indicador importante da saúde democrática da sociedade. Cabe à mídia, assim, promover maior compreensão e adesão às virtudes cívicas da tolerância, do respeito e da integridade na convivência com pensamentos e grupos opostos, percebidos como adversários e não como inimigos.

A ideia da comunicação social como espaço público (a partir dos conceitos de Habermas, Arendt e de outros pensadores do papel da mídia na democracia, como os filósofos pragmáticos americanos John Dewey e Richard Rorty) também influenciou o desenvolvimento de um novo conceito e de uma nova prática jornalística nos Estados Unidos, nos anos 1990, conhecida como Civic Journalism ou Jornalismo de Interesse Público, movimento que acrescenta às funções tradicionais do jornalismo – informar e fiscalizar – uma terceira missão: criar e sustentar o debate público para a conscientização política e a transformação social (Banda, 2009; Fernandes, 2008).

O conceito de Civic Journalism, criado por David Merrit, editor-chefe do pequeno diário Wichita Eagle, da cidade de Wichita (Kansas), surgiu como resposta ao distanciamento crescente entre os diversos níveis de governo e os cidadãos americanos e à apatia do público em relação às questões sociais na disputa presidencial de 1988, fato evidenciado pela baixa participação no pleito. Para Merrit, a queda nas vendas de jornais no mesmo período evidenciava também o afastamento entre a mídia e o público, com os meios de comunicação dando mais destaque à corrida eleitoral que às questões de interesse comum. Ele e outros pioneiros do Civic Journalism acreditavam que os leitores estavam desencantados com a imprensa americana pela forma com que, às vezes, ela passava ao largo de suas aflições. O editor do Wichita Eagle identificou a necessidade de uma nova prática jornalística que motivasse os americanos para o exercício da cidadania e para voto, que é facultativo nos EUA. O movimento iniciou pregando a escolha de candidatos comprometidos com a comunidade e com a luta contra a pobreza e as drogas, passando, em seguida, a defender também o engajamento do jornalismo em causas sociais para estimular o debate e a busca de soluções (Fernandes, 2008).

A popularização da internet a partir da década de 1990 abriu novas possibilidades de comunicação e de constituição de uma multiplicidade de esferas públicas midiáticas autônomas:

O ciberespaço é muito mais inclusivo do que todos os outros meios de comunicação anteriores. Ele permite a expressão pública a todos os indivíduos, grupos, instituições e comunidades, inclusive as comunidades (virtuais) que não existiam anteriormente. Em detrimento das antigas elites culturais, as barreiras geográficas, econômicas, culturais e políticas à liberdade de expressão e de associação quase desapareceram. [...] Os internautas poderão se revelar cidadãos bem mais informados, politicamente mais ativos e socialmente mais conscientes do que os cidadãos off line. [...] Os cibercidadãos expõem as ideias em seus websites e a prática do diálogo habituou-os à discussão, à deliberação pública. (Lévy, 2003, pp. 375-376)

O sociólogo tunisiano naturalizado francês vê nas novas “ágoras virtuais”, com suas listas de discussão, fóruns eletrônicos, debates e enquetes online sobre questões políticas e públicas, a possibilidade, jamais vista, de fortalecimento de uma cultura estruturada no diálogo que só pode favorecer a médio e longo prazos o espírito democrático fundamentado na deliberação, “a saber, o exercício da inteligência coletiva na elaboração das leis e das grandes decisões políticas” (Lévy, 2003, p. 381).

Apesar do entusiasmo com os novos canais de participação pública disponibilizados pela internet e de práticas como a do Civic Journalism, tais experiências ainda representam uma esfera pública pulverizada. Embora fundamentais para suas comunidades e à democracia, as microesferas não suprem a necessidade de uma esfera pública ampla, capaz de fortalecer os laços sociais de uma nação, o que só é atingível pelos meios de comunicação de grande alcance e com programação voltada a um público abrangente (Atkinson, 1997; Raboy, 1997; Scannel, 1997).

A mídia eletrônica generalista ainda se apresenta como a grande ágora nacional. O estudioso britânico de mídia Paddy Scannel (1997) se refere ao rádio e à TV como os meios mais democráticos pela capacidade de alcançar os excluídos do mundo das letras e das novas e complexas tecnologias de informação. Wolton (1990, p. 124) destaca que a mídia eletrônica, em especial a televisão generalista, pela força advinda da imagem e do grande público das redes nacionais, constrói laços sociais entre os que compartilham o mesmo conteúdo e referências e se apresenta como “espelho” da sociedade. A sociedade se vê por meio da televisão.

A mídia eletrônica, quando engloba valores comunitários e igualitários não presentes em outros recursos culturais, promove, assim, coesão social e se estabelece, diante dos outros meios, como o principal instrumento da esfera pública. O problema, como identificam alguns autores, é que os meios de comunicação de largo alcance “dificilmente se dispõe a mediar, por amor cívico, a grande discussão da comunidade política nacional” (Gomes, 2006, p. 58). Eles são “entidades corporativas governadas por motivo de lucro e com a grande função de entregar globos oculares a anunciantes” (Aufderheide, 2000, p. 101), o que os impede de funcionar como fórum público de debate. É nesse sentido que autores como Aktinson, Raboy, McChesney, Jakubowicz e Aufderheide defendem a necessidade, para o fortalecimento da democracia e da esfera pública, de uma mídia eletrônica de massa de serviço público, livre da interferência de interesses econômicos e políticos, que possibilite a expressão de todas as vozes da sociedade e o debate das questões coletivas.

Mudança de paradigma

A mídia de serviço público tem por definição algumas características básicas estabelecidas desde a chegada do rádio no Reino Unido e a criação da British Broadcasting Corporation (BBC), a primeira empresa pública de rádio do mundo. Seu mentor, John Reith, via no novo veículo eletrônico um poderoso canal de comunicação capaz de educar, informar e entreter. O objetivo não era colocar no ar programas de grande audiência para a venda de anúncios publicitários como ocorria nos Estados Unidos, mas uma programação sem fins lucrativos de alta qualidade, no conteúdo e na forma, devotada a elevar o nível de informação e conhecimento cultural do público.

Vários modelos de mídia de serviço público desenvolveram-se ao longo dos anos, com diferentes estruturas legais, administrativas e de sustentação financeira, mas o modelo reithiano introduziu em 1926 alguns princípios frequentemente citados como pré-condição para o atendimento do interesse público: universalidade (conteúdo acessível a todos), diversidade (programação para audiências com diferentes interesses), independência (liberdade editorial) e distinção (conteúdo que justifique o financiamento público).

Desde os anos 1990, estudiosos da mídia pública enfatizam, no entanto, que os princípios reithianos apresentados acima já não são mais atributos suficientes para legitimar o investimento do Estado ou do público em comunicação, principalmente com a mídia privada já oferecendo, em canais especializados, programas culturais e informativos semelhantes ao das emissoras financiadas com recursos públicos. Para realmente cumprir o papel que lhe cabe e que a diferencia da mídia comercial, a mídia pública do século XXI precisa acrescentar à famosa tríade de Reith uma nova missão: promover a participação e sustentar o debate público.

Patricia Aufderheide, professora de Estudos da Comunicação na Universidade Americana, em Washington, questiona o papel da mídia pública na sociedade contemporânea. Segundo ela, as emissoras de prestação de serviço público não podem mais se contentar em oferecer cultura clássica ou em ser apenas uma versão melhorada da mídia comercial:

É a TV pública meramente uma instância específica do “interesse público” que todas as emissoras prometem servir? É suficiente que seja apenas não comercial ou educativa, em oposição à corporativa ou governamental? Sua razão de ser é ajudar o processo democrático de dar e receber informações ou oferecer o creme cultural? Ou tornar pública as vozes das minorias sub-representadas numa sociedade plural? (Aufderheide, 2000, p. 104)

Ao analisar a TV Pública nos Estados Unidos, Aufderheide detecta o que chama de uma “crise de missão”, que ocorre não apenas por falta de recursos financeiros, mas por questões ideológicas. Segundo ela, as aspirações dos dirigentes de várias emissoras públicas se aproximam mais das aspirações das emissoras comerciais (ter uma programação campeã de audiência) do que do ideal de usar a comunicação de massa como uma ferramenta da vida pública:

Uma televisão verdadeiramente pública teria de se tornar uma instituição cuja principal tarefa não é produzir programas sejam eles esplêndidos ou horrendos, mas fortificar a esfera pública. Assumir esse desafio significaria abandonar o papel tradicional de difusão para se torna um organizador do espaço público eletrônico. Seria trazer para primeiro plano a luta pelo estabelecimento de relações entre pessoas com diferenças profundas com o objetivo de encontrar uma base comum para articular e abordar questões que pertencem ao bem comum. Essa organização seria construída em todos os processos de produção e distribuição. Exigiria uma base financeira protegida das pressões corporativas e da censura do governo e um mandato explícito. Dessa forma, a medida do sucesso seria o nível de cidadania ativa e não de contribuições de associados ou índices de audiência. (Aufderheide, 2000, p. 116)

O professor emérito da Universidade de Westminster, em Londres, Nicholas Garnham, autor de vários livros sobre mídia e ex-diretor e produtor da BBC, concorda:

A essência das transmissões de serviço público é a provisão a todos os cidadãos, em termos iguais e como condição para a existência de tal cidadania, de um espaço para a expressão e a troca culturais, por meio das quais são formadas as identidades sociais, e de acesso à informação e ao debate sobre os quais a política democrática deve estar assentada. Para cumprir este papel, o espaço deve ser o mais livre possível dos efeitos de distorção do exercício dos poderes econômico ou do Estado. (Garnham citado em Atkinson, 1997, p. 41)

Para a pesquisadora australiana Georgie McClean (2008, p. 71), especialista em comunicação e cultura, o grande desafio atual da mídia de serviço público é contemplar em sua programação a diversidade cultural e a ambivalência na vida pública nacional. “Se [esta questão] não for respondida eficazmente, corroem-se as pretensões das emissoras públicas de valor público, legitimidade e relevância”. A busca por legitimidade, segundo ela, torna-se ainda mais fundamental diante dos renovados esforços da mídia comercial para pôr fim aos investimentos do Estado em comunicação. Na União Europeia, por exemplo, o setor privado tem constantemente argumentado junto às autoridades que as emissoras públicas não merecem subsídios por produzirem conteúdo semelhante à mídia privada e desempenharem o mesmo papel social e mercadológico.

Diante da enorme pressão do setor privado, empresas públicas e alguns governos da Europa montaram uma vigorosa defesa dos valores do serviço público e obtiveram algum apoio legal. Tanto o Acordo sobre Comércio de Serviços na União Europeia como a Convenção da Unesco sobre Diversidade Cultural e Expressão Artística reconhecem a relevância e a distinção dos serviços prestados pela mídia pública. Em alguns países, como no Canadá e no Reino Unido, os esforços pelo reconhecimento da mídia pública contaram com a mobilização de movimentos sociais e de amplos setores da sociedade. Para compatibilizar a mídia pública com os princípios de competição justa e operação de um livre mercado, tanto a Comissão Europeia quanto a Unesco deixaram claro que o objetivo das emissoras de serviço público é prover as necessidades democráticas, sociais e culturais de uma dada sociedade e garantir a pluralidade, incluindo a diversidade linguística e cultural (McClean, 2008).

McClean observa que a esfera pública plural nunca será perfeita e completa, mas é fundamental que as emissoras de serviço público abram canais de expressão e de diálogo para diferentes públicos. Substituir formas tradicionais e confortáveis de programação verticalizada para um público específico por abordagens multiculturais criativas, com conteúdos distintos e atraentes não é fácil. A tradição dificulta o realinhamento com as audiências, mas, na visão de McClean, não há outro caminho: “Emissoras públicas devem responder às contínuas exigências por reinvenção com curiosidade e vigor criativo, ou serão relegadas à irrelevância como relíquias de uma era passada” (McClean, 2008, p. 78).

Para uma mídia de prestação de serviços públicos tradicionalmente voltada à produção de programas educativos e culturais, redefinir-se como mediador do debate social em contraposição ao de emissor exige uma boa dose de ousadia e de enfrentamento com interesses políticos e comerciais. Na esfera pública midiática plural, todos falam e podem criticar livremente o Estado, em um processo dialógico que pode incomodar os poderosos. Os governos, que muitas vezes financiam diretamente os meios públicos, não aceitam críticas e frequentemente usam a “arma orçamentária” para delimitar a programação. Por outro lado, atenta às inovações, a mídia privada pressiona o poder público contra qualquer alternativa pública capaz de atrair audiência.

No Brasil, a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em 2008 – a partir da fusão de vários veículos de comunicação controlados pelo governo federal – evidenciou a dificuldade de se colocar em prática os preceitos de uma mídia democrática e plural promotora e mediadora de debates e reflexões sobre a vida pública.

Se examinarmos a Lei n° 11.652/08 que criou a empresa e instituiu os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Executivo, veremos que a proposta de criação da empresa estava bastante alinhada ao pensamento contemporâneo sobre comunicação pública. Os veículos da EBC deveriam oferecer mecanismos para debate público acerca de temas de relevância nacional e internacional; desenvolver a consciência crítica do cidadão; fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade; garantir espaços para exibição de produções regionais e independentes; direcionar sua produção e programação pelas finalidades educativas, artísticas, culturais, informativas, científicas e promotoras da cidadania; estimular a produção e garantir a veiculação, inclusive na rede mundial de computadores, de conteúdos interativos, especialmente aqueles voltados para a universalização da prestação de serviços públicos.

Apesar dos claros princípios habermasianos de esfera pública observados na lei, análises sobre a programação da TV Brasil, o carro-chefe da EBC, evidenciaram, num primeiro momento, a ausência de espaços para o debate e o aprofundamento de temas políticos (Barros e Bernardes, 2011; UFJF, 2011). Com um forte passado de programação educativa, a TV Brasil – formada pelas antigas TVE do Rio de Janeiro, TVE do Maranhão e TV Nacional de Brasília – encontrou dificuldades em incorporar a nova missão, dedicando-se significativamente mais à programação educativa, infantil e cultural. Em relação ao jornalismo, uma análise encomendada pelo Conselho Curador da EBC à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, 2011) no período anterior à crise política que levou ao impeachment da presidente Dilma apontou que os telejornais da emissora não se diferenciavam em relação aos oferecidos pelo setor comercial. Faltaram profundidade e representação das diferentes correntes de pensamento da sociedade. O telejornalismo da TV Brasil, segundo o relatório, deveria buscar uma seleção temática sintonizada com o interesse público, valorizando menos as agendas oficial e comercial e priorizando a manutenção da independência política com maior pluralidade de fontes. O relatório recomendou que o jornalismo da TV Brasil investisse nos laços com o público ou ainda com a sociedade civil organizada, que deveria se tornar fonte com mais frequência.

A avaliação atribuiu a falta de debate político, na época, a um possível temor da emissora de ser acusada de “chapa-branca”. Observa-se, porém, outro elemento limitador: o fato de o cargo de presidente da EBC ser uma indicação do Palácio do Planalto, num modelo de gestão que gera dúvidas não só quanto à independência editorial da empresa, mas também quanto à própria estabilidade no cargo de funcionários que ousarem colocar no ar qualquer crítica ao governo. Trata-se de um constrangimento verificado em praticamente todas as emissoras brasileiras financiadas por verbas públicas. Mesmo a TV Cultura de São Paulo, tida como a emissora mais próxima do modelo de comunicação pública independente (por ser atrelada a uma fundação de direito privado), tem sido alvo de críticas constantes pela ingerência política do governo estadual.

Se o temor de contrariar o Palácio do Planalto ou de ser acusada de “chapa-branca” inibiu a EBC de aprofundar o debate de temas de interesse público no primeiro mandato de Dilma (2011-2014), a instabilidade política e econômica, no segundo mandato (2015-2016), criou crises internas que culminaram com mudanças na presidência da empresa e em outros cargos de chefia. Com a deflagração do processo de impeachment, a EBC foi convocada a defender o governo. A mudança na linha editorial alarmou membros do Conselho Curador da Empresa, além de defensores da mídia pública, que não pouparam críticas à nova postura. Jornalista e integrante do coletivo pelo direito à comunicação Intervozes, Mariana Martins escreveu na revista Carta Capital:

A repercussão da linha editorial da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), assumida desde o início da crise política e aprofundada na última semana, tem gerado satisfação por parte da direção da empresa, da diretoria executiva ao Palácio do Planalto. Os recorrentes programas com apoiadores do governo como entrevistados vêm sendo compartilhados pelos partidários da bandeira “contra o golpe”. A EBC está sendo vista como o “contraponto” à Globo neste processo de noticiamento espetacularizado – que eu não ouso chamar jornalismo. Nas redes sociais, tem sido citada como refúgio para os que são contra o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e buscam alguma diversidade na cobertura televisiva. É fato que a emissora tem acertado ao buscar aprofundar a análise sobre os fatos, por meio de discussões, em estúdio, sobre as falas dos parlamentares, os protestos nas ruas, a crise e suas diversas repercussões. No entanto, a TV ainda está distante de garantir equilíbrio e diversidade de opiniões e informações, elementos fundamentais da comunicação pública. (Martins, 2016, s/p)

Menos de 48 horas após ser confirmado no Planalto, o sucessor de Dilma, Michel Temer, publicou medida provisória (MP) alterando a lei de criação da EBC. A MP exonerou o presidente da empresa apontado por Dilma para mandato de quatro anos e extinguiu o Conselho Curador, instância consultiva e deliberativa (composta por 22 membros, sendo 15 da sociedade civil) responsável por zelar pelo cumprimento da missão pública da EBC. A medida foi publicada sob a alegação de que seria preciso mudar a lei para resolver os problemas gerados pelo “partidarismo” das gestões anteriores. A extinção do Conselho Curador retirou da EBC, no entanto, o principal mecanismo de supervisão dos princípios e objetivos da comunicação pública, em um forte retrocesso no modelo já imperfeito implantado em 2008. A ausência de representantes da sociedade civil nos conselhos administrativos reforça ainda mais o caráter estatal da empresa.

Por maiores que sejam os constrangimentos políticos, não se pode, porém, atribuir apenas a eles as dificuldades no desenvolvimento, no Brasil, de uma mídia pública democrática e emancipadora. Percebe-se também no país a falta de uma compreensão mais profunda do papel da mídia pública. Um estudo realizado por Zucoloto (2011) com 400 emissoras de rádio do campo público concluiu que a maioria não está totalmente voltada ao interesse público. Em boa parte, há semelhanças com os modelos comerciais, verificando-se apenas alguns espaços de distinção. As emissoras, segundo o estudo, continuam a transmitir programas elitistas, excluindo as audiências populares.

Um dos grandes desafios do Brasil no campo midiático é, portanto, a construção de referências de uma comunicação mais plural orientada pela lógica do interesse público. Vamos encontrar alguns exemplos bem sucedidos desse movimento em direção a uma mídia pública popular e emancipadora nos Estados Unidos, onde a National Public Radio (NPR) começou a repensar sua missão no final da década de 1990. Em 1997, o jornalista Jeffrey Dvorkin assumiu a vice-presidência de Notícias da rede e ajudou a liderar as transformações:

Decidimos que não poderíamos alcançar tudo o que nosso mandato determinava. Então perguntamos às emissoras (na rádio pública americana as emissoras parceiras detém a companhia) que escolhessem suas prioridades: notícia e informação ou programação cultural? As emissoras optaram por notícia e informação porque, como nos contaram, em nenhum lugar nos EUA, você consegue obter noticiário de qualidade no rádio, só na NPR. Assim tomamos decisões duras, vendemos nossa programação cultural para outras emissoras públicas regionais e investimos nossos recursos no Departamento de Jornalismo. Fomos capazes de contratar 45 jornalistas, expandir nossa cobertura, aumentar nossas sucursais nacionais e internacionais. Em cinco anos, triplicamos a audiência e aprofundamos nossa capacidade de cobrir as histórias que acreditávamos ser necessárias nos EUA para que os cidadãos ficassem informados. (Dvorkin citado em Detoni, 2015, p. 187)

Atualmente na direção do Programa de Jornalismo da Universidade de Toronto Scarborough, Dvorkin salienta que uma emissora pública pode ser distinta e ao mesmo tempo popular se tiver a coragem de fazer escolhas claras sobre seu modelo de serviço. No Canadá, a rádio pública também optou por uma programação menos elitista e mais conectada com as questões políticas, econômicas e sociais. Enquanto a CBC Television, dependente de verbas publicitárias para complementar seu orçamento, busca melhorar os índices de audiência copiando programas comerciais, a rádio CBC, com verbas exclusivamente estatais, investe em programas informativos de qualidade, com grande aceitação por parte do público. Ian Morrison, da organização não governamental “Friends of Canadian Broadcasting”, um grupo de vigilância e defesa do sistema canadense de programação audiovisual, afirma que a rádio CBC está significativamente alinhada aos valores da esfera pública e da participação cidadã. “Embora longe de ser perfeita, ela funciona como um espaço público, encorajando o acesso e a participação do cidadão na vida social, tanto na esfera nacional quanto nas esferas regional e local” (Morisson citado em Detoni, 2015, pp. 197-198).

Ao abraçar a pluralidade, a rádio Canadá viu seus índices de audiência aumentar, a exemplo do que ocorreu com a NPR. Mas há um ponto importante a ser observado nessa trajetória de sucesso: ao crescer significativamente em audiência, a NPR tornou-se alvo de fortes ataques do setor comercial e de políticos conservadores. Torna-se, assim fundamental, que a redefinição de missão das emissoras públicas envolva o público e venha acompanhada de uma mobilização para garantir o apoio de políticos e organizações sociais. O que a mídia pública realmente precisa é de “defensores de mais alto nível, tanto dentro quanto fora da gestão”, enfatiza Dvorkin (citado em Detoni, 2015, p. 188).

Considerações finais

As novas tecnologias de comunicação e informação, com suas amplas possibilidades de interação e participação, têm forçado a mídia em geral a repensar seus modelos de produção e transmissão de conteúdo. A democracia da internet e o anseio público por participação abalam a comunicação vertical e o paradigma difusionista, ao mesmo tempo em que abrem uma excelente oportunidade também para o reposicionamento da mídia pública na sociedade. Abraçar a interatividade e a comunicação participativa não se resume a criar espaços para perguntas, comentários, enquetes ou postagens de fotos e vídeos, práticas comuns em todos os veículos. A democracia requer meios mais robustos para o debate de questões sociais e políticas com objetivo de construir compreensão, entendimentos, acordos, tolerância. As emissoras públicas de rádio e TV, mesmo na era da internet, ainda têm um papel a cumprir como esfera pública generalista, capaz de ir além dos nichos das redes sociais e sites, embora devam se valer deles para a construção da pauta, o compartilhamento de conteúdos e a conexão com novos públicos.

O conceito de esfera pública, embora em discussão desde os anos 1990 na Europa e nos Estados Unidos, passou a ocupar posição central nos estudos internacionais do século XXI sobre a função social da mídia. De 1990 a 2000, a revista Media, Culture & Society, editada no Reino Unido, publicou 58 artigos relativos à esfera pública midiática. De 2000 a 2013, foram 247, grande parte deles estimulados pelo avanço da globalização e pela massificação da internet (Lunt & Livingstone, 2013). Há sólida reflexão teórica a respeito. É preciso, no entanto, criatividade, ousadia, coragem e um forte comprometimento com o interesse público para implantar mudanças na programação que promovam o empoderamento da audiência para uma participação bem informada e argumentativa na vida social.

 

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Nota biográfica

Marcia Detoni é jornalista e professora de Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolveu pesquisa sobre mídia pública e comunitária. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Ciências Sociais e Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Na mídia pública, foi produtora sênior do Serviço Brasileiro da BBC em Londres (1990-1999) e diretora do Departamento de Rádio da extinta Radiobrás (2003-2006). Atuou também em grandes empresas de comunicação, como Folha de S. Paulo e Agência Reuters.

Email: Marcia.detoni@gmail.com

Rua Maria Figueiredo, 350, ap. 32.

São Paulo-SP, 04002-002, Brasil

 

* Submetido: 11-03-2016

* Aceite: 13-04-2016

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