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Comunicação e Sociedade

versión impresa ISSN 1645-2089versión On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.38  Braga dic. 2020

https://doi.org/10.17231/comsoc.38(2020).2594 

ARTIGOS TEMÁTICOS

Discursos migrantes: estratégias de construção de nós e os outros em discursos jornalísticos de opinião

Migrant speeches: strategies for representing us and them in opinion journalistic discourse

 

Maria Aldina Marques*

http://orcid.org/0000-0003-3263-1977

Rui Ramos**

http://orcid.org/0000-0001-8700-8301

*Centro de Estudos Humanísticos, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho, Portugal

**Centro de Investigação em Estudos da Criança/Centro de Estudos Humanísticos, Instituto de Educação, Universidade do Minho, Portugal

 

RESUMO

O presente estudo analisa o tratamento mediático do fluxo migratório em direção à Europa num período de intensa visibilidade da questão na imprensa nacional (setembro e outubro de 2015), num corpus de textos de opinião e títulos de outros textos jornalísticos de três publicações generalistas de referência no âmbito nacional. Recorre aos fundamentos teóricos e aos instrumentos metodológicos da análise do(s) discurso(s), tomada em sentido amplo (Adam, 2011; Berthoud & Mondada, 1995; Charaudeau, 1997, Moirand 1999, 2006; Rabatel & Chauvin-Vileno 2006, nomeadamente), para descrever e analisar a construção discursiva das imagens dos migrantes em contraste com as dos europeus, com saliência para a dêixis pessoal, as escolhas lexicais e os processos de modalização, marcados nos discursos. Conclui que o discurso dos média foi fundamental para a construção discursiva do acontecimento social protagonizado pela chegada massiva de refugiados e migrantes à Europa. Essa construção articula-se em torno de dois grupos, nós e eles. Na atividade de referenciação levada a cabo, ocorre um processo de categorização e recategorização que aponta para a construção de um grupo homogéneo, eles, os outros, em torno de diferentes designações, mas maioritariamente em torno da designação “refugiado”. Em contraste com tal homogeneidade, o grupo constituído por nós, os europeus, está fraturado por dissensos em torno de valores, frequentemente marcados em estruturas paralelísticas opositivas. Os modos de referenciação, que convocam o conhecimento partilhado sobre a guerra, e a modalidade avaliativa enquadram o posicionamento dos locutores-enunciadores envolvidos na construção da opinião pública e conferem aos discursos uma vertente emocional forte.

Palavras-chave

migrantes; refugiados; média; dêixis; referenciação

 

ABSTRACT

This study analyses the press coverage of the migratory flow towards Europe in a period of intense visibility of this issue in the Portuguese press (September and October 2015), in a corpus of opinion texts and titles of other journalistic texts from three generalist reference publications at the national level. It draws on theoretical assumptions and methodological tools of discourse analysis, taken in a broad sense (Adam, 2011; Berthoud & Mondada, 1995; Charaudeau, 1997, Moirand 1999, 2006; Rabatel & Chauvin-Vileno 2006, nomeadamente), to describe and analyse the discursive construction of images of migrants in contrast to those of Europeans, with emphasis on the personal deixis, lexical choices and modalization processes marked in discourses. It concludes that the media discourse was fundamental in the discursive construction of the social event led by the massive arrival of refugees and migrants in Europe. This construction is structured around two groups, us and them. In the referenciation activity carried out, there is a process of categorization and recategorization that points to the construction of a homogeneous group, they, the others, around different designations, but mostly around the designation “refugee”. In contrast to such homogeneity, the group formed by us, the Europeans, is fractured by disagreements about values, often marked in oppositional parallel structures. The ways in which discursive referenciation is constructed, which call for shared knowledge about the war, and the evaluative modality frame the position of the locutors-enunciators involved in the construction of public opinion and give the speeches a strong emotional feature.

Keywords: migrants; refugees; media; deixis; referenciation

 

Introdução

A Europa está confrontada, e tem-se confrontado também, com o fenómeno social maior dos refugiados. É na imprensa que se apresentam e representam ecos da reação social e se propõem e confrontam imagens e identidades de nós, europeus, e dos outros, os “clandestinos, depois migrantes, exilados e, só por fim refugiados”, como refere Rui Cardoso (2015, p. 29). 

O discurso dos média é, por consequência, fundamental para a construção e difusão de representações sobre o mundo, sobre eventos que marcam a(s) sociedade(s). Porém os média não retratam a realidade, antes a criam ativamente (Charaudeau, 1997).

Reconhecendo tal predomínio, poderá mesmo afirmar-se que os média desempenham um papel social mais poderoso do que outras instituições no agendamento da vida social. Nash (2005, p. 18) atribui-lhes mesmo uma influência superior à de outras instituições tradicionais como o sistema familiar, religioso ou mesmo educativo.

Em particular, no quadro da atividade discursiva que releva de um género jornalístico específico, o artigo de opinião, destaca-se o papel dos opinion makers ou fazedores da opinião pública. Tomámos de van Dijk (2005, p. 37) a afirmação dessa centralidade dos média na sociedade atual, a par, como refere, de outros grupos de elite, como os políticos, os empresários ou os professores. O poder mediático é um poder “discursivo e simbólico” que influencia o cidadão anónimo, mas também as elites.

Assumindo este relevo dos média também na sociedade portuguesa, pretendemos analisar o modo como as imagens dos migrantes/refugiados e dos europeus, atores em situações complexas com interesses nem sempre convergentes, são construídas, nos discursos de opinião veiculados pela imprensa de grande circulação. É uma questão fundamental para a elucidação da representação discursiva do fluxo migrante para a Europa, “o ser humano em trânsito” (Nolasco, 2015, p. 47), que marcou a atualidade jornalística portuguesa ao longo de 2015 e 2016 e tem mantido, desde então, uma presença latente, ainda que menos ostensiva.

O objetivo nuclear do estudo é, assim, identificar, em textos de opinião publicados em jornais portugueses durante um período intenso de mediatização da situação (setembro e outubro de 2015), a construção discursiva das imagens dos migrantes em contraste com a Europa, de que os articulistas fazem parte; está, assim, em debate, na comunicação social, a construção de nós e os outros, identidades grupais heterogéneas, diversamente representadas e valorizadas. O distanciamento temporal que carateriza a análise permite-lhe uma objetividade acrescida.

Em particular, pretende-se identificar e analisar os modos de construção no discurso do movimento migratório para a Europa, dos refugiados, representados como eles, os outros (e os respetivos contextos de ocorrência); a construção discursiva dos europeus, como nós (com as várias realidades que se confrontam e se aliam); a construção da relação discursiva estabelecida entre nós e eles.

Na análise destes processos de referenciação discursiva dos “migrantes” e do mundo ocidental, daremos especial atenção a mecanismos linguístico-discursivos diversos, mas com saliência para a dêixis pessoal e as escolhas lexicais efetuadas pelos diferentes locutores.

 

Enquadramento teórico-metodológico

No contexto português, é possível rastrear já um conjunto significativo de investigações recentes que anunciam estudar questões discursivas articulando migrantes e média (por exemplo, Abdo, Cabecinhas & Brites, 2019; Almeida, 2017; Barbosa, 2012; Costa, 2010; Macedo & Cabecinhas, 2012; Oliveira, 2011; Santos, 2016; Silva, 2017). Mas, se vários associam e analisam os temas média e migrantes, alguns com foco particular nas minorias étnicas ou na problemática das mulheres neste contexto (Cádima & Figueiredo, 2003; Carvalho, 2007; Ferin & Santos, 2008; Galante, 2010; Santos, 2007; Silvestre, 2011; Togni, 2008), é de salientar que tais estudos se inscrevem sobretudo nos campos das Ciências da Comunicação e da Etnologia, em detrimento de abordagens feitas a partir das Ciências da Linguagem. Aparentemente, o assunto não tem sido adotado como objeto de análise por especialistas da área. Com efeito, os estudos acima identificados desenvolvem sobretudo análises de conteúdo, de teor quantitativo, complementadas com alguma abordagem qualitativa; nenhum deles se inscreve no quadro teórico-metodológico da análise dos discursos1. Ora, como refere van Dijk (2005), acreditamos que é importante, para a compreensão deste fenómeno social, uma análise da língua em uso, isto é, em contexto, com atenção às estratégias discursivas e estruturas complexas que configuram os textos2 jornalísticos selecionados, e que vá além da abordagem das peças jornalísticas tomadas como mensagens linguisticamente transparentes segundo uma análise de conteúdo centrada unicamente em métodos quantitativos.

No quadro de uma abordagem discursiva-enunciativa aqui adotada, os discursos são considerados como práticas linguísticas sociais (Bakhtine, 1984), pelo que a atenção à sua construção social, cultural, contextual e linguística determina a presente análise. Para a análise da construção dos objetos de discurso que selecionámos3 , tomamos como autores fundamentais, entre outros, Berthoud e Mondada (1995), Cavalcante (2003, 2012), Koch e Cortez (2015), Marchuschi (2006), Moirand (2016), Moirand e Reboul-Touré (2015), Mondada e Dubois (1995), Mondada (2001), Rabatel e Chauvin-Vileno (2006). Destacando a capacidade referencial da língua, a teoria da referenciação por eles desenvolvida inter-relaciona enunciação e referência, no seguimento, aliás das propostas de Benveniste (1970). Berthoud e Mondada (1995, p. 206) retomam esta questão quando afirmam que

cada palavra estabelece, no momento em que é enunciada, o universo a que se reporta; propõe objetos de discurso, que lhe não são pré-existentes, mas que emergem no ato de enunciação e se transformam à medida que este decorre ou que outros se encadeiam com ele.

A referenciação é indissociável da posição enunciativa do locutor e, por conseguinte, da responsabilidade enunciativa que lhe é inerente (Marques, 2018)4 .

As escolhas operadas pelo locutor, no processo de referenciação, nomeadamente ao nível do léxico, para categorizar e recategorizar os objetos de discurso contribuem, de modo decisivo, para a construção de crenças culturais compartilhadas, nas palavras de Nash (2005).

Para a análise a realizar, foram selecionados, da imprensa escrita, textos de opinião – artigos de opinião e editoriais – e títulos de outras peças jornalísticas, divulgados em três publicações generalistas de referência de âmbito nacional: a revista semanal Visão, o jornal diário Público e o semanário Expresso, tomados como representativos do “poder global dos meios de comunicação” (van Dijk 2005, p. 37) na sociedade portuguesa. Estes dados são relativos aos meses de setembro e outubro de 2015, um período de particular intensidade na produção de notícias sobre os refugiados que chegam à Europa. Os números assustadores de mortos por afogamento e a imagem inesperada e chocante de uma criança morta, numa praia de embarque clandestino na Turquia, no início de setembro de 2015, avivaram, por efeitos emocionais, a importância mediática do problema.

O processo de seleção dos dados passou pela identificação de todas as ocorrências dos lexemas refugiado, migrante e imigrante em artigos de opinião e editoriais. Para ligar estas ocorrências aos textos jornalísticos de informação, os mesmos vocábulos foram recolhidos nos títulos e subtítulos das notícias, com destaque para a ocorrência na primeira página dos periódicos.

O léxico interessa-nos enquanto parte da unidade global que é o discurso. Por isso, a atenção ao cotexto das ocorrências é necessária, a fim de evidenciar a construção destes objetos discursivos.

 

A construção discursiva dos outros: “eles, os refugiados, migrantes…”

Enquadramento político-social

Com visibilidade diária, a questão dos refugiados em fuga para a Europa manteve-se na agenda mediática ao longo dos meses em análise – setembro e outubro de 2015. Tal permanência evidencia a importância e o impacto que assumiu na sociedade portuguesa. De facto, deve ter-se em conta que este tema coexistiu com uma agenda política portuguesa muito relevante em termos sociais e mediáticos, com o final da campanha eleitoral para o parlamento português e as respetivas eleições, com a crise política pós-eleitoral (formação do governo, sua queda, formação de novo governo apoiado, pela primeira vez na história da democracia portuguesa, por uma aliança parlamentar dos partidos da esquerda), com o fim de mandato presidencial e o início de nova campanha eleitoral para a Presidência da República. As atenções e as preocupações sociais centraram-se em questões internas, sobretudo económicas, no final de um período de apoio financeiro externo e de um duríssimo retrocesso no rendimento das famílias portuguesas, com uma austeridade que gerou imensos problemas nos indivíduos, nas empresas e no Estado. Estavam reunidas condições mais do que suficientes para que a problemática dos migrantes/refugiados fosse rapidamente empurrada para os espaços marginais relativamente à centralidade dos artigos que tratavam das lutas políticas internas e das preocupações profissionais e pessoais dos portugueses. Ainda assim, ao longo do período em análise, a questão dos refugiados que chegavam à Europa recebeu um tratamento mediático permanente e destacado (em títulos de primeira página, acompanhados de fotografias, destaques, artigos de opinião e espaços de publicação individualizados).

 

Enquadramento mediático

Houve, em termos de cobertura mediática, um evento que suscitou um pico de interesse público sobre a questão dos refugiados: a publicação, nas redes sociais e nos média, da fotografia de uma criança, Aylan5 , de três anos, afogada e arremessada pelo mar a uma praia turca. A visão dessa criança chocou a opinião pública e gerou uma intensificação de toda a cobertura mediática, que se refletiu em múltiplos artigos, de diferentes tipos6 .

A mediatização da questão dos refugiados teve a participação de múltiplos atores sociais (nomeadamente, jornalistas, comentadores, políticos, ativistas dos diretos humanos, professores universitários). Pode afirmar-se que se produziu sobre o tema um discurso heterogéneo, em termos de tipologia discursiva e de agentes produtores.

No que respeita aos autores de artigos de opinião e editoriais7 , os quadros seguintes permitem identificar as vozes que se manifestaram nas publicações em análise.

 

 

 

 

Estes quadros dão conta de uma intensa atividade discursiva envolvendo um leque alargado de indivíduos, entre colaboradores regulares com função de comentar a realidade nacional e internacional, jornalistas e políticos, mas também cidadãos anónimos a quem a direção dos periódicos decide dar visibilidade, publicando as suas “cartas ao diretor” na secção respetiva.

Dois tipos de organização temática sobressaem: a par de um enquadramento em questões gerais geopolíticas, históricas e culturais, há, por vezes, um enquadramento a partir de casos particulares e pessoais do opinion-maker, em narrativas de experiência de vida, que servem de ponto de partida para generalizações posteriores.

É de assinalar que, como veremos, os média portugueses assumem claramente uma posição favorável ao acolhimento de refugiados, identificável pela modalidade8 avaliativa que os textos mostram, mas dão igualmente alguma visibilidade aos defensores da rejeição. Para Portugal, estas posições de rejeição de refugiados manifestam-se somente nas cartas ao diretor, pela voz de cidadãos comuns “anónimos” (em termos de notoriedade social, apenas, porque é indicada a autoria das cartas). As rejeições em termos de posições assumidas no espaço europeu são sobretudo veiculadas nos artigos informativos e nos títulos. Colocamos como hipótese explicativa que esta atitude, identificada nas três publicações em análise, se poderá dever ao facto de os opinion-makers assumirem uma atitude de “responsabilidade”, no sentido em que dela fala Moirand (2006), ou seja, marcada pela ética e pela moral. São incapazes de rejeitar ou propor a rejeição de pessoas que lutam pela sua sobrevivência, fugindo a um cenário de guerra, relativamente ao qual estão numa posição de vítimas indefesas. Só os comentadores menos empenhados socialmente, os tais cidadãos anónimos que resolvem escrever “cartas ao diretor”, manifestam uma posição contracorrente e menos comprometida com a ética. Contudo, o jornal decide dar-lhes voz, em respeito pelo exercício da liberdade de expressão.

 

Construção do objeto de discurso – refugiado, migrante, imigrante/eles

Quantificação de ocorrências

A recolha das ocorrências dos itens lexicais em análise, refugiado, migrante ou imigrante (referindo-se a indivíduos oriundos do Médio Oriente ou de África que se deslocam para a Europa) em textos de opinião, que guiou a análise, mostra os resultados apresentados na tabela seguinte.

 

 

Ou seja, no período em estudo, e considerando apenas o jornal Público, 75,4% dos exemplares contêm artigos de opinião onde ocorrem as palavras refugiado, migrante ou imigrante. No que concerne ao semanário Expresso, a percentagem é de 77,7% para os mesmos vocábulos. Na Visão, por sua vez, a percentagem é de 88,8%.

Finalmente, considerando os dois meses em análise, é quase obsessiva a presença do tema no Público durante o mês de setembro, com ocorrências dos três itens lexicais em textos de opinião, em todas as edições ao longo do mês. No mês de outubro, a incidência diminui, mas, ainda assim, há ocorrências a registar em mais de metade das edições.

Nas duas outras publicações, a incidência é igualmente muito alta, em quase todas as edições do período analisado. Acresce que, sobretudo nos semanários Expresso e Visão, as edições contêm, em diversos casos, vários artigos de opinião que versam sobre a temática em causa.

Assim, estes vocábulos funcionarão como designações de indivíduos ou grupos concretos mas também como mots-événements (Moirand 2006), ou seja, expressões que evocam determinados acontecimentos ou frames, apelando à memória interdiscursiva do leitor.

 

A categorização do objeto de discurso como “refugiado”

A procura da designação adequada dos objetos de discurso é uma das dimensões do processo de referenciação. Os próprios jornalistas e outros comentadores fazem sobressair essa importância.

A análise dos artigos selecionados mostra que a designação “refugiado” é claramente a mais frequente, face às várias opções que ocorrem para designar estes “seres humanos em trânsito”. De acordo com a frequência de ocorrências, o termo teve a capacidade de se impor face aos restantes termos que coocorrem para designar o mesmo objeto de discurso9 .

Mas outros itens lexicais ou construções evocam igualmente a realidade dos refugiados. Entre estes, contam-se, por exemplo, termos como “deslocado”, “requerente de asilo”, “exilado”, “clandestino” ou “fugitivo”, todos, no entanto, com muito menos ocorrências, mas escolhas fundamentais para a categorização do referente discursivo. Em alguns casos, a combinação “refugiados e migrantes”, provavelmente por ser esta a fórmula recomendada pelo ACNUR – a agência das Nações Unidas para os refugiados –, amalgama diferentes objetos de discurso numa mesma designação composta, um processo divergente do ponto de vista das entidades governamentais, nomeadamente10 .

A opção por “refugiados” seleciona a guerra como tópico enquadrador (com o cortejo de refugiados que esta provoca, associada, ainda, às memórias dolorosas da II Guerra Mundial) em detrimento do tópico da crise económica (geradora de movimentos de migrantes em busca de melhores condições de vida). A valorização social da guerra como situação de perigo extremo manifesta e cria um ambiente mais favorável para a imagem dos indivíduos do que o faria um quadro de problemas económicos, por ser uma estratégia mais produtiva na geração do pathos necessário a um movimento de compaixão e aceitação, que os diversos artigos de opinião visam.

Ao longo de todos os artigos analisados, a expressão referencial usada dispensa especificações e, por isso, é sempre referida como “os refugiados” (com determinante definido) ou só “refugidos” (com determinante zero). Isto é, dada a saliência contextual do objeto, nenhum autor mostra sentir necessidade de especificar que são os refugiados que chegam à Europa oriundos do médio oriente ou de África. Em alguns casos, é acrescentado um adjetivo, como no sintagma nominal “os refugiados sírios”, estabelecendo distinções discretas e pontuais na mole humana que a expressão designa, mas não sem consequências ao nível dos sentidos do discurso. A adjetivação distingue os refugiados prototípicos, dá-lhes saliência no drama em curso.

Para o uso do determinante definido ou de determinante zero podem ser arroladas duas explicações complementares. Por um lado, os textos analisados são artigos de opinião, discursos dialógicos que entram em relação com outros textos presentes na mesma edição do periódico, que evocam, reproduzem, comentam, e dos quais se aproximam ou distanciam, mas para os quais remetem, numa cadeia anfórica construída no espaço físico do jornal. Assim, os textos de teor informativo, primeiros no espaço físico do jornal, dão espaço à relevância da categorização do referente como “refugiado”, relativamente à qual se estabelecem relações de correferência nos textos de opinião.

Por outro lado, os textos de opinião remetem para um interdiscurso mediático que circula na esfera pública (Moirand, 1999, 2006), mesmo que não esteja pontualmente presente na mesma edição do periódico. Abordar o tópico dos refugiados, no momento em causa e no espaço público nacional, dispensou esclarecimentos adicionais sobre o objeto de discurso, tal era a presença e a capacidade de imposição social da questão evocada.

 

Categorização e quantificação

O uso de quantificadores11 com valor superlativante está, de igual modo, ao serviço da criação de dramatismo, uma estratégia para atrair o leitor e manter o seu interesse, surpreendendo-o e emocionando-o. É frequente que os acontecimentos ou os estados de coisas associados aos refugiados sejam, assim, modificados através do uso de quantificadores. Estes podem ser divididos em dois grupos.

No primeiro grupo encontram-se as quantificações exatas. Estas ocorrem frequentemente nos artigos de opinião analisados, apontando para realidades extremas, mesmo que não seja fácil aos leitores ter uma imagem precisa do que elas significam.

Assinale-se que, dadas as determinações do género, não é expectável que os artigos de opinião usem estas estratégias. Ao contrário, seria mais expectável que fossem os artigos de cariz informativo a apresentar tais quantificações. Os artigos de opinião, de reflexão sobre a realidade evocada nos primeiros, privilegiariam outras vertentes. Não obstante, é frequente o recurso a tais procedimentos, que, na verdade, criam um dramatismo, que percorre todos os artigos, decorrente da grandeza dos números, como se evidencia nos exemplos seguintes:

a ONU calcula que desde janeiro tenham atravessado o Mediterrâneo 380 mil pessoas, das quais três mil morreram ou desapareceram. Duas novas frentes se abriram nas últimas semanas: a ilha grega de Lesbos, com 20 mil refugiados vindos da costa turca (equivalentes a um quarto da população local), e a fronteira da Hungria com a Sérvia, donde 20 mil pessoas (metade das quais chegadas nos últimos três meses) foram levadas no fim de semana. (Expresso, 12/09/2015, p. 29)12

Espera-se que cheguem à Alemanha entre 800 mil e 1,5 milhões de refugiados este ano, levando ao limite a máquina administrativa alemã. Só para integrar as crianças na escola, por exemplo, serão necessários mais cerca de 25 mil professores, estimam associações citadas pelo Economist. (Visão, 29/10/2015, p. 29)

Juncker propõe redistribuição de mais 120 mil refugiados pela EU. (Público, 04/09/2015, p. 2)

No segundo grupo de quantificadores, incluem-se as expressões que evocam quantidades aproximadas. Também estas expressões, categorizadoras (e recategorizadoras) do objeto de discurso em construção, tal como as quantificações exatas, se encontram ao serviço da superlativização do evento, a partir da explicitação recorrente da quantidade, extrema e avassaladora, talvez mesmo incontrolável, na perspetiva do locutor/enunciador (L/E): vaga, fluxo, onda, maré, êxodo, leva, explosão, milhões de encontram-se entre os mais salientes, como ilustram os exemplos abaixo:

essas levas humanas fogem à miséria, à fome, para acalentar a esperança de poderem continuar a viver. (Público, 14/09/2015, p. 47)

Alheios a estes jogos de poder estão milhões de seres humanos que lutam por sobreviver e procuram uma saída dos palcos de guerra, que não entendem nem procuram entender. (Público, 04/09/2015, p. 53)

Gerir o fluxo maciço e inesperado dos refugiados que fogem da guerra e ajudar as pessoas que perderam tudo é um enorme desafio. (Público, 13/10/2015, p. 47)

As alternativas seriam a continuação das vidas destroçadas, da morte, da desestabilização da região, dos êxodos e a expansão do terror, da barbárie e dos crimes contra a Humanidade e o património histórico. (Visão, 17/09/2015, p. 74)

Refiro-me à explosão migratória, aos corredores da desgraça humana que rasgam o Mediterrâneo e combinam esperança e desespero, tráfico e violências, naufrágios e imagens de crianças a caminhar ao longo das vias férreas. (Visão, 03/09/2015, p. 77)

A última semana permitiu mudar o rumo da discussão sobre a vaga de refugiados e migrantes que chegam à União Europeia. (Expresso, 12/09/2015, p. 8)

As ondas de refugiados que batem desesperados às portas da Europa, fugindo da guerra e da barbárie instaladas nos seus países de origem, está a interpelar-nos de forma brutal. (Expresso, 19/09/2015, p. 35)

Estas expressões que quantificam, de modo superlativo e metafórico, os objetos de discurso não traçam cenários eufóricos. Pelo contrário, colaboram na criação de cenários fortemente disfóricos, no que são auxiliadas por outras expressões referenciais que as enquadram, ao serviço da criação de um discurso dramático, emocionado e patémico (“corredores da desgraça humana que rasgam o Mediterrâneo”; “batem desesperados às portas da Europa”).

Como foi referido acima, a guerra é o quadro social enquadrador do movimento migratório sempre referido no discurso por expressões disfóricas. Mesmo sem procedermos a uma quantificação exata das ocorrências, é percetível que, transversais às três publicações, as expressões “crise dos refugiados” e “drama dos refugiados” se impõem. Não exaustivamente, elencamos, abaixo, para os artigos de opinião do Público, oito expressões que podemos considerar em relação de sinonímia textual e respetivas ocorrências:

“a tragédia de dezenas de refugiados” (seis ocorrências);

“a crise dos refugiados” (28 oc.);

“o problema dos refugiados” (duas oc);

“o drama dos refugiados” (nove oc.);

“caos humanitário” (uma oc.);

“questão dos refugiados” (quatro oc.);

“drama humano” (uma oc.);

“tragédia quotidiana” (uma oc.).

No caso do Expresso, pode apontar-se, igualmente a título exemplificativo, o emprego de outras expressões disfóricas semelhantes:

“inferno” (cinco oc.);

“tragédia humanitária”/“tragédia humana” (duas oc.).

Finalmente, no caso da Visão, o panorama mantém-se:

“tormenta” (uma oc.);

“barbárie” (uma oc.);

“inqualificável drama” (uma oc.).

Fica, desta forma, igualmente marcada a modalização (Kerbrat-Orecchioni, 1980; Monte, 2011; Vion, 2005) operada pelo enunciador, que encontra na dramatização uma estratégia de atratividade para o seu texto, enquanto constrói para si uma imagem de indivíduo sensível e humano.

Como é característico de algum discurso mediático, a metaforização do real discursivizado associa-se à espetacularização dos estados de coisas, para chocar, para atrair o leitor, para emocionar.

 

Construção do objeto de discurso “os europeus” – nós

Construção de dicotomias contrastantes: nós e eles

Os textos jornalísticos operam frequentemente um tratamento dicotómico entre eles, os refugiados, e nós, os europeus, desenhando diferentes perfis, ações e responsabilidades para uns e outros.

A questão da referenciação dos refugiados como eles, como os diferentes ou estrangeiros/estranhos é abordada nos jornais. Em vários momentos, em processos mais ou menos discretos de modalização, os textos de opinião representam os refugiados no seu percurso de fuga, os perigos e riscos que experimentam, o sofrimento que suportam, as suas expectativas e esperanças, nomeadamente. Raramente são feitas críticas ou são construídos quadros nos quais eles assumam papéis negativamente conotados. Intencionalmente ou não, há neste processo de mostrar o outro uma dimensão de humanização e, portanto, de aproximação afetiva, que se orienta para a defesa do acolhimento dos refugiados, marcada em processos linguístico-pragmáticos disfóricos de substantivação, adjetivação e de metaforização:

não são imigrantes (ou migrantes como é mais simples chamá-los) pois que não escolhem partir dos seus países, mas sim deslocados, empurrados por guerras que o Ocidente, na generalidade, e a Europa, por completa omissão, alimentaram. (Público, 04/09/2015, p. 53)

Os refugiados políticos da Síria, fugidos do horror e da barbárie, são mais importantes do que as ruínas romanas de Palmira destruídas pelos mesmos monstros sob forma humana (…). Indo ao concreto, que é aquilo que interessa a estes deserdados da terra. (Expresso, 05/09/2015, p. 7)

Os refugiados não são como as sardinhas (…) Ana Macedo mostrava-se incomodada por os refugiados terem passado, também eles, a serem tratados como números. Com o destino desenhado em folhas de Excel.

O que mais se ouve são discussões sobre quotas, tudo se resume a quotas. De sardinhas, de leite… de refugiados. (Visão, 10/09/2015, p. 16)

Há uma homogeneização do grupo na preferência pela designação de “refugiados”, ao contrário das entidades governamentais, que insistem na distinção entre refugiados e migrantes, com consequências perlocutórias importantes.

Por oposição, “os europeus”, o grupo em que o locutor se integra e é, por isso, referido como nós, são configurados no outro lado da barricada, ou da fronteira, ou do muro, num mundo de abundância e paz, atrativo para os outros. Pese embora a função in-group do pronome nós, há um distanciamento explícito, mediado por um juízo avaliativo negativo, dos diversos locutores/enunciadores relativamente ao que consideram ser a existência de uma atitude atávica ou defensiva, quando não hipócrita, que não é eticamente aceitável:

a nossa segurança, a nossa economia, a nossa demografia, a nossa democracia, a nossa cultura estão a ser desafiadas pelas nossas respostas a esta crise humanitária. (Público, 02/09/2015, p. 46)

Aylan morreu vestido com doçura, na posição semifetal, em que vimos os nossos filhos adormecer tranquilizados. E nós chorámos todos. (Público, 11/09/2015, p. 48)

Hoje discutimos, e discutimos, e discutimos, e voltamos a discutir a divisão de 120.000 de refugiados pelos quatro cantos de uma Europa que se fez tão rica quanto egoísta e xenófoba. (Visão, 01/10/2015, p. 46)

 

A construção de diferentes “europas”

De facto, a Europa não é configurada como um todo uniforme, pois a reação à chegada dos refugiados é diferente em diferentes países. Esta foi e é uma questão polémica, que dividiu e divide, por razões variadas, a Europa, ou melhor, a União Europeia. As palavras dividir, divisão, dividida, associadas à Europa, ocorrem com alguma insistência ao longo do corpus, como nos exemplos seguintes:

a divisão europeia sobre os refugiados vê-se nos milhares que saíram à rua. (Público, 13/09/2015, p. 32)

Os europeus, incapazes sequer de lidar com a crise dos refugiados, correm o risco de se dividir caso não haja uma liderança americana. (Público, 02/10/2015, p. 29)

Primeiro, recuperar a unidade e a confiança entre os estados membros. (…) Donald Tusk sabe que as divisões podem pôr em causa Schengen e comprometer a cooperação europeia. (Visão, 15/10/2015, p. 82)

Áustria ameaça fechar mais uma fronteira da dividida Europa

A UE divide-se perigosamente. Há cada vez mais muros e agressões verbais – neste cenário de países solidários e países duros, continua a não haver solução. (Público, 29/10/2015, p. 2)

A incidência na divisão europeia, repetidamente afirmada, põe em evidência a criação de dois blocos geográficos, mas também civilizacionais:

isso é partir a Europa e dar argumentos a países como a Hungria, a República Checa, a Eslováquia e a Polónia (…). A Hungria, que levantou uma vedação de arame farpado na sua fronteira com a Sérvia, ameaça utilizar o exército para manter à distância os refugiados. (Visão, 03/09/2015, p. 35)

A União Europeia está lentamente a dividir-se em dois blocos, Europa Ocidental e a Europa Oriental (…). Sim, a União Europeia está cada vez mais parecida com o Império Romano dividido entre Roma ocidental e Bizâncio oriental. E o curioso é que a linha de divisão está quase no mesmo sítio. (Expresso, 19/09/2015, p. 35)

É relevante assinalar que os contrastes estabelecidos nunca são neutros, mas fortemente marcados pela modalidade avaliativa (Kerbrat-Orecchioni, 1980; Monte, 2011; Vion, 2005), o que permite identificar claramente o posicionamento de cada locutor-enunciador (L/E) face à questão. A escolha de palavras, e nomeadamente adjetivos, em expressões como “o sinistro espetáculo”; “sem tudo o que de abjeto se está a fazer na Hungria”; “evocar os dias sinistros de Auschwitz” ou “a Europa é confrontada com os seus piores fantasmas” dão conta de um juízo avaliativo negativo que, sobre a divisão da Europa relativamente ao acolhimento dos refugiados, posiciona o L/E em divergência com esse bloco desumano e cruel. A tensão criada pela divisão interna é também avaliada negativamente pelo L/E: “a UE divide-se perigosamente”. Nós é, na verdade, um grupo fraturado por divergências múltiplas.

 

Construções sintáticas ao serviço do contraste

O acolhimento e a rejeição que caracterizam os diversos grupos estão marcados também em estruturas sintáticas de contraste (relações estabelecidas pelos conectores mas, e; paralelismo sintático) e em estruturas lexicais ligadas por relações de antonímia, de que damos conta no quadro seguinte, a propósito dos textos do jornal Público.

 

 

Estes modos de organização discursiva intensificam os contrastes, constroem laços coesivos que tornam a leitura mais fácil, na medida em que desencadeiam a previsibilidade de sentidos. São linhas de leitura que se integram de modo relevante no interdiscurso mediático que carateriza os textos dos jornais em análise e que se sedimenta de texto em texto, influenciando o discurso da esfera pública.

 

O papel de Portugal na crise dos refugiados – a emergência dos valores

Objeto de um interesse particular e da opinião manifestada pelos articulistas, Portugal reflete, de algum modo, a situação europeia. Se o Governo e todas as instituições alinham numa posição de solidariedade, mesmo que nem sempre eficaz, não deixam de ser comentadas, e repudiadas, situações, sobretudo de caráter individual, que espelham sentimentos de xenofobia e medo13 relativamente aos refugiados:

Portugal mostra-se disponível para receber 3000 refugiados. (Público, 04/09/2015, p. 4)

Portugal deveria aproveitar esta oportunidade para assumir uma posição política firme e clara: a de que é um país solidário e humanista e, consequentemente, colaborará ativamente no esforço requerido. (Expresso, 19/09/2015, p. 35)

Não deixemos que a indiferença chegue ao nível da fila do supermercado. (Público, 01/09/2015, p. 48)

Mas cuidado, que os custos do medo, do desespero e da destruição são incomparavelmente maiores, para além de serem moral e politicamente inaceitáveis. (Visão, 17/09/2015, p. 74)

As reações (de caráter individual, como foi acima referido) de xenofobia, medo ou desumanidade ocorrem, sobretudo, na voz daqueles que não são jornalistas nem comentadores reconhecidos, mas “anónimos” que encontram expressão e espaço mediático nas “cartas ao diretor”, das mais radicais às mais ponderadas.

Estas “Cartas”/“Cartas à diretora” ocorrem, respetivamente, nos jornais Expresso e Público.

O Expresso dá voz, na sua secção “Cartas”, a algumas opiniões claramente contrárias ao acolhimento dos refugiados, que traçam cenários futuros disfóricos, ou que manifestam apreensões face a cenários preocupantes:

a Alemanha abriu os braços e a Hungria prepara-se para fechar as suas fronteiras. Contudo, como se fará a absorção pacífica de tantas pessoas que continuam a chegar todos os dias? (…) Se alguns são brancos, sírios, formados, cristão alguns, muitos outros são subsarianos, pobres, incultos, muçulmanos, terroristas talvez. (Expresso, 12/09/2015, p. 36)

Porque não arrumam primeiro a nossa casa?

Tenho-me remetido ao silêncio acerca da provável invasão, que Portugal irá ter que enfrentar, com os refugiados, vindos fugidos, especialmente da República Árabe da Síria (…). Portugal (…) cujo povo está igualmente a passar por enormes dificuldades e (…) que é por natureza, para os de fora muito amável, sempre muito simpático, muito hospitaleiro e uns mãos largas, mas somente para os outros, porque para os da casa, só nos dão desemprego, aumentos de impostos. (Expresso, 26/09/2015, p. 36)

No Público, a existência das referidas atitudes é testemunhada de forma indireta, em relatos de discursos outros, já que todas as expressões de opinião evocam valores e são favoráveis ao acolhimento dos refugiados. São opiniões que se alinham, genericamente, com a posição oficial de Portugal e a crítica incide sobre vozes dispersas, dissonantes, mas sempre coletivas e anónimas:

hoje assistimos nas redes sociais, e não só, a imensas manifestações egoístas, xenófobas e racistas em relação aos infelizes que fogem do terror da guerra que está a destruir os seus países. Como a Síria, o Iraque, e a Líbia. E o que é triste é ver pessoas que se dizem até cristãs e sempre com o seu Deus na boca tomarem atitudes tão contrárias à religião que professam. (Público, 17/9, p. 44)

É incompreensível que, muitos dos portugueses que se manifestam contra a vinda de migrantes e refugiados para a Europa, sejam repatriados regressados a Portugal com o 25 de Abril e o fim da guerra colonial. Já se esqueceram do sofrimento e a descriminação da população residente da altura que os olhavam de soslaio, considerando-os invasores e sorvedores de empregos. Outra espécie muito piedosa são aqueles que dizem que se “tem de ajudar primeiro os nossos. (Público, 05/10/2015, p. 44)

Há que assinalar que, se as opiniões expressas nas “cartas ao diretor” pertencem aos seus autores, e não ao jornal, não é menos verdade que é a direção editorial que opta por dar visibilidade e espaço mediático a umas e não a outras. A responsabilidade editorial existe, e cabe ao jornal.

A relação nós/europeus – eles/refugiados, é, como já foi mostrado, balizada por valores éticos, que sustentam a milenar cultura europeia. O pluralismo, positivamente encarado, enfatiza os benefícios mútuos da abertura a outras culturas, a outras comunidades, advogando a favor de um processo que apresentam, no entanto, como difícil:

não quero ser ingénuo, nem escamotear os problemas que o acolhimento acarreta. Mas a pergunta “que fizeste ao teu irmão?” é uma das mais belas e mais antigas da nossa cultura. (Público, 01/09/2015, p. 48)

Trazem com eles a sua cultura, tradições e religião porque estas qualidades fazem parte deles como fazem parte de nós. (Público, 02/09/2015, p. 46)

A emergência humanitária que vivemos não é, infelizmente, nova apesar das proporções agora sentidas por nós, mas a actual onda de solidariedade tem o mérito de lhe fazer frente. Não podemos deixar que esmoreça. (…)

Mas não basta remediar o presente, temos também de acautelar o futuro. (…) As soluções estão à frente de todos há demasiado tempo. Mas não pode o Parlamento Europeu sozinho implementar. (…)

O Parlamento não se furtará às suas competências e, desta vez, também o Conselho terá de agir! (Público, 11/09/2015, p. 49)

Vivemos a maior crise de refugiados desde a segunda guerra mundial e os europeus estão a mostrar-se à altura. Nestes últimos dias as acções de muitos relembraram ao mundo o espírito solidário e humanista dos povos europeus. (Público, 11/09/2015, p. 49)

É, obviamente, a visão europeia dos refugiados e da relação que a Europa quer/deve estabelecer com eles. Numa ótica de solidariedade ou de repúdio, que a divisão da Europa suscita, os europeus são os agentes e os refugiados/migrantes são o objeto desse agir. Em termos sintático-semânticos, o lugar do sujeito é preferencialmente ocupado por nós; o lugar de objeto é preferencialmente ocupado por eles. Eles só parecem ser agentes num quadro de fuga e de experienciação de dor, sofrimento, risco. Os verbos escolhidos são também decisivos na construção dessa relação. Nós, a Europa dividida, acolhemos, endurecemos …; eles partem, fogem, gritam…

É particularmente nos títulos que encontramos estas estruturas:

Cameron promete acolher “mais alguns milhares” de refugiados (Público, 05/09/2015, p. 1)

Hungria endurece acção contra refugiados. (Público, 05/09/2015, p. 2)

Sociedade civil mobiliza-se para apoiar refugiados. (Público, 20/09/2015, p. 21)

Invasão massiva de gente que foge aos cenários de guerra. (Público, 04/09/2015, p. 53)

Refugiados continuam a entrar na Hungria. (Público, 11/09/2015, p. 1)

Milhares partem a pé de Budapeste para a Áustria. (Público, 05/09/2015, p. 2)

Portugal acolhe. (Visão, 17/09/2015, p. 54)

 

Conclusões

O discurso dos média foi fundamental para a construção discursiva do acontecimento social protagonizado pela chegada massiva de “seres humanos em trânsito”, em particular no período de setembro – outubro de 2015.

Em termos do discurso jornalístico português, os textos de informação e de opinião convergem nessa construção. É um acontecimento discursivo plurilocutores, em circulação no espaço público português, mas também em todo o espaço europeu. A construção discursiva articula-se em torno de dois grupos, nós e eles.

No processo de referenciação levado a cabo nos discursos de opinião, sobressai um processo de categorização e recategorização que aponta para a construção de um grupo homogéneo, eles, os outros, em torno de diferentes designações, mas maioritariamente em torno da designação de “refugiado”. A escolha desta palavra ativa sentidos, implícitos, de um cenário de guerra em detrimento de outros cenários, de cariz económico, em designações como “(i)migrante”.

Em contraste com a homogeneidade referida, o grupo constituído por nós, os europeus, em que os diferentes locutores se integram, está fraturado por dissensos em torno de valores, marcados em estruturas paralelísticas opositivas.

Os modos de referenciação, que convocam o conhecimento partilhado sobre a guerra, e a modalização avaliativa enquadram o posicionamento dos locutores-enunciadores, envolvidos na construção da opinião pública e conferem aos discursos uma vertente emocional forte, que está de acordo com a posição expressa por Moirand (2016, p. 1031), ao afirmar que

o tratamento mediático dos eventos é, de facto, um lugar privilegiado de inscrição das emoções. (…) Esta inscrição, mostrada ou sugerida, desempenha um papel na designação do acontecimentos (…), mas também na construção discursiva dos acontecimentos, na perspetivação dos objetos de discurso e na argumentação.

 

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Notas biográficas

Maria Aldina Marques é Professora Associada com Agregação do Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, Portugal. É investigadora do CEHUM, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, e as principais áreas de investigação são a análise dos discursos, a pragmática e a argumentação. Tem orientado trabalhos de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, e possui mais de uma centena de publicações nacionais e internacionais.

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3263-1977

Email: mamarques@ilch.uminho.pt

Morada: Instituto de Letras e Ciências Humanas. Universidade do Minho. Campus de Gualtar. 4710-057 Braga

Rui Ramos possui doutoramento em Linguística desde 2006 e é Professor Auxiliar no Instituto de Educação da Universidade do Minho. É membro integrado do Centro de Investigação em Estudos da Criança e membro colaborador do Centro de Estudos Humanísticos da sua universidade. É editor-adjunto da REDIS – Revista de Estudos do Discurso (Faculdade de Letras do Porto/Universidade de São Paulo). Publicou diversos livros, capítulos de livro e artigos em revistas na área da Linguística (análise do discurso) e do ensino da língua portuguesa. Tem experiência de cooperação e trabalho em contextos internacionais como o Brasil, Timor-Leste e a Guiné-Bissau. Detalhes do seu percurso académico podem ser encontrados em https://www.cienciavitae.pt/281E-FBCD-2E5A.

ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8700-8301

Email: rlramos@ie.uminho.pt

Morada: Universidade do Minho. Instituto de Educação. Campus de Gualtar. 4710-057 Braga

 

Submetido: 14/04/2020

Aceite: 01/07/2020

 

NOTAS

1 Ainda que vários estudos referidos reclamem a utilização de “técnicas proporcionadas pela análise crítica do discurso” (Silvestre 2011, p. V) para cumprirem os procedimentos de análise qualitativa.

2 Usaremos aqui texto e discurso na perspetiva proposta por Adam (2011).

3 Trata-se de “propor uma forma de construir e de estruturar discursivamente um mundo num espaço intersubjetivo” (Berthout & Mondada, 1995, p. 206).

4 “É a responsabilidade enunciativa inerente ao facto de o locutor estar na origem da enunciação, do discurso em que participa, enquanto lhe cabem as escolhas e estratégias discursivas, no quadro obviamente regulador do género, dos interlocutores, dos objetivos e do espaço institucional em que se integra. Cabe-lhe (…) gerir o discurso. Nomeadamente, cabe-lhe estruturar o discurso, e determinar que vozes convocar, assim como o lugar e modo de as fazer ouvir. Cabe-lhe ainda, na importante função de referenciação, a escolha do léxico para designar os objetos do discurso” (Marques, 2013, pp. 147-148).

5   Aylan ou Alan – o primeiro é o nome em turco, o segundo é em curdo.

6 Na sua edição de 03 de setembro, o Público publicou a fotografia de Aylan em primeira página, tendo sentido necessidade de justificar o facto no seu editorial da página 44, dada a polémica gerada pela sua divulgação mediática. Na página quatro, o jornal publicou outra fotografia da criança, a ser transportada por um agente policial. Um título de primeira página (“Por que publicamos esta fotografia”) remete para um editorial onde tal justificação é apresentada. O Expresso retomará a primeira imagem num cartoon em primeira página na sua edição de 12 de setembro.

7 No Público e no Expresso, os editoriais não são assinados e, por isso, não foram considerados nos quadros abaixo.

8 Sobre a discussão teórica em torno dos conceitos de modalização, modalidade e modalizador, ver kerbrat-Orecchioni (1980), Monte (2011) e Vion (2004), entre outros.

9 Sublinhe-se que estas designações conhecem uma visibilidade e uma permanência no discurso mediático superiores àquelas que a análise dos textos de opinião pode sugerir, visto que há ocorrências numerosas também em artigos pertencentes a outros géneros jornalísticos. A título de exemplo, pode referir-se que, no semanário Expresso, das nove edições analisadas, seis apresentam o vocábulo “refugiado” nas respetivas primeiras páginas e, nos artigos de informação, de enunciação objetivizada (Moirand, 1999), contam-se 206 ocorrências em corpo de texto e 13 em título.

10 O vocábulo “migrante” funciona ora como hiperónimo ora como co-hipónimo de “refugiado”, como em: o nosso olhar sobre o fluxo migratório mudou através da percepção de que ele é, em grande medida, oriundo da Síria devastada pelo estado islâmico. As imagens televisivas da longa marcha dos migrantes, primeiro pelo mar e depois em terra, fazem com que os habitantes da Europa tenham de tomar uma posição individual sobre se são ou não contra receber estes refugiados” (Público, 12/09/2015, p. 12).

11 Também Moirand (2016, p. 1027) identifica no discurso da imprensa (francesa, no caso) “expressões de quantidade” relevantes para a configuração do tópico dos migrantes.

12 Neste exemplo, como nos que se seguem, o itálico é nosso.

13 A questão do sentimento de medo face aos refugiados é tratada com relevo em Moirand (2016).

 

Agradecimentos

Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho) com a referência UIDB/00317/2020.

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