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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.39  Braga jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.17231/comsoc.39(2021).3360 

Leituras

Recensão do Livro The Platform Economy: How Japan Transformed the Consumer Internet

iDepartment Communications and New Media, Faculty of Arts and Social Sciences, National University of Singapore, Singapura


Steinberg, M. (2019). The platform economy: How Japan transformed the consumer internet. University of Minnesota Press.

“Plataformas” digitais como Google, Amazon e Uber têm vindo a ser alvo de duras críticas desde meados da década de 2010. Estes gigantes tecnológicos de Silicon Valley são problemáticos, uma vez que os seus modelos de negócio se baseiam na vigilância secreta de dados e em marketing direcionado. A sua ausência de responsabilidade social traduz-se em evasão fiscal e trabalho precário. A sua natureza imperialista, enquanto media digital, é prejudicial porquanto mina a inovação independente, quer a nível nacional, quer a nível local. A questão que se coloca é, poderia ser de outra forma?

Marc Steinberg, professor associado de estudos de cinema na Universidade Concordia, em Montreal, especializou-se em cultura popular, anime e jogos japoneses. O seu novo livro acerca da economia das plataformas digitais japonesas está repleto de análises históricas e de discursos instigantes (Capítulos 1-3), inovadores casos de estudo e inquéritos/investigação/indagações sobre economia política (Capítulos 4-6). Fruto da combinação entre uma pesquisa rigorosa e uma escrita convincente, este livro consegue demonstrar o caráter produtivo de uma abordagem desocidentalizada, ao perceber, mas também ao reimaginar, as “plataformas”, ou purattofomu em japonês.

Para além de centrar as atenções no Japão, Steinberg desbrava novos caminhos através do enquadramento histórico, definição de conceito e abordagem analítica. O seu trabalho foca-se no Japão, no virar do milénio, o que significa que as alternativas à hegemonia das plataformas remontam a 2 décadas atrás. O modelo japonês de economia de plataforma tem, de facto, continuidade nas grandes empresas tecnológicas de hoje, em particular com a comodificação capitalista de “conteúdos” (kontentsu), para a qual o i-mode da NTT Docomo - o primeiro serviço de internet móvel comercialmente viável do mundo - serviu como “progenitor”, influenciando os seus seguidores, inclusive em Silicon Valley. Contudo, o i-mode e os seus concorrentes diferiam dos atuais gigantes tecnológicos pelo facto de as suas receitas não dependerem de publicidade e vigilância. Cabia-lhes uma pequena fatia (9%) de cada transação operada nas suas plataformas (em comparação com os 30% da App Store iOS ou da Play Store Android), enquanto dedicavam maior atenção aos pequenos clientes presos em jardins digitais, treinando-os e incubando-os. Isto resultava numa maior estabilidade laboral e oportunidades de desenvolvimento de pequenas e médias empresas integradas num ecossistema de capitalismo enraizado. Esta realidade está muito distante das atuais plataformas neoliberais dominantes, nas quais Google e Apple mantêm uma atitude de “sobrevivência do mais forte” em relação aos fabricantes de aplicativos, a maioria dos quais vive em situações de precariedade.

Do ponto de vista conceptual, Steinberg define plataforma como “(1) uma estrutura estratificada geralmente baseada em hardware, (2) uma base de apoio para conteúdos e (3) uma estrutura de mediação ou viabilização de transações financeiras” (p. 6). Enquanto (3) é frequentemente realçado na literatura existente, a atenção dada aos mecanismos de suporte/apoio é cada vez menor no que (2) diz respeito ao crescimento e bem-estar dos criadores de conteúdos em múltiplos canais de media. Ao invés, hoje os conteúdos digitais são tratados, quase por norma, como uma ferramenta usada pelas plataformas, mais precisamente como um isco para extrair dados de vigilância. Este é um exemplo de como a prática problemática da indústria limita o pensamento académico. Ainda assim, o conceito de Steinberg, baseado no modelo japonês de plataforma, realça a multiplicidade e interligação dos conteúdos transmedia, o valor dos próprios conteúdos de elevada qualidade, em vez da extração de dados “por baixo do pano” e mecanismos institucionalizados de apoio financeiro e profissional aos criadores de conteúdos.

Embora a literatura recente mostre uma “mudança de infraestrutura” nos estudos dos média digitais, a “estrutura estratificada geralmente baseada em hardware” (p. 6) é também exclusivamente japonesa e do leste asiático. Por outro lado, as plataformas de conteúdos e transações são propriedade de operadores de telecomunicações tais como NTT, KDDI, e Softbank, que são geridas como empresas essenciais de infraestrutura no Japão com as suas obrigações de serviço público sob supervisão regulamentar. Isto difere bastante do que acontece com Uber e Apple, que são entidades com um papel infraestrutural, mas que até agora recusaram ser regulamentadas como empresas de infraestrutura. A simbiose entre plataformas de conteúdo e operadoras de telecomunicações significa que as empresas geraram receitas consideráveis através do próprio tráfico de dados. Por essa razão, não tiveram que depender de publicidade.

Por outro lado, a estrutura estratificada de hardware também se refletiu no design dos telemóveis japoneses - keitai - os quais possuíam botões na parte superior do teclado (ver Figura 1) para acesso direto a serviços online (por exemplo, email) e a conteúdos empresariais específicos (por exemplo, Yahoo! Japão). Este design exerceu grande influência muito para além do Japão. Por exemplo, a empresa taiwanesa de semicondutores MTK forneceu milhões de chips de telemóvel a milhares de fabricantes chineses de aparelhos de gama baixa shanzai. Estes telemóveis tinham, geralmente, cinco botões de atalho para conteúdos e serviços online. A evidente ligação ao Japão ajudou a reduzir o preço do hardware do telemóvel, não só na China como em vastos segmentos de mercado do sul global.

Créditos. Jack Linchuan Qiu

Figura 1 Um Keitai Softbank Com Teclas Específicas Para Conteúdos Online 

Sendo um economista político proficiente na análise da cultura popular, Steinberg apresenta uma abordagem inovadora ao combinar análise institucional das indústrias de média com análise de discurso crítica sobre os materiais japoneses. Baseia-se na visão de Maurizio Lazzarato sobre o modo e mundo de produção para argumentar que “o capitalismo e a língua cooperam na produção de palavras e mundos... a valorização capitalista depende do desenvolvimento de palavras - palavras-chave como conteúdos e plataformas” (p. 4). Em seguida, concentra a sua análise, em especial na primeira metade do livro, na literatura sobre gestão e negócios do virar do século que abrangiam tópicos como o computador, telecomunicações e indústrias criativas, toyotismo e o setor automóvel com “plataformas automóveis - chassis padronizados que são a base de múltiplos modelos de automóvel” (p. 73). Uma plataforma, no sentido não convencional, “pode ser um chassi de automóvel e um site sobre o qual podemos clicar” (p. 73).

Para além de analisar o discurso de negócios e gestão, Steinberg examinou documentos governamentais e conduziu entrevistas a indivíduos essenciais para a composição de uma imagem dinâmica na qual “as plataformas geram conteúdos que, por sua vez, geram plataformas” (p. 11). Tal aplica-se não só ao i-mode e a plataformas de internet móvel suportadas pelas telecomunicações (Capítulo 4), mas igualmente aos principais sites de vídeo online como Niconico Video, também conhecido como o YouTube do Japão. Embora a interface do Niconico tenha a sua própria estética, cultura participativa e lógica de negócio seguindo o i-mode, o caso de estudo de Steinberg confirma que Niconico é, ao invés de um resistente, uma variante do modelo geral de plataforma capitalista. Mas a sua abordagem analítica é igualmente sensível à cultura, ao usar, por exemplo, as palavras de Enoki Kei’ichi, o génio por detrás do i-mode, para descrever as plataformas de conteúdo como “a palma da mão de Buddha” onde o mundo se senta (p. 161). Isto é mais do que uma metáfora religiosa com sabor asiático. Ajuda a explicar o desenvolvimento regional no leste e sudeste da Ásia, incluindo os chamados “super apps”, como KakaoTalk (Coreia do Sul), WeChat (China), Grab (Singapura e Malásia), e Go-Jek (Indonésia), os quais ultrapassaram indiscutivelmente Silicon Valley no que diz respeito à promoção da lógica de um capitalismo de plataforma.

The Platform Economy: How Japan Transformed the Consumer Internet (A Economia de Plataforma: Como o Japão Transformou a Internet do Consumidor) de Steinberg estabelece um novo padrão para os estudos comparativos sobre plataformas para além do ocidente, de um ponto de vista histórico e regional que se reflete criticamente em Silicon Valley. Demonstra, de modo sistemático e convincente, de que forma os ecossistemas das plataformas digitais poderiam ter sido, e terão, de facto, sido, estruturados de modo diferente, comparando com o atual modelo baseado quase exclusivamente no capitalismo de vigilância, e que teve, necessariamente, a precariedade laboral como consequência. O destino do capitalismo digital não foi pré-determinado. Muito menos será caminho único sob os auspícios de um digital tipicamente americano. Enquanto o modelo japonês tem as suas limitações e inconvenientes, como o jingoísmo nacionalista e tendências para uma expansão capitalista e imperialista, a conclusão que tiramos da análise de Steinberg terá a ver, em última instância, com a arrogância das narrativas ahistóricas e centradas nos Estados Unidos acerca da economia de plataforma, que é agora corrigida através desta primeira extensa abordagem da economia de plataforma japonesa e suas ramificações a nível regional e global.

No entanto, uma questão importante permanece: o que poderemos aprender com o rebentar da bolha das plataformas de conteúdos japonesas? O capitalismo consiste em ciclos de expansão e recessão, a nível global, regional e em setores económicos específicos. Esta obra fez um trabalho incrível ao examinar os tempos de expansão do modelo japonês. Contudo, os leitores críticos interessados no pós-capitalismo exigiriam, talvez, uma análise mais profunda do desaire japonês, há mais de uma década atrás, quando comparado com os recentes primeiros sinais de declínio de Silicon Valley. Ainda assim, Steinberg limitou-se à literatura de gestão e negócios, que tende a mostrar apenas a face mais brilhante da moeda. Como tal, a força da sua análise de discurso e dos estudos de caso é, também, um dos pontos fracos da sua metodologia.

No entanto, este livro é de leitura obrigatória para todos aqueles que esperam alargar os seus horizontes no que diz respeito às plataformas digitais, de um ponto de vista geográfico e histórico; aqueles que se sentem incomodados pelas problemáticas narrativas e práticas do capitalismo de vigilância de Silicon Valley; e aqueles que procuram uma abordagem crítica de modelos de plataforma passados, que possam servir de base a lutas atuais e futuras por melhores futuros digitais, sustentáveis e equitativos. Recomendo vivamente The Platform Economy: How Japan Transformed the Consumer Internet de Marc Steinberg.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020.

REFERÊNCIAS

Steinberg, M. (2019). The platform economy: How Japan transformed the consumer internet. University of Minnesota Press. [ Links ]

Recebido: 16 de Março de 2021; Aceito: 21 de Maio de 2021

Tradução: Helena Antunes

Jack Linchuan Qiu é professor e diretor de pesquisa no Departamento de Comunicação e Novos Média na Universidade Nacional de Singapura. Possui mais de 100 publicações académicas, entre artigos e capítulos. É autor de 10 livros escritos em Inglês e em Chinês, incluindo A Manifesto for Digital Abolition (University of Illinois Press, 2016), World Factory in the Information Age (Guangxi Normal University Press, 2013), Working- Class Network Society (MIT Press, 2009). Como co-autor, publicou o livro Mobile Communication and Society (MIT Press, 2005). O seu trabalho foi traduzido para o Alemão, Japonês,Coreano, Francês, Português e Espanhol. Jack é presidente da Chinese Communication Association (CCA), recebeu o Prémio C. Edwin Baker através de uma Bolsa de Estudos Avançados em Média, Mercados e Democracia, é membro eleito da International Communication Association (ICA). Atuou em conselhos editoriais de 14 revistas académicas e colabora com organizações não-governamentais, cooperativas, startups e organizações internacionais que promovem justiça social e desenvolvimento. Email: jacklqiu@nus.edu.sg Morada: The Shaw Foundation Building, Block AS7, Level 55 Arts Link, Singapore 117570

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