1. Pandemia Como Cenário Dominante do Quotidiano
A pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2 alterou, num ano, a sociedade global e instigou um conjunto de análises e reflexões sobre as suas consequências em dimensões como a geopolítica, a democracia, a governação, a economia e a saúde. A expansão da pandemia, que se iniciou, no final de 2019, na cidade chinesa de Wuhan, reconstruiu a mancha espacial da globalização neoliberal evidenciando as suas fragilidades e perversões: indústria e serviços de baixos salários; trabalho precário e pouco qualificado de migrantes e mulheres; serviços financeiros e tecnológicos de alto valor acrescentado; desigualdade de acesso à habitação, educação, mobilidade, saúde e proteção social. Características identificadas com o padrão de transmissão covid-19 designado por “3C”: (a) crowded places (lugares populosos); (b) close-contact settings (contactos de proximidade); (c) confined and enclosed spaces (espaços confinados e fechados; Fujita & Hamaguchi, 2020).
A doença revelou ainda os riscos que comportam as cadeias de valor global (Nimmo, 2020), nomeadamente a dependência de centenas de países de um único fornecedor de materiais médicos, tais como máscaras e ventiladores (EUA São Acusados de Reter Itens Médicos Destinados a Outros Países, 2020). Ao mesmo tempo, evidenciou uma hierarquia de acesso a esses bens essenciais fundada na capacidade de pagar ou pressionar os fornecedores. Entre os países que integram a União Europeia (UE), estas estratégias tornaram-se também visíveis (Caetano, 2020; França Confiscou Dois Milhões de Máscaras Destinadas a Espanha e Itália, 2020), embora, posteriormente, a Comissão Europeia tenha assumido uma resposta coordenada à pandemia (Comissão Europeia, s.d.-a), encomendando vacinas para os 27 países do bloco (Comissão Europeia, s.d.-b).
Instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial, e organizações e associações de âmbito mundial de diferentes áreas, tais como a Freedom House, The Economist (democracy index) ou o Repórteres Sem Fronteiras (World Press Freedom Index), têm chamado a atenção para fenómenos que se agravaram em função da crise sanitária: (a) desigualdades entre países e dentro dos países; (b) crises da dívida soberana e consequente falência dos estados; (c) esvaecimento das democracias e crescimento do populismo e dos estados autoritários; (d) colapso dos sistemas de saúde; (e) desigualdade no acesso às vacinas; (f) papel das empresas tecnológicas e dos media (mainstream e redes sociais) na gestão destes fenómenos.
Desconhecendo-se o vírus e a sua propagação, as medidas de prevenção e combate assumidas pela OMS (World Health Organization, s.d.-a) inspiraram-se na informação divulgada pela China, primeiro país a enfrentar a pandemia. Foram as orientações daquela organização internacional, com o apoio da ONU, que permitiram a assunção de uma coordenação mundial, não obstante as críticas e reticências colocadas por alguns governantes e especialistas.
O confinamento, como medida de combate e prevenção, ativado em grande número de países (the great lockdown), tornou-se mais um fator de aprofundamento das desigualdades (Stiglitz, 2020), dado que a maioria dos países não tem condições de suportar, através de subsídios, as pequenas empresas obrigadas a encerrar e os trabalhadores confinados. Acresce que entre estes há, também, grandes diferenças: aqueles que conseguem exercer a sua atividade via teletrabalho e aqueles que assistem à destruição dos seus postos de trabalho, normalmente precários ou pouco qualificados, especialmente em países onde o turismo constitui uma parte significativa do rendimento nacional (Amaral, 2020). Assim, estão mais protegidos os países que têm maior capacidade de apoiar empresas e trabalhadores, como a Alemanha; encontram-se mais vulneráveis os que não têm essa almofada financeira, ou estão dependentes do turismo, como Portugal. Neste contexto, e em função das características epidemiológicas e das orientações exigidas no combate ao vírus, agravam-se as desigualdades entre países e trabalhadores, extremam-se as relações de género (European Institute for Gender Equality, 2020; Soares, 2020) e aprofunda-se o fosso entre grupos etários (Georgieva et al., 2020).
Da perspetiva sanitária, à medida que o ano avançou, cresceu o conhecimento sobre: transmissão do vírus; sintomas a que está associado; efeitos da doença; sequelas; letalidade; mutações; variedade de testes disponíveis; medicamentos mais adequados; potencialidades das vacinas e níveis de imunidade (Leiria & Albuquerque, 2020). No campo da saúde evidenciou-se a necessidade de reorganização dos sistemas de saúde, de coordenação de recursos humanos e materiais, com ênfase na especialização e no número de profissionais, assim como do reforço de medidas de prevenção e de saúde pública. As tentativas de introduzir, em países ocidentais, as aplicações de rastreio do vírus chocaram com as liberdades civis e fomentaram o debate em torno do dilema entre dois sistemas de valores de difícil compatibilização, a privacidade e a segurança dos indivíduos (Figueiras, 2021). Enquanto em países autocráticos estas funcionalidades foram introduzidas de imediato na arquitetura dos dispositivos móveis, sem a necessidade de consentimento/conhecimento, nas democracias ocidentais o acesso a dados privados dos cidadãos gerou discussões sobre vigilância e privacidade e exigiu, não só uma arquitetura tecnológica mais complexa, como mais tempo para a disponibilização destes instrumentos (Figueiras, 2021).
As primeiras declarações das autoridades portuguesas sobre o novo coronavírus remontam a 15 de janeiro de 2020, quando a diretora-geral da saúde, Graça Freitas, afirmou aos jornalistas que “não há grande probabilidade de chegar a Portugal: mesmo na China o surto foi contido, para o vírus chegar cá seria necessário que alguma pessoa tivesse vindo da cidade afetada para Portugal” (Pereirinha, 2020, para. 2). Passados 8 dias desta afirmação, com a eclosão de casos em países e regiões fora da Europa com relações estreitas, e voos diretos para o país, são colocados três hospitais em estado de alerta. No dia 24 de janeiro, confirmam-se os primeiros dois casos em França e começam a surgir indícios de que o vírus possa estar a circular em muitos outros países. Nas semanas seguintes agrava-se a situação mundial e europeia, nomeadamente em Itália. Em Portugal, ganham destaque nos media os cidadãos infetados a trabalhar no estrangeiro. A 27 de fevereiro, a Direção-Geral da Saúde (DGS) divulga orientações às empresas, com vista a implementarem medidas de prevenção e contenção. A 2 de março, são confirmados os dois primeiros casos de infeção por covid-19 no país, em cadeia de transmissão reconstituída até Itália, e o governo português envia um despacho aos serviços públicos a ordenar a elaboração de planos de contingência para o surto. A 11 de março, a OMS declara a doença uma pandemia e alerta para “níveis alarmantes de propagação e inação” (World Health Organization, 2020, para. 6). Em Portugal, o estado de alerta é decretado pelo primeiro-ministro no dia seguinte, em consonância com as orientações da OMS, que identifica a Europa como o novo centro da pandemia. A 18 de março, o presidente da república declara o primeiro estado de emergência, que irá terminar a 2 de maio, mantendo-se, contudo, algumas medidas até ao final desse mês e nos meses posteriores.
Como constata o DataReportal (Kemp, 2020), o mundo mudou drasticamente nos 3 primeiros meses de 2020 devido à pandemia, o que se acentuou durante todo o ano, nos comportamentos digitais e nos consumos, pelo facto de bilhões de pessoas estarem confinadas em casa. Expectantes perante a evolução da doença, as audiências consumiram mais televisão e notícias, ao mesmo tempo que aumentaram significativamente os usos e consumos de todos os outros dispositivos e conteúdos.
A mesma tendência é assinalada no relatório de 2021 (Kemp, 2021), com um aumento muito significativo de horas despendidas, não só na televisão/notícias, como nos restantes dispositivos. Este cenário advindo da pandemia de covid-19 teve consequências na imprensa mainstream, pela diminuição drástica e a migração da publicidade para o digital. Em Portugal, as ajudas do Estado a estes meios (Bourbon, 2020) e o contexto da pandemia promoveram um ajuste às necessidades de informação das audiências e condições para um jornalismo de responsabilidade cívica e cidadã. A televisão, dada como morta por muitos autores (Carlón & Fechine, 2014; Katz, 2009; Scannell, 2009), recuperou muito da sua centralidade social e doméstica, abrindo-se à informação em tempo real e preenchendo slots de prime time com a temática da pandemia.
Com este cenário internacional e nacional de fundo, é importante observar as estratégias de comunicação assumidas institucionalmente para enfrentar a pandemia. Procuramos entender os reflexos e influência destas propostas e orientações nos padrões e características da cobertura jornalística da pandemia de covid-19 realizada pelos canais generalistas RTP1, SIC, TVI e CMTV, dominantes na informação televisiva de prime time, no período correspondente ao primeiro estado de emergência e subsequente plano de desconfinamento do governo. Pressupomos que este corresponde a um período de reconhecimento da doença, não só entre profissionais de saúde, mas também dos media. Nesse sentido, a análise da cobertura jornalística televisiva é igualmente um indicador das aquisições e hesitações dessa aprendizagem científica e quotidiana.
Com recurso à análise de conteúdo, investigam-se os temas, protagonistas e cenários com maior visibilidade. Identificaram-se ainda as marcas de contaminação da retórica jornalística pelo discurso das autoridades governamentais e de saúde e recensearam-se as especializações, representações institucionais e nível de independência dos comentadores televisivos. Na leitura integrada destes elementos reflete-se sobre a “captura” dos canais televisivos pelas estratégicas de comunicação e definição da agenda pelo poder executivo e autoridades de saúde, bem como as “contraestratégias” do jornalismo televisivo para afirmar a sua autonomia e singularidade da sua marca.
2. Comunicação e Media no “Despontar” da Pandemia
A comunicação sobre a pandemia tornou-se uma preocupação para as instituições internacionais e nacionais no sentido de fornecer informação adequada aos decisores políticos com vista à implementação de medidas sanitárias de contenção. Os media (mainstream e redes sociais) assumiram um papel relevante de mediadores entre os vários atores sociais. Identifica-se uma pluralidade de estratégias envolvendo diferentes níveis de atores e objetivos: (a) recolha, registo e tratamento de dados sobre a pandemia; (b) estratégias de comunicação desenvolvidas por organizações de saúde (Vraga & Jacobsen, 2020); (c) comunicação governamental, com vista a divulgar orientações sanitárias e informação de interesse público; (d) informação indoor e outdoor das organizações; (e) informação disponibilizada aos media e aos jornalistas; (f) informação veiculada pelos media; (g) comunicação interpessoal. A estas estratégias somam-se, transversalmente, as campanhas de combate à desinformação, principalmente nas redes sociais (Direcção-Geral da Saúde, 2020; Europol, s.d.).
A recolha, registo e tratamento de dados sobre a pandemia é uma preocupação mundial assegurada pela OMS por meio de um website de acesso universal (World Health Organization, s.d.-a), com análises de tendências e elementos por países. A mesma organização proporciona informação aos cidadãos publicando uma newsletter e orientações para jornalistas, a partir da rubrica “Newsroom” (Sala de imprensa), e oferecendo formação especializada a estes profissionais (World Health Organization, s.d.-b. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) criou igualmente uma rubrica no seu website com o objetivo de apoiar a resposta de países e governos à covid-19 e de ajudar no controlo da desinformação (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, s.d.)1.
As estratégias de comunicação da OMS e da Unesco sobre a covid-19 são replicadas por outras instituições, como o FMI, que tem seguido a crise económica e social provocada pela pandemia, proporcionando o acesso a uma newsletter e ao IMFblog, onde economistas e especialistas, de diferentes tendências, apresentam análises, avaliações e propostas. Na mesma linha, a UE acionou um dispositivo de comunicação online com a finalidade de publicitar as ações efetuadas, e programadas, de combate à pandemia e de apoio aos estados-membros, como a compra coordenada de vacinas, implementação de estratégias comuns de gestão da crise, linhas de apoio e planos de recuperação (Conselho Europeu, s.d.-b). Partilha ainda com as instituições citadas a preocupação com a desinformação (Conselho Europeu, s.d.-a). Neste sentido, o documento Tackling Coronavirus Disinformation: Getting The Facts Right (Combater a Desinformação Sobre o Coronavírus: Repor a Verdade dos Factos; European Union, 2020) visou propor medidas concretas para aumentar a resiliência da UE, tais como apoiar os dispositivos e instituições verificadores de factos e os investigadores que trabalham sobre este tema, intensificar as capacidades de comunicação estratégica da União Europeia e o reforço da cooperação com os parceiros internacionais, assegurando simultaneamente a liberdade de expressão e o pluralismo.
As organizações empresariais também empreenderam estratégias de comunicação específicas à medida que a pandemia se instalou. Por exemplo, a empresa de consultoria global FTI Consulting avançou com o documento Covid-19: Communication Strategies For Your Organization (Covid-19: Estratégias de Comunicação Para a Sua Organização), no qual propõe a adoção de medidas para proporcionar informação personalizada sobre segurança e mudanças nos serviços e nas operações das empresas (Capodanno, 2020).
No que concerne às estratégias de comunicação em saúde regista-se a publicação de guias, tais como os da OMS e os provenientes dos centros de prevenção e controle de doenças infeciosas (e.g., os dos Estados Unidos, com trabalho realizado sobre outras epidemias, como o ébola e a zica). Associações como a World Medical and Health Policy (Vraga & Jacobsen, 2020) e outras da área médica e hospitalar (Ontario Hospital Association, s.d.) constatam as novas estratégias no campo da comunicação em saúde para a covid-19 e alertam para a necessidade de distinguir a informação para profissionais e para os cidadãos comuns. No primeiro caso, deve ser gerado um conjunto de mecanismos que permitam o acesso rápido à informação científica disponível. Para os segundos, a comunicação deve ser confiável e credível, mostrar empatia, apelar à responsabilidade, à autonomia individual e ao envolvimento público, evitando a politização das medidas, a partir da criação de uma unidade de controlo não-governamental. A ameaça da desinformação, principalmente nas redes sociais (Cinelli et al., 2020), é identificada por todas as instituições e sistematizada em três desafios: sobrecarga de informação, incerteza de informação e desinformação. Esses desafios, associados à rápida evolução epidemiológica e às lacunas no conhecimento científico sobre o novo vírus, devem ser combatidos por meio de comunicação precisa do núcleo de mensagens para públicos específicos, bem como pelo monitoramento da informação dos media mainstream e redes sociais, com o objetivo de combater mitos e teorias da conspiração.
Em Portugal, o Plano Nacional de Preparação e Resposta à Doença por Novo Coronavírus (Covid-19) foi realizado pela DGS (Correia et al., 2020), em sintonia com a OMS e o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (European Centre for Disease Prevention and Control, s.d.). A Cadeia de Comando e Controlo, responsável pela liderança e coordenação da epidemia a nível nacional, é constituída pelo Ministério da Saúde e pela DGS. A este núcleo central juntam-se outras áreas, como a educação, administração interna, justiça, trabalho, assuntos sociais e economia. A DGS conta com a colaboração do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge para a recolha e apuração de dados, bem como do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (Portugal). As estratégias de comunicação envolvem um website (https://covid19.min-saude.pt/), conferências de imprensa diárias e transmitidas em direto no Facebook (Ramos & Jerónimo, 2020), um boletim diário epidemiológico publicado no site da DGS, material distribuído pelas organizações e profissionais de saúde, diretivas, normas e outros guias direcionados a diferentes tipos de agentes públicos e privados e cidadãos. Esta direção promoveu, ainda, um acordo com as televisões, no sentido de observarem padrões de informação compatíveis com o rigor e a qualidade da informação sobre a pandemia (“Pivots da RTP, SIC, TVI e CMTV Juntos a uma Só Voz Contra o Covid-19”, 2020).
A cobertura jornalística tem acompanhado as pandemias, mas a da covid-19 alcançou níveis sem precedentes de visibilidade. A memória da chamada gripe espanhola, a pneumónica (1918/1919), está ainda presente em alguns sobreviventes, e foi matéria em jornais da altura, incluindo portugueses (Esteves, 2020). Os títulos reportaram as características da doença, a sua dispersão nacional e internacional, o número de mortos, as ações de saúde preventivas e as orientações a seguir. Outras pandemias receberam atenção dos media, como a HIV/SIDA nos anos de 1980, a SARS (China, 2002) ou o ébola (África Ocidental, 2014).
O reconhecimento da covid-19 como valor-notícia e como objeto de investigação para os estudos de comunicação foi, praticamente, imediato, num sistema mediático dominado pelo digital. Estudos publicados recentemente (Ogbodo et al., 2020) mostram que os conglomerados mundiais de media fizeram prontamente uma cobertura jornalística sistemática da pandemia. Porém, os enquadramentos não terão sido suficientemente eficazes em comunicar as principais medidas de contenção da doença (Yves, 2020), por falta de uma estratégia concertada dos agentes de saúde e dos media no sentido de privilegiar a transparência dos cenários da epidemia e a clareza nas mensagens preventivas (Organização Mundial da Saúde, 2018). Por outro lado, a proliferação de dispositivos digitais e a circulação de conteúdos entre emissores institucionais, como os media mainstream, e emissores/utilizadores das redes, tendem a aumentar a desordem informativa, a má informação e as notícias falsas. Para minimizar estas situações, têm vindo a ser criados mecanismos com vista a conferir os factos, como o programa Polígrafo na SIC.
Em Portugal, de acordo com a análise de Lopes et al. (2020), durante o estado de emergência, os media noticiosos assumiram uma clara orientação dos cidadãos para comportamentos preventivos da doença, “procurando constituir-se como mais uma frente de combate à pandemia, que terá sido importante para ajudar o país a ficar em casa” (p. 207). No inquérito realizado pelos autores à classe jornalística sobre o jornalismo desenvolvido durante este período, 92,2% assumiram esta opção editorial, “uma escolha nunca vista no Portugal democrático depois do 25 de abril de 1974”, que demarcaram de um direcionar dos públicos para o apoio a determinadas opções políticas (Lopes et al., 2020, p. 211). Porém, também sublinham que a comunicação oficial não sofreu alterações tão profundas quanto as que o campo jornalístico necessitava, sendo notado que entidades políticas e autoridades sanitárias nem sempre responderam às dúvidas e à procura da informação ou forneceram explicações adicionais requeridas pelas redações (Lopes et al., 2020, pp. 226-227).
De outro prisma, embora a responsabilidade social do jornalismo seja indiscutível, esta atividade tem estado sujeita a grandes constrangimentos, não só internos, como derivados da crise epidemiológica. A estas circunstâncias acrescem pressões provenientes de governos autoritários, mas igualmente democráticos, que aproveitam a oportunidade para restringir a liberdade de expressão e o pluralismo. Assim, a Freedom House (2020) constata que:
a pandemia COVID-19 gerou uma crise para a democracia em todo o mundo. Desde o início do surto de coronavírus, a condição da democracia e dos direitos humanos piorou em 80 países. Os governos responderam cometendo abusos de poder, silenciando seus críticos e enfraquecendo ou fechando instituições importantes, muitas vezes minando os próprios sistemas de responsabilização necessários para proteger a saúde pública. (para. 1)
Ao analisar o papel da internet na pandemia, a mesma instituição refere, por um lado, que há um “declínio dramático na liberdade global da internet” (Freedom House, 2020, para. 3) e, por outro, que as grandes empresas tecnológicas, embora relutantes na generalidade, têm implementado dispositivos de prevenção de desinformação.
Tendência semelhante é assinalada pela organização Repórteres Sem Fronteiras (Reporters Without Borders, 2020) que, no índice de liberdade de imprensa mundial de 2020, considera “a próxima década ( … ) decisiva para o futuro do jornalismo, com a pandemia de Covid-19 destacando e ampliando as muitas crises que ameaçam o direito de ser noticiado gratuitamente, informações independentes, diversificadas e confiáveis” (para. 1).
Afirmação que é confirmada nos múltiplos estudos realizados, um pouco por todo o mundo, não só reforçando a responsabilidade dos media e do jornalismo, como também mostrando o impacto da pandemia nos consumos, por exemplo dos noticiários televisivos. No primeiro caso, num estudo desenvolvido na Austrália (Thomas et al., 2020), a partir da análise de artigos online de jornais nacionais, foi investigada a quem foi atribuída responsabilidade pelo combate à pandemia. Na perspetiva do aumento dos consumos de notícias na televisão, um estudo exploratório de Casero-Ripollés (2020), com base nos dados secundários do online do painel de tendências americanas do Pew Research Center nos Estados Unidos, comparou períodos anteriores e posteriores ao surto e concluiu que a pandemia reativou o visionamento de notícias, via imprensa online, mas sobretudo da televisão, proporcionando aos cidadãos um conhecimento válido sobre a propagação do vírus.
3. Estudo Empírico: Uma Abordagem aos “Primórdios” da Pandemia
3.1. Materiais e Métodos
Integram os corpora deste artigo dois conjuntos de dados referentes a blocos noticiosos de quatro canais televisivos generalistas em Portugal.
O primeiro refere-se aos noticiários da RTP1, SIC e TVI, entre 2 de março de 2020, data de confirmação dos primeiros infetados em Portugal, e 18 de março de 2020, quando foi declarado o primeiro estado de emergência. É constituído por um total de 306 peças noticiosas, emitidas nos blocos informativos da hora do almoço (153 peças) e do prime time (153 peças).
O segundo envolve os blocos noticiosos da noite dos canais generalistas RTP1 (Telejornal), SIC (Jornal da Noite), TVI (Jornal das 8) e CMTV (CM Jornal 20H), no período em que esteve em vigor a primeira fase do estado de emergência, entre 18 de março a 2 de maio de 2020, e o ciclo de desconfinamento subsequente, de 3 a 31 de maio de 2020. Neste conjunto, entre os quatro canais televisivos, foram codificadas 900 peças sobre a pandemia, correspondentes a 75 dias, 75 serviços noticiosos e 225 peças por canal.
Considerando o volume de informação, a opção metodológica recaiu na recolha das peças referentes às primeiras três notícias sobre a covid-19, independentemente da sua posição no alinhamento e do género jornalístico. Embora os dois grupos de peças não sejam comparáveis - o primeiro incide em três canais televisivos e o segundo em quatro, além de terem sido analisados blocos noticiosos distintos -, constituem um material valioso para a avaliação das mudanças nos processos de comunicação e tendências da cobertura jornalística da pandemia.
Estudos anteriormente citados sobre a atenção jornalística a epidemias fundamentam o trabalho empírico. A metodologia quantitativa utilizada envolveu a construção de uma base de dados em Excel e a extração de outputs, com referência a categorias pré-definidas. Este procedimento permitiu o registo, o tratamento numérico dos conteúdos manifestos e a extração de indicadores capazes de suportar inferências replicáveis e objetivas da substância da(s) mensagem(s), com vista à compreensão dos fenómenos observados. Com estes pressupostos procedeu-se à análise de conteúdo, técnica de investigação aplicável a todos os meios de comunicação e que visa a descrição sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto (Cunha & Peixinho, 2020). A análise almeja a objetividade e a sistematização de dados, com a finalidade de apontar indicadores que permitam a sua generalização em contextos semelhantes (Bauer & Gaskell, 2002). O percurso envolve uma fase de pré-análise e a posterior consolidação de categorias, ancoradas na pré-análise e na revisão de literatura, que foram parametrizadas no programa Excel. Os resultados permitirão refletir sobre a cobertura televisiva de um evento excecional, como a pandemia.
Assim, com base na literatura e numa perspetiva comparativa, entre os dois conjuntos de peças - com ressalva para os canais analisados e o período temporal -, pretendeu-se responder às seguintes perguntas: (a) quais os temas referentes à pandemia com maior visibilidade; (b) quais os protagonistas da área política e da saúde com maior saliência; e (c) quais os cenários alocados à pandemia? Para o presente estudo definiu-se ainda um subcorpus constituído pelas peças com os temas de covid-19 mais frequentes, procurando sinais de contaminação da retórica jornalística pelo discurso das autoridades governamentais e de saúde. Delimitou-se um segundo subcorpus em que são protagonistas os comentadores médicos, o que possibilitou a identificação mais detalhada das especializações, representações institucionais e nível de independência nas suas intervenções.
A resposta a estas perguntas permitiu observar as tendências da cobertura jornalística televisiva, mas também rastrear as estratégias de comunicação para os media, seguidas pelas instituições governamentais, nomeadamente pela DGS, e a sua influência sobre a agenda jornalística.
3.2. Resultados
3.2.1. Período de 2 a 18 Março 2020
As três primeiras peças dos alinhamentos sobre o surto de coronavírus nos canais RTP1, SIC e TVI tenderam a privilegiar os temas “epidemia/pandemia”, “balanço”, “medidas de confinamento”, “orientações da Direção-Geral da Saúde” e “estado sanitário”. Aprofundando as associações simbólicas do tema “balanço”, verifica-se que estas matérias se conectaram sobretudo com o subtema “infetados” e aí se recorre a uma semântica própria para descrever as diferentes situações clínicas, e respetiva evolução diária, inspirada na terminologia das autoridades de saúde nos seus boletins: “infetados”, “recuperados”, “suspeitos” - termo que posteriormente foi abandonado - ou “sob vigilância” e “mortos”.
Os protagonistas que se destacaram foram, em primeiro lugar, os doentes, figuras anónimas, sem rosto, que concentram toda a atenção porque representam simultaneamente a corporização do vírus e a sua progressão na comunidade. Destacaram-se ainda a ministra da saúde (Marta Temido), o primeiro-ministro (António Costa), a diretora-geral da saúde (Graça Freitas) e o presidente da república (Marcelo Rebelo de Sousa). Nesta apreciação mais lata, nas peças analisadas observou-se, assim, o protagonismo de fontes políticas do ou ligadas ao governo na gestão da crise. O presidente da república foi outro protagonista político que se destacou na resposta dos órgãos de soberania ao surto, mas também na condição de auto-confinado. Em sentido contrário, nas peças que compõem esta amostra, o parlamento e os partidos políticos praticamente não tiveram expressão. Hospitais, conferências de imprensa, ruas ou cidades, estúdios e salas de reunião foram as imagens que com mais frequência enquadraram visualmente as peças analisadas, constituindo “os cenários”, nos três canais televisivos (Tabela 1).
Nota. N = 306 (total de peças analisadas nos blocos informativos da tarde e da noite da RTP1, SIC e TVI, entre 2 e 18 de março de 2020)
Neste estudo exploratório, notou-se também a crescente proeminência dos pivôs, que tendiam a iniciar os noticiários com textos emocionais e apelativos, mas também adotando um tom didático, no sentido de apoiar as diretivas da DGS sobre comportamentos face à pandemia. Na cobertura desta temática, assistiu-se à introdução de elementos médicos e biomédicos, com vista à tomada de comportamentos preventivos e profiláticos. Nas televisões portuguesas, a estória da covid-19 tornou-se uma construção social, com diversos protagonistas - autoridades, especialistas e heróis - e cenários, como as conferências de imprensa, as salas de reunião, os estúdios e os hospitais. Perante os elementos recolhidos, concluiu-se que o desafio lançado pelo vírus e pela pandemia agregou responsáveis de saúde e media dominantes em Portugal, com vista a informar, esclarecer e orientar os cidadãos. A construção da notícia recorreu a uma dupla rotina: as rotinas próprias do jornalismo televisivo, que envolvem os diretos, as reportagens, os testemunhos da população e as imagens de arquivo; e as relativas à pandemia do Ministério da Saúde e da DGS.
Em função do “acordo de cavalheiros” entre DGS e media dominantes, as autoridades de saúde adquiriram um papel proeminente como gatekeepers, determinando a informação e o ângulo das notícias, como se comprova nos temas com maior visibilidade identificados. Neste estudo exploratório, indicia-se a adesão aos definidores primários da informação, isto é, à forma como definiram a agenda e enquadraram a problemática. As crescentes limitações à mobilidade dos jornalistas, por razões de segurança e saúde pública, reforçaram a dependência de eventos organizados por aqueles protagonistas do governo ou da esfera do poder executivo, que controlaram a resolução da crise, como reuniões e conferências de imprensa (Cabrera et al., 2020).
3.2.2. Período 18 de Março a 31 de Maio 2020
Neste período, como referido, foram analisadas as três primeiras peças referentes à covid-19 nos blocos noticiosos do prime time dos canais RTP1, SIC, TVI e CMTV, num total de 900 notícias. Os resultados agregados de temas, protagonistas e cenários constituem as especificidades do estado de emergência (18 de março a 2 de maio) e do desconfinamento (3 a 31 de maio). A visão macro (Tabela 2) destes dados agregados constrói-se a partir do top 5 dos temas, protagonistas e cenários.
Nota. N = 900 (total de peças analisadas nos blocos informativos da noite da RTP1, SIC, TVI e CMTV entre 18 de março e 31 de maio de 2020)
Os temas com maior incidência são os balanços, os planos de desconfinamento, o estado sanitário, a crise económica e social e os testes à covid-19. Na categoria “protagonista”, por ordem hierárquica, surgem os pivôs, o primeiro-ministro, a diretora-geral da saúde, a ministra da saúde e o presidente da república. Nos cenários dominam as imagens das conferências de imprensa, das ruas ou cidades, das infografias, dos hospitais e dos estúdios.
Numa tentativa de rastrear as especificidades da cobertura jornalística no período de emergência e desconfinamento, apresentam-se, em seguida, os dados desagregados (Tabela 3). O período de emergência (18 de março a 2 de maio), que contabiliza 552 notícias, mostra que há menos referências aos planos de desconfinamento e à crise económica e social, enquanto os cinco protagonistas com maior evidência são o primeiro-ministro, os pivôs, o presidente da república, a diretora-geral da saúde e os repórteres.
Nota. N = 900 (Ttotal de peças analisadas nos blocos informativos da noite da RTP1, SIC, TVI, CMTV entre 18 de março e 31 de maio de 2020)
No período de desconfinamento (3 a 31 de maio), que regista 348 peças, salienta-se no top 5 o crescimento de peças sobre a temática da crise económica e social e das orientações da DGS bem como surgimento de novos protagonistas, como a “população” e a ministra da saúde. Observa-se também que os pivôs ganharam ainda maior visibilidade em comparação com o período anterior, enquanto a diretora-geral da saúde e o primeiro-ministro obtêm menor proeminência. Relativamente aos cenários observamos semelhanças e diferenças. É semelhante a proeminência conferida às imagens de conferências de imprensa, de ruas ou cidades e infografias pelas quais se apresentam os dados relativos à pandemia. As diferenças surgem na maior ambientação nos estúdios no primeiro período analisado e o recurso a imagens referentes aos locais de lazer no segundo.
3.3. Discussão e Considerações Finais
As estratégias dos técnicos responsáveis pela saúde pública e do poder político envolveram a televisão como ferramenta crucial para a comunicação. Acresce que a informação sobre o vírus e a pandemia assumiu um elevado valor estratégico, não só para as autoridades sanitárias e políticas, como para os canais de televisão. Para os agentes sanitários e atores políticos o recurso aos canais generalistas e com maior audiência em Portugal permitiu a divulgação e justificação das suas medidas, o reforço da literacia em saúde pública e a mobilização dos cidadãos para acatar regras quotidianas restritivas. Em simultâneo, os mesmos atores garantiram a veiculação de uma informação transparente, explicada corretamente de modo a influenciar comportamentos, minimizar riscos, mas também evitar o pânico, o alarme e a disrupção social durante a epidemia. Ao apoiarem esta estratégia e ao tornarem-se o meio de comunicação com maior informação e procura nacional sobre a epidemia, as televisões bateram recordes de audiências (Cardoso, 2020) e consolidaram as suas marcas comerciais.
Os resultados apurados refletem esta dinâmica, como se pode verificar pela visibilidade das temáticas referentes aos balanços, às decisões e orientações sobre as medidas de prevenção e confinamento. Ao mesmo tempo que a informação sobre a covid-19 se tornou prioritária, é notório, também, que os canais apostaram na diferenciação da oferta informativa. Essa apresentação acompanhou a informação oficial da DGS e incluiu dados sobre a distribuição geográfica, a caracterização clínica dos casos (infetados, internados, cuidados intensivos, recuperados, óbitos), os grupos etários afetados, a linha do tempo, a intensidade da transmissão e o impacto da doença no Serviço Nacional de Saúde. Salienta-se, ainda, a apropriação que pivôs, jornalistas e repórteres vão fazendo da terminologia científica aplicada à pandemia, num esforço de precisão nas mensagens que veiculam. Este esforço de incorporação das exigências técnicas e científicas reflete-se na apresentação dos dados por meio de infografias. Ao mesmo tempo as estações televisivas investem na distinção da oferta, através dos grafismos dos estúdios, da originalidade da diagramação das infografias, da mobilização de comentadores/especialistas e da enfatização do papel dos pivôs. O objetivo é reforçar a marca e a especificidade de cada canal.
Por exemplo, num primeiro momento, no início de março, quando se tinham registado os primeiros casos em Portugal, a infografia da RTP1 (2 de março de 2020, 13:02:54; Figura 1) mostra o vírus e um tubo de ensaio. Já 10 dias depois, com 78 casos confirmados no país, a TVI (12 de março de 2020, 13:01:53; Figura 2) exibe uma infografia com a distribuição geográfica da infeção. Em meados de maio, poucos dias após o fim do estado de emergência, a CMTV (10 de maio de 2020, 20:34:19; Figura 3) apresenta os totais para infetados, mortos, recuperados, em análise e em cuidados intensivos. Já no final de maio, em situação de desconfinamento, a SIC (28 de maio de 2020 20:02:08; Figura 4) evidencia o risco de transmissibilidade da doença no tempo, para explicar o conceito de RT (índice de transmissibilidade).
Em complemento a este branding surge o agendamento dos especialistas na área da saúde como comentadores. Trata-se de uma estratégia para acrescentar mais-valia à informação oficial, utilizada por todos os canais. A finalidade, dentro de uma perspetiva de concorrência pelas audiências, é contar com um perito conceituado que tenha capacidade de expor o seu conhecimento a partir de uma boa comunicação com o grande público. Em todos os canais identificam-se comentadores/especialistas tais como: infeciologistas, imunologistas, especialistas em saúde pública, epidemiologistas, pneumologistas, intensivistas, diretores de serviços hospitalares nas áreas relevantes e estatísticos de saúde. Esta estratégia objetivou acrescentar mais elementos e encontrar fontes de informação alternativas, de forma a evitar que as notícias se restringissem à informação oficial e ficassem dependentes das fontes primárias governamentais e dos compromissos assumidos com a DGS. Neste contexto, os especialistas médicos tornaram-se fulgurantes figuras mediáticas e líderes de opinião (Figuras 5, 6, 7 e 8).
Noutra ótica, esta tendência é ainda corolário da crescente importância da comunicação e do jornalismo de saúde, contexto em que a literatura avalia o valor das fontes especializadas para um discurso noticioso mais rigoroso naquilo que reporta e mais esclarecedor para os cidadãos (Lopes et al., 2020, p. 207).
Na mesma linha de reforço de marca está a escolha dos cenários que acompanham as notícias, ao privilegiar determinadas imagens ou certas estratégias de edição, de conferências de imprensa, ruas, cidades e hospitais, assim como o recurso a imagens aéreas de drones de hospitais, ruas, cidades e outras. A procura de originalidade e de singularidade faz-se, igualmente, no uso de imagens de interiores de hospitais (corredores, enfermarias, serviços especializados ou profissionais de saúde) ou de doentes em serviços de cuidados intensivos, utilizando para isso profissionais de saúde.
Um processo semelhante decorre relativamente aos protagonistas das notícias. Embora, como foi referido, os atores políticos (primeiro-ministro e presidente da república) e da área da saúde (ministra da saúde e diretora-geral da saúde) obtenham grande visibilidade, é evidente que os pivôs são os grandes protagonistas. Se, por um lado, assumem a dimensão inerente ao serviço público - informar, educar e prevenir -, por outro, não deixam de reforçar a sua qualidade de branding na estação televisiva em que estão sediados. Os pivôs tornam-se importantes na forma como introduzem e apresentam os dados, na clareza e na emoção que colocam nos seus discursos sobre a pandemia, dando origem a um starsystem de influenciadores jornalistas que promovem audiências e orientam espectadores (Mexia, 2020).