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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.40  Braga dez. 2021  Epub 20-Dez-2021

https://doi.org/10.17231/comsoc.40(2021).3324 

Artigos Temáticos

Teorias da Conspiração em Tempos de Pandemia Covid-19: Populismo, Media Sociais e Desinformação

Gil Baptista Ferreirai  ii 
http://orcid.org/0000-0002-5917-1248

iNúcleo de Investigação em Ciências Sociais e Humanas, Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Coimbra, Coimbra, Portugal

iiLabCom - Comunicação e Artes, Faculdade de Artes e Letras, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal


Resumo:

As plataformas de media sociais são há muito reconhecidas como grandes disseminadoras de desinformação sobre saúde. Estudos anteriores encontraram uma associação positiva entre a utilização dos media sociais como fonte principal de informação e a aceitação de formas de desinformação, como teorias da conspiração. Encontra-se ainda descrita a associação entre atitudes populistas e a valorização da informação através dos media sociais. A partir de um questionário aplicado a 242 respondentes após o primeiro estado de emergência da pandemia da covid-19 (março de 2020), em Portugal, o presente estudo possui como objetivo identificar antecedentes e pré-requisitos da crença em desinformação. Os dados obtidos sugerem que indivíduos com sentimentos populistas possuem menor confiança em estratégias institucionais de combate à pandemia, privilegiam os media sociais como fonte de informação e revelam uma maior aceitação de teorias da conspiração sobre a doença. A ligação, documentada na literatura, entre crença em teorias da conspiração e comportamentos de risco, recomenda a adoção de medidas de combate aos fatores de desinformação.

Palavras-chave: media; media sociais; desinformação; teorias da conspiração; covid-19; infodemia

Abstract:

Social media platforms have for a long time been recognized as great disseminators of misinformation on health. Previous studies found a positive association between the use of social media as the main source of information and the acceptance of forms of misinformation, such as conspiracy theories. The association between populist attitudes and the valuation of information through social media is also described. From a questionnaire applied to 242 respondents after the first state of emergency of the covid-19 pandemic (March 2020) in Portugal, this study aims to identify the background and pre-requisites for the belief in misinformation. The data obtained suggest that individuals with populist feelings have less trust in institutional strategies to fight the pandemic, privileging social media as a source of information and revealing a greater acceptance of the conspiracy theories on the disease. The connection, documented in the literature, between the belief in conspiracy theories and risk behaviours recommends that measures be adopted to combat misinformation factors.

Keywords: media; social media; misinformation; conspiracy theories; covid-19; infodemic

1. Introdução: Da pandemia à Infodemia

Desde os últimos meses de 2019 que a informação sobre saúde passou a ocupar o centro da atenção e das preocupações das pessoas por todo o mundo. Numa escala e com uma duração sem precedentes na memória coletiva recente, a pandemia provocada pela doença causada pela nova variante de coronavírus, a covid-19, preenche, de forma quase hegemónica, a agenda dos diversos meios - afastando dela muitos outros assuntos que habitualmente a compunham e acoplando, de modo subordinado, os restantes temas que ainda logram ser notícia. Em tempos de crise, como são aqueles em que ocorrem desastres naturais em larga escala, ataques terroristas ou surtos de doenças, a importância dos media aumenta, e as respetivas informações tornam-se um elemento chave para o funcionamento da sociedade. Devido ao alto nível de incerteza, é aos media que a maioria das pessoas recorre para entender o ambiente em que vive e tomar decisões em relação a ele. De igual modo, a influência dos media é frequentemente amplificada. Também por isso, sobretudo em situações de gestão de crise, o recurso a fontes de informação confiáveis é dos fatores mais importantes do comportamento social (Longstaff, 2005).

Centrado no funcionamento do vasto sistema dos media, este estudo foi desenvolvido ao longo de aproximadamente um ano (desde março de 2020 a fevereiro 2021), período em que a pandemia da covid-19 dominou a esfera pública. Paralelamente à propagação global do próprio vírus, é hoje claro que outro tipo de pandemia se desenvolveu. Com a rápida disseminação da doença, ocorreu igual surto de informações através dos media sociais e dos media convencionais, onde uma vasta torrente de “notícias” sobre as origens do vírus e as formas de o combater circularam, de forma igualmente viral, tão depressa como a infeção. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, alertava, ainda nos primeiros meses da pandemia, que, com a chegada e a disseminação da covid-19, “na OMS, não estamos apenas a lutar contra o vírus, mas também contra os teóricos dos trolls e da conspiração que espalham informações erradas e prejudicam a resposta ao surto” (World Health Organization (WHO), 2020). Em certa medida, esta ameaça tinha já sido antecipada, anos antes. Ainda em 2013, o Fórum Mundial Económico (World Economic Forum, 2013) assinalava a existência de fenómenos de desinformação digital massiva, cuja proliferação, a partir dos media sociais, representaria uma das principais ameaças às nossas sociedades, nas suas diversas dimensões (Howell, 2013). Encontram-se hoje identificados múltiplos fenómenos de desinformação associados às plataformas de media sociais. Com efeito, caraterísticas como a abertura, a generalização do acesso e a diminuição dos mecanismos de controlo, combinados com automatismos de difusão massiva e/ou seletiva, vieram facilitar a criação e a disseminação de conteúdos de natureza diversa, geradores de informações falsas, desde rumores e boatos não verificados a notícias mal redigidas, conteúdos intencionalmente falsos ou ainda teorias da conspiração.

Neste trabalho, utilizaremos o conceito de desinformação como forma de contemplar uma crescente quantidade de conceitos com natureza e intencionalidade distinta (desde spam às “notícias falsas”), num sentido equivalente ao termo “misinformation”, enquanto “guarda-chuva para incluir todas as informações falsas ou imprecisas espalhadas pelos media sociais” (Wu et al., 2019, p. 81). Utilizaremos ainda a noção de “teoria da conspiração”, em acordo com a caraterização proposta por Freeman et al. (2020): entendimentos e narrativas que partem de quatro pressupostos - a realidade (o mundo ou um facto) é diferente do que parece; há um ocultamento da verdade por parte de entidades poderosas; esta perceção, ou teoria, é aceite por apenas uma minoria; estas crenças não são passíveis de sustentação em evidências científicas.

De forma viral e potencialmente perigosa, um vasto conjunto de teorias de conspiração e de rumores enganosos, com as caraterísticas descritas acima, tem sido amplamente partilhado através dos media online - os quais incluem todas as grandes plataformas de media sociais, de publicação de vídeos e de envio de mensagens (desde o Twitter ao Facebook, Instagram, WhatsApp, YouTube, etc.). Especulações, sem fundamento científico ou factual, sobre possíveis causas, terapêuticas ou mesmo sobre os próprios desenvolvimentos da pandemia, circulam de forma acelerada, causando confusão e originando comportamentos de risco (Allington et al., 2021). Indivíduos que se definem como especialistas interagem através media sociais ou páginas web para informar sobre a doença, com relatos relativos à sua prática clínica - ora argumentando que a covid-19 não provoca sintomas piores que uma gripe leve e, portanto, não é um perigo para a saúde, ora desvendando realidades assustadoras que os media profissionais ocultam. Para observadores propensos a crenças conspiratórias, mensagens deste tipo funcionam como mecanismo de confirmação de suposições já latentes (Goreis & Kothgassner, 2020). No todo que formam, as crenças conspirativas online sobre a covid-19 surgem expressas como um “surto”, como a última onda de um “dilúvio de informações conflituantes, desinformação e informações manipuladas nos media sociais” (Allington et al., 2021, p. 1763).

Um estudo do Departamento de Estado norte-americano, publicado inicialmente no jornal The Washington Post (Romm, 2020), referia que aproximadamente 2.000.000 de tweets divulgaram teorias de conspiração sobre o coronavírus durante as 3 semanas em que o surto começou a disseminar-se fora da China. Entre as publicações mais comuns, encontravam-se as que descreviam o vírus como “uma arma biológica”. Este e outros rumores falsos representaram 7% do total de tweets estudados e foram caracterizados como “potencialmente impactantes nas conversas mais participadas nos media sociais”, segundo o relatório obtido por The Washington Post (Romm, 2020, para. 2). Encontram-se amplamente enunciadas as consequências negativas da desinformação, hoje já abundante sobre uma variedade de questões nos domínios da saúde. Entre elas, destaca-se a dissuasão de medidas preventivas eficazes e a diminuição da consciência das pessoas sobre a grau de nocividade de vírus e doenças (Allington et al., 2021; Vraga et al., 2020). Diversos outros estudos sugerem que à crença em desinformação relacionada com a covid-19 estará positivamente associada a negligência na prevenção e a relutância em relação a medidas de proteção (Barua et al., 2020), fatores que, por si só, contribuem para o aumento de desfechos fatais.

Em tempos de incerteza, com a pandemia covid-19 a dominar a esfera pública durante longos meses, e a afetar, sem exceção, todos os domínios da vida social e política, aquilo que, à partida, se definia enquanto crise de saúde pública, passa a apelar, para a sua análise, ao recurso a um outro conceito relevante no quadro das análises do nosso tempo: a noção de populismo. Com efeito, a relação entre “crise” e “populismo” tem sido um dos temas constantes na literatura social e política desde os inícios do século passado. Não apenas as “crises” são perspetivadas como momentos particularmente oportunos para o ressurgimento de atores populistas, como favorecem as divisões sociais e políticas e potenciam os discursos que separam e estimulam tensões - “povo” e “elites”, governantes e governados, sistema e indivíduos comuns. É em contextos de crise que “populistas” invocam e incorporam no seu discurso a expressão dessa mesma crise, integrando e unificando queixas e frustrações, desse modo mobilizando amplos setores sociais contra as “indiferentes elites”, apontadas como culpadas, em alguma medida, pelo estado de crise (Katsampekis & Stavrakakis, 2020).

O papel dos media, neste processo, não é negligenciável. Enquanto os media jornalísticos tradicionais tentaram adaptar as suas funções e a sua missão a um contexto em rápida evolução, os media sociais e as “notícias alternativas na internet” distinguem-se pelo viés específico que conferem aos acontecimentos. Mesmo quando não se trata de “notícias falsas” potencialmente perigosas e de teorias da conspiração, partilham sobretudo mensagens com um forte tom crítico, até mesmo anti sistémico, opondo-se à visão dos media mainstream e do establishment político. De um modo muito estrito, alguns autores referem o surgimento de um populismo pandémico, que, neste período, vem contribuindo para a consolidação de visões contraditórias, ameaçadoras e desconfiadas do mundo. Perante este quadro, faz parte dos esforços da pesquisa académica analisar as patologias comunicativas que se desenvolveram paralelamente à pandemia, e procurar identificar conexões e padrões generalizáveis de populismo pandémico que, assinale-se, parecem co evoluir com a propagação do próprio vírus (Boberg et al., 2020).

São estes os propósitos deste estudo.

2. Revisão da Literatura

2.1. Populismo

A generalidade da literatura identifica um certo entendimento de “povo” como o elemento mais importante da ideologia populista. Desde logo, o povo é concebido como um grupo homogéneo ou monolítico, bom por natureza e detentor de todo um vasto reportório de atributos positivos - pureza, sabedoria ou autenticidade (Albertazzi & McDonnell, 2008, p. 6). Intimamente relacionado com o povo, encontra-se o conceito de soberania popular, que define o povo como o soberano político legítimo e último, numa espécie de versão renovada (e não fiel) da ideia de vontade geral proposta por Rousseau. Na aceção populista, a soberania popular é uma premissa central para o funcionamento da democracia - sem a qual o seu funcionamento estará condicionado. É a partir deste argumento que o discurso populista denuncia a figura das elites, que, mais do que acusadas de não representarem a vontade do povo, são responsabilizadas por traírem essa mesma vontade, e desse modo retirarem ao povo o seu direito legítimo de exercer o poder. As elites são ainda acusadas de cumplicidade com outros externos ao povo, que favorecem em prejuízo das pessoas comuns. O “outro” em oposição ao “povo” pode ser definido de diversas formas, a que correspondem diferentes versões de populismo. De um modo genérico, o populismo implica a oposição entre os cidadãos comuns e um establishment (sistema) corrupto (Mudde, 2004). Algumas formas de populismo acentuam perfis mais específicos de exclusão: grupos difusamente apontados como externos à comunidade (refugiados ou emigrantes, mas igualmente minorias étnicas, de género ou económicas), que, entre outros aspetos, são acusados de privarem o povo nativo do seu capital económico, simbólico e cultural (Mazzoleni, 2003).

De diversas formas, os atores sociais populistas apresentam-se como representantes, defensores e porta-vozes do povo. Nos seus traços mais comuns, o seu discurso organiza-se em torno de um desafio permanente: resgatar a soberania e devolvê-la ao povo. Para cumprir essas funções, duas competências são importantes: primeiro, uma sensibilidade muito apurada às opiniões e aos problemas que, em cada momento, possuem uma maior ressonância em setores amplos do público; depois, uma forma de comunicar que privilegie canais diretos e não mediados, sem a filtragem ou o controlo de mediadores, sejam elas quais forem (Canovan, 2002, p. 34; Kriesi, 2014, p. 363). Por seu turno, cidadãos com sentimentos populistas são os que apoiam uma visão da vida social e política organizada e expressa dentro dessa ideologia (Schulz et al., 2017). De um modo mais concreto, os indivíduos com sentimentos populistas mostram atitudes anti elites e censuram a classe política, ou outras detentoras de poder, que acusam de terem perdido o contacto com o povo, e não atenderem aos seus problemas e interesses. Além disso, os cidadãos com sentimentos populistas exigem soberania popular ilimitada, de um modo que, nas suas formas mais extremas, permita submeter, sem restrições, elementos democráticos liberais ou direitos de minorias à expressão da soberania popular maioritária. Por fim, estes indivíduos partilham a imagem mitificada do povo como um grupo homogéneo e virtuoso, uma entidade coerente, honesta, inerentemente boa, com os mesmos valores e interesses.

2.2. Media Sociais e Populismo

A ligação entre os media e o populismo não é nova. Num primeiro momento, os meios de comunicação de massa proporcionaram aos populistas um canal mais direto para o povo do que aquele que era fornecido através de meios mais institucionalizados de comunicação política - como manifestos, discursos ou o próprio discurso parlamentar. Ainda assim, os populistas necessitavam de se submeter aos gatekeepers jornalísticos, aos seus critérios e rotinas e ainda aos ciclos inerentes à própria produção noticiosa (Shoemaker & Vos, 2009). Hoje, no ambiente criado pela internet, esses fatores desempenham um papel menos importante, pelo menos em potência. Entre outros fatores, o ambiente online permite contornar os vários filtros tradicionais e criar formas de comunicação mais direta, descrita por alguns como one-step flow of communication (Bennett & Manheim, 2006; Vacccari & Valeriani, 2015).

A própria existência deste ambiente “livre” estimulou o surgimento de um populismo anti media (Krämer, 2014), um pouco por todo o ocidente. Para os cidadãos com sentimentos populistas, aquilo que que seria uma forma saudável de ceticismo em relação aos media foi sendo substituído por um discurso de desconfiança em relação aos media profissionais, que deliberadamente atuam contra os interesses do povo (Schulz et al., 2020). Estudos que combinam variáveis de exposição seletiva e de ceticismo em relação aos media (Stroud, 2008; Tsfatsi & Cappella, 2003) sugerem que os indivíduos com sentimentos populistas tendem a afastar-se dos media informativos mainstream, que acusam de mentir e de serem próximos das elites políticas.

É a partir daqui que os media sociais surgem com um papel cada vez mais central na formação de opiniões políticas, à medida que assumem alguns dos papéis democráticos fundamentais que antes pertenciam aos media de massa - como fornecer informações e pontos de vista diversos sobre questões políticas e sociais da atualidade. Em plataformas como o Facebook ou o Twitter, indivíduos e atores políticos (populistas ou não) podem expressar os seus pontos de vista sobre questões sociais importantes, sem o condicionamento e a filtragem das regras profissionais e éticas que regulam os media profissionais (Papacharissi, 2010). Tomando partido dessa liberdade de expressão, tanto cidadãos como políticos utilizam estes meios, com frequência, para enfatizar a divisão entre o virtuoso indivíduo comum e o culpado antagonista externo. Alguns anos de pesquisas têm vindo a descrever casos em que atribuições de responsabilidades articuladas por atores populistas através dos media sociais influenciaram, de forma decisiva, as atitudes de setores importantes da opinião pública, em países distintos do ocidente, com consequências relevantes do ponto de vista da vida social e política - que vão desde resultados eleitorais à própria visão da sociedade como um todo. Entre outros, um estudo de Hameleers et al. (2019) mostrou que mensagens populistas culpabilizantes das elites políticas afetaram negativamente as atitudes dos cidadãos em relação ao sistema político. Outro estudo, realizado por Matthes e Schmucck (2017), revelou que publicações populistas, que atribuíram a responsabilidade por problemas sociais a imigrantes e a minorias, ativaram atitudes negativas em relação a esses grupos.

Se os atores sociais populistas possuem uma preferência pelos media sociais, pelo seu caráter direto e sem mediação profissional, diversos estudos têm mostrado que, de igual modo, na base, os indivíduos com sentimentos populistas tendem a privilegiar alguns tipos de meios sobre outros, enquanto fonte de informação. Os indivíduos populistas mostram preferência por jornais tabloides, televisão comercial e conteúdos difundidos nos media sociais, particularmente na rede Facebook. Além disso, são esperadas tendências de evasão em relação a jornais de qualidade (designados de referência) e notícias do serviço público de informação, que são associadas pelos atores populistas aos interesses estabelecidos e à informação manipulada. Outras caraterísticas relevantes dos indivíduos com sentimentos populistas são a sua “relutância política” (Mudde, 2004), a par com sentimentos de anomia e de falta de eficácia política, que, em conjunto, envolvem um certo grau de alienação sobre assuntos públicos e/ou políticos. Desta forma, estes indivíduos compõem mais um grupo disponível para ser mobilizado do que para ser autor das próprias iniciativas. Ao mesmo tempo, tende a emergir um desinteresse e uma evitação de informação política, associada a hard news. Esta tendência de evasão pode, por sua vez, ser reforçada pelas frequentes mensagens de censura contra os media informativos de referência, provenientes tanto dos atores populistas como disseminadas por outros indivíduos com sentimentos populistas, e que alegam a existência de uma aliança entre esses media e as elites, contra os interesses do povo (Krämer, 2014). Na medida em que esta perceção é interiorizada pelos indivíduos, ocorrerá o seu afastamento das notícias mainstream - ou, pelo menos, o seu consumo será marcado por ceticismo e por uma atitude adversativa.

2.3. Covid-19 e Teorias da Conspiração

O atual contexto, atravessado por uma crise pandémica com consequências nas múltiplas dimensões da vida social (desde o plano puramente sanitário ao campo económico, laboral, afetivo, social), veio sublinhar a importância de analisar a relação entre populismo e desinformação, e o modo como esta relação se desenvolve nos novos canais de comunicação. São diversos os estudos que têm vindo a valorizar o papel dos media sociais como foco de desinformação. Entre eles, de um modo mais específico, Valenzuela et al. (2019) sugerem a existência de uma associação positiva entre a utilização de media sociais e a partilha de informações incorretas. Anspach e Carlson (2020) assinalaram uma maior propensão nos utilizadores de media sociais como o Twitter e o Facebook para serem mal informados, tendendo, depois, a “relatar informações factualmente incorretas” (p. 697). A partir de dados recolhidos muito recentemente, já durante a pandemia covid-19, Allington et al. (2021) verificaram que quanto maior a dependência do Twitter, do Facebook ou do YouTube como fontes principais de informação, mais provável é a aceitação das diversas teorias da conspiração relacionadas com a pandemia.

Estão identificadas algumas razões que explicam porque a desinformação se torna facilmente viral no ambiente dos media sociais. Chen et al. (2015) afirmam que as pessoas partilham desinformação devido às características específicas desse tipo de conteúdos: geralmente, os conteúdos de desinformação são mais “interessantes”, “novos e atraentes” e “podem ser um melhor tópico de conversa” do que os conteúdos compostos por informações autênticas (p. 587). Sugerem ainda que, quando partilha informações nos media sociais, a maioria dos indivíduos não prioriza a precisão e a autenticidade. Estes dados reforçam a tese de que a maior parte da desinformação é baseada em teorias da conspiração, que, tipicamente, se propõem desvendar os propósitos maliciosos de certas organizações do sistema ou de indivíduos poderosos, revelando-se segredos e histórias ocultas (Craft et al., 2017). É com estes traços que este tipo de conteúdos atrai maior atenção e alcança níveis mais elevados de disseminação (Peter & Koch, 2019; Uscinski & Parent, 2014). Outros estudos sugerem que a utilização excessiva dos media sociais tende a criar fadiga desses canais, e, em consequência, a tornar os indivíduos menos propensos a validarem a veracidade das notícias que partilham (Ravindran et al., 2014). Estudos posteriores não apenas confirmaram esta perceção, como observaram uma associação positiva entre o uso excessivo de media sociais, a fadiga que daí resulta, e a partilha online de notícias falsas (Talwar et al., 2019).

É neste contexto, e em associação com as atitudes e crenças de natureza populista, que emerge o designado “conspiracionismo”, que pode ser definido como a tendência para assumir que grandes acontecimentos com impacto nas nossas vidas são secretamente orquestrados por entidades poderosas e malévolas, que agem em conjunto, de forma articulada (Douglas & Sutton, 2008). A ideia de que tais ações explicam a realidade social foi designada, de modo influente, como “teoria da conspiração da sociedade” por Karl Popper (2012), e as suas diversas teses são hoje conhecidas como “teorias da conspiração”. A pandemia covid-19 e as medidas de prevenção e confinamento que lhe estão associadas criaram condições favoráveis ao desenvolvimento de crenças conspiratórias. Essas condições incluem a sensação de vulnerabilidade física, psicológica, financeira, num quadro de incerteza desenhado a partir de imposições vindas do poder formal (governo, autoridades, elites científicas). Acresce que os efeitos das medidas restritivas terão sido maiores naqueles que se encontram em circunstâncias socioeconómicas mais frágeis, mais vulneráveis, sendo em muitos casos detentores de menor literacia mediática. Ao confinamento correspondeu ainda uma maior disponibilidade para o consumo de conteúdos online: indivíduos com mais tempo livre, isolados e com acesso à internet. A partir deste quadro, Freeman et al. (2020) constataram que uma minoria significativa da população suporta visões excessivamente céticas, incluindo crenças conspiratórias falsas, em relação às explicações oficiais sobre a pandemia covid-19. Essas ideias encontram-se ligadas a teorias da conspiração pré-existentes, a uma menor conformidade com as orientações do governo e a um maior ceticismo em relação às estratégias propostas pelas entidades responsáveis pela saúde.

Com efeito, de forma abundante, nos media sociais online, este tipo de crenças tem surgido como explicação alternativa para as causas e para os factos associados à covid-19. Uma pesquisa desenvolvida entre abril e junho do primeiro ano da generalização da pandemia (2020) identificou uma relação forte positiva entre o uso de plataformas de media sociais como fontes de informação sobre a covid-19 e a manutenção de uma ou mais crenças conspiratórias, tendo o YouTube tido a associação mais forte, seguido pelo Facebook (Allington et al., 2021). Num verdadeiro surto de teorias da conspiração, este tipo de mensagens constitui-se como uma ameaça global à saúde pública. Num segundo nível de efeitos, dados do estudo de Allington et al. (2021) verificam a existência uma forte ligação entre a crença em teorias da conspiração sobre o vírus e a prática de comportamentos de risco, durante as restrições impostas para evitar a sua disseminação.

3. Estrutura e Interesse do Estudo

As plataformas de media sociais são há muito reconhecidas como grandes disseminadoras de desinformação sobre saúde. Estudos anteriores encontraram uma associação negativa entre comportamentos de proteção da saúde e crenças na forma de desinformação popularmente conhecida como “teoria da conspiração”. Têm sido abundantemente enunciadas preocupações sobre a disseminação de desinformação sobre a covid-19 nos media sociais. A atualidade e a gravidade deste assunto justificam que este estudo pretenda identificar fatores associados à aceitação de desinformação (e, em específico, “teorias da conspiração”) relativamente à pandemia covid-19, no contexto português. É conhecida a importância que os media sociais possuem, enquanto fonte, no atual ecossistema mediático. Alguns dos conteúdos específicos que ali circulam propõem-se a si mesmos como alternativos em relação à informação dos media mainstream e das fontes oficiais. É expectável identificar em indivíduos com sentimentos populistas, também eles com uma atitude adversativa de partida, taxas superiores de desconfiança em relação a instituições formais (governo e Serviço Nacional de Saúde, e o modo como gerem a crise pandémica). Está ainda descrita a associação entre atitudes populistas, a valorização da informação através dos media sociais e a aceitação de desinformação - designadamente de algumas das teses classificadas como “teorias da conspiração”. Deste modo, testada e avaliada a associação entre os fatores mencionados, cremos que os resultados deste estudo poderão fornecer elementos úteis para o conhecimento de antecedentes e pré-requisitos da crença em desinformação. Esse conhecimento poderá, por fim, indiciar linhas orientadoras de ação, e, desse modo, constituir-se num contributo positivo para o achatamento da curva da infodemia.

4. Questões de Pesquisa e Hipóteses

As questões de pesquisa que servem de ponto de partida deste estudo são as seguintes:

Q1: Sentimentos populistas possuem impacto negativo na confiança na forma como o governo se encontra a gerir a situação de crise pandémica?

Q2: Sentimentos populistas possuem impacto negativo na confiança na capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde à crise pandémica?

Respondidas estas questões, formulam-se as seguintes hipóteses:

H1: Identifica-se uma associação positiva entre sentimentos populistas e o uso dos media sociais como fonte de informação principal para obter informação sobre a pandemia covid-19.

H2: Identifica-se uma associação positiva entre a crença em “teorias da conspiração” e a preferência por media sociais enquanto fonte principal de informação sobre a pandemia covid-19.

5. Metodologia e Dados Estatísticos

Tratando-se de um estudo exploratório, a amostra é de conveniência, não probabilística, e foi constituída utilizando listas de emails e solicitando a divulgação através de redes pessoais de contactos e de comunicação, como o email e os MSN. Deste modo, foi submetido um questionário online entre os dias 26 e 31 de março de 2020, tendo sido obtidas 242 respostas válidas. Considerou-se que esta amostra possuiria características distintivas relevantes, como uma elevada utilização de media e uma maior atenção a questões cívicas e sociais. A análise e a interpretação dos dados tiveram como suporte a estatística descritiva, com análise simples e bi-variada de frequências e variáveis qualitativas (através de tabelas de contingências).

Variáveis demográficas de controlo. Foram incluídas duas variáveis demográficas de controlo, o género e a idade, também consideradas como intervenientes no processo de participação política. Verificou-se que 44% dos inquiridos são do sexo masculino e 56% do sexo feminino. Em termos de idade, houve uma dispersão razoável pelas várias faixas etárias, excetuando um número superior na faixa etária entre os 20 e os 30 anos.

A distribuição foi a apresentada na Figura 1.

Figura 1: Faixa etária 

Atitude política. Para avaliar a existência de sentimentos populistas, o questionário incluiu alguns instrumentos de medida de componentes centrais do populismo. Tomando como referência instrumentos consistentemente utilizados em estudos académicos sobre esta mesma matéria (Mitchell et al., 2018; Newman et al., 2019; Schulz et al., 2017), foram formuladas as questões seguintes:

Q1: Considero que a maioria dos responsáveis políticos não se preocupa com o que pensam pessoas como eu?

Q2: Considero que as pessoas comuns deverão ser consultadas sempre que houver que tomar decisões importantes, designadamente através de referendos populares?

Ambas as medidas pretendiam captar as ideias centrais associadas ao ideário populista, designadamente as que refletem o antagonismo entre o povo e as elites, a insatisfação com a ação dessas mesmas elites, e a importância atribuída à perspetiva de soberania popular. Cada questão possuía uma escala de resposta composta por cinco pontos, os dois primeiros contrários às afirmações Q1 e Q2 (discordo totalmente e discordo parcialmente), um ponto central neutro (nem concordo nem discordo) e dois de concordância (concordo parcialmente e concordo totalmente). Seguindo a metodologia aplicada por estudos anteriores, estas duas questões foram combinadas numa única variável com duas categorias. Os indivíduos que responderam que concordavam que maioria dos responsáveis políticos não se preocupa com o que pensam as pessoas e que as pessoas comuns deverão ser consultadas sempre que houver que tomar decisões importantes, designadamente através de referendos populares, foram categorizadas como possuindo atitudes populistas; todas as restantes foram categorizadas como possuindo atitudes mainstream.

Os resultados obtidos mostram a distribuição seguinte: 83 indivíduos (34%) com atitudes populistas e 161 indivíduos (66%) com atitudes mainstream. Na tabela seguinte (Tabela 1), encontramos a distribuição das atitudes políticas por faixa etária.

Tabela 1: Tabela de contingência com as variáveis “atitude política” e “idade” 

Confiança nas instituições. Para medir a confiança dos indivíduos em relação às instituições públicas de combate à pandemia, formulámos duas questões, uma em relação à confiança na ação do governo e a segunda em relação à capacidade do Serviço Nacional de Saúde. Num segundo momento, as respostas foram analisadas em função das atitudes políticas dos respondentes (Tabela 2).

Tabela 2: Tabela de contingência com as variáveis “atitude política” e “confiança nas instituições” 

Principal fonte de informação. Aos respondentes foi colocada a questão sobre qual o meio principal de acesso a informação sobre a pandemia. Obtiveram-se os resultados apresentados na Figura 2.

Figura 2: De entre os meios que utilizou, qual indica como a sua principal fonte acerca da pandemia covid-19 durante a última semana? 

Atitudes políticas e fontes de informação. Na posse destes dados, procurámos identificar a existência (ou não) de diferentes preferências de fontes de informação, em função das atitudes políticas (populistas ou mainstream) dos indivíduos estudados, através de uma tabela de contingência (Tabela 3). Nesta medida, efetuámos o teste qui-quadrado de Pearson para as variáveis “atitude política”, populista e mainstream, e “principal fonte para obter informação sobre a covid-19”, cujos resultados identificaram a existência de uma relação significativa entre estas duas variáveis (x² (3)=9,657, p = 0,047).

Tabela 3: Tabela de contingência das variáveis “principal fonte” e “atitude política” 

Desinformação. Como forma de introduzir a variável relativa à desinformação, pretendemos aferir a aceitação pelos indivíduos estudados de algumas das “teorias da conspiração” presentes no espaço público, que circulavam de forma viral nos media sociais e se encontram devidamente sinalizadas na literatura. Especificamente, Christian Fuchs (2020) enunciou uma lista de “falsas notícias sobre o coronavírus” (p. 392); dessa lista selecionamos três estórias enunciadas na Tabela 3. As seguintes “teorias” foram apresentadas aos indivíduos estudados, tendo sido pedido o seu grau de aceitação (1: discordo completamente; 6: concordo completamente). Os resultados agregados (entre 1 e 3: rejeita; entre 4 e 6: aceita) foram os apresentados na Tabela 4.

Tabela 4: Teorias da conspiração e sua aceitação 

Tendo em vista uma análise estratificada, detivemo-nos sobre a “teoria” relativamente à covid-19, que, em acordo com a lista recolhida por Fuchs (2020), seria a mais difundida: “o coronavírus é uma arma biológica chinesa desenvolvida no Instituto de Tecnologia de Wuhan”. As repostas válidas, 243, organizam-se em 153 respostas de discordância (63%) e 90 respostas de aceitação (37%). Procurámos, de seguida (Tabela 5), verificar a existência de uma associação entre a aceitação desta teoria e a fonte principal que os indivíduos escolheram para se informarem sobre a pandemia.

Tabela 5: Tabela de contingência das variáveis “principal fonte” e ”desinformação: arma biológica” 

De seguida, efetuámos o teste o teste qui-quadrado de Pearson para as variáveis “desinformação: arma biológica” e “principal fonte para obter informação sobre a covid-19”, cujos resultados identificaram a existência de uma relação significativa entre estas os níveis de aceitação dessa informação e a principal fonte utilizada (x² (3)=15,093, p = 0,05).

6. Discussão

Ao revelar uma categorização de 34% de indivíduos com atitudes populistas, a amostra estudada identifica um valor significativamente baixo, se tivermos como referência dados de outros estudos. Dados do Reuters Institute Digital News Report 2019 (Relatório de Notícias Digitais do Reuters Institute 2019; Newman et al., 2019), do Reuters Institute for the Study of Journalism, com as mesmas medidas, mostram um valor de 73% para o nosso país. Mesmo para o país identificado com menor valor de atitudes populistas, a Dinamarca, o valor encontrado é de 42%, 8% acima dos dados encontrados neste estudo. Consideramos como hipótese explicativa algum enviesamento da amostra, devido à sua dimensão e à metodologia da sua construção (técnica “bola de neve”). Mas, sobretudo, levamos em consideração o facto de as atitudes terem sido medidas numa situação muito específica de crise. Dados da atualização da primavera do Edelman Trust Barometer (Barómetro de Confiança Edelman; Edelman, 2020), dedicados à confiança durante a pandemia covid-19, revelam uma mudança notável face a dados de janeiro: a confiança no conjunto dos governos estudados subiu em 11%, tornando-os a instituição mais confiável pela primeira vez nos 20 anos de estudos desenvolvidos por este centro. Os dados do estudo relevam, contudo, uma menor confiança na forma como o governo se encontra a gerir a situação de crise pandémica por parte dos indivíduos com sentimentos populistas, em comparação com os indivíduos com sentimentos mainstream (54%-68%), e, igualmente, um menor grau de confiança na capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (47%-61%). As diferenças de pontos percentuais indicadas, exatamente 14% em ambos os casos, possuem significado estatístico, e permitem responder afirmativamente às questões de pesquisa 1 e 2, sobre o impacto dos sentimentos populistas na confiança nas instituições sociais (política e sanitária), apesentando, desse modo, consonância com as referências identificadas na literatura.

O cruzamento das variáveis “atitude política” e “principal fonte” mostra que quase todos os meios são escolhidos por uma percentagem superior de indivíduos com atitude mainstream. São resultados em linha com uma tendência de aumento da confiança nas fontes autorizadas em tempos de maior risco e incerteza, como os que marcaram este estudo. A exceção é a fonte “media sociais”: os indivíduos que a indicam como fonte principal dividem-se em 45,5% com atitude mainstream e 54,5% com atitude populista. Analisados os dados de forma parcelar, 6,2% dos indivíduos com atitude mainstream elegem os media sociais como fonte principal, contra 14,5% de indivíduos com atitude populista. Estes dados confirmam os que identificámos na literatura apresentada acima, que refere a preferência de indivíduos populistas por jornais tabloides, televisão comercial e, de forma crescente, por conteúdos distribuídos pelos media sociais. Os dados permitem assim validar a hipótese 1, que sugere a associação positiva entre sentimentos populistas e o uso dos media sociais como fonte de informação principal para obter informação sobre a covid-19.

Igualmente, a análise do comportamento dos indivíduos quando confrontados com as teses que associámos a teorias da conspiração relevou resultados em linha com outros resultados que citamos ao longo deste estudo. Designadamente: em relação à crença conspirativa “o coronavírus é uma arma biológica chinesa desenvolvida no Instituto de Tecnologia de Wuhan”, verifica-se a sua rejeição maioritária por parte dos indivíduos que tiveram como fonte principal qualquer dos meios, exceto os que elegeram os media sociais, situação em que há uma igual percentagem de aceitação e rejeição (50% cada). Deve ainda assinalar-se que os valores de rejeição são particularmente elevados nos meios que implicam uma maior seletividade e uma atitude ativa na procura da informação (jornais digitais, 82,5%, e pesquisas na internet, 83,3%), face aos meios de informação cujo consumo é tendencialmente passivo e acidental (televisão e media sociais). O teste estatístico realizado comprovou a existência de uma associação com significado entre as variáveis “fonte” e “desinformação”, positivamente correlacionadas. Estes dados validam a hipótese 2, que sugere a associação entre a utilização dos media sociais como fonte principal de informação sobre a covid-19 e a aceitação de conteúdos associados a teorias de conspiração sobre a mesma problemática.

7. Limitações do Estudo

Assinalamos algumas limitações importantes do presente estudo, e que merecerão ser consideradas em desenvolvimentos posteriores, pelas insuficiências de análise e enviesamentos que possam ter causado. Primeiro, a não segmentação dos conteúdos presentes nos media sociais (onde coexistem, lado a lado, rumores anónimos com publicações de meios de informação mainstream) e na televisão (onde igualmente coexiste a diversidade de conteúdos, informativos, de opinião ou de entretenimento). Em segundo lugar, os próprios media sociais desenvolveram mecanismos de informação credíveis sobre a pandemia, suportados em informação rigorosa e destacada de forma automática no feed de cada utilizador. Ao mesmo tempo, criaram mecanismos de escrutínio e denúncia de informação falsa, colaborando de forma ativa no combate aos perigos da infodemia. A OMS, por seu turno, iniciou um serviço dedicado de mensagens no WhatsApp e no Facebook nos idiomas árabe, inglês, francês, hindi, italiano, espanhol e português com o objetivo de transmitir segurança e informações corretas sobre a pandemia (Sahni & Sharma, 2020). Os efeitos destas ações não foram igualmente considerados pelo presente estudo. Por último, os dados de natureza demográfica recolhidos (idade e género) não permitiram identificar diferenças significativas de utilização dos diversos meios, e da confiança que lhes é atribuída, pelo que seria útil considerar outras variáveis não testadas (educação, rendimento, entre outros). Esta limitação encontra-se evidenciada a partir de resultados de estudos recentes (Nielsen et al., 2020), que revelam que pessoas com baixos níveis de educação formal possuem uma probabilidade superior de dependência de aplicativos de media sociais para obterem informações sobre o coronavírus, sendo igualmente mais propensas a responder de forma errada a questionários simples sobre a covid-19.

8. Conclusões

Os resultados alcançados apontam para várias perceções, que atravessam e unem os conceitos que intitulam o presente estudo: populismo, escolha de media e teorias da conspiração. Em tempos de pandemia, acabados de entrar no estado de emergência, maioritariamente confinados, os indivíduos questionados consumiram informação em todas as fontes disponíveis (televisão, media sociais, jornais digitais e internet), mas atribuíram maior credibilidade aos meios de informação convencionais - à televisão e aos jornais. Os media sociais, apesar de regularmente consultadas, mereceram a confiança de uma minoria. Destacamos o papel determinante que continua a ser atribuído pelos indivíduos aos mediadores profissionais - apesar da torrente contínua de informação a que são expostos, de diversas formas, a televisão continua a ser a fonte de informação de referência, e os jornais digitais suplantam largamente a importância que atribuem à informação sem filtragem profissional e deontológica que atravessa os media sociais. Podemos assim sugerir a existência de elementos que apontam para competências de literacia digital - ao verificar-se a atribuição de uma hierarquia na informação - com o jornalismo obter maior credibilidade face à veiculada pelos media sociais.

Assinalamos, de forma muito clara, que as atitudes populistas não serão as únicas ou mesmo o preditor mais forte da aceitação de crenças conspiratórias acerca da covid-19; nesta medida, identificar outras relações será trabalho para pesquisas futuras, no sentido de propor respostas e estratégias de comunicação adequadas a novas situações de crise global sem precedentes, como foi o caso presente. Não obstante, este estudo identificou a associação entre atitudes políticas de populismo e as escolhas que os indivíduos valorizam para se informarem sobre a doença. Indivíduos com sentimentos populistas tendem a privilegiar os media sociais como fonte de informação; indivíduos com atitudes mainstream confiam preferencialmente nos meios profissionais de informação. Em linha com a literatura apresentada, este estudo sugere que indivíduos com sentimentos populistas tendem a afastar-se dos media informativos mainstream - que o ideário populista descreve como próximos das elites e associados a interesses instalados. Para além da preferência informativa, os restantes dados que caraterizam os indivíduos com sentimentos populistas são consistentes entre si - maior desconfiança em relação aos governantes e à capacidade do Serviço Nacional de Saúde acompanham a maior percentagem de aceitação de desinformação e o perfil de seleção de fontes. Em consequência, estes indivíduos encontrar-se-ão numa situação de maior vulnerabilidade perante o surto infodémico a que são expostos. São estes indivíduos os que menos rejeitam teorias falsas, neste caso sobre a pandemia, sobre as suas causas e sobre a sua natureza. De uma forma muito concreta, os dados deste estudo confirmam uma perceção relativamente estabilizada: quando usados como fonte de informação, os media sociais podem representar um importante risco para a saúde pública, na medida em que neles se desenvolvem dois papeis interligados, com consequências não negligenciáveis. A saber: o papel disseminador de crenças falsas e conspiratórias e o de descredibilização de mensagens oficiais de combate à doença.

Identificamos, por fim, aquele que constitui, na nossa perspetiva, o contributo mais relevante do presente estudo, e que atravessa os campos científicos complementares e interligados dos estudos dos media (da educação para os media à literacia mediática) e dos estudos políticos (das práticas de cidadania à participação política). Ao mostrar a associação de atitudes populistas à seleção e à importância das fontes de informação, os resultados deste estudo evidenciam a fragilidade desses indivíduos quando confrontados com desinformação e crenças conspirativas, com consequências em termos da formação da sua opinião e da ação pública que irão protagonizar. Os tempos de crise agudizam os efeitos deste processo, mas igualmente o seu impacto social. Sabemos que são as perceções de risco, e não o risco real, que determinam como as pessoas reagem às crises. A informação verdadeira, mas igualmente os vários tipos de informações erradas (as informações imprecisas e as propositadamente falsas), ao serem aceites como válidas, moldam a forma como as pessoas entendem e respondem a esta crise de saúde pública, e igualmente a avaliação que fazem do modo como as instituições estão a lidar com ela. Resulta daqui uma implicação prática: estas perceções apontam para a importância (e a necessidade) de ações de literacia mediática que dotem os indivíduos de mecanismos de aferição da credibilidade das fontes de informação. Sabendo que as crenças conspirativas podem ser facilmente disseminadas através dos media sociais, atuar sobre grupos que têm maior probabilidade de obter informações nos media sociais afigura-se como positivo para quebrar esse círculo vicioso de desinformação. Ao identificar fatores que influem nesse círculo, este estudo não deixará de ser um contributo positivo para a conceção de estratégias que atenuem os riscos e as ameaças que este mesmo processo contém - favorecendo dessa forma o achatamento das curvas de infodemia e de desinformação.

Agradecimentos

Agradece-se ao Núcleo de Investigação em Ciências Sociais e Humanas do Instituto Politécnico de Coimbra o apoio financeiro necessário para a tradução do presente artigo.

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Recebido: 19 de Fevereiro de 2021; Aceito: 17 de Maio de 2021

Gil Baptista Ferreira é doutor e agregado em ciências da comunicação, professor coordenador no Instituto Politécnico de Coimbra, onde é diretor do curso de Mestrado em Novos Media. É investigador no Núcleo de Investigação em Ciências Humanas do Instituto Politécnico de Coimbra e no LabCom - Comunicação e Artes, no grupo Comunicação e Media, e os seus interesses centram-se no estudo da relação entre os novos media e a vida social. De um modo mais específico, estuda problemáticas relacionadas a comunicação política na era digital e os desenvolvimentos mais recentes no campo do jornalismo, sobretudo os que se relacionam com as práticas de cidadania. Tem publicado artigos em revistas científicas e volumes coletivos em diversos países europeus e no Brasil. É autor dos livros Linguagem e Modernidade (2003), Comunicação, Media e Identidade (2009), Novos Media e Vida Cívica (2013) e Sociologia dos Novos Media (2018). Email: gbatista@esec.pt Morada: Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC), Rua Dom João III - Solum, 3030-329 Coimbra, Portugal

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