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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.41  Braga jun. 2022  Epub 22-Jun-2022

https://doi.org/10.17231/comsoc.41(2022).3691 

Artigos Temáticos

A Iconoclastia Contemporânea: O Antirracismo Entre a Descolonização da Arte e a (Re)Sacralização do Espaço Público

i Departamento de Ciências Humanas e Sociais, Instituto Superior de Administração e Línguas, Madeira, Portugal


Resumo:

Este artigo tem por objetivo contribuir para a reflexão sobre as fenomenologias da não identificação com o património cultural e artístico, nomeadamente, o arquitetónico e o escultórico, instalado no espaço público urbano. As práticas iconoclastas contemporâneas trouxeram para o debate político e mediático o questionamento da qualidade e pertinência das transformações estéticas e artísticas que aconteceram nas cidades. Pretende-se estabelecer possíveis relações entre os fenómenos iconoclastas, as mitografias contemporâneas e as práticas discursivas pós-coloniais e neocoloniais, abordando as problemáticas sociais e políticas subjacentes ao racismo, que poderão estar na origem das práticas de iconoclastia contra o património. A partir de uma revisão selecionada à literatura científica, publicada no último vinténio, nomeadamente, da autoria de Araújo e Rodrigues (2018), Kilomba (2019; “‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016), Maeso (2016), Roldão et al. (2016), Ribeiro (2021), Santos (2003), V. Sousa (2020), Vale de Almeida (2000, 2012), Varela e Pereira (2020), entre outros, procurou-se demonstrar o contributo da arte contemporânea e do artivismo curatorial, no seio das instituições museológicas, para o questionamento das narrativas históricas institucionais e para a progressiva desconstrução das práticas discursivas lusotropicalistas, que instituem o colonialismo e a escravatura como inevitabilidades históricas aceites. Verificou-se que o pensamento hegemónico ocidental está assente numa falsa construção ideológica identitária, suportada numa alegada superioridade moral e racial, tendo em vista justificar a prossecução de um modelo de exploração económica estruturado na dominação cultural. Concluiu-se que o multiculturalismo no seio das instituições culturais, a par da salvaguarda da diversidade cultural e da interpretação patrimonial no espaço público, poderá assegurar a inclusão e coesão social, desenvolvendo sentimentos de pertença, e, por conseguinte, permitindo a mitigação das desigualdades e da violência.

Palavras-chave: iconoclasmo; colonialidade; antirracismo; multiculturalismo; artivismo

Abstract:

This article aims to contribute to the reflection on the phenomenologies of non-identification with the cultural and artistic heritage, namely the architectural and sculptural, installed in the urban public space. Contemporary iconoclastic practices have made the political and media debate aware of the quality and pertinence of cities’ aesthetic and artistic transformations. I aim to establish possible relationships between iconoclastic phenomena, contemporary mythography and postcolonial and neo-colonial discursive ways, addressing the social and political issues underlying racism, which may be at the origin of iconoclastic practices against heritage. I conducted a selected review of the scientific literature published in the last 20 years, namely authored by Araújo and Rodrigues (2018), Kilomba (2019; “ ‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016), Maeso (2016), Roldão et al. (2016), Ribeiro (2021), Santos (2003), V. Sousa (2020), Vale de Almeida (2000, 2012), Varela and Pereira (2020), and others. On that basis, I tried to demonstrate how the contemporary art and curatorial artivism within museological institutions contributed to challenging institutional historical narratives and the progressive deconstruction of Lusotropicalist discursive practices, which institute colonialism and slavery as acceptable historical inevitabilities. I found that western hegemonic thinking is based on a false ideological construction of identity, supported by an alleged moral and racial superiority, to justify pursuing a model of economic exploitation structured in cultural domination. I concluded that multiculturalism within cultural institutions, safeguarding cultural diversity and heritage interpretation in the public space, could ensure inclusion and social cohesion, develop feelings of belonging, and mitigate inequalities and violence.

Keywords: iconoclasm; coloniality; anti-racism; multiculturalism; artivism

1. Introdução

As práticas iconoclastas contemporâneas trouxeram para o debate político e mediático o questionamento da qualidade e pertinência das transformações estéticas e artísticas (Goes, 2020, 2021), que aconteceram no espaço público urbano (Correia, 2013; Madden & Marcuse, 2016; Silva, 1996; Stavrides, 2016/2021). A interpretação do património artístico e edificado, o questionamento da função e lugar que este ocupa na cidade (Mitrache, 2012; Muxi, 2004; Stavrides, 2016/2021), no seio de uma sociedade contemporânea globalizada (V. Sousa, 2020), tornou-se objeto da veemência de um debate que não deverá procurar estabelecer falsos consensos majoritários, mas antes potenciar o desenvolvimento de novos processos de inclusão e identificação cultural (Huntington, 1996; Steinmeyer, 2021). Os monumentos e a estatuária pública sempre foram instrumentos ideológicos da afirmação de uma hegemonia de poder político e económico, por parte dos encomendadores, para instituírem discursos oficiais, ideologias estéticas e narrativas historiográfica, alvos de mitificação (Araújo & Rodrigues, 2018; Duarte, 2019; Goes, 2020).

Para compreendermos os processos de recusa do património e a fenomenologia das práticas iconoclastas na contemporaneidade, necessitamos de compreender a expansão dos espaços urbanos e os modelos de desenvolvimento económico e social subjacentes, que expõem a natureza conflituosa do espaço público e os processos de não identificação cultural com os lugares habitados (Mitrache, 2012; Muxi, 2004; Stavrides, 2016/2021). E, com isso, também questionar e deslegitimar as narrativas historiográficas lecionadas no interior dos espaços letivos (Araújo & Rodrigues, 2018; Maeso, 2016; Roldão et al., 2016), e aquelas também apresentadas nos discursos museográficos das instituições museológicas (Adams & Koke, 2014; Welch, 2006).

A iconoclastia se, por um lado, conseguiu expor as fragilidades sociais e a decadência ética de uma sociedade, por outro, possibilitou o confronto de ideias e de conceções sobre a função que arte desempenha no espaço público. E expôs por virtude a natureza crítica e conflituosa da escultura instalada no espaço público, abordando assuntos há muito recalcados, por antítese ao estabelecimento de falsos consensos sociais (Hardt & Negri, 2019; Martin & Pirbhai-Illich, 2015).

Este artigo visa contribuir para a reflexão sobre o reaparecimento de várias fenomenologias de não identificação com o património, abordando as problemáticas sociais e políticas subjacentes, que poderão estar na origem dessas práticas iconoclastas. Do ponto de vista teórico-metodológico, procedeu-se à revisão da literatura científica publicada no último vinténio, fundamentando o estudo da iconoclastia contemporânea, essencialmente, em artigos, teses e monografias, da autoria de vários pensadores, nomeadamente, Cantarelli (2018), Cordeiro (2012), D’Ottavio et al. (2021), Elsner (2012), Fernandes (2018), Frank e Ristic (2020), Freedberg (2021), Gamboni (2018), Leupin (2019), McClanan e Johnson (2016), Paiva (2018), Renou (2020), Rota e Fureix (2018), Stapleton e Viselli (2019), Taussig (2012), entre outros do contexto internacional.

A discussão sobre as fenomenologias do racismo e antirracismo na contemporaneidade está alicerçada na revisitação de alguns autores do contexto português, nomeadamente, Araújo e Rodrigues (2018), Kilomba (2019; “‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016), Maeso (2016), Otávio et al. (2009), Ribeiro (2021), Roldão et al. (2016), Santos (2003), Vale de Almeida (2000, 2012), Varela e Pereira (2020), entre outros.

Procurou-se demonstrar o quão a arte contemporânea (Ribeiro, 2021), nomeadamente a instalada no espaço público urbano e os projetos curatoriais no seio das instituições culturais podem estabelecer relações críticas de questionamento das narrativas pós-históricas e convocar a reflexão sobre a herança cultural ocidental, persistentemente hegemónica, sobre um passado escravocrata, sobre o colonialismo e o racismo. Esta investigação pretende assim contribuir para a valorização do património cultural, através da compreensão e superação dos fenómenos de iconoclastia contemporânea que colocam em causa a integridade do património.

Os discursos pós-coloniais (Ashcroft, 2014; Nebbou, 2013; Olaniyan, 1993), definidos pelas novas relações de poder estabelecidas, assentes em processos de identificação cultural comum (Huntington, 1996; Steinmeyer, 2021), têm por objetivo a manutenção da hegemonia vigente ou a instalação de um modelo de desenvolvimento assente no materialismo e na exploração económica do antigo espaço colonial. É no desencadear de uma nova esfera de relações geopolíticas e na reativação dos laços económicos, nomeadamente com as antigas metrópoles, que são sedimentadas as novas narrativas identitárias, legitimadoras dos mecanismos históricos da opressão. Ironicamente terá sido o processo de globalização que dissimulou e implementou, com maior eficiência, o projeto hegemónico de dominação económica ocidental (Hardt & Negri, 2019; Huntington, 1996; V. Sousa, 2020), transformando o antigo colonialismo político num aparente novo projeto de neocolonialismo cultural (Huntington, 1996; Santos, 2003).

A complexidade do mapa das relações geopolíticas do pós-colonialismo, assentes na manutenção de elos culturais, da herança colonial, nomeadamente com a definição de comunidades linguísticas, contribuíram para a panfletização do consumo no antigo espaço colonial, instituindo uma nova fórmula de colonialismo económico. Os modelos culturais supranacionais e supra soberanos procuraram vender uma ideia de espaço livre transnacional, mas que ao invés vendia a ideia ilusória de uma democracia cultural, inexistente, sem que isso significasse a criação de condições de emancipação social efetiva dos cidadãos dos países em vias de desenvolvimento, antigas colónias. A fenomenologia dos processos de não identificação cultural com o lugar habitado (Stavrides, 2016/2021) poderá ter contribuído para a assunção do ativismo anticolonial (Hardt & Negri, 2019; Hickel, 2021). Nestes processos sociológicos, a dupla condição iconoclasta é explicitada fazendo uso de uma lógica niilista, que procura restituir meta-narrativas legitimadoras da herança de opressão desses lugares, fazendo deles propícios à nova exploração económica e à implementação de um mercado dito livre.

O capital cultural (Martin & Pirbhai-Illich, 2015) dos antigos e novos dominadores é determinante, na globalização neoliberal (Santos, 2003), para que aconteça a metamorfose do imperialismo clássico, transformando-o num capitalismo da vigilância (Zuboff, 2019), numa era da pós-globalização (Ashcroft, 2014). A ocidentalização enquanto modelo económico, político e cultural veio desenraizar culturalmente as comunidades locais, universalizando um modelo estético, e, com isso, acentuou a exclusão e a desigualdade social (Scheidel, 2017/2017). De acordo com Rosembuj (2019), o conceito de “capitalismo da vigilância”, exposto por Zuboff (2019) no livro The Age of Surveillance Capitalism (A Era do Capitalismo de Vigilância) pode constituir uma ameaça ao Estado de direito, à efetivação da soberania e das liberdades individuais, levando ao questionamento do papel das instituições democráticas.

Desde a queda do muro de Berlim (1989) e do desmantelar da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1991; D’Ottavio et. al., 2021), nota-se que o desenvolvimento artístico, nomeadamente, nos domínios da literatura, do cinema, da música, e das artes plásticas, procurando dar resposta à sua inserção no mercado global, veio corroborar narrativas instituídas pelo modelo triunfante e utilizar os novos meios e tecnologias oferecidas pelo mercado.

Boaventura de Sousa Santos (1997, como citado em Vale de Almeida, 2012) aponta a aparente irreversibilidade do estado de crise permanente, com que os “projetos de emancipação” se confrontam, aludindo à introdução dos “direitos humanos” na prática discursiva contemporânea. Contudo, a não efetivação destes direitos, como processo de ação política, leva à assunção de (novas) “políticas da identidade” (Vale de Almeida, 2012). Se por um lado, essas políticas identitárias contribuem para a legitimação de novas soberanias, por outro lado, fragmentam socialmente uma sociedade, por via da hierarquização racial e étnico-cultural, fixando como prevalecente uma identidade maioritária. De acordo com Santos (2003), considerando o conceito de “interidentidade”, propõe-se que o “pós-colonialismo português” se expresse como “anticolonialismo” e como “globalismo contra-hegemónico”, perante a inserção periférica e subalternidade de Portugal no contexto neoliberal europeu e atlântico.

Talvez a formação de valor de mercado, em detrimento da narrativa crítica à história (e à memória), tenha contribuído para um esquecimento (ou branqueamento) da própria história (“‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016; V. Sousa, 2020; Trouillot, 1995/2016; Vale de Almeida, 2000, 2012; Varela & Pereira, 2020). A branquitude (ou a branquidade) racial identitária reflete as relações de poder (Vale de Almeida, 2000, 2012) e privilégio no seio das sociedades ocidentais (“‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016; Trouillot, 1995/2016, Varela & Pereira, 2020), nomeadamente, através da imposição de narrativas nas instituições culturais e de ensino (Araújo & Rodrigues, 2018; Soares, 2020; Roldão et al., 2016) e através da arte que ocupa o espaço público urbano (Bueno Carvajal, 2021; Cadela, 2007; Frank & Ristic, 2020; Goes, 2021).

A desconstrução das mitografias (Barthes, 1957/2001) do poder racial branco (Vale de Almeida, 2000, 2012) pode e deve ser uma premissa da arte contemporânea (Ribeiro, 2021) e das práticas curatoriais, enquanto ferramenta pedagógica, a fim de efetivar a inclusão das minorias, raciais, culturais e étnicas, assegurando que a diversidade cultural de uma sociedade, constitui a mais valia para o desenvolvimento humano e para a coesão social.

A progressiva transformação tecnológica, iniciada desde a revolução industrial, se, por um lado, contribuiu para uma melhoria tendencial das condições de vida nas sociedades ocidentais, por outro lado, contribuiu para o aumento das desigualdades sociais (Scheidel, 2017/2017) no seio dessas sociedades, mais acentuadas nas ultraperiferias. Este modelo económico e de enquadramento social coloca em causa os direitos individuais e a própria sustentabilidade do modelo.

A apropriação e uso de dados para transformação em produtos comerciais ou políticos visa influenciar ou controlar o comportamento dos indivíduos (Rosembuj, 2019; Zuboff, 2019). As narrativas pós-coloniais se, por um lado, são justificadas pela denúncia e crítica ao regime ou modelo anterior, por outro lado, encontram na cultura contemporânea novos meios para instituir os seus programas neocoloniais, do ponto de vista moral e estético. O neocolonialismo contemporâneo é hoje necessariamente cultural e tecnológico, alimentando relações de dependência direta entre indivíduos e instituições supranacionais e onde a arte não se dissocia deste debate. Importa, por isso, mensurar os impactos das práticas artísticas contemporâneas no espaço público e dos projetos curatoriais, na definição de narrativas pós-coloniais, anticoloniais e antirracistas. Pretende-se com este artigo verificar os impactos das práticas iconoclastas associadas ao ativismo e a práticas artísticas de natureza transgressiva, e auferir o sucesso da implementação de práticas pedagógicas de interpretação patrimonial, para desenvolvimento de processos de identificação social, participação comunitária, salvaguarda e valorização do património artístico e edificado.

A compreensão da fenomenologia e motivações em torno da encomenda, da produção e referenciais para a estatuária pública ou para a arte no espaço público urbano, poderá ser preponderante para o encontro de novas soluções para a salvaguarda do património e da diversidade cultural (Meyer-Bisch & Bidault, 2010/2014), e para que se evitem futuras ações iconoclastas, não-institucionais. Algumas dessas propostas de compreensão passam pela educação e interpretação patrimonial (Goes, 2020, 2021).

2. Revisão de Literatura

2.1. Introdução Histórica à Iconoclastia

Ao longo da história da humanidade é possível identificar uma sequência de ciclos iconoclastas (Fernandes, 2018; Freedberg, 2021; Gamboni, 2018; McClanan & Johnson, 2016). O processo de globalização redimensionou a fenomenologia iconoclasta na contemporaneidade tornando-a global (D’Ottavio et al., 2021; V. Pereira, 2013; Stapleton & Viselli, 2019). Platão na sua teoria da imagem-simulacro (Cordeiro, 2012; Fernandes, 2018) acusava os artistas de criarem um jogo de ilusões, nas quais a representação, por ser sempre a projeção de uma realidade ficcionada, falsificava o real natural e patrimonializado (Goes, 2020, 2021). No domínio deste pensamento filosófico, acreditava-se que as imagens desprovidas de uma função utilitária constituíam uma razão de fascínio para os tolos e crianças (Fernandes, 2018).

Podemos notar que algumas religiões étnicas tradicionais africanas ou afro-brasileiras (Nogueira, 2013; V. Pereira, 2013; Valle, 2020) se confrontaram com os fenómenos cíclicos de sincretismo cultural e religioso (Nogueira, 2021), processos de aculturação e etnocídio (Davidson, 2012), que subsistem na contemporaneidade. A iconoclastia é um dos processos do etnocídio: destroem-se os objetos totémicos da cultura anterior (Davidson, 2012) - “fetiches” de acordo com uma perspetiva ocidental (Pires, 2011; Sansi, 2008) - e substituem-se pelos novos ícones da cultura dominante (Nogueira, 2013; V. Pereira, 2013; Valle, 2020). O edificado e a representação religiosa são hierarquizadas no espaço público urbano (Nogueira, 2013) de modo a instituir a nova doutrina religiosa e destronar os antigos símbolos identitários, considerados inferiores (Nogueira, 2013; V. Pereira, 2013; Valle, 2020). A iconoclastia religiosa contemporânea fundamenta, por isso, a manutenção das estruturas imperialistas, acentuando a tradição racista, instituída por católicos e protestantes (Valle, 2020), e coloca em causa os direitos humanos, a diversidade cultural e a liberdade religiosa.

No domínio do religioso monoteísta, nas religiões abraâmicas, as correntes mais ortodoxas do judaísmo, do islamismo e do protestantismo (Pires, 2011), fundamentadas nos livros sagrados, conceberam o culto das imagens como idolatria (Fernandes, 2018). Por isso, terão exercido e implementado a sua ideologia estética como forma visível de afirmação de uma determinada hegemonia religiosa, política e social. A expansão da fé traduzia-se na expansão cultural e, por isso, a recusa ou a destruição das imagens constituía razão da sua implementação (Cross, 1912; Haldon, 1999; Paiva, 2018).

Cantarelli (2018), referindo-se às imagens, permite-nos uma leitura inteligível dos signos inscritos numa obra de arte. Porque identificáveis com um corpo cultural coletivo, estes tornam-se formas significantes, simbólicas, emanando uma pluralidade de significados e valores descritivos do espírito do seu tempo. Por isso, toda a representação iconográfica é sempre determinada pelo tempo e lugar onde ocorre. Trata-se por isso de um hiato que interrompe ou liga o domínio iconográfico ao iconológico e a representação ao simbólico (Cantarelli, 2018). As práticas iconoclastas são, por isso, determinadas pelo contexto cultural onde acontecem. Por antítese à iconologia, a iconoclastia em vez de incluir, destrói (Cantarelli, 2018; Fernandes, 2018; Paiva, 2018), assumindo na destruição, a recusa da sobreposição de uma ideia que prevalece sobre uma figura simbólica anterior. O ato iconoclasta irá contribuir para a legitimação da realidade simbólica anterior, conferindo-lhe um redimensionamento histórico ulterior que acentua o significado e valor simbólico da imagem, retirando-a do foro do passado (Cantarelli, 2018; Fernandes, 2018; Freedberg, 2021; Paiva, 2018).

A formulação hipotética de que um símbolo sobrevive ao tempo, repetindo-se de forma cíclica, superando períodos de longa ocultação, é condição necessária para a realização de uma “interpretação iconológica” (Cantarelli, 2018). Contudo, a multiplicidade de significados ou conotações simbólicas atribuídas ou ganhas em função de diferentes contextos históricos permite concluir que, apesar da transitoriedade cultural dos tempos, os signos transformados em novos símbolos (que acumulam significações do passado) poderão constituir na contemporaneidade razão de práticas conflituosas e fator de exclusão, caso não estejam enraizados na realidade cultural da sociedade ou comunidade onde estão inseridos. Os novos símbolos (Barthes, 1957/2001), uma vez não se constituindo como reais objetos totémicos, tornam-se “fetiches” de uma sociedade (Pires, 2011; Sansi, 2008); inviabilizam que esta desenvolva os sentimentos de pertença necessários à sua legitimação e manutenção. Ao invés, a não identificação com um símbolo levará a processos de recusa, questionamento e destruição.

O modelo iconográfico hierarquizado, adotado para a instalação da estatuária no espaço público, foi repetido desde a antiguidade até à modernidade (Bina, 2020). Este modelo fazia uso de um pódio ou pedestal para encimar o sujeito da representação, colocando-o acima dos humanos (Bina, 2020; Goes, 2020), elevando o objeto escultórico à categoria de ídolo e ao endeusamento da figura do representado (Barthes, 1957/2001), com fins propagandísticos.

As práticas iconoclastas no interior do império bizantino (Freedberg, 2021) possibilitaram às lideranças da época mensurar a adesão popular às ideologias estético-teológicas vigentes, tendo em vista assegurar a hegemonia do poder político e nele se perpetuar. As perseguições e mortes de iconófilos e a destruição dos ícones religiosos na era bizantina foram, portanto, um decisivo instrumento político para os imperadores bizantinos que não pretendiam obstaculizar a dominação dos territórios subordinados à soberania de Bizâncio (Paiva, 2018). Esta dominação somente poderia ser conseguida através da aproximação dos cristãos orientais aos judeus e muçulmanos e do desenvolvimento de processos de integração cultural - a iconoclastia seria um desses processos. A destruição dos ícones cristãos, nomeadamente de santos e mártires (Cross, 1912) e a perseguição aos iconófilos pretendiam facilitar ao poder político a subjugação das comunidades do império que professavam distintas religiões (Cross, 1912; Goes, 2020; Haldon, 1999), assegurando que, apesar de dispersas, passariam a se identificar com a capital do império e a desenvolver um sentimento de pertença ao mesmo (Paiva, 2018).

Paiva (2018), parafraseando Haldon (2014), demonstra, a partir da tratadística dos séculos V e VI, que o antagonismo ideológico existente entre o islamismo e o cristianismo, apesar de traduzir uma oposição aos valores cristãos, refletia uma clara hostilidade para com a ortodoxia e o imperialismo de Bizâncio (Freedberg, 2021). Os conflitos bélicos, que assentavam em pressupostos de diferenças culturais e religiosas, consubstanciavam um programa de expansão económica dos impérios beligerantes que viria a materializar-se nos séculos seguintes. Os imperadores bizantinos, através da legitimação das práticas iconoclastas, procuravam mitigar as diferenças entre a ortodoxia e as culturas judaica e islâmica, de modo a assegurar a dominação desses povos no seio do império bizantino (Cross, 1912; Freedberg, 2021; Haldon, 1999; McClanan & Johnson, 2016; Paiva, 2018).

O conflito da iconoclastia no interior da cristandade seria exportado e acentuado ao longo da idade média e durante a idade moderna, opondo os movimentos político-religiosos iconoclastas (ortodoxos e protestantes) ao catolicismo romano dominante (McClanan & Johnson, 2016). Os vestígios deste choque civilizacional persistem na arte até à contemporaneidade (D’Ottavio et al., 2021; Elsner, 2012; Frank & Ristic, 2020; Freedberg, 2021; Gamboni, 2018; McClanan & Johnson, 2005; Rota & Fureix, 2018; Stapleton & Viselli, 2019).

O sistema de relações entre a estética e a política (Frank & Ristic, 2020) veio, séculos mais tarde, a materializar um projeto de ideologia estética do papado: o barroco. Este estilo, católico, por definição (P. Pereira, 1995), caracterizado pela exuberância das suas narrativas, pelo horror ao vazio e pelo dramatismo cénico da figuração iconográfica (Benjamin, 1928/1984; Gombrich, 1950/2008; Hartt, 1993; P. Pereira, 1995; Prado, 2016; Upjohn et al., 1949/1977), por oposição à estética protestante, colocava novamente em debate a problemática da política da imagem da contrarreforma católica (Solís, 2011), em torno da discussão sobre o perigo das figurações iconográficas constituírem na prática votiva um fenómeno de idolatria, por oposição à estética iconoclasta protestante (McClanan & Johnson, 2016; Solís, 2011).

Também a partir do século XIX, a progressiva laicização das instituições do Estado e a secularização da sociedade (Barrios Rozúa, 2003), nomeadamente em França, Espanha (Rota & Fureix, 2018) e Portugal, originou o desenvolvimento de um anticlericalismo militante (Barrios Rozúa, 2003) que se materializou na destruição iconoclasta da estatuária religiosa e do património edificado (Rota & Fureix, 2018). Foram as reformas iniciadas, fruto das novas correntes de pensamento político, triunfantes - liberais e republicanas -, a disseminar uma ideologia estética oposta àquela ostentada pelo antigo regime.

Também no século XX, a idolatria das imagens tornou-se no melhor instrumento propagandístico e panfletário das novas ideologias totalitárias (D’Ottavio et al., 2021). A idolatria - não do foro religioso ou sagrado, mas do profano -, o culto à personalidade, constituía um mecanismo de transferência de valor, entre o sujeito representado e objetualizado e aquele que patrocinava a obra de arte (Goes, 2020). As idolatrias modernas, objetualizadas em obras de arte, desprovidas de espírito crítico, tornaram-se nas ferramentas privilegiadas para a manutenção e perpetuação da hegemonia dos poderes político, económico, cultural e mediático (Goes, 2020, 2021).

2.2. Iconoclasmo na Contemporaneidade: A Natureza Democrática e Conflituosa do Espaço Público e a Natureza Efémera e Lavável da Escultura Pública

O espaço público, o físico e o mediático, assim como as expressões culturais cumprem a dupla função de demonstrar, por um lado, a indissociabilidade dos conceitos de história e de memória, e, por outro, de fazer notar que, apesar de relacionados, são distintos (Araújo & Rodrigues, 2018; Bina, 2020). Deste modo, uma estátua não retrata uma figura histórica, é apenas uma determinada representação, uma memória apologética desta (Ávila, 2020; Bina, 2020; Santiago, 2020). Por isso, o seu derrube não implica o desaparecimento histórico de uma figura (Bina, 2020), mas sim a destruição do legado dos seus encomendadores, que revestidos de uma dignidade construída encontram na edificação da estatuária pública uma forma de autoglorificação e imortalização do seu legado (Bina, 2020; Goes, 2020).

Um dos problemas do próprio determinismo das intervenções artísticas no espaço público prende-se com a atualização discursiva, não apenas do ponto de vista estético, técnico e conceptual, mas também narrativo. A escultura pública deixou de questionar, tornou-se acrítica. A escultura em vez de questionar o sujeito, objeto da representação, e de interpretá-lo, tornou-o alegórico, legitimou-o como ídolo contemporâneo (Barthes, 1957/2001; Pires, 2011; Sansi, 2008). É desta dificuldade em estabelecer uma narrativa, que relacione uma expressão não-figurativa com uma interpretação não alegórica dos sujeitos da representação, que surge a impossibilidade do espectador alcançar uma outra leitura inteligível da obra, que não aquela imediata, institucionalizada. A correspondência de uma representação não-alegórica com uma estética e técnica contemporânea terá de ser, necessariamente, resultante de um processo de integração com o edificado arquitetónico, com o território envolvente e com as comunidades que nele habitam (Bueno Carvajal, 2021). A partir de Krauss (1979), vemos que a escultura contemporânea se expande além da dimensão purista e funcional da estatuária académica, contribuindo decisivamente para a desfuncionalização do lugar ocupado (Bueno Carvajal, 2021; Cadela, 2007; Stavrides, 2016/2021; Thörn, 2011).

Bina (2020) considera que não haverá “nenhum anacronismo em condenar uma estátua” que entroniza o esclavagismo, porque a existência histórica da figura representada não é posta em causa, uma vez que é o estudo e a investigação sobre a mesma que lhe confere a intemporalidade (Bina, 2020). Ao invés, o lugar que esta escultura ocupa no espaço público não se refere a um passado, mas ao tempo presente (Bina, 2020), atuando ideologicamente sobre todos aqueles que habitam ou fruem o espaço público. O anacronismo histórico é resultante do próprio antagonismo da discussão, prendendo-se com o facto de o espaço público, apesar de lugar democrático, não ser o espaço institucional privilegiado para o debate, como é a academia ou o museu (Soares, 2020).

Esta distrofia entre o espaço democrático e conflituoso e o exercício do questionamento histórico, estético e artístico é essencial quando as esculturas no espaço público constituem razão de litígio entre diferentes grupos políticos ou ativistas (Otávio et al., 2009; Varela & Pereira, 2020). Este conflito é acentuado, desde a génese da aquisição do conhecimento, nos mais jovens, pelas narrativas e equívocos historiográficos que são perpetuados no interior dos espaços letivos (Araújo & Rodrigues, 2018; Goes, 2020; Maeso, 2016), e que a escultura materializa no espaço público, legitimando o lecionado.

Araújo e Rodrigues (2018) destacam o facto de a decisão política demonstrar resistência quanto à necessidade de adoção de um questionamento crítico sobre o ensino da história e à respetiva adaptação dos programas curriculares. Também a manutenção de discursos museográficos desatualizados contribui para a perpetuação da hegemonia fetichista de um passado opressor (Soares, 2020).

A natureza democrática e comunitária do espaço público (Bueno Carvajal, 2021; Stavrides, 2016/2021) expõe também a natureza conflituosa deste lugar, onde a arte pública, instrumentalizada com uso ideológico, se torna objeto da discussão. Por isso, anterior à discussão sobre a iconoclastia no espaço público na contemporaneidade, deverá estar subjacente a discussão sobre a qualidade das transformações estéticas que acontecem num território (Goes, 2020, 2021). Nomeadamente, inferir sobre a qualidade dos objetos escultóricos instalados nas cidades e sobre quais os impactos que estes influem na paisagem que ocupam (Goes, 2020, 2021). Os fenómenos e comportamentos iconoclastas poderão por isso constituir uma oportunidade de ativação do debate sobre a história e sobre a salvaguarda do património e contribuir para a deslegitimação das narrativas historiográficas hegemónicas, lecionadas no interior dos espaços letivos (Araújo & Rodrigues, 2018).

2.3. A Interpretação Patrimonial: Entre a Descolonização e (Re)Sacralização do Espaço Público e a Fenomenologia Antirracista

De acordo com Gambioni (1997, como citado em Frank & Ristic, 2020), a destruição de monumentos no espaço público urbano foi considerada uma forma deliberada de contestação à autoridade e à ideologia subjacente, sendo por isso uma prática de iconoclastia política. Os comportamentos iconoclastas se, por lado, põem em causa a ordem moral e cultural aceite (Barthes, 1957/2001), desmistificando-a, por outro lado, expõem uma dicotomia, legitimam o seu legado, ativando uma consciência coletiva em torno da destruição do património (Fabre, 2019, como citado em Manzon Lupo, 2021).

A criação de um falso consenso coletivo em torno da não destruição dos ícones das “tradições inventadas” (Hobsbawm, 1983, como citado em Frank & Ristic, 2020) sedimenta as novas relações de poder (Frank & Ristic, 2020; Manzon Lupo, 2021; “‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016; Trouillot, 1995/2016; Varela & Pereira, 2020), que procuram fundamentar-se nas narrativas saudosistas e historicistas.

O espaço público é um lugar ideológico, necessariamente político, e, por isso, de conflito (Krauss, 1979; Silva, 1996; Mitrache, 2012; Stavrides, 2016/2021). A arte toma parte nesse conflito. Silva (1996) considera que o espaço público é provido de uma continuidade e permanência que se opõe à monofuncionalidade e à segregação (Cadela, 2007; Frank & Ristic, 2020), do lugar privado ou doméstico. A dificuldade em limitar o espaço público, pela sua definição, no sentido topológico, determina assim a própria conceção de arte pública (Correia, 2013).

Frank e Ristic (2020), relendo Stevens e Franck (2016) e Knierbein e Viderman (2018), consideram que o lugar urbano se caracteriza por uma heterogeneidade discursiva, própria das sociedades inclusivas e mais coesas. Segundo os autores, os vestígios do passado, materializados pela arquitetura e pela arte pública, podem coexistir com o ativismo social, político e artístico, contribuindo para o questionamento das narrativas inscritas no edificado, e possibilitando a melhoria das condições de fruição cultural e das transformações estéticas no território urbano.

Sobre a arte pública importa questionar até que ponto são legítimas as intervenções estéticas e artísticas que transformam irreversivelmente um espaço, que, pelo seu caráter público, é coletivo e democrático (Cadela, 2007; Correia, 2013; Stavrides, 2016/2021). A problemática da aceitação e da legitimação da arte pública, nomeadamente a contemporânea, prende-se com o facto de os territórios, um pouco por todo o mundo ocidental, desde há várias décadas ou séculos, serem ocupados por cabeças de bronze, que proliferam em praças, jardins e rotundas como se não houvesse lugar para o silêncio (Goes, 2020, 2021), como se o espaço público fosse necessariamente ornamental, alegórico e simbólico, como se a arte não cumprisse uma outra função, que não a do embelezamento dos espaços públicos que, por descuido ou inércia, foram sucessivamente deixados em ruínas e definidos como lugares de abandono e perda (Augé, 1992; Bueno Carvajal, 2021; Cadela, 2007; Goes, 2020, 2021).

Anterior à questão da iconoclastia estará, portanto, a questão da necessidade de educação e de interpretação patrimonial e, por conseguinte, o desenvolvimento de sentimentos de pertença sobre esses objetos instalados no espaço público. Quando quem patrocina arte pública não se preocupa com a envolvência da comunidade na aceitação e identificação com o instalado, nem sobre quais são os reais impactos da arte na definição da identidade dessa comunidade, origina um problema da não-identificação das obras de arte com as comunidades e com o espaço onde se inserem. A obra de arte pública entroniza a elite que a patrocina ou encomenda (Ávila, 2020; Goes, 2020, 2021; Santiago, 2020). A destruição da arte pública coloca em causa o poder instalado, mais do que a história do sujeito representado.

Toda a arte desempenha uma tarefa social, promotora da inclusão, da participação cívica, da educação estética e do desenvolvimento da crítica, por isso, deverá ser promotora da tolerância e do respeito pela diferença e diversidade (Adams & Koke, 2014; Meyer-Bisch & Bidault, 2010/2014; Welch, 2006). Por essa razão, uma arte que povoa o espaço público ornamentando-o com alegorias de um passado, cujo questionamento não pode ser posto em causa, não estará a cumprir a sua função (Goes, 2020, 2021). A revisão histórica e interpretação patrimonial poderão constituir um objeto de estudo no seio das universidades e museus (Primo & Moutinho, 2021), de modo a despoletar a descolonização do espaço público e mediático, sensibilizando para a fenomenologia antirracista (Otávio et al., 2009; Varela & Pereira, 2020) e para a não sacralização do espaço público. Numa ampla maioria dos países ocidentais, persistem as narrativas historiográficas assentes na manutenção de autores de referência, afetos às ideologias dos totalitarismos do século XX (Araújo & Rodrigues, 2018; Ávila, 2020; Goes, 2020; C. Pinheiro, 2002). Verificou-se que, no caso português, as narrativas historiográficas lecionadas no interior dos espaços letivos (Araújo & Rodrigues, 2018; Roldão et al., 2016) veiculam ideologias comuns aos totalitarismos nacionalistas e perpetuam os mitos (Barthes, 1957/2001) de uma determinada portugalidade, uma nacionalidade racial e “o mito do bom colonizador” (Araújo & Rodrigues, 2018; Goes, 2020).

Foram os movimentos revolucionários do passado a destruírem os monumentos ou a estatuária dos imperadores ou ditadores depostos (Ávila, 2020; Bina, 2020; Santiago, 2020) e os próprios representados foram protagonistas no saque, censura e destruição do património nos territórios por eles conquistados (Goes, 2020). Ou seja, os poderes institucionais, as potências beligerantes, os movimentos revolucionários e grupos terroristas utilizaram a iconoclastia como ato simbólico de triunfo, demarcação ou intimidação sobre o poder instalado e para a implantação de uma nova ordem social, política e governativa. A iconoclastia é por isso um ato histórico (Ávila, 2020; Bina, 2020; Santiago, 2020) que não se remete à desconstrução histórica, mas à construção da pós-memória (Ribeiro, 2021), constituindo um ato de entronização das novas elites triunfantes.

As mesmas elites, na contemporaneidade, têm a sua legitimidade ou autoridade moral questionada por aqueles - desprivilegiados - que foram justificados na inevitabilidade histórica de permanecerem pobres, excluídos e explorados. As mais recentes intervenções iconoclastas que têm vindo a proliferar no mundo ocidental são, portanto, razão de questionamento desse próprio sistema de valor histórico, mecanismo de legitimação e entronização das elites do passado colonial e escravocrata ocidental (C. Pinheiro, 2002; Santiago, 2020; Vale de Almeida, 2000).

Um ato interventivo contra uma estátua é simultaneamente literal e metafórico. Se por um lado constitui a vandalização, destruição do objeto histórico ou artístico, é ao mesmo tempo um ato simbólico, de questionamento do passado cadáver, que quer ser coberto (Santiago, 2020). A manutenção de um culto mediático às figuras históricas, sem questioná-las, faz com que se tornem nos ídolos modernos, que ocupando o espaço público perpetuam a história de uma nação que enaltece os escravocratas de outrora (C. Pinheiro, 2002; Santiago, 2020). Se estas esculturas modernas, instaladas no espaço público sobre um pódio ou pedestal (Bina, 2020), cumprem a função ideológica de perpetuar uma determinada hegemonia do poder, em vez de cumprir a tarefa da arte de possibilitar o questionamento crítico sobre o passado e sobre qualidade das transformações sociais, culturais, económicas e políticas, ao retirá-las do lugar no qual foram instaladas, possibilitam a recriação do espaço comunitário (Santiago, 2020; Stavrides, 2016/2021). O iconoclasta é, portanto, aquele que olhando uma representação a vê como ídolo (Ávila, 2020; Bina, 2020; Santiago, 2020). A escultura na praça é uma imagem ancestral da comunidade que ocupa o espaço público, uma imagem para uma sociedade se reconhecer e se identificar por meio de seus fundadores. Derrubar esculturas destes fundadores racistas é uma forma de reconhecê-los como ídolos (Barthes, 1957/2001), convertê-los em falsos ancestrais, ou em fundadores indesejados (Santiago, 2020).

3. Discussão: A Iconoclastia Como Questionamento Crítico da História e Estratégia Criativa

Sendo estratégia da arte contemporânea a negação da sua própria condição de arte como prática para a sua própria legitimação institucional, uma proposta iconoclasta poderá assumir-se como uma estratégia criativa que permita o questionamento crítico da história. Esta estratégia estaria assente na desconstrução das imagéticas anteriores, através de distintos processos, de subtração e acumulação de vestígios, numa lógica de palimpsesto, onde a tradição simbólica anterior era reinaugurada com um novo conceito. A transformação de um signo, atribuindo-lhe um novo valor formal, retira-o da categoria do passado, atualiza-o e torna-o (de novo) simbólico (Barthes, 1957/2001). Os processos iconoclastas, apesar da recusa da figuração, permitem estabelecer novas narrativas, mantendo um caráter intrinsecamente não representativo e não naturalista, mantendo-se ou não a tradição simbólica anterior (Cantarelli, 2018). Deleuze (1987, como citado em Ávila, 2020) questiona a definição de ato criativo, propondo que este constitui um ato de resistência à morte e uma forma de luta da humanidade. Deste modo, uma narrativa histórica, subjacente a uma obra de arte pública, é sempre uma construção artificial ao serviço do poder instalado (Ávila, 2020).

Ávila (2020) refere que o estabelecimento de um consensualismo estável em torno de uma alegada universalidade dos valores que sustentam uma determinada narrativa é demonstrativo do quão naturalizados estes estão no seio de uma sociedade. A homenagem prestada através da instalação escultórica no espaço público de monumento que entroniza um qualquer conquistador ou traficante de escravos, além de interferir com a natureza democrática do espaço público, legitima as (más) práticas do homenageado (Ávila, 2020; Silva, 1996). De notar que é tantas vezes a arquitetura a instituir ou legitimar a omissão histórica (Ávila, 2020) do colonialismo e do esclavagismo (Kilomba, 2019; “‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016; Santos, 2003; Vale de Almeida, 2000, 2012; Varela & Pereira, 2020).

O pensamento hegemónico ocidental, assente numa superioridade moral e racial (Jones & Okun, 2001; Trouillot, 1995/2016; Weber, 1905/2004), faz uso dessa falsa construção ideológica identitária para justificar a prossecução de um modelo capitalista, estruturado na dominação cultural, na opressão e na desvalorização dos recursos humanos, como garantia para a maximização dos lucros. A dominação cultural de outros povos e comunidades tem sido vista como dano colateral do imperialismo (Ávila, 2020), que procura justificar-se no dever civilizacional e evangelizador. No caso português (Varela & Pereira, 2020), poderão não estar em causa apenas as personagens históricas, mas a representação das mesmas e os mecanismos de legitimação destas, nomeadamente o papel do encomendador. As representações figurativas da estatuária instalada no espaço público perpetuam o fetichismo (Pires, 2011; Sansi, 2008) de uma herança colonial e o mito do bom colonizador (Araújo & Rodrigues, 2018; Ávila, 2020; Goes, 2020; Kilomba, 2019; C. Pinheiro, 2002).

Se, por um lado, a iconoclastia da estatuária pública pode trazer para o debate a desconstrução das narrativas historiográficas estabelecidas, por outro lado, poderá constituir um fator de entronização das mesmas e de reafirmação de sentimentos de orgulho nacionalista. Importa, por isso, tentar identificar quem são os protagonistas nestes atos e quais as suas reais motivações. Identificar se estão associados a movimentos antirracistas (Alvarez, 2009; Bell, 2021; Maeso, 2016; Renou, 2020) e anticolonialistas ou movimentos nacionalistas, racistas e xenófobos, para agravar a tensão e conflito, culpabilizando outras fações ideológicas ou correntes de opinião; ou se são atos de espontâneo vandalismo ou providos de carga de intervenção e questionamento artístico.

Apesar de qualquer uma das intervenções serem questionáveis, do ponto de vista de comportamento ético, e criminalizadas, do ponto de vista legal, não deixam de constituir um importante instrumento para a reativação do debate em torno das narrativas, do “branqueamento” ou silenciamento histórico (“‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016; Trouillot, 1995/2016; Vale de Almeida, 2000; Varela & Pereira, 2020), e em torno da qualidade das intervenções artísticas no espaço público. Possibilitam ainda a valorização da importância da interpretação patrimonial para o desenvolvimento de sentimentos de pertença e de preservação do património, nomeadamente o histórico e artístico.

Quanto mais se questiona a história, melhor se redefine uma construção identitária. E este caminho só é possível sem máscaras, sem fantasmas, sem esqueletos escondidos, com a coragem de olhar a nudez das obras de arte de forma crítica e sem pudor. Tempos de confronto dão-nos, por isso, a oportunidade de reflexão, questionamento e denúncia sobre a qualidade das transformações estéticas e infraestruturais que acontecem no território que habitamos e que poderão levar-nos ao decadentismo identitário (Goes, 2020, 2021). A questão não está, por isso, no facto da não valorização do património por parte de uma comunidade, mas no facto de não terem dado oportunidade a cada pessoa de vivenciar o seu património coletivo preexistente (Goes, 2020, 2021). O desinvestimento na formação das pessoas retirou-lhes a possibilidade da fruição de uma educação patrimonial, que exerça a crítica e assegure a salvaguarda do património (Adamopoulos, 2003).

A cultura do vandalismo foi institucionalizada (Cadela, 2007; Pinilla, 2012; Thörn, 2011) e legitimada pelas elites que a patrocinaram sofrendo impactos no espaço público (Goes, 2020, 2021). A estetização de uma cultura do vandalismo (Cadela, 2007; Pinilla, 2012; Thörn, 2011), ironicamente, talvez tenha vindo a contribuir para a assunção de novas práticas iconoclastas (Goes, 2020, 2021). O exercício crítico da arte poderá constituir condição necessária para uma interpretação patrimonial do espaço público (Cadela, 2007; Thörn, 2011), descolonizando-o, recontextualizando os objetos que adquiriram um distanciamento histórico no interior do espaço museológico e atualizando os discursos museográficos (Adams & Koke, 2014; Clarke, 2021; Gregório, 2015; O’Neill, 2020; Pauls & Walby, 2021; Reilly, 2018; Welch, 2006).

4. Conclusão: A Descolonização da Arte e o Artivismo Curatorial Como Processos Formativos Antirracistas

A descolonização do espaço público urbano (Correia, 2013; Madden & Marcuse, 2016; Silva, 1996) e das instituições culturais e de ensino, museus e universidades (Araújo & Rodrigues, 2018; Roldão et al., 2016), enquanto instrumento ideológico, deverá ter por objetivo desconstruir a imposição de um modelo estético e visual hegemónico, sedutor, subjacente às necessidades do consumo, que faz uso do racismo para justificar a exploração económica de recursos humanos e naturais (Hardt & Negri, 2019; Martin & Pirbhai-Illich, 2015).

A descolonização das narrativas históricas (Nebbou, 2013; Olaniyan, 1993) no seio dos espaços culturais e museológicos (Soares, 2020), a adaptação dos discursos museográficos, a interpretação patrimonial da estatuária pública e dos monumentos, a descolonização do espaço público, a recontextualização e musealização de objetos artísticos do colonialismo (Bina, 2020), as práticas artísticas contemporâneas (Ribeiro, 2021), a instalação de arte pública urbana (Duarte, 2019; Gregório, 2015) e novos projetos curatoriais (Clarke, 2021; Gregório, 2015; O’Neill, 2020; Pauls & Walby, 2021; Reilly, 2018) podem ser poderosos instrumentos de crítica e de reparação histórica desconstruindo os fetichismos (Pires, 2011; Sansi, 2008).

Movimentos sociais, grupos de investigação e coletivos artísticos, nomeadamente de afrodescendentes, podem desenvolver projetos curatoriais (Duarte, 2019; Gregório, 2015; O’Neill, 2020; Ribeiro, 2021) e iniciativas pedagógicas, no campo das expressões plásticas e performativas, interpretando o património edificado e artístico, amplificando deste modo o questionamento histórico do espaço público, da pós-memória (Ribeiro, 2021), do colonialismo e da escravatura.

A este propósito, é de destacar a importância da Resolução 69/16 (Resolution 69/16, 2014) de 18 de novembro de 2014, da Assembleia Geral das Nações Unidas, que propõe a realização de um programa de atividades para a implementação da Década Internacional dos Afrodescendentes (Resolution 68/237, 2013). Esta resolução compreende a necessidade do desenvolvimento de ações de sensibilização por parte dos estados e da sociedade civil, tendo em vista a promoção da igualdade e efetivação dos direitos humanos, a memória das vítimas da escravatura e do colonialismo e a prevenção e combate ao racismo, à descriminação racial, à xenofobia e à intolerância associada (Resolution 69/16, 2014). A promoção da diversidade cultural, a valorização dos contributos dos afrodescendentes para o desenvolvimento, a participação cívica e a inclusão social são alguns dos objetivos apontados (Resolution 69/16, 2014).

Visitas orientadas, ações de sensibilização para a interpretação e valorização do património, oficinas de expressão artística, fóruns de debate, a par de uma programação interdisciplinar, fora das portas das instituições, poderão alicerçar as práticas de inclusão e coesão social, combatendo o racismo e a xenofobia (Alvarez, 2009; Bell, 2021; Maeso, 2016; Renou, 2020; Resolution 69/16, 2014).

A arte como epistemologia da descolonização (Balona de Oliveira, 2019; Soares, 2020) pode permitir a adoção de um programa estético comunitário (Stavrides, 2016/2021), anticolonial (Hickel, 2021), que possibilite a ativação de uma consciência crítica do estado de desenvolvimento social e humano, cumprindo com o dever de denúncia, subjacente à função social da arte. O pensamento contemporâneo e a dialética exercida pela arte contemporânea, nomeadamente através de novos projetos curatoriais (Ribeiro, 2021), tem possibilitado a crítica aos mecanismos de apropriação imperialista (Hickel, 2020, 2021) no seio das instituições culturais (Soares, 2020). Foi o colonialismo que esteve na génese das grandes coleções de arte europeias, servindo-se deste instrumento propagandístico, sob pretexto da vontade civilizacional e cristianizadora (Goes, 2020), para esconder as reais motivações de uma elite ocidental hegemónica: a dominação e a exploração económica dos solos.

A desvalorização do preço do trabalho, que sustenta o crescimento capitalista moderno, foi assegurada ao longo de séculos pela exploração colonial (Hickel, 2020, 2021; Vale de Almeida, 2000) escravocrata, justificada no atraso cultural e na menoridade racial dos povos dominados. As ideologias que fazem uso do racismo foram implantadas no seio das sociedades contemporâneas para justificar a exploração laboral e a desvalorização dos recursos humanos (Hickel, 2020, 2021). Assegurar a manutenção de uma “estrutura de classes baseada na raça” (Vale de Almeida, 2000, p. 4) visa garantir a prossecução da exploração laboral e a maximização dos lucros. O fim da formação de valor assente na exploração laboral estará, inevitavelmente, subjacente ao processo de descolonização cultural (Hickel, 2020, 2021; Vale de Almeida, 2000).

As cidades contemporâneas confrontam-se, por isso, com a necessidade de adoção de novos modelos de planeamento urbano pós-capitalista, pós-neoliberal (Stavrides, 2016/2021), que tenham em consideração a implantação e expansão da arte no espaço público (Bueno Carvajal, 2021; Frank & Ristic, 2020; Thörn, 2011). O sucesso deste exercício será mensurado pelos impactos causados pelo desenvolvimento de projetos artísticos colaborativos, pela devolução do espaço público aos cidadãos (Stavrides, 2016/2021) e pela ativação de processos de participação cívica na redefinição do espaço arquitetónico e paisagístico (Bueno Carvajal, 2021; Frank & Ristic, 2020, Stavrides, 2016/2021; Thörn, 2011).

A arte contemporânea (Duarte, 2019; Gregório, 2015; Ribeiro, 2021) pode convocar o debate crítico sobre a história e as omissões (Pauls & Walby, 2021), no seio das instituições culturais, nos museus e universidades (Araújo & Rodrigues, 2018; Soares, 2020; Roldão et al., 2016), como também potenciar o debate no espaço público e mediático, nomeadamente, juntos dos mais jovens, desconstruindo os discursos coloniais institucionalizados (Roldão et al., 2016). A imigração, o questionamento histórico e identitário, a interculturalidade, a diversidade religiosa, musical e linguística, o fim do império, o pós-colonialismo (Leupin, 2019), o racismo, a inserção social, o arquivo são alguns exemplos das temáticas subjacentes ao conceito de pós-memória (Ribeiro, 2021), abordadas nos discursos artísticos contemporâneos.

O percurso, a investigação e o trabalho artístico de Grada Kilomba (2019; “‘O Racismo É uma Problemática Branca’ diz Grada Kilomba”, 2016) exemplificam a ativação do debate e convocam o espectador a participar nele. Enumeram-se alguns autores/artistas afrodescendentes (segundas e terceiras gerações) que, de acordo com Ribeiro (2021), interpretam o conceito de pós-memória, através das suas múltiplas práticas artísticas: Aimé Mpane, Amalia Escriva, Ana Mendes, Délio Jasse, Fátima Sissani, Francisco Vidal, John K. Cobra, Louise Narbo, Margarida Cardoso e Nuno Nunes-Ferreira.

As intervenções artísticas comunitárias no espaço público urbano (Stavrides, 2016/2021), nomeadamente, desenvolvidas por afrodescendentes podem contribuir para um processo de inclusão social (Resolution 69/16, 2014) e para a superação das omissões institucionais do racismo e do género, persistente em muitas coleções e exposições (Kilomba, 2019; Pauls & Walby, 2021).

Percursos pedonais de interpretação patrimonial e atividades pedagógicas realizadas no espaço público, nomeadamente em jardins e praças, poderão contribuir para a efetivação dos direitos humanos e culturais (Resolution 69/16, 2014; Vale de Almeida, 2012), potenciando o desenvolvimento de sentimentos de pertença ao lugar habitado (Stavrides, 2016/2021), a mitigação das desigualdades sociais (Bueno Carvajal, 2021; Thörn, 2011), a eliminação dos conflitos e da fenomenologia da violência (Otávio et al., 2009), assegurando a diversidade cultural (Vale de Almeida, 2012) e a desconstrução das mitografias do passado (Barthes, 1957/2001).

Uma museologia socialmente comprometida (Gouveia, 2013; Á. Pinheiro et al., 2016; Soares, 2020), a par do artivismo curatorial (Clarke, 2021; Gregório, 2015; Leupin, 2019; O’Neill, 2020; Pauls & Walby, 2021; Reilly, 2018), enquanto ato político e prática pedagógica, pode simultaneamente potenciar o estabelecimento de novas narrativas pós-coloniais (Nebbou, 2013; Olaniyan, 1993) e desconstruir os discursos neocoloniais, bem como promover dialéticas antirracistas (Alvarez, 2009; Bell, 2021; Maeso, 2016; Renou, 2020).

O desenvolvimento de projetos curatoriais colaborativos e inclusivos (Gonçalves et al., 2021; Leupin, 2019) e a implementação de estratégias de comunicação inclusiva nos museus (Primo & Moutinho, 2021; Soares, 2020) poderão libertar estas instituições culturais do fardo da herança colonial (Alcântara Conde da Silva, 2021) e envolver as diversas comunidades no processo de construção identitária. A recolocação de estátuas em museus ou em parques de esculturas ou a colocação de informação interpretativa junto ao edificado são outras das propostas apresentadas (Bina, 2020).

A arte contemporânea (Rendeiro & Lupati, 2019; Ribeiro, 2021) e o artivismo curatorial (Clarke, 2021; Gregório, 2015; Leupin, 2019; O’Neill, 2020; Pauls & Walby, 2021; Reilly, 2018; Taussig, 2012) podem assim permitir a progressiva desconstrução das práticas discursivas lusotropicalistas (Duarte, 2019), que mitificam o colonialismo português (Araújo & Rodrigues, 2018), sob uma capa alegórica de um dever civilizador e evangelizador (Goes, 2020). A manutenção destas “velhas” práticas discursivas mascaram os reais impactos da violência e opressão racial (Otávio et al., 2009; Roldão et al. 2016; Varela & Pereira, 2020), contribuindo para o acentuar da discriminação e para a disseminação dos discursos racistas na contemporaneidade.

Apesar de um progressivo ganho de distanciamento histórico, persistem ainda, nas narrativas pós-coloniais (Nebbou, 2013; Olaniyan, 1993), os estigmas da guerra, da luta pela emancipação, da exploração e da perda, substituídos pelo silenciamento da memória (Ribeiro, 2021; P. Sousa, 2019). Este silêncio veio induzir um falso consenso social, preterindo-se o drama de horror e a tragédia histórica (Steinmeyer, 2021), ao deleite romantizado do exotismo dos destinos exibidos nas narrativas de viagem, romantizadas, envoltas num saudosismo (Duarte, 2019; Gregório, 2015).

O questionamento das ideologias totalitárias e racistas, a ativação do debate sobre o estado da civilização, pode ser exercido no seio das instituições culturais, nomeadamente os museus e as universidades. O espaço público, enquanto lugar político, é também o espaço propício para a reativação deste debate, onde a arte contemporânea pode desempenhar um papel fundamental.

Duarte (2019) verifica de que modo a arte contemporânea (Rendeiro & Lupati, 2019; Ribeiro, 2021) pode constituir uma importante ferramenta crítica para a descolonização do pensamento e questionamento da história. Também Gregório (2015) considera o contributo das artes plásticas para a construção de identidades pós-coloniais e para a desconstrução de preconceitos, assentando a prática artística na afirmação da diversidade e na pluralidade discursiva. Desta forma, as instituições culturais, nomeadamente as museológicas, deverão apostar numa programação plural aberta à comunidade, promovendo o multiculturalismo nos museus (Adams & Koke, 2014; Primo & Moutinho, 2021; Welch, 2006) e projetos colaborativos, de inclusão pela arte.

Em concordância com o disposto na revisão bibliográfica, é possível identificar uma interpretação crítica em relação à utilização do espaço público e à arte nele instalada, compreendendo as práticas iconoclastas contemporâneas como instrumentos políticos que permitem a ativação do debate em torno dos processos de recusa da hegemonia da memória vigente e da não identificação com património. Conclui-se que a hierarquização simbólica do edificado a par da estatuária pública constituem instrumentos ideológicos que veiculam narrativas históricas comuns aos regimes totalitários. A persistência da representação destas narrativas, além de impossibilitar a mudança do paradigma cultural e das mentalidades, pode colocar em causa os processos democráticos contemporâneos e a efetivação dos direitos humanos (Resolution 69/16, 2014). A ausência de uma interpretação patrimonial crítica origina um hiato no entendimento da própria história assente na alteridade. Por isso, ao invés da arte no espaço público e o património edificado constituírem instrumentos de inclusão social, antes, têm vindo a acentuar a fenomenologia da violência, pois perpetuam os legados da opressão, escravatura e racismo, legitimando as novas formas do colonialismo contemporâneo (Huntington, 1996; Santos, 2003).

A manutenção de práticas discursivas que entronizam a nostalgia do passado colonial (Duarte, 2019; Olaniyan, 1993), corroboradas por estruturas de poder formativo de pensamento - museu e academia -, confirmam a dificuldade de emancipação social das minorias raciais e étnico-culturais e dificultam a desconstrução de um racismo ontológico, nomeadamente, no caso português, em relação aos jovens afrodescendentes (Roldão et al., 2016). A salvaguarda da diversidade cultural (Meyer-Bisch & Bidault, 2010/2014) e a crítica histórica são, por isso, premissas preponderantes para assegurar a coesão social, que, somente, a descolonização do pensamento e da arte será capaz de operar (Duarte, 2019).

5. Limitações ao Estudo

As matérias em estudo, devido ao seu caráter interdisciplinar, são merecedoras de uma reflexão mais aprofundada. Os recentes acontecimentos iconoclastas sobre a estatuária pública, que ocorreram em Portugal e em diferentes países ocidentais, poderão merecer uma abordagem particular tendo em conta os seus referentes e a especificidade da representação. Recomenda-se que um futuro estudo possa fazer uso de uma metodologia de questionários à população em geral e entrevistas a curadores, artistas e ativistas afrodescendentes, de modo a aprofundar as seguintes questões: a iconoclastia contemporânea é um fenómeno global? Como uma educação antirracista poderá contribuir para a mudança do paradigma cultural? A quem melhor servem as estátuas? De que forma a arte contemporânea pode atualizar a interpretação das narrativas históricas? A remoção da estatuária instalada no espaço público, nomeadamente a encomenda do Estado Novo, pode contribuir para a descolonização do pensamento ou acentuar os discursos totalitários contemporâneos? A restituição do património histórico pode ser uma mais valia para os lugares de origem, contribuindo para a identificação cultural desses territórios ou, antes, contribuirá para perpetuação das relações com a antiga potência colonial, retirando possibilidade pedagógica da correção histórica do opressor? De que modo a redefinição do modelo económico subjacente ao planeamento urbano pode contribuir para o processo democrático, para a efetivação dos direitos humanos e inclusão social das minorias raciais?

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Recebido: 17 de Novembro de 2021; Aceito: 02 de Fevereiro de 2022

Diogo Goes é professor assistente no ensino superior com vínculo integral no Instituto Superior de Administração e Línguas, leciona as unidades curriculares de História da Arte em Portugal, Património Cultural e Turismo e Organização e Gestão de Eventos. É investigador no centro de investigação do Instituto Superior de Administração e Línguas e curador na Galeria Marca de Água (2019-2022). É coordenador da Ponte Editora (2022) e editor-chefe de A Pátria - Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa (desde 2021). Foi chair (2021) e co-chair (2022) da “Think+ 2021 International Conference”. Revisor da Herança - Revista de História, Património e Cultura, integrou o conselho editorial consultivo do Handbook of Research on Assertiveness, Clarity, and Positivity in Health Literacy. É licenciado em artes plásticas - pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (2012). Tem formação em metodologias de investigação; gestão e financiamento de organizações e projetos culturais e pedagogia. Como artista plástico, realizou cerca de 50 exposições individuais e mais de duas centenas coletivas. Email: diogo.costa.goes@gmail.com Morada: Rua do Comboio, n.º 5, 9050 - 053 Funchal

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