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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.41  Braga jun. 2022  Epub 20-Jun-2022

https://doi.org/10.17231/comsoc.41(2022).3719 

Entrevistas

Produção de Conhecimento, Reparação Histórica e Construção de Futuros Alternativos. Entrevista Com Miguel de Barros

Rosa Cabecinhasi  , conceptualization, writing - original draft, writing - review & editing
http://orcid.org/0000-0002-1491-3420

Miguel de Barrosii  , conceptualization, writing - review & editing
http://orcid.org/0000-0002-7435-2311

iCentro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal

iiCentro de Estudos Sociais Amílcar Cabral, Bissau, Guiné-Bissau


A pandemia da COVID-19 exacerbou de modo dramático desigualdades sociais pré-existentes e tornou mais urgente a consciencialização da necessidade de transformação social. Os movimentos sociais para a descolonização do conhecimento e dos sistemas de governança ganharam novo ímpeto assim como as demandas de reparação histórica e de justiça climática, sanitária e alimentar. A reparação histórica tem sido por vezes equacionada apenas em termos de restituição de bens materiais ou de compensação financeira, mas trata-se de uma tarefa bem mais complexa que passa necessariamente por tornar a produção de conhecimento um processo mais envolvente e participativo, dentro e fora da academia, colocando em diálogo diversos saberes com vista à construção de futuros mais justos e inclusivos.

Este texto resulta de uma entrevista realizada com Miguel de Barros, sociólogo e ativista guineense, recentemente distinguido com o prémio pan-africano humanitário em liderança na investigação e impacto social. Miguel de Barros é co-fundador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral (CESAC), membro do Conselho de Pesquisa para as Ciências Sociais em África, e diretor executivo da organização não-governamental guineense ambientalista Tiniguena. Esta entrevista decorreu em dois momentos diferentes. A primeira parte foi realizada em outubro de 2019, antes do eclodir da pandemia, e a segunda parte foi realizada 2 anos depois, em novembro de 2021, na qual abordamos os desafios que se colocam na produção de conhecimento, reparação histórica e justiça social no atual contexto planetário.

1. Produção do Conhecimento, Diversidade Cultural, Sustentabilidade e Inclusão Social

Em outubro de 2019, realizou-se na Universidade do Minho uma sessão do Seminário Permanente em Comunicação e Diversidade dedicada ao tema diversidade cultural, sustentabilidade e inclusão social, no qual debatemos os desafios que se colocam hoje à participação pública nos processos de governança e produção de conhecimento, assim como nas práticas de conservação dos espaços e recursos naturais e o diálogo entre saberes. O seminário foi dinamizado por Miguel de Barros, investigador do CESAC e diretor executivo da Tiniguena - “Esta Terra é Nossa!”, uma das organizações não-governamentais mais antigas da Guiné-Bissau. As atividades da Tiniguena conduziram à criação, no referido país, da primeira área protegida de gestão comunitária, potenciando diferentes formas de participação pública, que passam também pelo reconhecimento das estruturas tradicionais na governança dos seus próprios espaços e recursos. Nesta entrevista1 com Miguel Barros, abordámos não só as atividades da Tiniguena e do CESAC, mas também os movimentos culturais na Guiné-Bissau, nomeadamente os movimentos juvenis através da música, teatro e outras formas artísticas, e também a forma como a arte dialoga com os espaços urbanos e rurais, a memória cultural, a consciência social, a intervenção pública e a produção de conhecimento.

Rosa Cabecinhas (RC): Como responderias à questão “quem sou eu”?

Miguel Barros (MB): Sou o Miguel de Barros, venho da Guiné-Bissau e sou sociólogo. Trabalho em vários campos, como por exemplo o domínio da investigação científica através do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral. Participo também na dinamização de redes internacionais de pesquisa, por exemplo, a Rede Internacional das Periferias, que junta ativistas, pesquisadores, criadores à volta de um pensamento altermundialista, e que fomenta o diálogo entre territórios, trazendo a periferia enquanto centro de potência e ao mesmo tempo gerando possibilidades de emancipação de povos, como por exemplo, negros, quilombolas, em articulação com aquilo que são as principais agendas atuais, como a condição feminina, a geração de renda e ainda os direitos sexuais e reprodutivos. Portanto, são elementos que nos permitem de algum modo sonhar, fazer pontes, mas a minha ação não se limita só a isso. Eu lidero uma das organizações não-governamentais mais antigas da Guiné-Bissau e que graças ao domínio da conservação dos espaços e recursos naturais criou no país a primeira área protegida de gestão comunitária e que tem permitido potenciar formas de participação pública, mas reconhecendo as estruturas tradicionais na governança dos seus próprios espaços e recursos. E, a par disso, o desenvolvimento de movimentos culturais, quer através de músicas de intervenção juvenil urbana ou música rap, mas também de movimentos culturais à volta da arte, sobretudo na forma como a arte dialoga com o espaço urbano e ao mesmo tempo a questão da memória, da consciência social e da intervenção pública.

RC: É sem dúvida uma atividade diversificada e de natureza interdisciplinar, que cruza conhecimentos de várias áreas, mas podemos começar pelo vosso conceito de governança.

MB: No que toca à governança, em primeiro lugar, nós rejeitamos a ideia do minimalismo democrático, de que a democracia funciona só com a democracia eleitoral e também com a representatividade através dos órgãos da soberania. Nós assumimos que a democracia tem de ser encarada no seu espírito muito mais abrangente, que é a questão da participação efetiva das comunidades na gestão dos seus modos de vida, mas ao mesmo tempo na capacidade de representação e de legitimação dessas pessoas a partir de estruturas locais tradicionais. Desse ponto de vista, o conceito de governança sai daquela dimensão institucionalizada e formalizada, e ganha uma perspetiva muito mais endógena porque isso permite uma certa transformabilidade do conceito em relação àquilo que são as necessidades locais, mas também aquilo que são as aspirações das pessoas em relação ao nível do seu envolvimento e representatividade dentro dessas estruturas. Desse ponto de vista, acreditamos que não é o sistema democrático representativo o elemento mais essencial. Para nós, o elemento prioritário é sobretudo como construir espaços, mecanismos e instrumentos que permitam a colegialidade em termos de intervenção no espaço público, e ao mesmo tempo trazer todas as outras dimensões que fazem parte da capacidade de um certo povo e de uma certa localidade em manter os seus laços. Mas também que esses laços sejam capazes de produzir novas modalidades de economia, uma economia não só do ponto de vista monetário mas a ecologia financeira, a ecologia da exploração dos recursos, também dos saberes e como é que esses saberes trazem os elementos identitários que reforçam o reconhecimento desses atores nesse espaço. Posso dar um exemplo, nós estamos a trabalhar no apoio à animação do processo de governança em regime de cogestão na área marinha protegida comunitária das Ilhas de Urok, onde o Estado está presente em relação a toda a sua estrutura desconcentrada e sectorial, a nível da pesca, a nível da agricultura, a nível da floresta e a nível da administração territorial, mas não é a única entidade que tem capacidade de decisão. Temos as estruturas tradicionais, incluindo, por exemplo, o concelho dos anciões onde estão as autoridades tradicionais que gerem o território consoante os costumes, e também, por exemplo, os sacerdotes e sacerdotisas que gerem o espiritual, e os utilizadores dos recursos. As mulheres que fazem a atividade de coleta das conchas são fundamentais para todo o sistema de transição de classe de idades, um mecanismo da segurança social; os jovens têm um papel de vigia de todo o espaço, uma vez que são utilizadores dos recursos para fins de mercado, mas também são elementos estruturantes para guardar toda a mão de obra produtiva a nível local, o que lhes permite beneficiar desse sistema de construção dos laços, ao ponto de virem a fazer parte também do tal concelho de anciões. Ao mesmo tempo é esse mecanismo que dialoga com os utilizadores de recursos externos que vêm para esse espaço conhecendo e reconhecendo as leis tradicionais, mas adequando essas leis tradicionais aos mecanismos mais modernos, como por exemplo a um regulamento, a uma lei ou um despacho ministerial. Esse colégio junta-se para tomar decisões tendo em conta aquilo que é a visão da própria comunidade, ou seja, não é o Estado que chega e diz “agora vamos construir aqui um resort turístico”. O Estado toma a decisão de alienar um espaço para um determinado fim, mas a partir do momento em que a comunidade diz que esse fim é algo que nós reconhecemos e nós vamos estar presentes na gestão desse património, que em primeiro lugar deve permitir a regeneração dos recursos. Desse ponto de vista, o nosso conceito de governança não é só o funcionamento das instituições. É sentir o impacto das políticas que são tomadas pelas instituições, pois estas devem garantir não só a representatividade, mas que sejam efetivas na vida das pessoas e isso tem um caráter muito mais holístico em termos de compreensão da condição humana na sua relação com outras dimensões, como por exemplo a natureza, o espiritual e o económico.

RC: Essa ação integrada tem sido reconhecida internacionalmente. A Tiniguena foi distinguida com o Prémio Equador 2019 (PNUD), que reconhece práticas de excelência na luta pela conservação da natureza aliada com a inclusão social. Quais os principais desafios para o futuro?

MB: Eu creio que há quatro desafios essenciais. O primeiro desafio, que tem sido muito negligenciado, é como integrar as culturas e as tradições locais dentro do processo de tomada de decisão. Quando nós começámos o processo de criação das áreas protegidas da Guiné-Bissau encontramos comunidades no interior dessas áreas protegidas. Em muitos locais, por exemplo na África Austral, as comunidades humanas estão fora dos parques naturais. No caso da Guiné-Bissau, não. Porque é que isso aconteceu? Um, porque esses espaços são espaços mais produtivos no ponto de vista da biodiversidade, mas esses espaços ficaram mais produtivos porque havia uma capacidade cultural de conservação desses espaços e recursos. Qual era o mecanismo? O mecanismo era através de sacralização desse espaço que permitia o repouso biológico, a disponibilidade dos recursos e uma educação na perspetiva de que os recursos têm de existir para as gerações futuras. A terra é sagrada, a terra não é vendida, a terra é gerida de uma forma sustentável para que a nossa intervenção hoje dê espaço para as gerações futuras. Mas o elemento mais interessante é quando se veio a concretizar o zoneamento das zonas que deveriam ser conservadas dentro do modelo tradicional: a zona tampão, é a conservação absoluta; a zona transição, permite alguma atividade extractivista; e a zona de exploração. O mais interessante da Guiné-Bissau é que os espaços mais produtivos, de reprodução das espécies, coincidiram exatamente com os espaços que as comunidades étnicas sacralizavam, tanto na zona costeira marinha, que no caso dos Bijagós são praias, são bancos de areia, como por exemplo na zona continental, na região de Cantanhez, que são as últimas manchas de florestas sub-húmidas tropicais da África Ocidental. São 14 florestas sagradas que tinham a maior concentração de plantas medicinais e maior disponibilidade dos alimentos. Então, esse tipo de saber tem de estar dentro do mecanismo de governação dos espaços e recursos naturais, portanto, em termos de desafios da durabilidade do processo governativo a dimensão cultural e espiritual é fundamental.

O segundo desafio é como garantir o equilíbrio entre uma exploração para fins de desenvolvimento económico e ao mesmo tempo a conservação da natureza. Nós temos visto a nível global um desastre com o viés de exploração. Basicamente uma prática de extrativismo sem capacidade de permitir que esses equilíbrios, do ponto de vista natural, consigam jogar o seu papel e acabamos por ter que despender mais dinheiro no investimento para conservar aquilo que nós destruímos. Do nosso ponto de vista, a exploração dos espaços e recursos naturais tem de ser realizada através de métodos e práticas ecológicas, que salvaguardem a geração de renda de emprego limpo através da economia azul. Por exemplo, a exploração dos recursos marinhos e costeiros dentro de uma perspetiva ecológica, mas também aquilo que é a economia verde, valorizando os serviços de ecossistema, sobretudo serviços que vêm daquilo que é o potencial florestal não lenhoso em termos de transformação biológica. Isso leva-nos à questão de como salvaguardar a presença daquilo que é a capacidade produtiva da agricultura familiar camponesa dentro do sistema económico. Ou seja, não são os especuladores, não são as multinacionais, não são as grandes empresas, mas é quem produz, quem vive do trabalho e que gera o bem estar que deve ter a possibilidade de gerar também serviços para garantir esse bem estar. Então, desse ponto de vista, há uma relação muito mais sustentável na conservação dos espaços e recursos, ou seja, salvaguardar a sustentabilidade com a capacidade de geração de renda, de emprego através de uma visão muito mais integrada.

A terceira dimensão tem a ver com a transição geracional. Como é que a geração mais antiga, que viveu num mundo com modos de vida muito mais tradicionais, vai passar esse legado para a geração mais nova, mais urbana, que vive com as novas tecnologias e que não tem uma relação direta com a terra. Como é que vamos passar esse tipo de conhecimento? Aqui entra o desafio da educação ambiental, da educação alimentar, da educação nutricional, da educação para o emprego limpo, que permite levar as novas gerações a uma relação de maior compromisso com o seu espaço natural, cultural e de vida. O sistema educativo tem de ser capaz de incorporar esses valores e a formação dos professores tem de ser dentro de uma lógica completamente diferente daquilo que os professores têm hoje. O próprio espaço de produção de conhecimento também não deve pensar que aquilo que é o conhecimento científico é completamente diferente daquilo que é o saber que as comunidades conseguem trazer. Aqui é que nós conseguimos fazer essa síntese geracional em termos do conhecimento, da valorização, do compromisso, de atitudes e práticas que são muito mais favoráveis a uma dimensão de durabilidade, mas que salvaguarda também a sua participação efetiva na governação.

O último desafio tem a ver com as instituições. Como é que as instituições políticas podem ficar mais próximas dessas possibilidades que estamos a falar? Tem a ver com a mudança do mecanismo de representatividade política, por exemplo, hoje dizer que no parlamento só devem estar partidos políticos é um modelo completamente obsoleto. Os parlamentos devem ser espaços mais abertos, mais dinâmicos e mais plurais que permitam integrar movimentos sociais e desses movimentos sociais trazerem aquilo que é a visão da relação cúmplice com o espaço físico, territorial, cultural, humano e natural para que as políticas públicas possam ter também essa componente muito mais naturalizada daquilo que são os modos de vida. A partir do momento que conseguirmos cruzar esses quatro eixos vamos ter a dimensão intercultural. O desafio é o equilíbrio em relação a questões de género, equidade entre pessoas e entre culturas, mas também sobretudo é uma outra racionalidade do ponto de vista do imaginário público de como é e como deve ser a intervenção de cada cidadão dentro do seu território, mas também numa escala planetária.

RC: Sendo a Guiné-Bissau um país com tanta diversidade cultural e linguística, como é que se faz essa comunicação entre as diferentes comunidades, nomeadamente as diferentes comunidades linguísticas?

MB: Eu vejo isso como uma oportunidade e dou alguns exemplos. A Guiné-Bissau tem mais de 33 grupos étnicos, cada um desses grupos tem a sua própria língua, tem o seu modo de gestão da sociedade e de gestão política. Por exemplo, temos grupos étnicos que têm uma estrutura social hierarquizada, temos grupos étnicos que têm a sua estrutura social horizontal, temos grupos étnicos que têm estrutura matriarcal. A língua franca, o crioulo guineense, não pertence a nenhum desses grupos étnicos, mas tem na sua base a contribuição de todas essas línguas étnicas, mais o português. Desse ponto de vista, o crioulo guineense deve ser encarado, não só enquanto um instrumento linguístico ou comunicacional, mas como património cultural imaterial nacional que é o símbolo de unidade nacional dos guineenses. Para mim, esse é o primeiro desafio e a primeira dimensão. Por exemplo, como salvaguardar a coexistência do crioulo guineense e do português com as outras línguas? Nós estamos a desenvolver, há mais de 20 anos, iniciativas muito interessantes que têm a ver com a comunicação para a mobilização social através das rádios comunitárias e agora televisões comunitárias. Todas as regiões da Guiné-Bissau têm pelo menos uma rádio comunitária e essas rádios comunitárias, para além de difundirem as notícias em língua oficial que é o português e também em língua franca que é o crioulo guineense, têm programas específicos para as comunidades locais, feitos pelos membros dessas comunidades e em línguas locais. Por exemplo, nós estamos neste momento na campanha agrícola. Ao nível local não tem interesse produzir um programa em português, mas há todo o interesse em produzir um programa, por exemplo, em balanta, em mancanha, em bijagó, porque é o próprio produtor que vem produzir e apresentar o seu programa trazendo os códigos e saberes da produção e demonstrando quais são os riscos e as oportunidades de mobilização local. Quando estamos a fazer esse tipo de ação, não só estamos a contribuir para a vitalidade dessas línguas, mas também estamos a resgatar a possibilidade de transformar essas línguas não só em instrumentos de comunicação, mas também em patrimónios ligados ao próprio sistema produtivo e identitário. Então, eu acho que esse desafio passa pela capacidade de sistematização das nossas aprendizagens. Levar essas aprendizagens, mais uma vez, para dentro do espaço educativo para que as crianças conheçam as histórias e as origens das línguas que as comunidades desenvolveram e quais são os elementos com capacidade de salvaguarda da coesão desses grupos, mas também que tipo de utilidades é que têm. Por exemplo, os códigos no sistema produtivo, na construção das habitações ao nível da gestão do espaço e também ao nível daquilo que são as memórias desse próprio povo através de histórias, cantigas, gastronomia e da produção económica. Então, eu tomo isso como uma vantagem que a Guiné-Bissau tem, podendo estar dentro de um contexto onde a identidade guineense não é uma identidade singular, é uma construção múltipla que dialoga com essas diferentes matrizes, tanto de etnias que professam religião de uma matriz africana ou etnias que foram cristianizadas, ou etnias que foram islamizadas, mas que partilham o mesmo espaço e a partir desse espaço desenvolvem confluência de relações interétnicas e isso permite também um maior dinamismo linguístico. É isso que devemos fazer e não impor uma língua como uma língua federadora, matando toda a capacidade que possa existir e as potencialidades de desenvolvimento que essas línguas também trazem no domínio cultural, no domínio económico, no domínio identitário e, também, no campo produtivo onde há saberes extremamente importantes na gestão dos espaços.

RC: No que toca às desigualdades de género, quais são as prioridades de intervenção atualmente na Guiné-Bissau?

MB: Ultimamente fizeram-se progressos enormes em relação a essa questão. Por exemplo, do ponto de vista político temos agora2 um governo que tem o mesmo número de mulheres enquanto ministras. Temos o protagonismo de um movimento social feminino forte, que levou a que o parlamento adotasse a lei da paridade, fixando uma quota de 36%. Temos, por exemplo, ganhos legislativos interessantes como a criminalização da mutilação genital feminina através de uma ação forte de organizações da sociedade civil, que levou à desmitificação de todo um tabu relativamente à mutilação genital feminina, que é uma prática nefasta à saúde e dignidade da mulher. Mas existem ainda mais problemas. O direito ao consuetudinário é extremamente machista e excludente aos diretos da mulher relativamente ao acesso, uso e posse de terra quando falamos de um país onde mais de 65% da mão de obra em toda a cadeia produtiva é garantida pelas mulheres, mas as mulheres não têm direto à posse e ainda há casos mais severos onde as mulheres não têm, por exemplo, direito àquilo que é o lucro proveniente da sua própria produção, o que lhes retira todo o protagonismo de decisão, influência e ao mesmo tempo de afirmação da sua condição no espaço rural. Temos ainda um país onde a maior taxa de analfabetismo é das mulheres, um país onde em cada 100 mulheres mais de metade não consegue dar à luz com vida e onde as crianças têm um momento crítico de sobrevivência até aos 6 anos de idade com problemas de má nutrição. Temos muitas desigualdades, muitas disparidades. Embora possamos celebrar as conquistas que frisei, elas não são suficientes, são necessárias mais conquistas. E como garantir isso? Em primeiro lugar, temos de mudar completamente o nosso sistema educativo, dando primazia ao investimento sobretudo na presença e participação das mulheres no sistema educativo. Na Guiné-Bissau, cerca de 30% das crianças, em idade escolar, não consegue entrar no sistema e desse contingente mais de metade são mulheres, isto porque o maior obstáculo à continuidade das meninas dentro do sistema educativo é a falta de incentivos e políticas públicas. O sistema patriarcal não dá vantagens às meninas para estarem com disponibilidade dentro das salas de aula, porque o peso do trabalho doméstico é extremamente forte. Uma vez fiz uma dinâmica no sul, separando dois grupos de trabalho, rapazes e raparigas. Pedi que desenhassem um relógio e indicassem, da meia-noite até ao dia seguinte, como ocupavam o seu tempo. Os rapazes acordam às 8h da manhã, vão ao campo fazer a vigia durante 2 ou 3 horas e depois voltam, comem, depois vão para a escola e têm o tempo todo livre para jogar à bola. Enquanto que as raparigas acordam às 5h da manhã, ajudam as mães nos fazeres domésticos, levam a comida para o campo, voltam e tratam dos irmãos, mesmo que sejam mais velhos. Não têm tempo para estudar e assim não conseguem ter o desempenho escolar desejado. Então, o sistema educativo não favorece a autonomia de tempo das meninas para terem lazer, e ao mesmo tempo possibilidades de aprendizagem e as políticas públicas existentes não dão possibilidades das meninas, por exemplo, beneficiarem de bolsas de estudo e de terem programas que transformam o espaço educativo num espaço de maior atratividade e não num espaço depressivo. Nós não estamos a falar de desistências escolares, nós estamos a falar de constrangimentos que põem em causa as possibilidades reais de as meninas estarem em pé de igualdade com os meninos dentro do sistema educativo. Qual é o resultado? Chegamos ao fim do 12.º ano e encontramos mais rapazes do que raparigas a acabarem o ensino obrigatório, mas as poucas que conseguem concluir têm as notas mais altas, o que significa que se as condições sociais, educativas, familiares e económicas daquelas que conseguem chegar ao fim estiverem em pé de igualdade com os rapazes, conseguiriam produzir efeitos mais interessantes que os próprios rapazes. Portanto, estamos a falar da ausência de políticas públicas que permitam empoderar as meninas a partir do sistema educativo para depois fazerem face a tudo aquilo que são os constrangimentos. Um outro exemplo, fizemos em 2018 na Guiné-Bissau um estudo para tentar perceber quais eram os níveis de insegurança alimentar nutricional ao nível nacional, tanto nas zonas rurais como nas zonas urbanas. O que é que encontramos? Nas zonas rurais quem está dentro do sistema reprodutivo alimentar são as mulheres, mas as famílias lideradas pelas mulheres são as mais vulneráveis a situações de insegurança alimentar nutricional. Nas zonas urbanas, as famílias lideradas por mulheres são menos vulneráveis à insegurança alimentar nutricional porque há maior nível de escolaridade, empregos mais sustentáveis, maior rendimento e têm autonomia para tomar decisões. Ou seja, se nós não mudarmos o sistema educativo para empoderar as meninas desde a criação de uma autoestima empoderadora e ao mesmo tempo capacidades para tomarem decisões autónomas, fazerem as suas escolhas e a partir daí liderarem as suas agendas, muito dificilmente conseguiremos a transformação política desejada. Ou seja, nós não devemos partir do topo para a base, tem que ser um movimento da base que influencia todos os setores de modo a que, tanto nas zonas urbanas como nas zonas rurais, possamos ter condições de equidade e que permitam a transformação estrutural desejada.

RC: Esse trabalho a partir das bases tem sido reconhecido internacionalmente, por exemplo, o prémio humanitário africano para a excelência em pesquisa e impacto social, e também o reconhecimento como personalidade mais influente, no ano de 2018, pela Confederação da Juventude da África Ocidental. Tens feito muito trabalho com os movimentos juvenis...

MB: Em África, a juventude representa mais de 60% da população. Se olharmos para a estrutura representativa do espaço público, político e económico africano encontramos pessoas com mais de 65 anos, isto num continente onde quem determina os consumos e a própria produtividade são os jovens. O hiato entre este segmento, do ponto de vista daquilo que são as suas expectativas em relação ao futuro e ao mesmo tempo aquilo que é a capacidade de os atores públicos tomarem decisões, influenciou coisas muito práticas, por exemplo, o êxodo rural uma vez que as oportunidades estavam todas concentradas ao nível do espaço urbano. Estamos a falar, por exemplo, de emigração clandestina, uma saída em massa dos jovens do continente à procura de outros destinos, mas onde dificilmente têm a possibilidade de integração efetiva, pois não partilham os códigos desses espaços. Isto acontece porque há uma desconexão entre o sistema representativo e a capacidade de satisfação das expectativas. Em primeiro lugar, tem a ver com a ideia de futuro. A ideia do futuro, por exemplo, transporta os jovens para essa condição de que só podem ser considerados atores do amanhã, o que acaba por esvaziar o potencial de os jovens serem atores da atualidade, de hoje. Ao mesmo tempo isso retira uma certa capacidade de intervenção pública, isso esvazia as possibilidades de emancipação política desses atores. Por outro lado, a visão dos jovens apenas como motores e enquanto mão-de-obra, e não enquanto cérebros comprometidos que também podem liderar as suas agendas, acabou por enfraquecer muito as democracias em África, porque há um cunho cultural muito forte da gerontocracia, que desapropria os jovens dos espaços de tomada de decisão, mas felizmente eu acredito que as coisas estão a mudar, sobretudo ao nível dos movimentos culturais. Por exemplo, os movimentos juvenis à volta da música de intervenção têm colocado na agenda pública um debate intergeracional sobre a questão da governança, sobre a condição juvenil, sobre como enfrentar a precariedade social e em que medida é que estão preparados, porque hoje têm uma maior noção das ações de mobilidade, de linguística e de conhecimentos de espaços, que lhes dão ferramentas para gerirem o seu próprio destino. Então, isso tem influenciado uma maior implicação dos jovens na economia, uma maior implicação dos jovens em partidos políticos, mas sobretudo num questionamento dos modelos tradicionais dos partidos, de como é que esses movimentos sociais podem ter um papel, por um lado de atualização daquilo que é a sua própria demanda, e como é que essa demanda interpela o espaço público em relação à sua condição enquanto africanos e, neste caso, enquanto guineenses. E daí podemos encontrar também diálogos muito profícuos. Um dos diálogos interessantes é a questão do empreendedorismo, se não é um desengajamento do estado para a precariedade laboral, ou então se são possibilidades de geração de alternativas que permitam criar bem-estar. Esse diálogo hoje está presente e tem permitido resgatar modos tradicionais de mobilização de recursos, sobretudo de recursos financeiros através de sistemas de poupança e crédito, aquilo que se chama a abota, que corresponde a práticas de grupos de mulheres que se juntam por uma atividade de geração de renda fazendo depósitos de certas quantias que vão recebendo de forma rotativa, permitindo ter acesso à proteção social que financia, por exemplo, o parto, o chorro, o batismo, que dá para pagar a escola dos filhos ou o ingresso de um familiar numa atividade económica. Esses elementos são interessantes, mas quando não temos, por exemplo, um sistema financeiro e bancário inserido na comunidade, que não tem ações que permitam o acesso ao crédito para atividades produtivas locais e em condições favoráveis, isso desempodera toda a potencialidade de crescimento, de criação de bem-estar e de potenciação de ideias novas. Portanto, nós temos de ser capazes de mexer em políticas públicas em relação a formas de representatividade, em relação ao mecanismo de acesso ao financiamento público e ao mesmo tempo em relação à possibilidade de reformar o sistema educativo, de modo a que a própria escola esteja articulada com o espaço de produção e a capacidade de gerar oportunidades de renda, e que permita com que o jovem não tenha como ambição primária ser um político, mas ao mesmo tempo que lhe permita ter autonomia para desenvolver o seu potencial nos diferentes setores (agricultura, serviços, etc.) e fazer disso a sua ação política. Se nós conseguirmos fazer isso, a alta competição para açambarcar o Estado através dos partidos políticos irá baixar consideravelmente. É um desafio que temos de ser capazes de superar, mas sem dialogar com esses três pilares vai ser muito difícil: o político, o educativo e o económico.

RC: A música de intervenção e as rádios comunitárias têm marcado os ativismos na Guiné-Bissau. O teatro desempenha também um papel importante na transformação social...

MB: Esse movimento é muito importante porque não emerge de uma agenda internacional de ajuda externa nem está atrelado aos dispositivos de financiamento público, mas é uma interação que vem das próprias comunidades locais, tanto nas zonas urbanas como nas zonas rurais, daquilo que as novas gerações entendem que podiam ser os movimentos de resgate e atualização da memória e da cultura dos povos que tradicionalmente habitam esses espaços. Na Guiné-Bissau temos a tendência de chamar, por exemplo, regiões ou territórios de chão da etnia que chegou lá primeiro, por exemplo Chão Papel - Biombo, Chão Nalu - Catió, Chão Bijagó - Bubaque, Chão Balanta - Mansôa. Isso é algo perfeitamente normalizado porque reconhece quais são as culturas mais antigas que habitaram essas zonas e que permitiram que as outras etnias também se instalassem ali. Na Guiné-Bissau a cultura popular é muito importante. Eu tenho de chamar atenção sobre um outro património que merece ser valorizado e levado ao estatuto de património cultural e material nacional que é o carnaval guineense, que é completamente diferente dos outros carnavais porque é artesanal, é popular, tradicional e étnico, tanto na produção de máscaras, das cantigas, daquilo que são as coreografias, os instrumentos musicais e é tudo algo que emerge deste espaço tradicional. O que o teatro popular traz de novo, dentro deste movimento mais recente que estamos a falar, não é só a questão de resgate da memória, mas a intervenção em termos de questionamento e ao mesmo tempo em termos de propostas alternativas de gestão do espaço público. Na Guiné-Bissau há um grupo cultural extremamente importante, os Netos de Badim, que emerge de um contexto de periferia e que junta desde crianças até aos avós, num processo de interação através do teatro, mas que é no fundo uma espécie de recriação de uma pedagogia de convivência e de relações de proximidade (família, bairro) e do interesse pela arte performativa manifesta através da cultura popular. Esses elementos permitem partilhar os mesmos códigos, sendo recursos úteis dentro do nosso sistema cultural e de uma lógica de economia afetiva, porque a partir do momento que está connosco e se partilha esses códigos então pode-se tomar decisões e pode-se também cuidar daquilo que é nosso. Então, esse diálogo que tem sido proporcionado ao nível local, ao nível das comunidades, para mim, é aquilo que depois permite superar os extremismos, por medo do desconhecido, por medo do adversário e ao mesmo tempo permite superar toda a possibilidade, ou tentativa de diminuir outras culturas não maioritárias. Então, eu acho que isso hoje na Guiné-Bissau está a passar, também, como algo que os atores públicos reconhecem e quando há qualquer evento, mesmo de carácter governamental, regional ou internacional, esses atores estão presentes para demonstrar o espírito guineense, o que nós partilhamos e é-nos indivisível. Eu acho que o teatro tem ajudado bastante nesse papel, embora infelizmente hoje não tenhamos nenhuma sala de teatro. Mas nos bairros temos espaços de produção e realização de teatros populares e estão agora em fase de emergência os centros culturais de periferia que têm permitido às crianças sentirem que têm um espaço de integração não só entre si, mas também com outras gerações, o que permite recriar todo um sistema de ligação que se está a perder com as transformações tecnológicas, com a expansão das cidades e uma certa personalização daquilo que são hoje os estilos de vida e consumo.

RC: O combate às assimetrias tem sido uma prioridade, nomeadamente as assimetrias na produção do conhecimento. Quais as estratégias de ação no combate às “hierarquias culturais e raciais” (Cunha et al., 2018, p. 6) na produção e disseminação de conhecimento?

MB: As sociedades perderam muito com a imposição das culturas únicas ou com a supremacia linguística, por exemplo, o que acaba por trazer um diálogo à volta da questão civilizacional e das academias reproduzirem isso de uma forma drástica através da legitimação do conhecimento, a partir da produção dita científica do espaço unicamente académico, quando devia ser algo de uma visão muito mais ampla, conhecendo e reconhecendo os saberes populares, articulando espaços de vivência, convivência, ensino e aprendizagem, e ao mesmo tempo uma maior elasticidade das metodologias de pesquisa. A questão da imposição de culturas únicas, de civilizações únicas e de línguas, que são obrigatórias e únicas, levou à perda de um património enorme de saberes, de conhecimento e daquilo que podia ser hoje não só uma maior diversidade em termos culturais, mas uma maior riqueza em termos de conhecimento das nossas sociedades, e isso dentro do contexto de expansão neoliberal ficou ainda mais cristalizado com o inglês como língua de comunicação nas redes digitais. Do meu ponto de vista, as universidades jogam no papel de cristalização desse espaço a partir do momento em que a produção de conhecimento passou a ser uma produção muito mais fria, voltada para os livros e para o espaço académico e não de diálogo com outros espaços de saberes, como por exemplo as comunidades indígenas, espaços de sistemas de produção e não de especulação. A lógica neoliberal também acabou por imperar nos modelos de governação dos espaços académicos e isso é muito evidente, por exemplo, na questão da produção das patentes, que dá primazia ao pesquisador, por exemplo, de ficar com os royalities de tudo o que vem como conhecimento produzido a partir do momento em que ele cataloga e regista um determinado tipo de saber. Quando há toda uma comunidade ancestral, indígena, local e populações em espaços de dinâmica comunitária que permitiram a existência desses saberes. O caso mais paradigmático é o caso da medicina natural. Tem havido muita disputa em relação ao patenteamento, por exemplo, de genes, de plantas que permitem combater algum tipo de doença, mas isto é especulação, é neoliberalismo porque isso são saberes de povos e se esses povos não patentearem isso é porque têm uma compreensão de que essa é a sua contribuição para a humanidade. Então, eu defendo que tem de haver uma abordagem da academia ao espaço de produção de saber, daquilo que se chama, mais quente, mais envolvente, que não tem uma tutela na produção de conhecimento, mas que há uma espécie de coparticipação, com responsabilização e implicação daqueles que são donos desse espaço em partilhar informações. Isso passa por, por exemplo, quando fazemos publicações, colocar as pessoas que dão as informações como coautores. Isso passa por, quando fazemos publicações, colocar os centros de interpretação locais na mesma categoria das universidades que nos acompanharam, porque a universidade pode financiar, mas se essa gente não nos der a informação, não nos orientar e não nos explicar, como é que vamos produzir conhecimento? Depois no fim nós dizemos que descobrimos. Não, nós estamos a partilhar o conhecimento que existe nesses espaços e o mais caricato é que depois esse conhecimento não é devolvido às comunidades, ou seja, é preciso toda uma refundação daquilo que são os mecanismos de produção de conhecimento, transformar os protagonistas, que nós chamamos de informantes, enquanto atores do saber e criar formas de criação de patentes que permitam que o conhecimento seja de livre acesso. Eu acredito muito nessa visão, por isso, eu acho que a forma como as pesquisas académicas estão a ser feitas hoje é uma interpelação daquilo que deve ser o diálogo no modelo neoliberal de produção do conhecimento, para termos modelos mais emancipados de geração e partilha de saberes e é aqui que está o desafio que hoje enfrentamos nesse diálogo muito mais humanizado.

2. Crise Pandémica, Emergência Climática, Reparação Histórica e Justiça Social

No decorrer da pandemia temos sido confrontados com realidades que julgaríamos impensáveis em pleno século XXI, nomeadamente o incremento de formas flagrantes de discriminação social e novas formas de apartheid (Rede TVT, 2021). A pandemia fez emergir de modo mais dramático as desigualdades sociais e tornou ainda mais urgente a consciencialização da necessidade de transformação social, dando novo ímpeto a diversos movimentos, nomeadamente o movimento para a ciência aberta, no sentido de proporcionar condições de fruição cultural e acesso ao conhecimento através de meios digitais. A digitalização de documentos que até aqui estavam confinados em museus e bibliotecas permitiu uma ampla difusão de obras que durante muito tempo estiveram na sombra e que agora são resgatadas e lidas à luz das preocupações do nosso tempo, trazendo novas questões para o debate público. Além disso, as novas tecnologias de comunicação têm constituído uma plataforma de criação e de disseminação de ideias e intervenções artísticas que têm contribuído para dar novo ímpeto às demandas de reparação histórica e de justiça climática, sanitária e alimentar. A reparação histórica implica um trabalho de repensar e de reescrever a história da humanidade (cf., Chakrabarty, 2021; Macamo, 2021), a história da ciência e o diálogo entre diversos saberes. Mais do que nunca, é necessário que a produção do conhecimento seja um processo mais envolvente e participativo, dentro e fora da academia.

Em novembro de 2021, passados 2 anos desde a realização da entrevista que deu origem à primeira parte deste texto, encontrámo-nos de novo, desta vez via Zoom, para uma conversa durante a qual abordámos os desafios que se colocam na produção de conhecimento, reparação histórica e justiça social no atual contexto planetário.

RC: Algumas das questões que abordámos na conversa realizada antes do eclodir da pandemia de COVID-19 ganharam ainda mais pertinência no quadro que estamos atualmente a viver, nomeadamente no que concerne à produção científica, quem produz conhecimento, a quem são dadas condições para essa produção, quem é reconhecido nessa produção e o modo como os benefícios do conhecimento são distribuídos. Como referiste na altura, muitas vezes as pessoas entrevistadas aparecem simplesmente como informantes e não como produtoras de conhecimento, invisibilizando assim os saberes que são transmitidos de geração em geração e que muitas vezes são patenteados por terceiros, conduzindo a flagrantes injustiças e esquecimentos.

MB: São formas de olhar o mundo e como a produção científica se coloca perante essas visões do mundo. Como é que as sociedades estão a ser confrontadas com transformações que em muitos casos decorrem da própria ação humana, da qual não se teve cuidado na sua gestão, mas por outro lado também como sociedades que nunca tiveram uma ação predatória acabam por ser vítimas de toda a ação predatória. Como criar vínculos de comunicação, solidariedade e partilha de instrumentos que se fundamentam quer a partir do saber científico quer do saber popular? Há coisas muito desafiantes como as vacinas, o passaporte digital, a economia, as questões de proteção social, o papel do Estado...

RC: Quando se fala em reparação histórica, tende-se a focar no passado e não tanto na construção do futuro3. A pandemia tornou mais urgentes diferentes formas de reparação, desde as dimensões materiais às simbólicas.

MB: Temos de trazer a dimensão de preocupação económica e afins, mas a questão simbólica é mais produtiva, e aí pode-se resgatar o património histórico, o património cultural, os saberes associados. Por exemplo, como a cultura do arroz foi integrada na cultura nas Américas através da escravatura e como isso contribuiu para a transferência de saberes sobre a segurança alimentar. Quando isso é reconhecido há uma questão mais complexa que é a questão da soberania alimentar. São exatamente esses povos que partilharam os saberes que agora estão desprovidos de capacidade para produzir alimentos saudáveis e estão numa situação de injustiça ao acesso de produtos alimentares. Trazer isso relaciona-se com a questão da propriedade intelectual... Isso é um assunto muito complexo que é necessário problematizar.

RC: Por exemplo, o movimento da ciência aberta ganhou novo ímpeto. No entanto, a questão não deve ser reduzida apenas ao acesso enquanto consumidores de conhecimento, mas o reconhecimento de que se é produtor de conhecimento científico. É preciso também questionar os binarismos, por exemplo, entre o que se considera conhecimento científico e conhecimento “endógeno”.

MB: Eu prefiro a designação de saberes tradicionais, que é mais amplo que endógenos. Estive agora no Alentejo e vejo claramente como as multinacionais esmagam as produções familiares... Dentro da tradição, há o moderno, há processos de inovação dentro da própria tradição, o tradicional nem sempre é oposto do moderno, o que difere são as formas de inovação - a questão é em que medida a inovação cria ou desapropria as pessoas.

A economia de mercado, as várias transições económicas acabaram por fragilizar a estrutura do saber tradicional. Por exemplo, os programas de ajustamento estrutural criaram situações de extrema desigualdade. Com a COVID-19 estamos agora a lidar com as consequências desse modelo económico. Os processos políticos que condicionaram o económico, o modelo neoliberal, tanto em África [e.g., Lopes & Kararach, 2020] como na América do Sul, e também no sul da Europa... Os efeitos perversos do modelo económico e laboral que vemos em grandes explorações de monoculturas intensivas são bem visíveis... São processos que se traduzem no sofrimento e destruturação das sociedades.

RC: De facto, as assimetrias na distribuição de recursos materiais e simbólicos tornaram-se bastante evidentes durante a pandemia. As desigualdades sociais traduzem-se também na economia da atenção, contribuindo para reforçar estereótipos sociais. Isso tem impacto no modo como investimos o nosso tempo quando queremos conhecer, saber sobre o mundo... Nomeadamente naquilo que lemos e quem lemos... Para além, disso os sistemas de referenciação científica muitas vezes reforçam assimetrias, nomeadamente as assimetrias linguísticas, que priorizam as publicações em inglês, o que contribui para focar a atenção nos “grandes centros” científicos e invisibilizar a produção de conhecimento das chamadas periferias4.

MB: Daí a importância de combater as tais hierarquias hegemónicas do conhecimento. É preciso combater a amnésia histórica e tornar o processo de produção do conhecimento mais participativo e envolvente. A reparação histórica implica pensar como construir o futuro juntos e preservar a diversidade biológica e cultural. Implica refletir como o passado histórico interfere na nossa vida do dia a dia em todas as suas dimensões e construir novo conhecimento em diálogo.

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado no âmbito do projeto MigraMediaActs - Migrações, Média e Ativismos em Língua Portuguesa: Descolonizar Paisagens Mediáticas e Imaginar Futuros Alternativos (ref. PTDC/COM-CSS/3121/2021), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

Referências

Chakrabarty, D. (2021). The climate of history in a planetary age. University of Chicago Press. [ Links ]

Communitas. (2020, 13 de fevereiro). Miguel de Barros: A produção de conhecimento deve ser “mais envolvente”. https://www.communitas.pt/ideia/miguel-de-barros-a-producao-de-conhecimento-deve-ser-mais-envolvente/ Links ]

Cunha, A. S., Barros, M. de., & Martins, R. (Eds.). (2018).“Hispano-lusophone” community media: Identity, cultural politics and difference. InCom-UAB Publicacions. [ Links ]

García-Jiménez, L., & Simonson, P. (2021). Roles, aportaciones e invisibilidades femeninas en el campo de la investigación en comunicación. Revista Mediterránea de Comunicación/Mediterranean Journal of Communication, 12(2), 13-15. https://www.doi.org/10.14198/MEDCOM.20163 [ Links ]

Licata, L., Khan, S., Lastrego, S., Cabecinhas, R., Valentim, J. P., & Liu, J. H. (2018). Social representations of colonialism in Africa and in Europe: Structure and relevance for contemporary intergroup relations.International Journal of Intercultural Relations, 62, 68-79. https://doi.org/10.1016/j.ijintrel.2017.05.004 [ Links ]

Lopes, C., & Kararach, G. (2020). Structural change in Africa. Misperceptions, new narratives and development in the 21st century. Routledge. [ Links ]

Macamo, E. (2021). Unmaking Africa - The humanities and the study of what? History of Humanities, 6, 381-395. https://doi.org/10.1086/715863381 [ Links ]

Merton, R. K. (1968). The Matthew effect in science. The reward and communication systems of science are considered. Science, 159(3810), 56-63. https://doi.org/10.1126/science.159.3810.56 [ Links ]

Rede TVT. (2021, 13 de dezembro). Fechamento de fronteiras para a África é como um “novo apartheid” | Mia Couto no BdF Entrevista [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=41DJaEXIKBcLinks ]

Rossiter, M. W. (1993). The Matthew Matilda effect in science. Social Studies of Science, 23, 325-341. https://doi.org/10.1177/030631293023002004 [ Links ]

1Um pequeno excerto desta entrevista, com captação e edição de som e imagem por Vanessa Cortez, pode ser visionado no think tankCommunitas (2020).

2A situação alterou-se com o novo governo em 2020 e mantem-se a baixa representatividade das mulheres no atual governo, que entrou em funções em 2021.

3A este propósito ver, por exemplo, o estudo de Licata et al. (2018) sobre as representações sociais da colonização e atitudes face à reparação histórica, junto de estudantes do ensino superior em diversos países africanos e europeus.

4Além disso, frequentemente, o contributo das pessoas que estão em situações profissionais mais precárias na estrutura das organizações científicas (por exemplo, bolseiras e tarefeiras) não é devidamente reconhecido em termos de autoria, nem o contributo das pessoas que fazem as ilustrações e o design de obras científicas, mas cujo papel é por vezes determinante nos processos de criação e difusão científica. As desigualdades de género e outras tornam esta questão ainda mais complexa (cf., Merton, 1968; Rossiter, 1993; García-Jiménez & Simonson, 2021).

5The think tank Communitas (2020) features a short excerpt of this interview, with sound and image and editing by Vanessa Cortez.

6The situation changed with the new government in 2020 and the low representation of women in the current government, which took office in 2021, remains.

7On this subject, refer to the study by Licata et al. (2018) on the social representations of colonisation and attitudes towards historical redress among higher education students in various African and European countries.

8Moreover, the contribution of people in more precarious professional situations in the structure of scientific organisations (e.g. fellows and temporary workers) is often not properly recognised in terms of authorship. Nor is the contribution of people who make illustrations and design the scientific works, but whose role is sometimes decisive in scientific creation and dissemination processes. Gender and other inequalities make this issue even more complex (cf., Merton, 1968; Rossiter, 1993; García-Jiménez & Simonson, 2021).

Recebido: 02 de Dezembro de 2021; Aceito: 24 de Fevereiro de 2022

Rosa Cabecinhas é docente do Departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho e investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Os seus principais interesses de investigação conjugam as áreas da comunicação intercultural, memória social, representações sociais, identidades sociais e discriminação social. É autora da obra Preto e Branco: A Naturalização da Discriminação Racial (2017, 2.ª edição), coautora da obra De Outro Género: Propostas Para a Promoção de um Jornalismo Mais Inclusivo (2014) e coeditora de diversos livros e números especiais de revistas científicas, entre as quais se destacam Comunicação Intercultural: Perspectivas, Dilemas e Desafios (2017, 2.ª edição), Cinema, Migrações e Diversidade Cultural (2019) e (In)Visibilidades: Imagem e Racismo (2020). Email: cabecinhas@ics.uminho.pt Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal

Miguel de Barros é licenciado em sociologia e pós-graduado em planeamento (Instituto Universitário de Lisboa), editor e investigador guineense. É cofundador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral e membro do Conselho de Pesquisa para as Ciências Sociais em África. Desde 2012, é diretor executivo da organização não governamental guineense ambientalista Tiniguena. Tem desenvolvido pesquisas nas áreas da juventude, voluntariado, sociedade civil, meios de comunicação social, direitos humanos, segurança alimentar, migração humana, literatura, mulheres rurais, racismo e música rap. Recentemente foi distinguido com o prémio pan-africano humanitário em liderança na investigação e impacto social. É autor da obra Juventude e Transformações Sociais na Guiné-Bissau (2016) e coautor de A Sociedade Civil e o Estado na Guiné-Bissau: Dinâmicas, Desafios e Perspetivas (2015), Tecendo Redes Antirracistas: Soberania Intelectual (2020); Media Freedom and Right to Information in Africa (Liberdade de Imprensa e Direito à Informação em África, 2015); Sociedade Civil, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (2014), A Participação das Mulheres na Política e na Tomada de Decisão na Guiné-Bissau: Da Consciência, Perceção à Prática Política (2013). Email: miguel.m.debarros@gmail.com Morada: Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral, Bairro de Bôr, Bissau, Guiné-Bissau

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