SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44Desconexão Digital e Jovens Portugueses: Motivações, Estratégias e Reflexos no Bem-EstarOs Líderes Partidários Portugueses no Twitter: Interações e Estratégias de Hibridização Mediática índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Comunicação e Sociedade

versión impresa ISSN 1645-2089versión On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.44  Braga dic. 2023  Epub 17-Oct-2023

https://doi.org/10.17231/comsoc.44(2023).4612 

Varia

Teoria da Tecnomagia: Feitiços, Êxtase e Possessões na Cultura Digital

ii Laboratoire d’Études Interdisciplinaires sur le Réel et les Imaginaires Sociaux, Université Paul-Valéry Montpellier 3, Montpellier, França


Abstract

The rituals, ceremonies and effervescence of the sacred manifest themselves in digital culture not only through the proliferation of new religious cults. They do so through the online actualisation of traditional religious forms but also the spiritual elevation of objects (Houtman & Meyer, 2012), practices (Carolyn, 2014) or ephemeral, playful and dreamlike images (Susca, 2016). In most cases, they involve figures that evoke the most sensitive and immaterial aspects of experience: its flesh (Esposito, 2004; Henry, 2000) and its imaginary (Durand, 1992). This is the actualisation of what Durkheim (2008) called the “social divine”. We are thus witnessing the proliferation of a multitude of small churches characterised by a low degree of institutionalisation and a high symbolic and emotional density (Maffesoli, 2020). In this sense, digital sociality acquires a decisive value in transfiguring ordinary life, the realm of the profane, into a mythical and mystical experience, brushing up against the sacred in its wildest form (Bastide, 1975). Indeed, the relationships that emerge from these media landscapes reveal a capacity to associate what is separate in time and space, previously belonging to the spiritual and transcendent orders (Davis, 1999). Thus, the culture of connection and sharing actualises in secular spheres a whole set of symbolic experiences reminiscent of religious mysteries (Campbell, 2012). This imaginary modifies the modern relationship between technology and society according to a paradigm that could be called “technomagic”.

Keywords: technique; magic; daily life; imaginary; rites

Resumo

Os rituais, as cerimónias e a efervescência do sagrado manifestam-se na cultura digital, não só através da proliferação de novos cultos religiosos. Fazem-no através da atualização online de formas religiosas tradicionais, mas também da elevação espiritual de objetos (Houtman & Meyer, 2012), práticas (Carolyn, 2014) ou imagens efémeras, lúdicas e oníricas (Susca, 2016). São, na maior parte dos casos, figuras que evocam os aspetos mais sensíveis e imateriais da experiência: a sua carne (Esposito, 2004; Henry, 2000) e o seu imaginário (Durand, 1992). Tratase da atualização daquilo a que Durkheim (2008) chamou o “divino social”. Assistimos assim à proliferação de uma miríade de pequenas igrejas que se caraterizam por um baixo grau de institucionalização e uma elevada densidade simbólica e emocional (Maffesoli, 2020). Neste sentido, a socialidade digital adquire um valor decisivo na transfiguração da vida quotidiana, do reino do profano, numa experiência mítica e mística, roçando o sagrado na sua forma mais selvagem (Bastide, 1975). De facto, as relações que emergem destes panoramas mediáticos revelam uma capacidade de associar o que está separado no tempo e no espaço, anteriormente pertencente às ordens espiritual e transcendente (Davis, 1999). Assim, a cultura da conexão e da partilha materializa em esferas seculares todo um conjunto de experiências simbólicas que lembram os mistérios religiosos (Campbell, 2012). Este imaginário modifica a relação moderna entre a tecnologia e a sociedade num paradigma que se poderia designar por “tecnomágico”.

Palavras-chave: técnica; magia; vida quotidiana; imaginário; ritos

1. Introdução

Ciberespaço. Alucinação consensual vivida diariamente por milhares de milhões de operadores legítimos em todas as nações, por crianças a quem são ensinados conceitos matemáticos... Representação gráfica de dados extraídos dos arquivos de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável. Linhas de luz que se estendem no não espaço da mente, aglomerados e constelações de dados. Como luzes de cidade recuando. (Gibson, 1988, p. 111)

Hoje, a religião empenhada e a ciência ateia travam uma das suas muitas disputas... Mas suspeito que o espetáculo a observar é o contínuo e antigo jogo de sombras entre a magia e a tecnologia. (Davis, 2011, p. 11)

As comunhões com conotações pagãs (Cowan, 2005) celebradas pelos novos ritos dos ambientes digitais online alimentam uma forma de crença baseada na partilha de um segredo (Simmel, 1998), de uma ordem emocional (Weber, 1971) e de um estilo de vida comunitário (Virno, 2002). Para além das características dos mitos mobilizadores que de alguma forma ocupam um lugar nos fluxos da comunicação contemporânea, o corpo social e o próprio corpo são sempre celebrados através das liturgias digitais. Os próprios dados da vida profana (Turner, 1974), para além da secularização e do desencanto, são sacralizados: a carne com a sua voluptuosidade (Attimonelli & Susca, 2017), a matéria no seu caráter sensível e sensitivo (Perniola, 1994). Os média tornam-se os novos tótemes do estar juntos (Susca, 2011). De facto, quando os meios de reprodutibilidade técnica extirpam a aura da obra de arte (Benjamin, 2000), o público torna-se gradualmente o seu objeto e sujeito. Revela-se como protagonista de um processo de estetização (Lipovetsky & Serroy, 2013) que forma um todo com a sua sacralização.

O culto da internet (Breton, 2000) e a sua ideologia (Musso, 2003) remetem para novas formas de fetichismo, utopia e adesão não racional. Mostram até que ponto os dispositivos em questão não constituem simplesmente tecnologias ao serviço de um projeto político-económico pragmático ou funcional. Constituem, sim, um território simbólico capaz de canalizar e exprimir o domínio da “vida improdutiva” (Bataille, 2003; Joron, 2010), nomeadamente desejos, sensibilidades e impulsos irredutíveis ao princípio orientador do progresso e das grandes narrativas tradicionais.

Neste sentido, propomo-nos verificar, sob a perspetiva da sociologia do imaginário, em que medida e de que formas a opinião pública que fundou a cultura ocidental e moderna (Habermas, 1962/1995) dá lugar a uma “emoção pública”, onde a razão já não dirige os sentidos, mas onde os sentidos são convidados a pensar (Susca, 2016). É possível observar uma transição de um paradigma centrado no indivíduo e na abstração para um paradigma baseado no “nós” e na empatia (McLuhan, 1964/2004), em que o modelo espaciotemporal da ubiquidade, da proxémica e da sincronicidade se torna primordial. A diferença fundamental relativamente aos anteriores é que as novas formas de adesão e crenças coletivas não são projetadas em nenhum outro lugar - a sociedade perfeita, a salvação, o Céu ou a Terra. São sacralizadas pelo facto de permitirem aos indivíduos ligarem-se, fundirem-se e vibrarem em uníssono. Permitem-lhes mergulhar no mundo da forma mais intensa e incorporada possível, mesmo que estas experiências estejam frequentemente ligadas à ordem do consumo (Obadia, 2013) e da efemeridade (Pace, 2018).

Neste contexto, a fé já não está orientada para o futuro e não se baseia em conceitos e números abstratos. Passa a ser uma experiência enraizada no aqui e agora (Haynes, 2012), na vida quotidiana (Castells, 1998), dedicada, por um lado, às dimensões material e sensível e, por outro, a um universo imaterial próprio da fantasia, do sonho e até da ficção científica. Será oportuno descrever e registar a mudança de paradigma entre a “tecnologia” tal como foi concebida desde o Renascimento até meados do século XX (Simondon, 2014) e a tecnomagia contemporânea. Destacaremos as figuras emblemáticas dessa mudança para compreender essa transição.

2. A Aurora do Homem

No seu apogeu, a técnica continua a repercutir a magia de uma maravilha inquietante, com caraterísticas espantosas e assustadoras. Os seus desempenhos de vanguarda são constantemente acompanhados de um cheiro de obsolescência para o ser humano, um indício de excesso, deixando já uma ferida. Assim, o indivíduo transborda para uma corporeidade situada fora do seu enquadramento orgânico, experimentando tanto os limites da sua própria condição como os seus possíveis excessos, ao ponto de acariciar, ou mesmo desafiar, as faculdades inerentes ao divino. Nos arquétipos e estereótipos em que se atualiza, a mitologia testemunha-o com uma cadência sustentada, enquanto o corpo social metaboliza constantemente as suas marcas nas tramas da vida quotidiana. O místico, o estético e o sensual permeiam todas as técnicas (Simondon, 2014) e relativizam as suas dimensões lógicas e funcionais.

Stanley Kubrick cristalizou na perfeição o espírito e a genealogia da tecnologia com a notável cena de 2001. A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço; 1968), onde aqueles que supostamente seriam os nossos antepassados ficaram deslumbrados com o aparecimento de um monólito. Assombrados e enfeitiçados pela sua grandeza, após uma fase de pânico e confusão, acabaram por dançar à volta deste novo tóteme. Hoje, poderíamos sugerir, por outras palavras, que comungavam, que se punham em comum, geravam uma comunidade a partir de um artifício técnico de elevada densidade simbólica. Segundo o grande realizador, e muitos antropólogos, sociólogos e filósofos da tecnologia, esta é a aurora do homem. É uma origem controversa porque, ao mesmo tempo que liga o indivíduo ao outro, cada técnica serve também para separar.

Neste jogo de forças, encontramos a nossa longa história de contradições, esplendores e misérias, conquistas e abusos (Abruzzese & Borrelli, 2000). Os seus vestígios revelam-nos que a inovação técnica, quando entra na cena social, é primeiro acolhida como um dispositivo mágico, devido à sua capacidade de encantar o mundo, de unir o que está dividido e de atribuir poderes inauditos aos seres humanos, fazendo-os tocar na ordem divina e cósmica (Mauss, 2004); antes e depois deste intervalo, o tempo é de estudo, de cálculo e até de racionalização.

Ao aplicar este esquema a qualquer época, ao longo da história, é possível identificar uma alternância cíclica do espírito que domina o sistema dos objetos e uma mudança entre eras em que, por vezes, prevalece um princípio utilitário - isto é, a capacidade de intensificar a ação do homem sobre o mundo, o domínio da natureza e a ação instrumental. Em contrapartida, por vezes a trindade dos valores estéticos, religiosos e mágicos prevalece: a beleza mais do que a utilidade, a comunhão mais do que o contrato, a vibração extática mais do que o interesse. No primeiro caso, a mobilização social em torno da descoberta do momento tende para a realização de um objetivo - o progresso, a riqueza, a conquista, entre outros - enquanto, no segundo, constitui um fim em si: a tecnologia é apenas o elo, o cadinho onde o social se concretiza e “acontece”. Aqui, assistimos a uma comunhão difusa, a uma participação mística, não só no seio de um grupo específico, mas também entre este, a Terra e o cosmos. Para compreender esta amálgama e aprofundar a trama de correspondências sempre tecida entre corpo e técnica, natureza e cultura, sonho e realidade material, convém refletir sobre uma perspetiva genealógica.

3. Do Totemismo à Web

Inicialmente, tecnologia, magia e religião eram indissociáveis, de tal forma que o mais alto grau de experiência mística correspondia naturalmente ao mais subtil nível de ação tecnológica e de arte oculta (Graf, 1994). O totemismo, prática de religião tribal que permitia a um grupo unir-se em fricção extática com o divino e a natureza que o rodeava (Durkheim, 2008), foi o símbolo emblemático da sinergia entre estes três fatores. O processo civilizacional (Elias, 1973) provocou posteriormente a rutura radical desse paradigma. A partir do Renascimento, em particular, após a invenção da perspetiva e daquilo a que os arquitetos chamaram o “ponto de fuga” (Alberti, 2015), o sujeito passou por uma progressiva separação simbólica e física de toda a sua alteridade (Dumont, 1983).

Como objeto de estudo, como materiais a moldar, como paisagem a dominar e a construir, tudo o que se afasta da bolha individual se torna estranho, quase desconfiado do que esconde e não pode ser reduzido à ordem da razão. A modernidade e a tecnologia que caracterizam, sobretudo, a imprensa (McLuhan, 1966) geraram um processo de cisão entre as palavras e as coisas (Foucault, 1966), entre o corpo e a mente, entre o sujeito e o objeto, conduzindo a uma racionalização progressiva da existência, que leva ao desencantamento do mundo (Weber, 1964). Perdeu-se, assim, a anima mundi evocada por Giordano Bruno (2000) para designar os laços invisíveis, mas sólidos, “vinculis”, entre os indivíduos e a natureza, o Céu e a Terra, o orgânico e o inorgânico.

A efervescência religiosa foi assim extirpada do corpo da tribo e institucionalizada pela transcendência dos textos sagrados: a Bíblia foi o primeiro livro impresso e, com ela, inaugurou-se o longo processo de abstração do mundo e de individualização; a magia foi relegada para o submundo e estigmatizada como religião de massas ou nevoeiro da consciência; a tecnologia foi apresentada como meio de domínio do homem sobre a natureza, instrumento capaz de resolver problemas e ferramenta eficaz para acentuar a disjunção com o “outro”, ou para estabelecer com ele uma relação baseada num contrato, interesse ou projeto. Foi assim que surgiram os Estados-nação e as suas fronteiras intransponíveis e que se difundiram as ciências com os seus conhecimentos prescritivos e métodos inacessíveis à maioria dos indivíduos. Foi assim que se impôs a casta elitista de guardiões do mundo político, religioso, técnico e artístico.

O esplendor desta época trazia consigo, como a última explosão de fogo de artifício, o seu declínio, o anúncio da sua catástrofe. Como Marshall McLuhan observou nos anos 60, a difusão social dos novos média eletrónicos é o agente da deflagração da cultura moderna e da sua ordem política, social, identitária e económica (McLuhan, 1977). Embora essa invenção tenha surgido nos laboratórios tecnocientíficos desenvolvidos nos séculos XVIII e XIX, o seu uso e consumo - ou seja, a apropriação social de que é objeto - foram direcionados contra as intenções dos seus criadores, como o monstro criado pelo Dr. Frankenstein, para realizar os seus sonhos de glória.

A manipulação social da inovação tecnológica é o principal detonador desta cadeia de efeitos perversos (Boudon, 1977), no coração daquilo a que Guy Debord (1992) chamou “a sociedade do espetáculo”. Para compreender todo o seu significado, basta olhar para a parábola da internet (Flichy, 2001). Na verdade, inventada para fins militares e académicos, transformou-se ao ser inserida numa plataforma onde são experimentadas muitas formas de colaboração, ligação e inteligência sensível com uma forte conotação anti-moderna. Estas são não verticais, não racionais, não ideológicas, separadas das elites, impertinentes relativamente ao direito estabelecido e disjuntivas em relação à ordem das nações. A web, em particular, com as suas encarnações contemporâneas sob a forma de redes sociais, mundos de videojogos, websites de encontros e trocas afetivas, simbólicas ou sexuais, tornou-se o portal de imaginários e práticas cujo aspeto não lógico, onírico e festivo se sobrepõe a tudo o resto (Susca, 2016). Isto obriga as elites do setor a esconder cada vez mais o aspeto político e económico que preside à sua ação. Vemos constantemente como é difícil para o poder instituído manter uma parte tão amaldiçoada da ordem produtiva (Bown, 2015).

Existe um claro conflito entre a tecnociência, a economia política e a política, por um lado, e os utilizadores da web, por outro, para quem o que conta no ciberespaço é, sobretudo, o mistério da conjunção, a dança das máscaras, o preço das coisas sem preço e o poder do imaginário. Aqui, a esfera pública desagrega-se numa multidão de encontros afetivos e cognitivos em rede, cada um com a sua própria ordem ética que se sobrepõe à moral universal, aos seus sentimentos e paradigmas. É por isso que o download ilegal nunca foi tão popular (Muso, 2018): a maioria dos cibernautas viola a lei dos direitos de autor espontaneamente (Gulmanelli, 2003), sem escrúpulos, fugindo aos seus deveres de cidadãos para preferir o hedonismo e o prazer de se unir ao grupo através da partilha de informações, símbolos, sons e afetos. Esta mesma vocação incita todos a reduzirem sub-repticiamente o seu horário de trabalho e a aproveitarem os seus ecrãs para conversar no Telegram, publicar fotografias no Instagram, namoriscar no Tinder ou no Grindr, seguir jogadores no Twitch ou vaguear pelas tendências do TikTok.

Estes abusos não se limitam ao entretenimento, mas envolvem também um grande sacrifício: a dádiva do sujeito. Quando se publicam fotografias íntimas nas histórias, quando as pessoas passam pelos rituais de envio de nudes ou até, de forma mais mundana, quando deixamos de desfrutar de uma refeição quente, de um beijo ao pôr do sol ou de uma atuação de um cantor ao vivo para tirar fotografias e publicá-las online, essa experiência é cada vez menos uma fenomenologia individual do que coletiva e conetiva. Não a vivo se o outro não estiver presente para a tornar numa história comum. Não importa que a Google, o Facebook ou a Microsoft estejam a devorar as nossas existências transformadas em dados e mercadorias (Sadin, 2015), traindo os impulsos sociais que animam a socialidade digital. O que importa para os utilizadores em questão é o prazer paradoxal de estar ligado aos outros, ou mesmo depender da vida dos outros.

Não há dúvida de que a dialética entre submissão e liberdade está em curto-circuito, uma vez que estamos perante uma alienação voluntária, talvez inconsciente, comparativamente à era industrial. O objetivo é, sem dúvida, estabelecer e corroborar uma série de pactos e solidariedades entre pares: os amigos dos jogos, das festas, dos truques, das ondas, dos fetiches, entre outros. Embora possa parecer contraditório, ao mesmo tempo que cedem facilmente informações sensíveis ao GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), os internautas organizam-se em comunidades eletrónicas em e para si próprios, em nome de um gosto partilhado, de um ícone em movimento ou de uma emoção efémera. Descobrem o poder dos interstícios ou como ser livre sem liberdade. Fazem-no sequestrando os códigos instituídos pelos memes, GIFs ou trolls, mas também elaborando mundos falsos que são mais reais do que a realidade graças à sua capacidade de induzir uma vibração comum.

A tecnologia é transfigurada numa ferramenta capaz de aperfeiçoar e socializar as táticas enraizadas da astúcia popular (De Certeau, 1999). Por outras palavras, o conjunto de práticas constantemente utilizadas pelo corpo social para se defender do olhar agressivo e pedante do poder (Maffesoli, 1988). A mudança a que assistimos tem as caraterísticas de uma verdadeira mutação antropológica, onde o que antes se exprimia em termos de “resistência” se traduz agora em “recriação” e “re-criação” (Susca & Bardainne, 2008). Como os novos média favorecem a manipulação da linguagem e da ordem simbólica a partir da sua gramática básica (Lévy, 1994), uma tendência para inverter o papel entre produtor e consumidor de conteúdos (Jenkins, 2006), bem como a ligação de sensibilidades que antes eram demasiado pequenas e dispersas para se manifestarem operacional e percetivelmente (Castells, 1998). Desta forma, altera-se o mapa do poder e a face da tecnologia.

4. Emoção Pública

A técnica deixa de ser a arte do logos, o instrumento daquilo a que Heidegger (1958) chama “pensamento calculista”, “tecnologia” para se tornar “tecnomagia” (Les Cahiers Européens de l’Imaginaire, número “Technomagie”), um tóteme em torno do qual cada um, com as suas redes, máscaras e fantasias, experimenta uma espécie de êxtase místico que é simultaneamente pura dança - uma celebração do aqui e agora - e um voo em direção a algo maior do que si próprio. O vínculo nascido desta condição já não se baseia num contrato racional e abstrato, o “contrato social”, mas num pacto onde a emoção, as paixões e os símbolos partilhados se tornam os novos eixos do estar juntos (Maffesoli, 2007), os pressupostos de toda a fusão e efusão conectiva. É a emergência de uma sensibilidade cultural na qual o equilíbrio entre razão e sentido se inverte a favor deste último, relativizando o paradigma do pensamento racional e abstrato que alimentou a dinâmica da modernidade ocidental.

A experiência elaborada no alvéolo da cultura digital revela uma sinergia sem precedentes entre a mente e os sentidos, o visível e o invisível, a ação racional e o pensamento mágico. O culto aos diversos fetiches que sustentam o panorama cultural contemporâneo proporciona, a cada indivíduo envolvido, um intenso estado de êxtase e encantamento. Resulta também numa consciência com uma memória ligada e um conhecimento incorporado altamente refinado. A inteligência aumentada habilitada por estas arquiteturas de bytes e neurónios retira a sua força de um intelecto geral (Marx, 1968), o pensamento coletivo (Virno, 2002), no qual o cérebro de cada indivíduo representa um nó, um ponto de passagem de informação precedido e ultrapassado por uma matriz holística - que inclui imensas bases de dados, algoritmos poderosos e inteligência artificial - maior do que o próprio sujeito. O cérebro individual é exteriorizado (De Kerckhove & Miranda, 2014), pelo que tende a esquecer e até a esquecer-se de si próprio por estar imerso no momento, tecendo, navegando e reagindo a imposições que lhe permitem manter-se ligado aos seus contactos para além do espaço e do tempo. De certa forma, a ascensão do sistema é o corolário da perda do indivíduo racional, autónomo e independente concebido pelo humanismo (Attimonelli & Susca, 2021).

Os utilizadores do Instagram e do TikTok contemplam histórias ou reels durante horas. Entregam-se à sua narrativa enfeitiçante, enquanto têm à sua disposição uma imensa quantidade de informação que lhes permite decifrar e contextualizar as subtilezas das histórias que observam. Os fãs do Twitch contemplam os seus heróis numa forma de interpassividade que, tal como a hipnose digital, induz uma espécie de suspensão da consciência (Zizek, 2004). Assim, não precisam nem querem jogar, pois o jogo consiste precisamente em observar os outros jogar. Trata-se de um meta-jogo cujo verdadeiro trunfo é a sua capacidade de atualizar a socialidade, transformando o GTA ou o League of Legends em pretextos para entrar em contacto com outras pessoas a partir da intersecção entre o quotidiano no seu aspeto mais anódino e a fantasia no seu estado paroxístico. Estas práticas foram radicalizadas durante a pandemia de COVID-19, a ponto de se tornarem lugar das interações sociais por excelência (Joron, 2020). A paixão, o vício e o frenesim que as caracterizam não dizem respeito apenas aos fãs ou simples utilizadores, mas também aos streamers e a qualquer outro produtor de conteúdos que acaba por transmitir e expor a sua vida como uma narrativa audiovisual (Codeluppi, 2015), como parte de uma performance interminável capaz de esgotar e esvaziar o sujeito - de o devolver ao outro (Ferraris, 2016), disponível como obra, dado e objeto de consumo.

Cada um destes fetiches, plataformas e redes, emblemas de uma socialidade profundamente emocional, exorta a uma participação tecnomágica impulsionada por uma efervescência cujo aspeto místico, de contornos não racionais, é significativo. No entanto, apesar destes fluxos encantatórios, os indivíduos reconhecem com uma certa lucidez e competência a mitologia pela qual se deixam deslumbrar. De certa forma, sonham conscientes de que sonham. Além disso, é fácil constatar que as cenas que refletem a cultura emergente entre a web e a rua conhecem ao pormenor a música techno que as envolve num estado de transe (Attimonelli, 2018). Distinguem com precisão os detalhes dos gadgets que distinguem o seu estilo, selecionam cuidadosamente os reels ou histórias perante os quais se abandonam durante horas.

Assistimos à passagem da opinião pública, com as suas conotações racionais e abstratas, para a emoção pública, onde a inteligência se torna sensível (Maffesoli, 2005) e integra no quadro mental a carga imaginária, sagrada e afetiva negligenciada ou mesmo proibida por uma grande parte da cultura moderna. Há já alguns anos que nas redes sociais, por exemplo, “reagimos” com corações, emoticons, GIFs, vibes e memes antes de pensar. Por isso, somos levados a escolher e a pensar com os nossos sentidos, antes mesmo de o fazermos com um raciocínio abstrato, inconscientemente, tal como acontece quando nos apaixonamos ou fechamos um negócio, movidos por uma impressão favorável, uma intuição inefável.

5. Imaginário, Mitos e Ritos

Marshall McLuhan (1964/2004) foi o primeiro a antecipar as repercussões mágicas e tribais das nossas sociedades, sugerindo, com metáforas poderosas, que, na nossa era eletrónica, assumiríamos toda a humanidade como a nossa pele. O nosso corpo seria assim o território, o protagonista inconsciente de um duplo processo que, embora aparentemente invisível - justamente porque não o conseguimos distinguir com precisão -, tem um impacto extraordinário nas teias da nossa cultura. Desde o domínio do conhecimento até às relações interpessoais e às relações de prazer.

Sem o sabermos, estamos a tornar-nos ciborgues, ou melhor, como defende Andy Clark (2004), nascemos naturalmente ciborgues. Por um lado, expandimos o nosso sistema nervoso central para além dos limites do nosso cérebro - para memórias externas, “nuvens”, álbuns de redes digitais e afins - e, por outro lado, estamos a reabsorvê-los no nosso corpo por meio de dispositivos portáteis, microtecnologias e computadores vestíveis. Tal acontece de forma natural e inconsciente: sabemos recuperar os pormenores da nossa existência num assistente pessoal digital, rimos com a Alexa, conseguimos traduzir, narrar e engrandecer a nossa vida em histórias com hashtags, GIFs e autocolantes, mas desconhecemos o processo técnico que o torna possível.

A tecnologia e a magia diferenciam-se principalmente pela existência, na primeira, de uma relação consistente entre causa e efeito, entre o esforço produzido e o resultado alcançado. Na era da tecnomagia, o princípio mecânico ou funcional que serve como base para a ação tecnológica moderna é, pelo contrário, desarticulado. Muito antes da vulgarização dos computadores, Theodore Roszak (1994) já tinha compreendido o poder simbólico dos meios eletrónicos:

a visão é a seguinte: uma pessoa senta-se diante de um ecrã bem iluminado, mexe nas teclas, e vê coisas notáveis passarem no ecrã à velocidade da luz. Palavras, imagens e figuras surgem do nada. Como uma criança, começa-se a acreditar novamente na magia. E porque se está a fazer a magia acontecer, o ato é acompanhado de uma inebriante sensação de poder. Tem-se a cultura de todo o planeta na ponta dos dedos! Todas as bases de dados, bibliotecas, arquivos, filmes, museus de arte, painéis informativos, telefones e aparelhos de faxe do mundo estão nesta caixa. (p. 186)

Entretanto, a caixa tornou-se quase invisível. Além disso, os resultados das nossas interações com os dispositivos digitais que nos rodeiam têm pouco a ver com o comportamento que os desencadeia e parecem antes ser o produto - ou pelo menos a nossa perceção dele - de um mistério, como se a nossa época fosse regida por princípios mágicos provenientes do período anterior ao “iluminismo”:

os comandos digitados no computador são uma espécie de discurso que não comunica, mas que faz com que as coisas aconteçam direta e incontestavelmente, da mesma forma que um gatilho. Por outras palavras, são encantamentos, e qualquer pessoa minimamente sintonizada com as megatendências tecnossociais do momento ( ... ) sabe que a lógica do encantamento está a permear rapidamente o tecido das nossas vidas. (Dibbel, 1993, para. 53)

De acordo com um modelo que transforma as ferramentas que utilizamos em “tecnologias de adjuração” (Bohrer, 2011), quando temos problemas com os nossos dispositivos, muitas vezes num estado de impotência, reações impulsivas e até violentas que lembram discussões com parceiros, amigos íntimos ou familiares, recorremos aos novos mágicos do nosso tempo: os nerds, que parecem ser os depositários de um conhecimento oculto capaz de nos iniciar no novo mundo, onde, parafraseando Shakespeare (1998), somos da matéria de que são feitos os nossos sonhos. Mestres de um universo ininteligível para a maioria dos indivíduos, escondidos nas sombras dos seus quartos e garagens, capazes de decifrar a “metafísica do código” (Josset, 2011), estes especialistas com uma ética hacker são associados no imaginário às figuras do “xamã” (Davis, 1999) ou do “bárbaro” (Les Cahiers Européens de l’Imaginaire, número “La Barbarie”).

Tal como estes últimos são portadores de uma sensibilidade estranha à estabelecida nas instituições modernas de saber e poder. Como sugeriram Wark Mckenzie (2004) e Pekka Himanen (2001) nos seus livros precursores sobre o assunto, o imaginário hacker implica a superação do individualismo, do princípio da propriedade privada do conhecimento e da informação que há muito caracteriza as nossas sociedades. Enquanto arte de fazer, este espírito reavalia a prática de dar através de uma socialidade onde a fronteira entre jogo, paixão e trabalho é esbatida. O resultado é uma série de solidariedades capazes de formar um corpo - melhor ainda, “carne”, carne eletrónica - e de estabelecer formas de saber e de estar juntos baseadas na iniciação e no segredo, com os seus corolários de ritos e mitos que voltam a encantar um mundo económico, científico e político regido pela razão instrumental, pela produção e por outros critérios quantitativos.

6. A Mediatização da Existência

Hoje, mais do que nunca, o imaterial permeia a realidade e molda-a à sua imagem, tornando-se uma verdadeira força material. Aliás, como podemos acreditar que as gerações mais ou menos jovens que passam grande parte do seu dia no Twitch ou no TikTok possam circunscrever e limitar à dimensão digital a experiência vivida nestas plataformas em termos de jogo, socialidade e paixão? A forma de habitar o mundo, de se confrontar com o outro, de conhecer e agir, não pode assentar numa separação esquizoide na qual a cidadania física está de um lado e a vida eletrónica do outro. Se há uma coisa de que podemos ter a certeza - a teatralização do quotidiano está aí para o demonstrar - é que o nosso investimento em paisagens mediáticas é a causa e o efeito de uma nova forma de pensar e de viver - estar lá, estar com - uma nova corporização. Estamos prestes a descobrir os efeitos da implantação de uma “terceira dimensão” no mundo: um sincretismo entre a nossa presença na existência material e a nossa presença imaterial em várias vidas eletrónicas.

Reels na rua, #desafios à beira-mar, corações com as mãos, LOL (laughing out loud; rindo muito alto) de todos os tipos, histórias e selfies por todo o lado: uma série notável e crescente de comportamentos que se desenrolam na realidade física são agora simplesmente publicações de atividades nascidas nas redes sociais. Os usos da fotografia digital, por exemplo, demonstram que a máquina fotográfica e as suas atualizações já não desempenham o papel de testemunhas da realidade, para imortalizar os traços do passado. Tornam-se, sim, dispositivos para a elaboração e a reconstrução social da realidade: constituem uma camada do presente ou do momento na sua revelação ao mundo. Tratase de uma surrealidade que integra, na consciência de cada indivíduo, o olhar e o toque do outro. Por isso, hoje, não há situação, por mais trivial que seja - ou mesmo especialmente trivial - que não seja fotografada. Seja um beijo romântico num ponto turístico, um concerto na Rockstore, uma montra no Supreme, um pôr do sol no Pincio ou no Poke Bowl, estamos prestes a comer e somos todos consumidos pela necessidade e desejo de captar as imagens da nossa experiência. Só depois de a vermos no ecrã e de a partilharmos com as nossas redes, quando recebemos feedback, como gostos ou partilhas, é que sentimos que a vivemos. Ou seja, que ela existe. Caso contrário, não aconteceu.

“Tudo o que era vivido diretamente passou a uma representação”, escreveu Guy Debord (1992, p. 15). Cerca de uma década depois das suas palavras, na sequência da mensagem da indústria cultural (McLuhan & Fiore, 2003) e do longo exercício de mediatização da existência realizado pelo corpo social, a situação alterou-se: o que antes era uma representação torna-se agora o mundo e a imagem traduz-se em experiência. Ao contrário das fantasmagorias que marcaram o advento da era do cinema e da televisão, estamos agora na presença de mundos onde os fantasmas podem ser tocados. Assim, o aspeto tátil da existência e a imaginação são acionados ao mesmo tempo. Foi por isso que nos sentimos tão frustrados com os meses de confinamento que se seguiram à pandemia da COVID-19, quando as nossas vidas ficaram limitadas à dimensão eletrónica através dos ecrãs (Joron, 2020). A história da comunicação de massas habituou-nos, porém, à reversibilidade entre os média e a vida quotidiana, sendo um regenerado pelo outro e vice-versa (Flichy, 1992).

No cinema, o público, como que alucinado, projeta-se no ecrã e deixa-se transportar, segundo a interpretação de Edgard Morin (1957) no seu livro Le Cinéma ou l’Homme Imaginaire (O Cinema ou o Homem Imaginário), para os corpos das estrelas. Posteriormente, a emoção vivida após o deslumbramento com estrelas como Greta Garbo ou Rodolfo Valentino deixa o cinema com o espetador e contamina a vida social, contribuindo para a sua disseminação com imaginários oníricos e sensuais. Por outro lado, no coração do ciberespaço, prolongamo-nos através de máscaras (avatares, nicknames, identidades virtuais, memoji) que nós próprios criámos. Somos assim possuídos e até dominados por formas que nós próprios concebemos. Segundo Derrick de Kerckhove (1995), tornamo-nos criaturas dos artifícios que criámos. Por outras palavras, William Gibson (1988), no seu famoso romance Neuromancer, descreve a vida nos territórios eletrónicos como uma “alucinação consensual” (p. 67).

Neste contexto, os videojogos como Minecraft, Scrap Mechanic, Raft e muitos outros proporcionam cada vez mais a sobreposição entre a figura do jogador e a do arquiteto, seguindo um padrão inaugurado pelo universo virtual Second Life no início dos anos 2000. Os emoticons usados para exprimir as emoções para além das palavras nas paisagens mediáticas são criados e personalizados diretamente pelos utilizadores, como é o caso dos memojis; a narrativa deixa de ser global para se transfigurar, através de reels ou de histórias nas redes sociais, numa auto-narrativa fantasiosa e espetacular que estetiza cada indivíduo no momento em que este se abandona ao outro.

Henry Jenkins (2006) refere no seu livro Convergence Culture (Cultura da Convergência) que muitos fãs começaram a usar a história de Harry Potter como ponto de partida para desenvolver vários universos mágicos em que são simultaneamente os protagonistas e os novos feiticeiros. São vários os modos como se atualiza o processo de magificação na cultura contemporânea, entre muitos outros. Este processo é acompanhado por vários fenómenos, como o crescente recurso à medicina não convencional, à astrologia e às técnicas espirituais new age, bem como a crescente popularidade de filmes, jogos de representação, séries e videojogos como Game of Thrones (A Guerra dos Tronos; 2011-2019), Avatar (2009), The Legend of Zelda (1986), Dungeons & Dragons (1974) e Fantastic Beasts (Animais Fantásticos; 2016). Se pensarmos bem, o sucesso destas narrativas é diretamente proporcional à crise das verdades universais e das grandes narrativas.

Há um surto de neomisticismo a incendiar o panorama social, matizando e até contradizendo as premissas mais racionais e progressistas da sociedade do conhecimento.

Assim, Erik Davis (1999) sugere, revisitando as teorias mais em voga sobre a relação entre cultura e tecnologia, que “atualmente, há tanta pressão sobre a informação que esta estala e extravasa energia, atraindo mitologias, metafísicas e fragmentos de magia arcana” (p. 28). Não somos todos ciborgues, mas todos nos transformamos inconscientemente num pequeno mágico de um mundo novamente encantado onde nos tornamos igualmente sujeitos e objetos de novas possessões, idolatrias e novos sacrifícios.

Os altares do consumo e da comunicação, expoentes máximos da divindade social na sua carne eletrónica, entre dados, arte e mercadoria (Obadia, 2013), tendem a sobrepor-se, em termos de poder simbólico, às catedrais religiosas e às instituições políticas clássicas. Dessacralizam o que era sagrado, sacralizando os imaginários profanos, ao ponto de envolverem de magia o quotidiano, incluindo, ou sobretudo, as suas sombras. Poderíamos mesmo dizer que a cultura contemporânea contribui, para o bem e para o mal - da caveira e dos ossos cruzados à escuridão, passando pela conspurcação, pelo luto e por toda a “estética do mal-estar” (Attimonelli, 2020) -, para integrar a parte maldita evocada por Bataille (2003), marginalizada, se não mesmo reprimida, pelos sistemas socioculturais modernos durante vários séculos na sua tentativa de racionalidade (Weber, 1964).

O que emerge inesperadamente é a natureza do sagrado e os sacrifícios em jogo: as máscaras utilizadas nos teatros contemporâneos sem paredes, espalhadas entre a web e a rua, dançam em torno de novos tótemes em nome do seu prazer, mesmo que efémero. Fazem-no consoante o seu próprio estilo de vida, sem aderir a transcendências ou a projetos incompatíveis com o imaginário do grupo a que pertencem. Os ritos de iniciação para aceder a estes universos não são escritos nem prescritos, mas fazem parte do conhecimento incorporado da comunidade. Os seus códigos têm um cariz oculto; parecem esquivos e opacos para quem não pertence à tribo. Não é por acaso que o discurso dominante sobre estes círculos é tingido de crítica e desprezo.

Importa lembrar, por exemplo, que, numa das suas últimas conferências antes de morrer, em 2016, até Umberto Eco (Lectio Magistralis, Universidade de Turim, 10 de junho de 2015), um dos mais lúcidos intérpretes da cultura de massas, defendia que as redes sociais são o lugar onde todos os tolos têm o direito de falar. Estas plataformas exprimem, incontestavelmente, uma inteligência completamente diferente da promovida pela Deusa da Razão do Iluminismo e instaurada pelo poder e pelo saber modernos desde o século XVIII. Trata-se de uma “razão sensível” (Maffesoli, 2005), de uma inteligência conectiva (De Kerckhove, 1997), ou de uma forma de estar presente e de compreender o mundo para a qual as dimensões lúdicas e oníricas da existência, das emoções e do “nós” são primordiais. De acordo com este paradigma, a tecnologia já não se manifesta como uma pura panóplia de instrumentos para resolver problemas, realizar tarefas e atuar sobre o ambiente. Assume a forma de uma tecnomagia, capaz de fomentar a comunhão de comunidades em torno de comunicações, ícones e outros fetiches.

7. Liturgias Digitais

Três séculos após o nascimento das metrópoles modernas, dá-se finalmente a mediatização da nossa existência, condição pela qual os média se tornam a nossa principal linguagem. Depois de um longo período em que a tecnologia acolheu o impulso humano, desempenhando o papel de um instrumento à sua disposição, encontramo-nos agora num sistema integral e inteligente de informação, algoritmos e dispositivos. São tão poderosos que agora somos nós que derivamos deles. O autor da célebre frase “o meio é a mensagem”, Marshall Herbert McLuhan, estava, no entanto, consciente deste desnorte: “ao submetermo-nos sem descanso às tecnologias, tornamo-nos servomecanismos delas. É por isso que, se quisermos utilizar estes objetos, estas extensões de nós mesmos, devemos servi-los como deuses, respeitá-los como uma espécie de religião” (McLuhan, 1964/2004, p. 40). O mito prometeico está esgotado; são as correntes sem fios que presidem às nossas vidas e aos nossos laços. São cordas, cordões, fios, ou melhor, as “ligaduras” descritas por Giordano Bruno (2000) nos seus escritos sobre magia. Estamos presos nas suas redes que nos ligam ao mundo para além do bem e do mal.

Pela primeira vez na história do mundo, temos o absoluto no nosso bolso. O dispositivo, do qual a web é a manifestação mais evidente, é um império sobre o qual o sol nunca se põe, e ter um smartphone no bolso significa certamente ter o mundo na mão, mas automaticamente também estar nas mãos do mundo: a qualquer momento pode chegar um pedido, e a qualquer momento estaremos no comando. (Ferraris, 2016, p. 17)

A tecnomagia contemporânea, no seu magnetismo arcaico e nas suas imaginações futuristas, é o tóteme da socialidade digital e pós-urbana, a sua referência simbólica de base. Fonte de efervescência ambígua, nas suas teias convulsivas, os indivíduos encontram-se simultaneamente em êxtase, fora de si, e no abismo, prestes a precipitarem-se entre a euforia do erotismo, nos braços do outro, e a angústia da alienação, sob o olhar do outro, de tal modo que perdem a noção de serem sujeitos ou objetos da dinâmica em causa.

Navegar estas águas desencadeia uma deambulação iniciática que desvenda as fronteiras imaginárias do mundo vindouro (Hugon, 2010). Ultrapassa também a psicogeografia, a política e as formas culturais decorrentes do humanismo, da modernidade ocidental e do seu eixo: o indivíduo racional, autónomo e independente. A conclusão do sistema de signos, simulacros e objetos, essa matriz de contornos esbatidos onde a biosfera se integra, e até ultrapassa, a noosfera, é de facto o patamar a que estamos sujeitos. Acabamos por ser possuídos por aquilo que outrora dominávamos. Este mal-estar do indivíduo pode ser facilmente detetado, por exemplo, na psicopatologia da sobrecarga de informação (Lovink, 2011) como uma doença social que se propaga a partir das paisagens mediáticas e nos afeta assim que a quantidade, a qualidade e a velocidade dos dados que recebemos se tornam humanamente incontroláveis, fonte de desordem e de caos (Fisher, 2009). Mais uma vez, somos vítimas da felicidade contraditória de estarmos ligados, conectados, informados, ativos e disponíveis, sempre on enquanto conferimos cidadania digital, e esta condição satura-nos.

À semelhança dos excessos carnavalescos medievais, as performances contemporâneas, online mas também em carne e osso, com velhas e novas substâncias - poções psicotrópicas, álcoois, drogas, notificações nas redes sociais, maratonas de séries televisivas, listas de reprodução intermináveis e drogas anestésicas combinadas - são pontuadas pela ingestão, consumo e entrega ao outro. O enfraquecimento do sujeito que daí resulta, simultaneamente abertura e dilaceração, sob a forma de violação da privacidade, pornocultura (Attimonelli & Susca, 2017), crise de intimidade, impotência reflexiva (Fisher, 2009) ou stress informacional (Berardi, 2006), está provavelmente na origem da obscenidade ambiente, verdadeiro “conluio total de elementos” (Baudrillard, 2000, p. 33).

Nas liturgias digitais celebradas entre publicações, transmissões ao vivo, selfies, stories ou reels, tudo parece ser movido tanto pela sede de prazer - cobiçar, excitar-se, sonhar, gozar - quanto pela sedução da morte. Assim, o lado trágico da existência impõe-se mais uma vez em cena. Se repararmos bem, o prazer que preside aos orgasmos múltiplos, à efervescência e aos transes do nosso tempo é trágico: envolve o sujeito em si mesmo quando rebenta, quando falha. Trata-se de um retrocesso relativamente à marcha de progresso empreendida pela cultura ocidental desde o século XVIII. Um passo atrás, mas um passo de dança. Tal como nos ritos extáticos do passado para exorcizar a morte através de uma emoção ritual comum (Pecere, 2021), estabelece uma conjunção entre o indivíduo e tudo o que está para além dele, entregando-o à força do destino. Sob a influência da tecnomagia, surgem as primeiras luzes negras da aurora digital.

References

Abruzzese, A., & Borrelli, D. (2000). Tracce e immagini di un privilegio. Carocci Editore. [ Links ]

Alberti, L. (2015). De pictura. Alias. [ Links ]

Attimonelli, C. (2018). Techno: Ritmi afrofuturisti. Meltemi. [ Links ]

Attimonelli, C. (2020). Estetica del malessere. Il nero, il punk, il teschio nei paesaggi mediatici contemporanei. DeriveApprodi. [ Links ]

Attimonelli, C., & Susca, V. (2017). Pornoculture. Voyage au bout de la chair. Éditions Liber. [ Links ]

Attimonelli, C. & Susca, V. (2021). Black Mirror et l’aurore numérique. Éditions Liber. [ Links ]

Bastide, R. (1975). Le sacré sauvage et autres essais. Stock. [ Links ]

Bataille, G. (2003). La part maudite. Précédé par la notion de dépense. Les Éditions de Minuit. [ Links ]

Baudrillard, J. (2000). Mots de passe. Fayard. [ Links ]

Benjamin, W. (2000). Angelus novus: Saggi e frammenti. Einaudi. [ Links ]

Berardi, F. (2006). Precarious rhapsody: Semiocapitalism and the pathologies of post-alpha generation. Autonomedia. [ Links ]

Bohrer, C. (2011). Technologies de l’adjuration. Les Cahiers Européens de l’Imaginaire, (3), 112-124. [ Links ]

Boudon, R. (1977). Effets pervers et ordre social. PUF. [ Links ]

Bown, A. (2015). Enjoying it: Candy Crush and capitalism. Zero Books. [ Links ]

Breton, P. (2000). Le culte de l’internet. Une menace pour le lien social? Éditions La Découverte. [ Links ]

Bruno, G. (2000). La magia e le ligature. Mimesis. [ Links ]

Campbell, H. (2012). Digital religion. Routledge. [ Links ]

Carolyn, H. (2014). The multimediates rhetoric of the internet: Digital fusion. Routledge. [ Links ]

Castells, M. (1998). L’ère de l’information. Volume 1: La société en réseaux. Fayard. [ Links ]

Clark, A. (2004). Natural born cyborg. Oxford University Press. [ Links ]

Codeluppi, V. (2015). Mi metto in vetrina. Selfie, Facebook, Apple, Hello Kitty, Renzi e altre “vetrinizzazioni”. Mimesis. [ Links ]

Cowan, D. (2005). Cyberhenge. Modern pagans on the internet. Routledge. [ Links ]

Davis, E. (1999). TechGnosis: Myth, magic and mysticism in the age of information. Crown Publishers. [ Links ]

Davis, E. (2011). Rêve instrumental. Les Cahiers Européens de l’Imaginaire, (3), 150-162. [ Links ]

De Certeau, M. (1999). L’invention du quotidien. Arts de faire. Gallimard. [ Links ]

De Kerckhove, D. (1995). The skin of culture. Somerville. [ Links ]

De Kerckhove, D. (1997). Connected intelligence. Somerville. [ Links ]

De Kerckhove, D., & Miranda, C. (Eds.). (2014). The point of being. Cambridge Scholars Publishing. [ Links ]

Debord, G. (1992). La société du spectacle. Gallimard. [ Links ]

Dibbel, J. (1993). A rape in cyberspace. Julian Dibbel. http://www.juliandibbell.com/articles/a-rape-in-cyberspace/Links ]

Dumont, L. (1983). Essais sur l’individualisme. Une perspective anthropologique sur l’idéologie moderne. Seuil. [ Links ]

Durand, G. (1992). Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Dunod. [ Links ]

Durkheim, É. (2008). Les formes élémentaires de la vie religieuse. CNRS Éditions. [ Links ]

Elias, N. (1973). Sur le processus de civilization. Volume 1: La Civilisation des mœurs. Presses Pocket. [ Links ]

Esposito, R. (2004). Bìos. Biopolitica e filosofia. Einaudi. [ Links ]

Ferraris, M. (2016). Mobilisation totale. PUF. [ Links ]

Fisher, M. (2009). Capitalist realism: Is there no alternative? Zero Books. [ Links ]

Flichy, P. (1992). Une histoire de la communication moderne. Éditions La Découverte. [ Links ]

Flichy, P. (2001). L’imaginaire d’Internet. Éditions La Découverte. [ Links ]

Foucault, M. (1966). Les mots et les choses. Gallimard. [ Links ]

Gibson, W. (1988). Neuromancien. Éditions J’ai lu. [ Links ]

Graf, F. (1994). La magie dans l’antiquité gréco-romaine. Les Belles Lettres. [ Links ]

Gulmanelli, S. (2003). PopWar. Il Netattivismo contro l’ordine costituito. Apogeo. [ Links ]

Habermas, J. (1995). Storia e critica dell’opinione pubblica (A. Illuminati & F. Masini, Trans.). Laterza. (Original work published 1962) [ Links ]

Haynes, P. (2012). Immanent transcendence: Reconfiguring materialism in continental philosophy. Continuum. [ Links ]

Heidegger, M. (1958). Essais et conferences (A. Preaux, Trans.). Gallimard. [ Links ]

Henry, M. (2000). Incarnation. Une philosophie de la chair. Seuil. [ Links ]

Himanen, P. (2001). L’éthique hacker et l’esprit de l’ère de l’information. Exils. [ Links ]

Houtman, D., & Meyer, B. (2012). Things: Religion and the question of materiality. Fordham University Press. [ Links ]

Hugon, S. (2010). Circumnavigations. L’imaginaire du voyage dans l’expérience Internet. CNRS Éditions. [ Links ]

Jenkins, H. (2006). Convergence culture. Where old and new media collide. New York University Press. [ Links ]

Joron, P. (2010). La vie improductive. Georges Bataille et l’hétérologie sociologique. PULM. [ Links ]

Joron, P. (2020). Sós todos juntos: Pele digital e fissuras digitais. In C. F. Gutfreind, J. Machado da Silva, & P. Joron (Eds.), Laço social e tecnologia em tempos extremos: Imaginário, redes e pandemia (pp. 25-43). Sulina Editora. [ Links ]

Josset, R. (2011). Du psychédélisme au réseau cybernétique planétaire: L’accomplissement de la métaphysique. Les Cahiers Européens de l’Imaginaire, (3), 248-259. [ Links ]

Lévy, P. (1994). L’intelligence collective. Pour une anthropologie du cyberspace. La Découverte. [ Links ]

Lipovetsky, G, & Serroy, J. (2013). L’esthétisation du monde: Vivre à l’âge du capitalisme artiste. Folio. [ Links ]

Lovink, G. (2011). Psychopathologie de la surcharge d’informations. Les Cahiers Européens de l’Imaginaire, (3), 136-141. [ Links ]

Maffesoli, M. (1988). Le temps des tribus. Le déclin de l’individualisme dans les sociétés de masse. Méridiens-Klincksieck. [ Links ]

Maffesoli, M. (2005). Éloge de la raison sensible. La Table Ronde. [ Links ]

Maffesoli, M. (2007). Le réenchantement du monde. La Table Ronde. [ Links ]

Maffesoli, M. (2020). La nostalgie du sacré. Cerf. [ Links ]

Marx, K. (1968). Oeuvres (Vol. II). La Pléiade. [ Links ]

Mauss, M. (2004). Sociologie et anthropologie. PUF. [ Links ]

Mckenzie, W. (2004). A hacker manifesto. Harvard University Press. [ Links ]

McLuhan, M. (1966). The Gutenberg Galaxy. The making of typographic man. University of Toronto Press. [ Links ]

McLuhan, M. (1977). D’œil à Oreille (D. De Kerckhove, Trans.). Hurtubise HMH. [ Links ]

McLuhan, M. (2004). Pour comprendre les medias (J. Paré, Trans.). Seuil. (Original work published in 1964) [ Links ]

McLuhan, M., & Fiore, Q. (2003). The medium is the MASSAGE. Penguin Books. [ Links ]

Morin, E. (1957). Le cinéma ou l’homme imaginaire. Les Éditions de Minuit. [ Links ]

Muso. (2018). Annual piracy report. https://www.muso.com/magazine/publishing-under-threatLinks ]

Musso, P. (2003). Critique des réseaux. PUF. [ Links ]

Obadia, L. (2013). La marchandisation de Dieu. L’économie religieuse. CNRS Éditions. [ Links ]

Pace, E. (2018). Les cyber-religions entre dématérialisation du sacré et réenchantement du monde. Sociétés, La Dématérialisation du Sacré, (139), 61-72. https://doi.org/10.3917/soc.139.0061 [ Links ]

Pecere, P. (2021). Il dio che danza. Viaggi, trance, trasformazioni. Nottetempo. [ Links ]

Perniola, M. (1994). Le sex-appeal de l’inorganique. Léo Scheer. [ Links ]

Roszak, T. (1994). The cult of information. A neo-luddite treatise on high tech, artificial intelligence, and the true art of thinking. University of California Press. [ Links ]

Sadin, E. (2015). La vie algorithmique: Critique de la raison numérique. Éditions l’Échappée. [ Links ]

Shakespeare, W. (1998). The tempest. Paradigm Publishing. [ Links ]

Simmel, G. (1998). La réligion. Circé. [ Links ]

Simondon, G. (2014). Sur la technique. Presses Universitaires de France. [ Links ]

Susca, V. (2011). Joie tragique. Les formes élémentaires de la vie électronique. CNRS Éditions. [ Links ]

Susca, V. (2016). Les affinités connectives. Sociologie de la culture numérique. Cerf. [ Links ]

Susca, V., & Bardainne, C. (2008). Récréations. Galaxies de l’imaginaire postmoderne. CNRS Éditions. [ Links ]

Turner, V. (1974). The ritual process. Penguin Books. [ Links ]

Virno, P. (2002). Grammatica della moltitudine. Per un’analisi delle forme di vita contemporanee. Derive Approdi. [ Links ]

Weber, M. (1964). L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme. Plon. [ Links ]

Weber, M. (1971). Économie et société. Plon. [ Links ]

Zizek, S. (2004). La subjectivité à venir. Flammarion. [ Links ]

Recebido: 14 de Fevereiro de 2023; Aceito: 07 de Junho de 2023

Tradução: Anabela Delgado

Vincenzo Susca é professor associado de sociologia na Universidade Paul Valéry, Montpellier (Laboratoire d’Études Interdisciplinaires sur le Réel et les Imaginaires Sociaux). É diretor da coleção de publicações L’Imaginaire et le Contemporain (O Imaginário e o Contemporâneo) da Liber Éditions (Canadá). Os seus mais recentes livros traduzidos para português são As Afinidades Conectivas (Sulina, Porto Alegre, 2019), Aurora Digital (Sulina, Porto Alegre, 2019, com Claudia Attimonelli) e Tecnomagia (Sulina, Porto Alegre, 2023). Email: vincenzo.susca@univ-montp3.fr Morada: Université Paul-Valéry Montpellier 3, Route de Mende 34199 Montpellier Cedex 5, France

Creative Commons License This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License