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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.18 no.32 Lisboa abr. 2018

 

ARTIGO

 

Tendências do jornalismo de investigação televisivo a partir do estudo de caso da reportagem da TVI “Segredo dos Deuses”

 

Trends on investigative television journalism from the TVI's case study “Secrets of the Gods”

 

Tendencias del periodismo de investigación televisiva a partir del estudio de caso del reportaje de la TVI "Secreto de los Dioses"

 

 

Carla BaptistaI

I Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Centro de Investigação em Comunicação e Cultura Digital (CIC.Digital NOVA FCSH), 1069-061 Lisboa. Portugal Lisboa, Portugal. E-mail: carlamariabaptista@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo analisa algumas das tendências do jornalismo de investigação televisivo a partir da análise de uma reportagem transmitida pela TVI: “Segredos dos Deuses”. Designada como a “primeira série informativa” daquela estação privada, foram exibidos 10 episódios, o que a transforma na reportagem mais longa alguma vez transmitida pela televisão portuguesa. A serialização da história corresponde a uma opção típica dos géneros de ficção, implicando níveis de redundância e efeitos expressivos habitualmente ausentes dos géneros informativos. Esta reportagem acompanha a tendência para a hibridez de géneros e formatos, colocando novos desafios interpretativos e éticos na receção e leitura destes conteúdos jornalísticos.

Palavras-chave: Televisão; TVI; Jornalismo de Investigação; Serialização; Informação; Ficção


ABSTRACT

This article analyzes some trends of television investigative journalism from the analysis of a reportage transmitted by TVI: “Secrets of the Gods”. Designated as the "first information series" of that private channel, 10 episodes were shown, making it the longest news story ever broadcast on Portuguese television. The serialization corresponds to an option typical of fiction genres, implying levels of redundancy and style effects that are usually absent from the information genres. We conclude that this reportage follows the trend towards the hybridization of genres and formats, posing new interpretive and ethical challenges in the reception and reading of these journalistic contents.

Keywords: Television; TVI; Investigative Journalism; Serialization; Information; Fiction


RESUMEN

Este artículo analiza algunas de las tendencias del periodismo de investigación televisiva a partir del análisis de un reportaje transmitido por TVI: "Secretos de los Dioses". Designada como la "primera serie informativa" de esa estación privada, se mostraron 10 episodios, lo que hace que sea la reportaje más larga jamás transmitido por la televisión portuguesa. La serialización de la historia corresponde a una opción típica de los géneros de ficción, implicando niveles de redundancia y efectos expresivos habitualmente ausentes de los géneros informativos. Este reportaje acompaña la tendencia hacia la hibridez de géneros y formatos, planteando nuevos desafíos interpretativos y éticos en la recepción y lectura de estos contenidos periodísticos.

Palabras clave: Televisión; TVI; Periodismo de Investigación; Serialización; Información; Ficción


 

 

Introdução

Chama-se “Segredos dos Deuses”, um nome que evoca resquícios de telenovela e operação policial, e foi a primeira “série informativa” emitida pela TVI. Em dezembro de 2017, a estação privada transmitiu em dias sucessivos os 10 episódios, com uma duração oscilando entre 20 e 26 minutos, das jornalistas Alexandra Borges e Judite França. São feitas acusações à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) que, segundo as autoras, teria ilegalmente levado crianças portuguesas de um lar de acolhimento, durante a década de 1990 do século XX, destinando-as à adoção por bispos e pastores daquela igreja.

A gravidade dos factos relatados nesta investigação, que a estação referiu ter demorado cerca de 7 meses de trabalho, teve enorme repercussão social e política. A IURD negou todas as acusações e anunciou queixas nos tribunais contra a TVI. Dois dos agora jovens adultos visados pediram providências cautelares para que as reportagens fossem retiradas da internet. Sectores da sociedade civil mobilizaram-se para uma petição designada #Não adopto este silêncio que recolheu mais de 5000 assinaturas, exigindo que a Assembleia da República abra uma comissão parlamentar de inquérito para apreciar as alegadas adoções ilegais. A Procuradoria Geral da República (PGR) anunciou ter ordenado um inquérito-crime e o Ministério Público (MP) lançou uma auditoria interna destinada a avaliar a sua própria conduta na gestão das adoções das crianças visadas pela reportagem.

O assunto foi amplamente discutido pelos media portugueses e brasileiros, e vários meios de comunicação social prolongaram a história, trazendo novos factos a lume, como por exemplo a notícia de que as autoridades portuguesas, incluindo a Segurança Social, responsável pela tutela estatal das crianças, haviam sido alertadas por denúncias de que factos irregulares aconteciam no lar da IURD e não agiram atempadamente, permitindo a saída para o estrangeiro de vários menores, alguns dos quais cresceram com documentação falsa e famílias que não são os seus pais adotivos. A visibilidade alcançada tem causado reações sucessivas que motivam novas revelações, algumas com enorme impacto emocional, incluindo de jovens que descobriram através do visionamento da reportagem a sua verdadeira identidade, já que desconheciam as circunstâncias concretas das suas adoções.

A série está centrada na história precoce de três irmãos retirados aos pais biológicos por incapacidade parental, o mais novo dos quais faleceu recentemente em circunstâncias não consensuais para as partes envolvidas: a TVI refere que a causa da morte foi uma overdose, insinuando tratar-se do trágico epílogo de uma adolescência complicada fruto de sucessivas mudanças de casa e cuidadores, imputadas à IURD; a família brasileira, incluindo os irmãos que possuem tripla nacionalidade (portuguesa, norte-americana e brasileira) e são hoje membros bem integrados na estrutura da IURD, afirmam ter sido um ataque de coração.

Neste artigo, iremos focar-nos nas opções narrativas adotadas pelas jornalistas autoras do trabalho, discutindo como estas revelam e potenciam algumas das tendências contemporâneas do género reportagem televisiva de investigação, designadamente o uso de estratégias narrativas que tornam menos nítida a separação entre ficção e informação.

O jornalismo tem historicamente privilegiado formatos narrativos que apostam na concisão, na clareza e no foco, com o objetivo de propiciar ao público um instrumento imediato de conhecimento, debate e intervenção cívicas. Ao invés, a serialização é uma estratégia narrativa desenvolvida por alguns géneros dentro da literatura de ficção que privilegia a duração da ligação criada com os leitores, valorizando mais os recursos expressivos do que os usos informativos ou performativos da linguagem.

A serialização não está confinada ao campo ficcional e foi adotada por alguns movimentos de rutura e inovação no jornalismo, que buscavam novas formas de storytelling. É o caso da corrente conhecida por novo jornalismo, que ganhou notoriedade nos Estados Unidos na década de 60 do século XX, embora as reportagens narrativas ou literárias existissem há muito noutras geografias. Um dos romances não ficcionais mais famosos, A Sangue Frio, de Truman Capote, foi inicialmente publicado em quatro números da revista New Yorker, em 1965, recuperando a moda dos folhetins que popularizam os escritores nos jornais europeus novecentistas ou das séries de reportagens disruptivas que celebrizaram os repórteres americanos da era progressista (1890-1914), conhecidos pelos “muckrackers”.

A opção de serializar conteúdos jornalístico, quebrando rotinas produtivas e pactos comunicacionais não rígidos mas operativos, é justificada pela complexidade das histórias e pela necessidade de adicionar muitos detalhes significativos. O longo formato é uma maneira de ultrapassar os limites das convenções noticiosas e aproximar o jornalismo do género literário da novela, também marcado pelo impulso realista e pela brevidade, por oposição ao romance. No caso de “O Segredo dos Deuses”, resultou na sua transformação numa longuíssima reportagem e num complexo produto audiovisual. É discutível que a história das adoções ilegais necessite de 10 episódios para ser contada, já que o nível de redundância é elevado ao longo dos episódios, com inúmeras repetições de cenas que sublinham os momentos marcantes e acrescentam ênfase mas não informação.

O principal convite feito ao espectador é para que se mantenha espectador. O efeito de suspense é usado para manter o espectador engajado, desnaturalizando a narrativa e expondo o artificialismo da construção visual que preside à organização dos seus elementos e à movimentação das personagens. Um bom exemplo é a forma como os diversos tempos da história são cruzados de modo não cronológico, com sucessivos regressos ao passado dos protagonistas (a infância das crianças) mesmo quando os factos principais acontecidos nessa época já foram esclarecidos e a narrativa avançou para a situação presente. O passado, irremediavelmente perdido e fortemente comprometedor do presente, ilustrado afetivamente pelas fotografias de um tempo em que ainda existia uma família não desmembrada, é usado como metáfora do mundo perdido. É uma estratégia dramatúrgica poderosa mas desafiante do ponto de vista jornalístico, já que este jornalismo se afirma exuberantemente como discurso saturado de efeitos simbólicos e não como rememoração “nua” de factos acontecidos.

Embora seja possível conhecer os factos principais a partir do primeiro episódio, as denúncias iniciais só são esclarecidas mais tarde e o destino dos principais sujeitos permanece em aberto. A arquitetura interna promove uma lógica de continuidade, incluindo resumos explicativos no inicio de cada episódio, repetições de flashbacks e flashforward, com o uso recorrente de imagens que se tornam figuras visuais: a fachada do antigo lar da IURD, retratado como lugar de martírio infantil; uma fotografia antiga das três crianças felizes ainda à guarda da sua mãe biológica, vestígio santificado pela memória que a reportagem resgata.

O ritmo dramatúrgico é o das séries televisivas de suspense psicológico. Exemplo disso é a revelação, no episódio 5, de um facto que constrói o clímax: a morte de Fábio, o mais jovem dos irmãos. Até aí, era conhecido o destino dos dois mais velhos, mas o de Fábio vinha sendo antecipado com o desnudar progressivo de elementos indicadores de que a sua vida terá sido a mais fatalmente marcada pelas consequências atribuladas da adoção. A notícia do seu falecimento, ocorrido em 2015, é comunicada à mãe biológica durante a filmagem da reportagem, ficando registada em vídeo a subsequente reação emocional.

Esta opção não produz nenhum acréscimo de compreensibilidade e podia ter sido introduzida em episódios anteriores, sendo que as jornalistas certamente a conheciam desde o início. Mas gera uma forte empatia entre telespectador e a mãe biológica das crianças, já que ambos são surpreendidos em simultâneo pela trágica notícia. A escolha das jornalistas foi retardar a divulgação de informação relevante para potenciar os ganhos emotivos e capturar a atenção do telespectador, cumprindo aquilo que parece ser uma vontade maximalista da série: contar histórias reais como se fossem ficção destinada ao entretenimento.

 

Jornalismo e ficção: ruturas, continuidades e contaminações

A pretensão à verdade é uma das mais estruturantes do jornalismo. O dever de relatar os factos com honestidade figura na esmagadora maioria dos códigos éticos, embora a questão da definição da verdade jornalística permaneça ambígua. Na proposta de Tom Rosentiel e Bill Kovach (2001), o jornalismo busca uma “forma prática e funcional de verdade”, assente numa disciplinada e diligente recolha e verificação de factos. A visão simplista das notícias como “um espelho da realidade” foi ultrapassada pelas teorias construtivistas, reconhecendo que as notícias resultam de um processo de elaboração linguística, são artefactos discursivos não ficcionais que constroem e reconstroem a realidade. Apesar da verdade jornalística radicar numa materialidade substantiva (os factos acontecidos, ou as perceções de pessoas reais), o jornalismo é um discurso organizado pelos jornalistas e apenas pode oferecer um recorte ou uma representação do mundo. Esta abordagem esvazia a palavra informação, pelo menos na sua oposição binária a ficção, pois o único sentido acessível aos homens seria o das suas próprias construções discursivas.

A explosão de formatos literários não ficcionais veio alargar o campo da não ficção e permitir diversificar os recursos estilísticos, reivindicando a mesma pretensão de verdade factual e verificável que o jornalismo inscreveu na sua modernidade mas confinou a géneros limitados: a noticia, a reportagem, a entrevista, o perfil. Formatos emergentes no quadro do “novo jornalismo”, como a novela, o romance ou o perfil não ficcionados, traduzem esta proposta, desafiando as convenções narrativas e instabilizando as noções de verdade, processo e método jornalísticos.

A imersão no universo que se pretende contar anula a anterior distância crítica, aspetos marginais da história são valorizados, e múltiplos pontos de vista são adotados. O formato narrativo não cresceu somente para albergar mais factos, cresceu porque a forma de contar os factos se alterou radicalmente, bem como os lugares do jornalista e do leitor. Ambos são estimulados a partilhar perplexidades, aceitar a natureza fraturante das histórias e convocados para a ação política – agir, ao invés de receber passivamente informação. A exposição de comunidades não familiares, cuja verdade o jornalista procura conhecer através de um mergulho prolongado no seu quotidiano, é um convite à partilha de uma viagem de descoberta e entendimento. A mesma vontade de inscrever uma relação dialógica com o telespectador é promovida pela estratégia narrativa e comunicativa da reportagem da TVI, com uma diferença substancial: o telespectador é convocado para a fruição das peças televisivas e para juntar a sua voz aos que clamam por justiça, reparação e punição.

Pensamos que o debate originado pelo novo jornalismo só é parcialmente útil na análise da série “Os Segredos dos Deuses”. Sendo uma reportagem televisiva, transfere algumas destas pretensões para o universo dos formatos televisivos. A questão do longo formato é obviamente pertinente e marca “a viagem” entre a reportagem e a série. Outras reportagens de investigação recentes na televisão portuguesa foram serializadas, embora com um número mais reduzido de episódios. Trata-se de uma tendência que procura singularizar e rentabilizar os conteúdos onde existiu mais investimento. Uma série informativa ou uma grande reportagem de investigação com vários episódios têm uma maior capacidade para atrair e fixar audiência e posicionam-se mais facilmente como produtos prime.

As reações provocadas pela reportagem após a sua emissão potenciam a sua visibilidade e geram novos conteúdos jornalísticos, tratados em espaços complementares (telejornais e programas de debate). Com um tempo de exibição mais longo (neste caso, dez dias seguidos) e tendo em conta a natureza bombástica dos factos, a reprodução e mimetização pelos outros media é explorada ao máximo e a performatividade da reportagem vai gerando novos conteúdos incluídos noutros programas e plataformas.

A exibição de “O Segredo dos Deuses” foi precedido de uma bem montada campanha de marketing. No dia 11 de dezembro/2017, dia de exibição do primeiro episódio, o “teaser” promocional anunciava: “O novo mistério que vai abalar Portugal”, numa alusão aos “mistérios de Fátima”, talvez inspirada pela natureza religiosa da instituição sob acusação.

Os episódios foram exibidos no Jornal das 8, estabelecendo um espaço de continuidade com o próprio telejornal, e seguidos de comentários e entrevistas em estúdio. Os valores de audiência média ao longo dos episódios foram superiores a 1 milhão e 430 mil espectadores, que correspondeu a uma quota de mercado de 30,7% e motivou um crescimento de mais de 27% na audiência daquele jornal televisivo, líder no seu segmento.

A estratégia global da TVI na rentabilização dos ganhos relacionados com a série foi muito concertada, incluindo entrevistas no telejornal à principal queixosa, a mãe biológica das crianças adotadas, ao tratamento noticioso das sucessivas reações das instituições portuguesas (Parlamento, PGR, MP, Presidência da República, cidadãos) e à realização de entrevistas e debates com as jornalistas autoras da investigação.

Com exceção do muito longo formato, as opções narrativas são conservadoras. Não existe complexidade psicológica nas personagens, retratadas de forma simplista como vítimas (as mães) ou vilões (os membros da igreja, em particular os seus responsáveis máximos). Os factos mais perturbadores, que poderiam cindir a visão dominante, são referidos mas não são tratados com relevo. As alegadas carências económicas da família e o alcoolismo violento do pai (já falecido) que teriam conduzido a uma intervenção da Segurança Social e à retirada das crianças dos progenitores, não são investigados. A veracidade desses factos não deslegitimava a injustiça terrível de que a mãe foi alvo, mas podia comprometer a sua imagem maternal. Na lógica desta reportagem, era um traço potencialmente indesejável e não foi acolhido. Também não é explicado porque a sua identidade é protegida, através de distorção da imagem do rosto. O anonimato das fontes de informação é uma escolha legítima no decurso de muitas investigações jornalísticas mas neste caso, e na ausência de uma explicação, levanta uma interrogação: existem razões suficientemente fortes para justificar uma opção que afeta (sempre) a credibilidade da testemunha?

Ao contrário das práticas estimuladas pelo novo jornalismo, neste caso as jornalistas não mostram qualquer dúvida. O tom é sempre assertivo, definitivo. A versão da principal testemunha é corroborada e está sustentada em várias provas: documentais, testemunhos abonatórios, etc. O esforço investigativo centra-se na verificação dos factos relatados que sustenta um tom de denúncia generalizada e não na diversificação dos pontos de vista. A palavra denúncia é aliás usada com frequência pelas jornalistas. Para além da IURD, é posta em causa a atuação de instituições pilares do sistema judicial português, designadamente o Ministério Público, a quem cabe a proteção e a efetivação dos direitos de menores através dos tribunais de família e de menores.

A trama da reportagem assenta numa oposição binária com resquícios míticos (os maniqueísmos entre ricos/pobres, homens/mulheres, vítimas/opressores) e constrói-se como a epopeia de uma mãe sozinha, pobre e invisível socialmente, enfrentando forças poderosas (a IURD é uma igreja tentacular com um passado de práticas intimidatórias de pessoas, sobretudo jornalistas, sempre que os seus interesses são beliscados) que finalmente é escutada e tem voz. Esta trama arquetípica é tão dominante que a mãe surge sempre numa posição desvalida e impotente (chorosa, infeliz) e até a expressão dos seus propósitos é difusa já que ela não os verbaliza claramente: decorridos 22 anos desde a retirada das crianças, ainda alimenta a pretensão de recuperar os filhos, ou apenas deseja conhecer o seu paradeiro e assegurar-se do seu bem estar?

Quando os filhos, atualmente dois jovens adultos, reagem negativamente à reportagem, assegurando a legalidade da sua adoção, num depoimento gravado em vídeo e difundido nas redes sociais da IURD, a mãe desloca-se ao estúdio da TVI para comentar, protegida por um ecrã que impossibilita a sua identificação. Mostra-se triste mas magnânima, atribuindo a rejeição “à vida de luxo” que eles tiveram e que ela não lhes poderia ter proporcionado. A reportagem cede lugar ao reality show, partilhando o espaço do telejornal, que diariamente se dilui enquanto espaço informativo e passa a acolher conteúdos de natureza diversa: comentários, reações emocionadas dos presentes, incluindo dos jornalistas, depoimentos de outros envolvidos, nomeadamente jovens que também frequentaram o lar da IURD e contam os seus atribulados percursos de vida.

Estes são conteúdos comunicativos gerados pela reportagem mas exteriores a esta, que gravitam na sua órbita e interagem com esta, sem comprometer a solidez da investigação. São usados testemunhos e fontes documentais para credibilizar os factos. Além da mãe biológica que acusa a IURD de lhe ter roubado os filhos, surgem igualmente de forma não identificada ex-funcionárias do lar que privaram com as crianças e corroboram a sua versão de que foi várias vezes impedida de visitar os filhos, para que se criasse um falso quadro de abandono parental.

Outras testemunhas são identificadas e constituem, na nossa opinião, os momentos mais fortes da reportagem. Trata-se de jovens antigos utentes do lar da IURD, que relatam as memórias desse quotidiano de institucionalização, incluindo a exibição semanal, aos domingos, no culto que se realizava (e continua a realizar-se) na principal igreja em Lisboa, o antigo cinema Império.

São ouvidas pessoas com ligações diversas à IURD, incluindo outros filhos adotivos e ex-cônjugues de pastores e bispos que entretanto se incompatibilizaram e denunciam alegadas práticas moralmente abusivas, como a pressão para que pastores e bispos fossem vasectomizados e tivessem apenas filhos adotivos. O testemunho da mulher a quem foi entregue a guarda dos menores é recolhido por telefone e esta confirma ter agido de forma a viabilizar a entrega das crianças às duas filhas do responsável máximo da IURD, o bispo Edir Macedo. São mostrados excertos de fontes documentais escritas consultadas pela TVI, um extenso arquivo relativo à história de constituição do lar de acolhimento ou às várias fases dos processos de adoção das crianças.

Em suma, existe uma sólida e clássica arquitetura investigativa, alinhada de forma ilustrativa, que vai validando as acusações lançadas e solidificando a tese da existência de uma rede de tráfico de crianças, e de irregularidades graves ocorridas no lar da IURD, embora não responda a todas as acusações.

 

Televisão na era digital: a multiplicidade das imagens e das formas de visionamento

O ambiente digital veio alterar profundamente as formas de fazer e receber jornalismo. A reportagem “O Segredo dos Deuses” é um produto dessas transformações, embora não pelo uso das características que Helder Bastos (2012) salientava no ciberjornalismo: o hipertexto, o multimédia, a interatividade, a ubiquidade e a instantaneidade. Não é uma reportagem particularmente inovadora nas suas práticas ou linguagens. Existem contudo dois aspetos que a tornam um produto filho da era do digital. Em primeiro, lugar, a sua natureza global. Visando factos ocorridos em dois países (Portugal e Brasil), é produzida para um mundo globalizado e ligado por redes de comunicação que permitem a circulação imediata das notícias como “recursos para a discussão”. As reações multiplicaram-se nos dois países e a reportagem foi visualizada e partilhada por milhares de pessoas situadas em todo o mundo. Tendo em conta os milhões de fieis da IURD, é previsível que os seus sentidos tenham sido negociados e integrados de forma muito diferenciada, em função das crenças dos recetores.

O segundo aspeto é a natureza dispersa e fragmentada dos materiais visuais que sustentam a reportagem, muitos deles retirados de arquivos digitais públicos e privados. A colaboração na investigação de um antigo pastor da IURD foi certamente fulcral para a obtenção de tantos e tão preciosos materiais. São utilizados inúmeros vídeos familiares, realizados pelos vários adultos que se cruzaram com a vida dos menores, bem como gravações em vídeo transmitidas nas redes da IURD. Trata-se de uma instituição cuja vontade evangelizadora se constrói pela difusão massiva de imagens de cerimónias de culto, rituais, sermões, mas também aspetos da vida familiar dos pastores e bispos. Foi essa enorme apetência pela difusão da sua mensagem e imagem nas redes sociais que forneceu à TVI uma impressionante paleta de materiais visuais. Trata-se de uma autêntica viagem ilustrada ao passado dos envolvidos, que vemos em fases sucessivas da sua vida.

O modo de construção em “mosaico” desta reportagem e os efeitos gerados não podem deixar de merecer um questionamento ético, talvez uma “ética radical” como a que propõe Stephen Ward (2015):

This new media ecology questions traditional ethical principles which were formulated a century ago for non‐global newspapers long before the Internet. In question are principles such as objectivity in reporting and the rigorous verification of stories prior to publication or posting. A previous consensus on the principles of media ethics, created by professionals, has collapsed as professional and non‐professional journalists, online and offline, quarrel. Media ethics is a fragmented domain where just about any notion, including the very idea of journalism, is debated. Media ethics, once a sleepy domain of mainstream media's codes of ethics, too often presumed to be invariant, is now a dynamic, chaotic space of contested values.

A série “O Segredo dos Deuses” ilustra bem a natureza fragmentada de que fala o autor da citação transcrita. Constitui-se como um produto aberto, sem fronteiras definidas, que se vão alargando e integrando os novos produtos gerados pelos impactos da sua receção. Propõe a redenção do ethos coletivo (a não proteção de crianças em perigo é moralmente inaceitável) através da conjugação do pathos de jornalistas e telespectadores. O estúdio da TVI transformou-se diariamente na arena de denúncia e expiação, onde os ofendidos vinham confrontar a (in)justiça dos deuses e revelar os seus (ímpios) segredos. Nessa medida é uma narrativa híbrida, navegando entre formatos, onde as autoras do trabalho assumem claramente um papel implicado na história que contam.

 

Notas conclusivas

Neste artigo, procuramos analisar a série informativa da TVI, “O Segredo dos Deuses”, identificando as suas especificidades enquanto produto jornalístico. Trata-se de uma reportagem de investigação que usa e potencia algumas das ferramentas da era digital, integrando materiais visuais retirados das redes sociais e de blogues de algumas das pessoas acusadas de estarem envolvidos numa rede ilegal de tráfico de crianças. Esses materiais documentam a diluição dos espaços público e privado nas sociedades contemporâneas e lançam interrogações desafiantes sobre as pertenças da nossa pegada digital no mundo. Quando os dois jovens adultos que foram retirados à sua família biológica e levados para Portugal exigem a retirada dos episódios da internet, que legitimidade lhes assiste, já que eles próprios promoveram ativamente a difusão dessa imagem e surgem em inúmeros vídeos difundidas pelas redes sociais da IURD e consumidas por milhões de pessoas? Esta é apenas um dos múltiplos aspetos de questionamento ético provocado por esta reportagem.

A opção por um longuíssimo formato (10 episódios) e pela inflação da exposição emocional confirma uma tendência para a hibridez de géneros e um transbordo das características habitualmente associadas ao discurso jornalístico. Não existe nenhuma pretensão a um relato objetivo e desinteressado dos factos. Mas, por outro lado, a posição implicada e parcial das jornalistas é suportada por uma investigação que respeita as etapas do método jornalístico e procura validar com documentos as acusações feitas.

Outro fator de destaque prende-se com as escolhas que a estação fez para exibir e potenciar a visibilidade desta reportagem. Ao decidir transmiti-la no espaço do Telejornal das 8, subordinou toda a restante grelha informativa à temática da série. Ao invés de um conjunto diversificado de notícias refletindo a diversidade do mundo, promessa informativa historicamente inscrita no formato telejornal, aos telespectadores da TVI foi oferecido um produto que combina informação com entretenimento, uma “telenovela” reconstruída a partir de memórias de pessoas reais e vestígios de histórias reais. Neste sentido, importa convocar para a análise de “O Segredo dos Deuses” não só o produto em sim, mas os seus modos de promoção e venda no mercado informativo.

 

 

Referências Bibliográficas

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Artigo por convite/Article by invitation/ Artículo por invitación

 

 

Carla Baptista - Portuguese author and academic. She is an assistant professor at the Communication Sciences Department of Faculty of Social and Human Sciences - University Nova of Lisbon. She is a researcher at CIC Digital and undertakes work in the fields of media and journalism history, media and gender and journalism ethics and professionalism.

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