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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_7 

ARTIGO

A televisão no Portugal pós-revolucionário: instrumentalização, desregulação, demissão do Estado e debilitação do sector dos media

Television in post-revolutionary Portugal: instrumentalization, deregulation, resignation of the State and weakening of the media sector

Francisco Rui Cádima*
https://orcid.org/0000-0002-5449-8831

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA. frcadima@fcsh.unl.pt


 

RESUMO

Este estudo integra uma caracterização histórico-política do período de emergência do bloco conservador-liberal da Aliança Democrática (1979-1983) e uma abordagem da informação e da programação televisiva, com particular destaque para o início dos anos 80, com o serviço público de televisão na dependência de uma maioria política. Esta análise histórica do período da abertura da televisão à iniciativa privada aborda ainda a questão da televisão da Igreja, que marca também a década; a questão do Estado na sua relação com a televisão e o espectro radioeléctrico enquanto instrumentos do sistema político-partidário e de governo; o enquadramento do “cavaquismo” na sua relação com a TV; e finalmente, em contexto conclusivo, uma abordagem da emergência da TV privada em Portugal e das suas consequências, neste caso à luz dos estudos de Nelson Traquina referidos na bibliografia, procurando reequacionar a conhecimento sobre o período e o respectivo estado da arte.

Palavras chave: televisão; pós-revolução; democracia; regulação; liberalização


 

ABSTRACT

This study integrates a historical-political characterization of the emergence of the Portuguese conservative-liberal bloc “Aliança Democrática” (1979-1983) with an analysis of the news and television programming, emphasizing the early 1980s and the television public service’s dependence on a political majority. This historical analysis of the opening of the Television to the private sector, also addresses the question of the Catholic Church’s channel, which also marks the decade, as well as the issue of the relationship of the State with the television sector and the radio spectrum as instruments of the political party system and government, the framework of the “cavaquismo” period in its relationship with TV, and finally, in a conclusive mode, an approach to the emergence of private TV in Portugal and its consequences, in this case in the light of the studies by Nelson Traquina referred to in the bibliography, seeking to revisit the knowledge about the period and the respective state of the art.

Keywords: television; post-revolution; democracy; regulation; liberalization


 

Introdução

A primeira fase de consolidação do regime democrático no Portugal pós-revolucionário inicia-se, justamente, no início dos anos 80 com a emergência da Aliança Democrática (AD), após a conquista de uma maioria absoluta pelo líder do PPD-PSD, Francisco Sá Carneiro, que governará enquanto primeiro-ministro num curto período, apenas ao longo do ano de 1980. A progressiva normalização democrática e a institucionalização do regime, logo após o período de governos de iniciativa presidencial ao tempo de Ramalho Eanes, deixava crer que o sistema de media ganharia progressivamente a sua estabilidade, quer do ponto de vista regulatório e político-administrativo, quer do ponto de vista da indústria dos media, do pluralismo e da pluralidade de mercado. Ora, enquanto a ideia de consolidação do novo regime democrático ganhava alguma consistência e a sua própria legitimidade política, ao mesmo tempo iam crescendo os exemplos do forte viés que o regime criava no sector da comunicação social, dificultando a afirmação do pluralismo no campo mediático. Ir-se-ia assistir, portanto, a uma década fortemente marcada pela instrumentalização dos media, quer no período da AD, quer no período que ficou conhecido como do “bloco central”, liderado por Mário Soares (PS), tendo Mota Pinto (PSD) como seu vice-primeiro-ministro, entre 1983 e 1985. Depois disso, após Novembro de 1985, o mesmo sucederá ao longo das duas legislaturas do PSD e de Cavaco Silva, que vieram a perpetuar um modelo de controlo dos media ao longo de uma década.

Uma breve caracterização histórico-cultural e política deste período, em Portugal, e em particular no que diz respeito ao sector dos media e às questões de âmbito regulatório, político e discursivo, remete-nos, portanto, para o problema específico da televisão, que estará no centro das atenções do sistema político-partidário. Temos assim, desde início, uma luta política intensa em torno do controlo da RTP enquanto monopólio de Estado e único operador televisivo à época. No final dos anos 70, o serviço público de televisão em Portugal enquadra-se plenamente no paradigma emergente, em transição de um modelo “pedagógico” para um modelo “revolucionário” (Rezola, 2014, p. 24). Neste âmbito, como dizia Mário Mesquita, os conteúdos da televisão pública evidenciavam, em particular, toda uma área marxista muito focada na “ideologia e na propaganda política” (Mesquita, 1993, p. 361). Num segundo tempo, já em fase de consolidação do processo democrático, podemos destacar a tentativa da Igreja e do Patriarcado de Lisboa de obterem o direito às emissões televisivas, tal como acontecia já no domínio da Rádio. Por fim, abordaremos as questões que envolveram o contexto regulatório da televisão e toda a discussão pública e política que irá conduzir, na década seguinte, à liberalização da lei da TV e ao aparecimento dos canais privados em Portugal.

A inflexão conservadora-liberal

Importa referir, em bom rigor, que o regime “revolucionário-constitucional” só se extingue verdadeiramente em 1982, com a revisão constitucional promulgada a 30 de Setembro. Esta vem retirar ao Conselho da Revolução os poderes que até então ainda lhe garantiam uma prerrogativa sobre o poder político, que aliás não viria a ter grande significado no período entre a vitória da AD, nos finais de 1979, e a própria revisão da Constituição em 1982. O governo da AD, liderado por Francisco Sá Carneiro, acabaria por atuar numa lógica de inflexão do sistema político-partidário, ambicionando a conquista do Estado e a reforma do regime segundo o modelo frequentemente definido pelos sociais-democratas de “um Governo, um Presidente, uma Assembleia”, e, de certo modo, prevendo também uma transformação radical do sistema económico-social que a “revolução dos cravos” havia inspirado.

No que concerne à relação entre a comunicação social e o sistema político-partidário, temos muito claros, logo no início da década de 80, os primeiros sinais de que o bloco conservador-liberal da Aliança Democrática sabia ao que vinha no campo dos media. É Vítor Cunha Rego, politicamente próximo da AD, quem abre as hostilidades já na qualidade de presidente da RTP que exercerá ao longo desse primeiro ano da década. A RTP, na sua perspectiva, deveria ser, necessariamente, um aparelho ideológico do Estado, não podendo escapar a esse vínculo e, por assim dizer, ao papel de transmissor do discurso do poder (Rego, 2018). Proença de Carvalho, que lhe sucederá - e que havia sido já o “ministro da propaganda” de Mota Pinto -, vai seguir à risca o mesmíssimo princípio político, para ele era impossível uma televisão do estado independente do poder político. Proença de Carvalho ficaria sobretudo conhecido como o “coveiro” de um projeto jornalístico absolutamente distinto e histórico da RTP - o Informação/2. Este havia sido um projeto marcante na história da RTP, vinha do tempo de João Soares Louro e de Fernando Lopes, mas Proença de Carvalho encarregar-se-á de esvaziar progressivamente este Informação/2, telejornal que aliás seria considerado o projeto mais conseguido ao longo de toda a história da RTP em termos de jornalismo televisivo. A própria programação, sobretudo a mais específica da missão de serviço público da RTP, não sairia incólume, isto é, não teria sido por acaso que foi ele, Proença de Carvalho, o escolhido para “desgonçalvizar” a informação e “controlar politicamente” aquilo que considerava ser uma “redacção vermelha” na RTP (Almeida, 2017, 10 de Setembro).

Na área dos media, como então sugeriam Agee e Traquina (s/d: 27) “uma recapitulação sintética da história do pós-25 de Abril mostra uma sucessão de governos de diferentes tonalidades políticas: todos eles estabeleceram a mesma relação hierárquica e unívoca com os meios de comunicação social”. Mas, vendo à época, mais em particular, a especificidade da questão televisiva, e de acordo com a perspectiva do historiador António Reis, “o controlo da televisão pública e dos postos-chave do aparelho de Estado e do sector público empresarial contribuía igualmente para reduzir a margem de manobra da oposição, obrigada a centrar o seu discurso na mera denúncia da tentação totalitária” (Reis, 1993, p. 81). O quadro jurídico permitia também a continuação da televisão sob a alçada governamental. A Lei da Televisão 75/79, de 29 de Novembro de 1979, e o estatuto da empresa (Decreto-Lei nº 321/80), de 22 de Agosto, mantinham o modelo de governamentalização da RTP (Carvalho, 2009, p. 273). Repare-se que cinco dos seis membros do Conselho de Gestão eram nomeados pelo governo e o sexto era nomeado pelos trabalhadores.

A morte de Sá Carneiro, no final de 1980, lança a AD numa crise profunda, o que dará origem ao governo do Bloco Central e a um acordo de regime entre os partidos da maioria, tendo por objectivo o fim da tutela militar na esfera política portuguesa. A verdade é que este período de transição democrática - não já “para o socialismo”, como era norma referir nos pós-25 de Abril, corresponde agora ao final desse desígnio revolucionário que progressivamente se vai esbatendo nos primeiros anos da década, apesar da instabilidade e incipiente institucionalização do regime constitucional de então. No que se refere do sistema de media, foi muito clara a tendência para uma progressiva instrumentalização e um controlo da RTP, modelo que aliás passa a ser enunciado segundo princípios ideológicos, como se o novo sistema político-partidário procurasse uma nova legitimação no contexto da institucionalização e normalização do regime.

Por outro lado, fazendo jus ao modelo político e mediático do próprio bloco conservador-liberal, emergem, em paralelo, a questão da fragmentação do sistema televisivo e das novas tecnologias de distribuição de sinal, e, fundamentalmente, a liberalização da Lei da Televisão, a par da necessidade da entrada de novos canais de televisão no sistema de media nacional onde pontuava ainda o monopólio da RTP. De facto, a paisagem mediática estava em grande mudança na Europa com a emergência do cabo e do satélite, e em Portugal num contexto já de candidatura do país à Comunidade europeia - no nosso caso tratava-se, afinal, de uma das últimas democracias europeias a manter o sistema de monopólio televisivo no audiovisual -, serão os próprios socialistas a aderirem progressivamente à causa da liberalização da lei da TV, iniciada pelos conservadores, tal como Mário Mesquita (1993) referiu. Mesquita invocava nomeadamente o pensamento jurídico de Adelino Amaro da Costa, que considerou que a própria Constituição não impediria soluções diversas, como, por exemplo, a subconcessão, ou outro tipo de colaborações em períodos de programação específicos, por exemplo. Ou, eventualmente, ainda, permitiria uma declinação do modelo público através de um novo canal destinado à educação (Carvalho, 2009, p. 69), tese aliás defendida pelo próprio ministro da educação Fraústo da Silva em 1981.

A questão da televisão da Igreja não seria estranha a todo este movimento. Verificada a dificuldade do sistema político em encontrar uma solução rápida para a modernização do país nesta matéria, seriam as entidades confessionais a tentá-lo, de forma, aliás, muito insistente e persistente. Em relação a este ponto em concreto - o caso da televisão da Igreja em Portugal no pós-25 de Abril, desenvolvemos um estudo aprofundado (Cádima, 2013), onde concluímos que, de facto, este tema, e a concessão posterior de um canal de TV à Igreja Católica portuguesa foi, de facto, mais uma originalidade portuguesa. Pode dizer-se neste caso, com toda a propriedade, que o Estado português quis ser mais papista que o Papa, emergindo aqui claramente uma questão político-religiosa, não sob o ponto de vista de uma crise ou de um conflito entre o Estado e a Igreja, mas uma discriminação entre o Estado e a sociedade em geral, beneficiando aqui claramente uma entidade, confessional no caso, em desfavor de outras, religiosas ou laicas. Houve, portanto, neste caso, uma proximidade demasiado perigosa do sistema político relativamente à Igreja Católica. Tal como referimos então, “ao longo de toda a história da TVI/Quatro, parece ser sobretudo evidente uma cumplicidade jurídico-política do Estado e do sistema político para com os objectivos mediáticos da Igreja Católica portuguesa” (Cádima, 2013, p. 136). Para Warren Agee e Nelson Traquina, agora no contexto da análise da autonomia do campo jornalístico face ao poder político, a RTP foi, afinal, “um caso exemplar da condição ‘frustrada’ do Quarto Poder português” (s/d: 109). Quer no domínio da informação, com crescentes obstáculos à actividade dos conselhos de redação da RTP, quer no que se refere à programação do serviço público de televisão, Proença de Carvalho, enquanto presidente da RTP (1981-83) assumirá então, como vimos, a continuação do “desígnio” invocado por Cunha Rego. Ficou famoso o seu pensamento nesta matéria em entrevista dada ao Expresso (17/4/1982): “Quando os constituintes decidiram da exclusividade das actividades de televisão por parte do Estado entendiam que o Estado devia controlar a televisão, e por isso não há que pensar numa RTP independente do Estado”.

Curiosamente, na área socialista, havia quem se orientava pela mesma estratégia. João Tito de Morais, membro da CA da RTP (1984-85), referiria algo semelhante: “(…) As administrações deverão reflectir a mudança qualitativa que os resultados eleitorais expressam” (Agee e Traquina, s/d: 109-110). Os autores descrevem bem este período nesta sua obra: a confirmação da falta de independência e autonomia da TV pública, bem como das pressões governamentais e, inclusive, da administração, sobretudo na área da informação da RTP, viriam a ser comprovadas por uma comissão parlamentar de inquérito em Julho de 1985. Estávamos em vésperas das eleições de Outubro de 1985 e Cavaco Silva, líder emergente do PSD, acusava o governo do “bloco central”, em plena campanha para as legislativas, de instrumentalizar a RTP. Logo que assume o poder, Cavaco demite a administração de Palma Carlos. O novo governo social-democrata fará depois uma primeira tentativa de alteração da Lei da Televisão, no sentido de possibilitar a concessão de um canal à Igreja, mas tal não viria a ser aprovado durante a curta duração do governo.

Tratou-se, de um modo geral, de mais um período negro na história da RTP, com vários episódios mais em destaque: Cunha Rego, para além de ficar conhecido pela sua defesa da RTP enquanto “aparelho ideológico do Estado”, foi também “censor” do Ano Camões: em plenas comemorações do IV centenário da morte de Camões, a 6 de Junho de 1980, Vítor Cunha Rego, nessa mesma qualidade de presidente do Conselho de Administração da RTP, dirige-se através da RTP ao país numa intervenção televisiva para justificar o injustificável - a censura televisiva ao Ano Camões, considerando que existia “um sistema de produção de filmes alheio aos interesses desta casa”, e daí o cancelamento de outras produções previstas no âmbito das comemorações na RTP. Mas outros episódios de tipo censório e persecutório ocorreram nesse período, para além da orientação geral da informação sob controlo e avessa ao pluralismo político-partidário; o impedimento da participação do Partido Comunista no programa Face a Face, o não tratamento do período eleitoral, a humilhação da candidatura de Ramalho Eanes à Presidência (Cunha Rego havia saído da RTP para a Comissão de Honra de Soares Carneiro), a perseguição às cooperativas de produção (Cinequipa, Cinequanon, Centro Português de Cinema, Arca-Filmes e outras), que entretanto perdiam os seus contratos com a RTP no início da década, deixando toda a produção independente em Portugal numa situação de extrema precariedade e os melhores profissionais de cinema e televisão praticamente sem trabalho. A própria crítica televisiva tomava posição pública por ocasião dos 25 anos da RTP (7/3/1982), tendo todos os críticos de televisão à época, dos diferentes quadrantes, onde se contavam, por exemplo, Mário Castrim (Diário de Lisboa), Jorge Leitão Ramos (Expresso), Orlando Neves (Diário de Notícias), Penha Coutinho (O Dia), Correia da Fonseca (Diário), e o próprio autor deste artigo (Portugal Hoje) publicado um comunicado conjunto onde alertavam a opinião pública nomeadamente para a “infração permanente a regras elementares de deontologia (…), falta de isenção e objectividade” da informação; e para a ausência dos “valores da cultura portuguesa” e a “banalidade da programação” subordinada a “obscuros interesses comerciais” na RTP. Era, pois, por de mais evidente, no início dos anos 80, que o serviço público de televisão estava ao serviço da maioria política emergente.

A era da concorrência

A indefinição do sistema político-partidário após o fim da AD e a bipolarização ao centro, entre os actores políticos principais do Bloco Central na primeira metade dos anos 80, iria portanto conduzir à maioria absoluta do social-democrata Cavaco Silva, que assim reactivava a maioria de centro-direita da própria AD. Regressava também o modelo do aparelho ideológico de controlo dos media e em particular da televisão com o domínio dos tempos da informação televisiva quer pelo partido que suportava o governo (PSD), quer pelo próprio governo (Cádima, 2010).

Ora, é precisamente num contexto um tanto paradoxal de controlo político da informação televisiva, por um lado, e de controlo “comercial” absoluto da programação do serviço público, que o governo de Cavaco Silva anuncia finalmente a abertura da televisão à iniciativa privada. Na prática, tratava-se de uma abertura legislativa com algum impudor de permeio, uma vez que o monopólio incumbente adoptava uma estratégia de “armadilhamento” do terreno no plano da programação televisiva criando de imediato barreiras à entrada, quer através dos exclusivos com a Globo, quer por via da aquisição excessiva de catálogos de programas nos mercados internacionais. Por outro lado, a RTP reforçava esta estratégia de antecipação da concorrência com a redefinição do modelo de programação da RTP2, que surgia agora de forma complementar à RTP1, libertando o primeiro canal para um descomprometimento com a missão de serviço público que lhe era inerente e para a guerra de audiências que estava próxima.

Este foi, à altura, um facto de ampla discussão e de crítica pública nos media, designadamente por parte dos oponentes ao concurso para os novos canais, que depois viria a ser atribuído a dois dos três projectos concorrentes, como se sabe. De um lado, a SIC, que iniciaria as emissões a 6 de Outubro de 1992, projecto do ex-primeiro ministro Francisco Pinto Balsemão e, com início a 20 de Fevereiro de 1993, a TVI/Quatro, liderada pelo ex-ministro da Educação, Roberto Carneiro, com participação maioritária de organismos da Igreja Católica portuguesa. Pelo caminho ficava o projecto TV1 - Rede Independente, S.A., liderado pelo ex-presidente da RTP, Proença de Carvalho, projecto ligado ao grupo empresarial que detinha o jornal Correio da Manhã (Presselivre). Ficava então definitivamente fechado o longo ciclo do monopólio do Estado na televisão com a assinatura do contrato de concessão do serviço público de televisão, entre a RTP e o governo liderado por Cavaco Silva, em Março de 1993. Através deste documento, com base na Lei da Televisão de Setembro de 1990, o Estado pretendia garantir e responsabilizar o serviço público de televisão, por um lado, pelo cumprimento da sua missão, designadamente nos planos da informação e da programação, e, por outro, garantindo as respectivas indemnizações compensatórias à concessionária.

E tal como Nelson Traquina escrevia, após a liberalização da lei da televisão em Portugal: “There has been a considerable time lag in the development and implementation of media policy, a lack of coherence in the policy, and poor execution of the policy. In the case of Portugal, the lack of coherency in the objectives of policy under the Social-Democratic government (1985-1995) obscures another, more important, objective government control of the audiovisual sector” (Traquina, 1998, p.34). De facto, verificou-se uma certa displicência política e legislativa nesta matéria - e com a sua notória gravidade, como se viria a verificar posteriormente ao longo das décadas seguintes - por parte do governo de então. A primeira grande dificuldade, liminarmente colocada de parte pelo sistema político e de governo, dizia respeito à insuficiência do mercado da publicidade para suportar três operadores televisivos em concorrência, ao que se teria de juntar ainda o sector da rádio e da imprensa. Tal como foi discutido à época, para muitos observadores - e mesmo operadores do sector -, era evidente que não deveria haver mercado publicitário bastante em Portugal para um sistema de media em que entrassem de uma vez dois novos operadores de televisão com os respectivos canais comerciais generalistas. Acrescia que as condições do concurso eram extremamente benévolas para os novos entrantes, ou seja, o governo, numa área de tão elevado impacto público, económico e societal, nem sequer impunha cadernos de encargos aos novos operadores. Como bem observou Nelson Traquina, “É precisamente na questão dos ‘cadernos de encargos’ que é possível encontrar uma das maiores brechas no edifício jurídico da paisagem audiovisual portuguesa” (1997, p.51).

Um dos principais nomes do jornalismo em Portugal no pós-25 de Abril, Vicente Jorge Silva, enunciou de forma muito clara a essência da questão, quando se referiu à “forma irresponsável e aventureira como se procedeu, num Governo chefiado por Cavaco Silva, ao licenciamento de dois canais televisivos privados” (Silva, 2006, 29 de Março). Para o antigo director do Expresso e também fundador do Público, esta decisão “provocou a desregulação selvagem da paisagem audiovisual portuguesa”. Mas não só a paisagem audiovisual… Todo o sistema de media viria a sofrer gravemente com o impacto desta decisão. Vicente Jorge Silva referia ainda algo que nos parece de primordial importância na análise retrospectiva que merece ser feita de todo este período. É que da “concorrência feroz” a que então se passa a assistir resulta não somente uma degradação da qualidade da oferta televisiva em geral, “numa espiral incontrolável de vulgaridade”, como também viria a própria imprensa “(não apenas a chamada ‘popular’, mas também a dita de ‘referência’), empurrando-a para uma sintonia, até por motivos de sobrevivência comercial, com o nivelamento por baixo do ‘modelo televisivo’” (Silva, 2006, 29 de Março). Outra era a questão dos mimetismos e as estratégias de contra-programação muito ‘igualizadas’ entre público e privado, como referia o crítico João Lopes: “rapidamente a nova oferta instalou uma sensação de repetição, primeiro, desilusão, depois, repulsa, às vezes” (1995, p. 11).

Em matéria de degradação da informação as críticas e a avaliação negativa vinham, inclusivamente, do interior da RTP e de alguns dos próprios jornalistas do serviço público. Foi o caso de José Manuel Barata-Feyo, que considerava que o “telelixo informativo, o mais nocivo de todos, chegou a Portugal pela mão da RTP e dos seus Telejornais, em meados de 1991” (2002, p. 157). Para Barata-Feyo algo de substantivo teria acontecido no serviço público nesta fase de transição para a concorrência, e essa teria sido uma mutação para opções de tipo comercial na esfera editorial da informação: “Em 1993, tive oportunidade de ver aplicar, na RTP o novo critério editorial vigente: ‘isto vende ou isto não vende?’” (Barata-Feyo, 2002, p.29). Ou de antigos jornalistas agora a trabalhar na TV comercial, como foi o caso de António Prata: “(…) optaram por manter a RTP numa rota indefinida, que cada um vai adaptando à vontade dos poderes e dos interesses de ocasião” (Prata, 2017, 14 de Fevereiro).

A evolução da concorrência televisiva virá a ser muito negativa para a RTP. De facto, o serviço público não consegue competir nesse espaço errado onde pretendia posicionar-se de um ponto de vista comercial. A SIC, por seu lado, rapidamente ganha o exclusivo das novelas com a Globo e esse factor vai ser decisivo para que o canal liderado por Pinto Balsemão passe a líder absoluto de audiência em Portugal a partir de 1995. Era da área política que vinha então a expressão mais crítica deste quadro de degradação progressiva da RTP. A afirmação era de Alberto Arons de Carvalho, deputado da oposição à altura: “Será só a lei a culpada do pesado e insustentável silêncio da AACS sobre a forma como os dois canais da RTP desrespeitam o contrato de concessão do serviço público de televisão e fazem concorrência desleal aos canais privados?” (Carvalho, 1994, 15 de Março).

Nelson Traquina tinha assim razão quando reconhecia que a política social-democrata de “desregulação selvagem” (Traquina, 1997, p. 51; Traquina, 1998, p. 35) acabou por ter consequências inevitáveis nessa batalha praticamente sem limites pelas audiências na televisão portuguesa da era da concorrência. O que, inevitavelmente, viria a retirar capacidade ao serviço público para manter a sua missão, e sobretudo para defender a qualidade e a diversidade na sua programação, reenviando-o para a luta pelo mercado. Mais a mais com a agravante de lhe ser retirada a taxa televisiva e a rede de emissão - recorde-se a alienação da rede à Portugal Telecom por valores que se veio a verificar serem altamente penalizadores para o serviço público, passando este a ter de alugar à PT a mesma operação que era a sua. Toda esta desregulação originaria, já no final de 1995, aquando do termo da gover-nação social-democrata, uma situação extremamente crítica para o serviço público de rádio e televisão, mergulhado agora numa “tremenda dívida económica e numa profunda crise de identidade” (Traquina, 1998, p. 36).

Conclusão

O “quarto equívoco” (Mesquita, 2003) ou o “quarto poder frustrado” (Agee e Traquina, s/d) são designações utilizadas, portanto, por Mário Mesquita e por Nelson Traquina e Warren Agee nas suas obras em referência, para procurar definir de forma assertiva e sintética toda uma história complexa do período revolucionário e pós-revolucionário em Portugal após o 25 de Abril. É um facto que a instrumentalização e as relações do sistema político com o sistema de media em Portugal ao longo desse período foram, por assim dizer, “assintomáticas”, isto é, integravam o “vírus” deste sistema de facilitações mútuas e sobretudo de controlo ou “sequestro” dos media pelo sistema político, sem que esse conúbio fosse em boa parte das vezes detectado pela opinião pública, ou denunciado pelos próprios agentes no terreno (Chaves, 2003, 25 de Abril), os próprios responsáveis editoriais dos meios de comunicação à época, envolvidos nas lutas político-partidárias e no controlo das redações.

Por outro lado, no plano legal e jurídico-administrativo, a continuada intervenção do Estado neste processo de desregulação conduziria a uma rápida desagregação sectorial transformando os principais media e grupos de comunicação em empresas regularmente deficitárias, acumulando os principais meios tradicionais do sector, nos primeiros anos do novo século - e após a década de ouro dos anos 90, em matéria de investimento publicitário - uma dívida superior a mil milhões de euros. Nada de substancialmente diferente se alterou desde então, tendo-se agravado o quadro geral da comunicação social em Portugal, nomeadamente no sector da imprensa, em resultado da complexa situação entretanto surgida com a Internet e a migração dos media para o digital.

Se é um facto que a bolha “dotcom”, no final dos anos 90, teve já os seus impactos no contexto do mercado português da comunicação social, tendo levado à falência as primeiras experiências de portais de grupos de comunicação em Portugal, a verdade é que a debilidade do sector dos media começa, paradoxalmente, na década de maior investimento publicitário no pós-25 de Abril (anos 90) e portanto, antes ainda dos primeiros efeitos da era digital neste negócio, que depois se foi consolidando, embora com diversíssimas fragilidades, mais para o final na primeira década deste novo século. Da demissão do Estado e da “desregulação selvagem” de que falava Nelson Traquina ainda hoje se sentem os impactos. E, muito provavelmente, se irão continuar a sentir, pelo menos enquanto o digital - e o seu potencial tecnológico auto-regulatório e de desintermediação - não vier anular por completo os erros, manipulações e enviesamentos criados pelo sistema político-partidário português designadamente nos anos 80 e 90. Dir-se-ia que o sector dos media em Portugal nunca mais recuperou dos vários ciclos desse conúbio e da regular gestão político-partidária e de interesses que foram sendo habituais ao longo de décadas após o 25 de Abril. As consequências mais visíveis de tudo isso verificam-se hoje, de modo, aliás, bastante crítico, muito em particular no plano da precariedade do campo jornalístico, que é justamente o ponto mais sensível no que diz respeito quer à defesa do sistema democrático, quer à consolidação do princípio constitucional da liberdade de imprensa e da independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico.

 

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Submetido| Received: 2020.04.24. Aceite | Accepted: 2020.06.02

 

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico

 

Nota biográfica

Francisco Rui Cádima é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Investigador Responsável do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA, é diretor da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: 231F-D7BA-F635. Scopus Author ID: 57063529500 Email: frcadima@fcsh.unl.pt

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