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Media & Jornalismo

Print version ISSN 1645-5681On-line version ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa Dec. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_9 

ARTIGO

Big Show Cristina Ferreira: emoção e entretenimento na televisão popular portuguesa

Big Show Cristina Ferreira: emotion and entertainment in Portuguese popular television

Carla Baptista*
https://orcid.org/0000-0002-8188-3567

Marisa Torres da Silva**
https://orcid.org/0000-0003-1136-4232

Allan Herison Ferreira***
https://orcid.org/0000-0003-3606-2089

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA. carla.baptista@fcsh.unl.pt

** Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA marisatorresilva@fcsh.unl.pt

*** Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA ahferreira@campus.fcsh.unl.pt


 

RESUMO

Este artigo aborda a narrativa televisiva contemporânea popular a partir de uma análise do talk show diário apresentado por Cristina Ferreira na SIC até 17 de julho de 2020. O sucesso do Programa da Cristina é enquadrado de um ponto de vista histórico, estabelecendo continuidades com a obra de Nelson Traquina, Big Show Media (1997). Cristina Ferreira é uma celebridade da televisão popular portuguesa e constrói no seu programa uma performance de género ancorada na lógica paradoxal do pós-feminismo. A sua versatilidade é visível na transversalidade da estratégia de divulgação do programa nas redes sociais, designadamente no Instagram e no Facebook, onde se ampliam os públicos através da mobilização instrumental de outros influenciadores digitais.

Palavras chave: televisão popular; entretenimento; género; redes sociais; Cristina Ferreira; SIC


 

ABSTRACT

This article deals with the popular contemporary television narrative from an analysis of the daily talk show presented by Cristina Ferreira on the SIC channel until July 17th 2020. The success of Cristina’s Program is framed from a historical point of view, establishing continuity with the work of Nelson Traquina, Big Show Media (1997). Cristina Ferreira is a celebrity of popular Portuguese television and builds in her show a gender performance grounded in the paradoxical logic of post-feminism.

Her versatility is visible in the transversality of the dissemination strategy of the TV program on social networks, namely in Instagram and Facebook, where the audiences are broadened through the instrumental mobilization of other digital influencers.

Keywords: popular television; entertainment; gender; social media; Cristina Ferreira; SIC


 

Introdução - Entreter para ganhar

A televisão popular é uma das mais fascinantes criações da humanidade. As razões pelas quais pessoas em todo o mundo continuam a sentar-se, em média, quatro horas por dia em frente à televisão para verem “programas completamente confrangedores onde nada tem pés nem cabeça e tudo faz sentir uma enorme vergonha”, nas palavras de Luisa Jacobetty, citadas por Nelson Traquina (1997, p.12), são um mistério. A jornalista do antigo semanário Independente referia-se a um fenómeno televisivo já longínquo, o reality show chamado Big Show SIC, mas a indústria televisiva produz regularmente novos formatos que atraem milhões de telespetadores e constroem celebridades.

O Programa da Cristina, um talk show matinal lançado a 7 de janeiro de 2019 e que teve o seu término a 17 de julho de 2020[1], foi, à escala portuguesa, um desses exemplos. Cristina Ferreira tem uma longa e sólida carreira de apresentadora de programas de entretenimento, iniciada em 2004. A sua híper mediatizada transferência da TVI para a SIC, como protagonista do programa que leva o seu nome, empurrou a SIC para a posição de canal líder, que perdera há 12 anos. Exibido diariamente entre as 10 e as 13h, concorre na TVI e na RTP1 com formatos semelhantes e rapidamente se destacou, atraindo quase meio milhão de espetadores, um número muito superior ao dos seus competidores.

O sucesso alcançado revalorizou o espaço da manhã e deu consistência a uma estratégia de programação que passa por intensificar as ligações entre os vários períodos televisivos (manhã, tarde, prime, madrugada), criando continuidades e indiferenciando cada vez mais entretenimento e informação. Outro efeito foi uma alteração nos estilos comunicativos de alguns pivôs da SIC, que tendem a aproximar-se da informalidade, empatia e proximidade que popularizaram Cristina Ferreira. No livro Big Show Media, publicado em 1997, em plena liderança SIC, Nelson Traquina analisou as razões do sucesso da estação-prodígio. Lançada em Outubro de 1992, em 32 meses a SIC tornou-se líder de audiências e assim se manteve até 2006, quando perdeu a “guerra” para a TVI. Através da análise das grelhas de programação, concluiu que a informação, a marca identitária e diferenciadora do projeto SIC, depressa perdeu peso para uma estratégia cujo objetivo era chegar ao top das audiências num curto espaço de tempo. O estudo de Nelson Traquina é claríssimo na identificação das linhas de força que conduziram a programação global da SIC:

Redução do papel da informação; sensível reforço da presença das telenovelas; queda do papel das sitcoms e dos programas dramáticos e o aumento constante dos programas recreativos (...) a informação sofreu uma queda drástica em 1994: os 30,6% passam a 14,1% (Traquina, 1997, p. 116).

Emídio Rangel, na altura diretor de Informação e de Programação, assumiu esta orientação numa entrevista ao jornal A Capital, por ocasião do 3º aniversário: “Qual o problema de se fazer entretenimento pelo entretenimento? Não é crime. É um dos objetivos de qualquer televisão” (Traquina, 1997, p. 113).

O atual regresso da SIC à liderança das audiências relaciona-se com este passado recente. Nelson Traquina situa o fenómeno SIC dentro de uma conjuntura de desregulamentação da atividade televisiva em Portugal:

O grande vencedor, pelo menos na fase em que reina a política audiovisual cavaquista [1987-1995], foi o modelo norte-americano de televisão, isto é, a primazia da televisão comercial, em detrimento do modelo tradicional, no continente europeu, da televisão de serviço público (Traquina, 1997, p. 113).

Na década de 90 do século XX, após 36 anos de monopólio da RTP, a SIC ganhou a aposta reforçando a grelha com telenovelas e programas de entretenimento adaptados de sucessos internacionais: concursos de talentos como Chuva de Estrelas, reality shows de expiação emocional, como Perdoa-me, talk shows sobre temas “polémicos” (a homossexualidade, o adultério) abordados de forma não convencional, como Muita Lôco, concursos onde o público participava e se deixava humilhar a troco de dinheiro, como Não se Esqueça da sua Escova de Dentes, o primeiro a mostrar na televisão portuguesa um nu integral masculino.

Isabel Ferin Cunha (2004) carateriza o período entre 1993-2002, como “guerra de audiências, parte I (1993-1998) e parte II (1999-2002)”. No primeiro período, a SIC beneficiou da assinatura de um acordo de exclusividade com a Globo e assentou a sua estratégia na dupla telenovela brasileira-telejornal-telenovela brasileira. No segundo período, surge um “novo estilo televisivo”, disputado entre a SIC e a TVI, visível em “ajustamentos internos das grelhas e nas compatibilizações externas das mesmas, em função de critérios subordinados a análises pragmáticas de rentabilização” (Cunha, 2004, p.170).

O título do livro de Nelson Traquina, Big Show Media, refere-se a esta mistura explosiva de bizarria, strip-tease emocional, comédias ligeiras e erotizadas, espectacularização do quotidiano e valorização da experiência do cidadão anónimo, destinada a propiciar divertimento a toda a gente. Estas tendências contagiaram os três canais existentes, gerando convergência na programação e hibridez de géneros e formatos. Eram conteúdos que os portugueses não estavam habituados a ver e, nessa medida, existiu uma certa dose de risco e inovação.

Na segunda década do século XXI, a SIC recorreu a um formato, o talk show apresentado por figuras carismáticas, homens e mulheres, que existe desde a origem da televisão comercial, na década de 50 do século XX. No contexto de mediatização profunda e digitalização que marca a sociedade contemporânea, um programa que produz conteúdos esquemáticos para públicos negligenciados, durante um segmento desvalorizado por anunciantes e programadores, o day time, alavancou a recuperação da estação e fez da apresentadora um fenómeno de popularidade nacional.

O sucesso desta estratégia só é compreensível num contexto social, político e mediático complexo. Há 30 anos não existiam redes sociais, que hoje integram as estratégias de programação, produção e partilha dos conteúdos televisivos. As formas de consumir televisão, os discursos sobre a realidade, as representações de género, os alinhamentos políticos, as preocupações sociais, são outros.

O Programa da Cristina é um produto comunicacional complexo, que se desenvolve nos meios audiovisual e digital. Mobiliza sinergias internas, construindo momentos significativos que repercutem noutros espaços da programação, incluindo nos informativos. As redes sociais são uma plataforma suplementar onde se constroem alianças com influenciadores digitais e exploram as interações com os seguidores. O universo de figuras secundárias que desempenham papéis menores no programa traz diversidade e transversalidade ao público, alimenta processos mútuos de celebrização e reforça a formidável máquina de televendas montada pela produção. Neste artigo, partimos de uma análise temática do Programa da Cristina, que decorreu durante uma semana (entre 30 de março e 3 de junho de 2020), em plena crise pandémica, procurando compreender o seu enquadramento dentro da narrativa da televisão popular. A abordagem é complementada com uma perspetiva de género, centrada na performance da apresentadora. Realizamos ainda a análise das redes sociais associadas ao programa e ao perfil de Cristina Ferreira, no Facebook e no Instagram, medindo as principais interações (seguidores, gostos, partilhas).

Televisão Popular - Narrativas culturais hegemónicas

O entretenimento televisivo é o “lugar cultural mais universal e familiar”, escreveu Todd Gitlin (1979, p. 253). Os programas de entretenimento são produtos culturais, portadores de sentido e geradores de interações entre produtores e audiências. Gitlin refere que a cultura comercial, magnificada pela televisão e cristalizada numa formação que apelida “hegemonia do prime time”, não manufatura a ideologia, antes a reproduz e amplifica. A prevalência e a padronização do entretenimento televisivo, patente na circulação global de formatos fixos franchisados que recolhem sucesso em qualquer parte do mundo, revela uma fórmula pouco permeável à mudança social. Mas, por outro lado, há uma rotação grande, os formatos, géneros e personagens acusam desgaste e obsolescência e exigem uma renovação constante. Este ciclo expõe os bens culturais à mesma lógica das mercadorias. A mudança é instrumental e fabricada para neutralizar a oposição, domesticar o conflito e manter a hegemonia. Esta forma de exercício hegemónico caracteriza um sistema político não autoritário, o capitalismo liberal, com capacidade para integrar as formas culturais, emergentes ou residuais, que ameaçam a sua preservação. Em princípio, só o inassimilável é rejeitado. Este processo contribui para a natureza “contraditória” e complexa da cultura hegemónica, que organiza, industrializa e comodifica todos os recursos de luta que se apresentam: discursos, representações, crenças, desejos, reparações. Todd Gitlin (1979, p. 264) dá o exemplo da cultura dominante norte-americana que, embora encoraje as pessoas a trabalharem arduamente, simultaneamente sugere que a satisfação verdadeira provém do tempo livre e do lazer. A criação de possibilidades que parecem infinitas e radicadas em escolhas autónomas fortalece a cultura hegemónica, ao mesmo tempo que vai invisibilizando as “alternativas profundas” e trivializando as tensões.

O sucesso alcançado pelo Programa da Cristina deve ser enquadrado nesta complexidade estrutural. Existe também uma dimensão intrínseca ao campo mediático. Os talk shows apresentados por figuras carismáticas celebrizadas pela televisão são quase tão antigos como a própria televisão comercial. Mas a sua estrutura narrativa foi mudando. Todd Gitlin (1979) refere como a maioria dos programas das décadas de 50 e 60 do século XX eram sobre pessoas felizes sem problemas. Nos anos 70, passaram a focar-se em pessoas infelizes com capacidade para lidarem com as suas vidas difíceis e, assim, serem felizes. A sensação de bem-estar, confiança nas ações individuais e coletivas, e partilha emocional propiciada pelo entretenimento da televisão popular, radica na promessa inalterada da felicidade como um bem maior acessível a todos. A televisão organiza e preenche a vida quotidiana com uma mistura previsível e regular de crenças, rotinas e mitos, transformando-se num guia para “ser no mundo” e contribuindo para criar o sentimento de “segurança ontológica” (Giddens, 1990). Inscreve-se como um “objeto transicional” que medeia a relação do indivíduo consigo e com os outros, conferindo agência e estrutura.

O Programa da Cristina: o presente despolitizado pelo discurso epidítico

O Programa da Cristina enquadra-se numa tradição de talk shows televisivos que proliferaram nos EUA na década de 90 do século XX, tornando os seus apresentadores tão populares que o título do programa é o seu nome. São exemplos Larry King, Oprah Winfrey, Jerry Springer, Rosie O’ Donnell, Jenny Jones e tantos outros. O formato prevê um tema principal de discussão, seja o jornalismo, a política, as celebridades ou os escândalos sexuais; um único apresentador; vários convidados; e múltiplos momentos cómicos, musicais ou de reportagem. McKenzie (2000) caracteriza-os como “issue oriented”, ou seja, apesar da presença carismática da figura do(a) apresentador(a), é o tema que constrói a ligação principal com os telespetadores, criando oportunidades de participação num “grande diálogo societal”. Embora sejam mais baratos de produzir do que os programas jornalísticos ou de ficção, exigem um esforço considerável de pesquisa e recolha de assuntos cativantes, e um investimento na circulação dos convidados.

Em 1994, Silverstone escreveu que a televisão era cada vez mais um medium “numa relação” com a cultura de convergência tecnológica. O programa que analisamos prolonga a sua visibilidade e influência através de uma gestão profissional da pegada online e offline. Dentro da lógica de programação da SIC, é um espaço onde confluem outras vedetas e celebridades da estação, que são convidadas regulares ou performers ocasionais (podem assegurar rubricas, como a culinária, ou fazer entrevistas). Fora da SIC, alimenta o envolvimento com a comunidade de fãs através de uma presença forte nas redes sociais, sobretudo o Instagram e o Facebook. As interações com influenciadores digitais são frequentes. Estes são recrutados em esferas diversificadas (o teatro, as telenovelas, a música) e trazem transversalidade e diversidade ao público. Beneficiam da popularidade do programa, onde uma breve aparição (cozinhar, mostrar roupa, exibir um talento particular, como decorar a casa, divulgar um livro ou outro bem cultural) tem um efeito positivo no aumento das vendas dos produtos associados. O Programa da Cristina funciona como uma máquina autopoiética (Luhmann, 1984), onde não há propriamente transmissão de alguma coisa, mas sim, redundância. Podemos dizer, sem ironia, que o programa comunica.

O discurso epidítico é um dos três ramos discursivos definidos pela retórica clássica (juntamente com o político e judicial). Também apelidado de “cerimonial”, serve para culpar ou louvar as ações e o carácter de pessoas. O seu principal propósito não é veicular informação, mas conferir prazer, retirado da qualidade performativa do orador e da sensação de partilha afetiva gerada pelo consenso suscitado pelo tema. O foco do discurso epidítico é o presente, embora existam implicações para o futuro, dada a sua dimensão moral. As pessoas sentem-se compelidas a pensar e a agir de uma determinada forma, inspiradas pela cumplicidade que estabelecem no presente com as ações virtuosas de uma pessoa ou, pelo contrário, a repulsa que estas lhes inspiram. McKenzie (2000, p. 197) assinala como a validação factual é desenfatizada pelo género dos talk shows, encorajando um processo cognitivo em que o sentido se forma mais pela adesão empática às premissas da discussão do que pela exposição ao argumento.

O Programa da Cristina usa o discurso epidítico como dispositivo retórico. Os temas e os convidados têm uma ligação forte ao presente, e algumas rubricas, como a Crónica Criminal, bebem diretamente da atualidade jornalística: os crimes do dia alimentam uma conversa entre a apresentadora e os comentadores, não especialmente informados sobre os processos, mas que reproduzem uma ideologia centrada no louvor da ordem, no elogio das forças de segurança, na condenação dos magistrados que aplicam sentenças pouco punitivas e na empatia com as vítimas. Os convidados são estimulados a partilharem uma experiência de vida que suscita admiração e proximidade. Trata-se de um modelo de genuína incrustação na banalidade da existência humana, cuja qualidade mais palpável é, nas palavras de Silverstone (1994, p. 2), a sua “dailiness”, ou seja, a rotinização da vida social.

Ao nível simbólico, o cenário da casa funciona como metáfora da comunidade humana, reforçando o sentimento de bem-estar doméstico, a repetição de gestos de conforto e união, como a hospitalidade da anfitriã, a partilha da comida, da conversa e das agruras da vida. Do ponto de vista pragmático, é um espaço fortemente investido pela lógica mercantil, um autêntico centro comercial, onde todos os objetos são mostrados para serem desejados e comprados, incluindo os figurinos usados por Cristina Ferreira. O ritmo do programa é pontuado pelas televendas, terminando num concurso diário onde os telespetadores podem ganhar prémios fazendo chamadas de valor acrescentado, outra fonte importante de receitas. A apresentadora conversa com os vendedores de suplementos vitamínicos e pacotes de seguros de saúde, confirmando a excelência dos produtos e encorajando a sua compra, numa estratégia agressiva de marketing direto.

Televisão Popular e Política

Durante o período de análise desta investigação, Portugal viveu sob “estado de emergência”, declarado em 16 de março de 2020, devido à pandemia de Covid-19. O programa refletiu esta excecionalidade, convertendo a sua comunicação para os impactos da doença. Celebridades e figuras públicas, profissionais de saúde, trabalhadores sitiados em lares de idosos, motoristas de longo curso impedidos de chegar a casa, padres e artistas deram o seu testemunho, usando plataformas digitais, materializando uma experiência partilhada de isolamento social. Cristina Ferreira protagonizou a campanha montada pela Direção Geral de Saúde e usou o espaço do programa para difundir massivamente mensagens de apelo ao cumprimento do confinamento obrigatório. “Vamos ficar todos bem”, o lema da campanha, era repetido no final das conversas com os convidados, elogiados pela sua resiliência, solidariedade e criatividade na busca de soluções produtivas para enfrentar as medidas extremas. Foi neste contexto que o Primeiro-Ministro (PM), António Costa, se deslocou ao estúdio para ser entrevistado por Cristina Ferreira. A conversa ocorreu no dia 1 de abril e ocupou a parte final do programa. Este atingiu uma share recorde de 24,9%, sendo o 13º mais visto do dia, e a edição que atingiu o maior número de telespetadores desde a sua existência, uma média de 710 mil. Segundo a análise de audiências da agência Universal McCann, os concorrentes Você na TV (audiência média de 286 mil telespetadores e um share de 10,2%) e Praça da Alegria (audiência média de 274 mil telespetadores e um share de 9,9%), foram deixados bem para trás[2].

Cristina Ferreira entrevista regularmente políticos, criando sinergias entre o entretenimento e a informação que caracterizam a política de programação da SIC. No caso da entrevista ao PM, excertos editados, sem menção ao lugar original de produção, foram retransmitidos nos programas informativos da estação, incluindo no Jornal da Noite, e divulgados por outros órgãos de comunicação social. António Costa revelou no Programa da Cristina medidas políticas de interesse geral, relacionadas com a mitigação dos efeitos da perda de emprego causada pela pandemia. Foi despudoradamente elogiado pela sua prática governativa, uma situação improvável numa entrevista jornalística, onde o questionamento de políticos é marcado por um tom confrontativo, adversarial, com recurso ao contraditório e exigindo a demonstração de competência e prova (Clayman & Heritage, 2007).

Na entrevista realizada por Cristina Ferreira, desobrigada do cumprimento da deontologia jornalística, as dimensões humanas (o homem, o marido, o pai) conjugaram-se com as dimensões públicas (o governante, o líder político). Trata-se de um produto típico da esfera da comunicação política mediatizada, nos moldes definidos por Mário Mesquita (1995), com ganhos para os envolvidos: Cristina Ferreira creditou uma performance versátil; António Costa beneficiou da relação amigável com a televisão popular. Ao contrário de Walter Mondale, candidato derrotado nas eleições presidenciais norte-americanas de 1984 (nas quais ganhou Ronald Reagan), consegue “olhar as pessoas nos olhos” e passar mensagens “sérias” em programas de entretenimento”: “Modern politics requires mastery of television. I think you know I’ve never warmed up to television, and it’s never warmed up to me. I like to look people in the eye. There’s something about television I’ve never been comfortable with”[3] (citado por Denton, 1998, p. 7).

O impacto da popularização da política e, em particular, a sua convivialidade com o entretenimento televisivo, é um tema de estudo consolidado. Tereza Capelos e Doris Graber (2009) consideram que a presença de políticos em talk shows e programas de entretenimento aumenta a participação dos cidadãos na política e o escrutínio das elites. Nesse sentido, contribuem para aumentar o “QI cívico”. Num estudo baseado em entrevistas a telespetadores em 3 países - Estados Unidos, Holanda e Grécia - as autoras concluem:

We find that exposure to TV dramas leads to the acquisition of political insights and practical information and affects viewers’ discussion patterns. In addition, we show that the content of the shows informs viewers’ political opinions and allows them to draw parallels between their own lives and the political realities in other countries[4] (Capelos & Graber, 2009, p.1)

Capelos & Graber baseiam a sua convicção nos benefícios da “conversa social” que acontece após a exposição aos programas. A televisão popular tem a capacidade de gerar sensações de “togetherness” de uma forma mais eficaz do que a informação. Reconhecendo este potencial, consideramos que há um lado problemático na “comunidade política” informal gerada pela televisão popular. O ideal de cidadania promovido pelo Programa da Cristina será adequado a uma democracia moderna, marcada pela ausência de um “bem comum substantivo” (Mouffe, 1992) e pela indeterminação e incerteza? A invisibilização do conflito gera uma opacidade mistificadora mais propícia à recuperação da figura do cidadão-consumidor do que do cidadão-iluminado.

Pós-feminismo, domesticidade e muita emoção

O processo de comunicação mediática é uma arena importante na forma como os significados de género são continuamente negociados, reforçados e/ou desafiados - e, uma vez que os textos e imagens mediáticas têm impacto a nível cultural, social e político, exercem uma influência crucial no modo como a identidade é (re) construída e na maneira como as masculinidades e feminilidades (normativas) são representadas (Santos, Cerqueira, & Cabecinhas, 2018, pp. 3-4). É a partir deste prisma que nos propomos avaliar a performance de Cristina Ferreira no (e a partir do) seu programa, partindo de uma lente marcada pelos estudos feministas de media.

O percurso fulgurante de Cristina Ferreira pode ser visto como uma demonstração clara de uma sensibilidade pós-feminista que se baseia na ideia romantizada de “empowerment” e que coloca a ênfase no individualismo, operando em consonância com a retórica de uma imagem permanentemente trabalhada a nível mediático, assente nas ideologias liberais da escolha individual e na ideia de liberdade pessoal (Silveirinha, 2012, p. 96): “a de mulheres com liderança, fortes e determinadas, mas, acima de tudo, sensuais (e femininas)” (Souza, 2017, p. 81). Cristina Ferreira seria, assim, a prova cabal de que as mulheres podem ter (e ser) tudo: é apresentadora de televisão, é uma empresária de sucesso, tem uma revista e livros publicados, foi eleita por várias vezes a “mulher mais sexy de Portugal” e, de acordo com o estudo “Figuras Públicas e Digital Influencers”, realizado pela Marktest em 2019, é a mulher mais influente do país, com mais de um milhão de seguidores só no Instagram. Em entrevista ao jornal Público, por ocasião do lançamento de O Programa da Cristina, e ao assumir a igualdade de género como causa, a própria converge na ideia de um feminismo de carreira:

Essa [a igualdade de género], faço-a constantemente só pelas minhas acções, pela forma como mostro que se pode ser mulher e conseguir chegar onde queremos. É muito mais fácil para um homem do que para uma mulher e eu gosto de expressar essa mensagem de que não: também pode ser feito com mulheres sem haver qualquer tipo de negligência em relação à família e aos filhos. O meu filho tem tanta ou mais atenção do que o de uma mãe que tem trabalho das nove às cinco, certinho, e um fim-de-semana tranquilo (Wong & Lopes, 2019).

É um conceito de feminismo que visa libertar a mulher (enquanto indivíduo) num mundo dominado por homens - e não propriamente libertar as mulheres ao transformar a sociedade e a hegemonia das estruturas patriarcais - sublinhando a necessidade de tomarem controlo das suas vidas e atreverem-se a ser o que quiserem (Lachover, 2013, pp. 125-126).[5]

Essa visão cruza-se naturalmente com um percurso biográfico sobejamente replicado em entrevistas e no seu próprio programa, como alguém que veio “de baixo” (Cristina Ferreira fala frequentemente da sua infância na Malveira e da sua experiência como feirante[6]) e que é um exemplo de superação individual[7]. Partindo da perspetiva dos estudos sobre a cultura das celebridades, Cristina Ferreira consubstancia, aliás, a capacidade de ascensão social cujo mérito é, igualmente, reconhecido pelos outros, simbolizando por isso o significado cultural e social que é atribuído à individualidade (Jorge, 2009, p. 169).

A escolha hegemónica de papéis e identidades de género convencionalmente atribuídas a mulheres e a homens está muito patente na esfera do entretenimento, com representações que atualmente assumem contornos diversos (Carvalho & Santos, 2020, p. 123). No Programa da Cristina, a presença (silenciosa e passiva) do seu side-kick Ben[8] poderia indiciar uma subversão de uma imagem de masculinidade hegemónica que assenta na ideia de racionalidade, de controlo das emoções e de domínio (mantendo, porém, uma representação heteronormativa e, até podemos dizer, hipersexualizada). Cristina é a dona da casa, é ela que manda e dá ordens a Ben. É, por sua vez, Ben que desempenha algumas das tarefas associadas à ideia tradicional de feminilidade - como, por exemplo, cozinhar ou arrumar a casa e as compras. Por outro lado, Cristina explora fortemente o papel de adorno (ao nível da sua função no programa e, também, da sua imagem) de Ben quando, na emissão de 3 de abril, concretiza uma decisão que tinha tomado no programa de 30 de março: pintar-lhe o cabelo em direto (ao mesmo tempo que empreende uma despudorada publicidade a uma marca de cosmética).

Se poderíamos eventualmente indiciar aqui uma representação mais matizada no que respeita a papéis de género convencionais - mas que, por outro lado, não implica, de todo, uma desestabilização da ordem social dominante - o mesmo não podemos dizer da dinâmica do próprio programa e, também, da performance de Cristina Ferreira. A encenação de domesticidade (que, aliás, encaixa na perfeição num determinado ideal de feminilidade, confinado ao espaço doméstico) é aqui central. Em entrevista ao jornal Público, Cristina Ferreira assume:

Eu sou a dona da casa, sendo que sou dona de casa também porque a casa sendo minha... (...). Quando passámos a ideia ao arquitecto, dissemos ‘não queremos um estúdio que pareça uma casa; nós queremos uma casa que pareça um estúdio (Wong & Lopes , 2019).

Essa encenação perpassa por várias instâncias do programa, na maneira como Cristina Ferreira se move pelo estúdio, do balcão da “cozinha” ao espaço da “sala de estar”, onde conversa e recebe os seus convidados, que inclusive tocam à campainha para entrar. Cristina Ferreira é uma self-made woman que mobiliza uma construção do aparato privado e íntimo como palco de visibilidade mediática. Essa simulação de entrada do espetador na esfera da domesticidade é constantemente trabalhada ao longo das emissões - quando Cristina troca as suas sandálias de salto alto por chinelas, quase no final do programa, ou quando uma emissão arranca com Cristina sentada no balcão da “cozinha”, enquanto conversa com Ben, que está a descascar uma banana para comer, e se “apercebe” que já está no ar, dizendo: “Estávamos aqui sossegadinhos, os dois, à espera de si... Bom dia!”

A diluição da distinção entre público e privado é também viabilizada através de uma exuberância da intimidade, em que as emoções - em particular o choro catártico - têm um papel crucial. Nos últimos anos, com efeito, a chamada “viragem emocional” no âmbito dos estudos de media tem procurado colocar em destaque o modo como as emoções e o afeto circulam na ecologia mediática atual, para o “bem” (por fomentarem compaixão e tornarem visíveis experiências vividas individuais) mas também para o “mal”, enquanto ferramenta de ódio e de exclusão (Wahl-Jorgensen, 2019, p. 2). No caso do Programa da Cristina, a dimensão de afetividade, na ótica de uma ética do cuidado (Camponez, 2014), pode ser vista como uma estratégia deliberada no âmbito da economia política dos media, no sentido de maximização das audiências, mas também pode, em alguns momentos, ser promotora de um maior envolvimento cívico (Silveirinha, 2016, p. 129).

Também de um ponto de vista feminista, os novos formatos [imprensa tablóide, talk shows] podem constituir um meio valioso de interessar as audiências por questões políticas que de outra forma seriam excessivamente abstractas (...). Ao analisar os potenciais de politização e despolitização dos diferentes formatos e estilos mediáticos que combinam o pessoal e o político [Myra MacDonald] conclui que a personalização e a caracterização de personalidades na imprensa apelam à nossa empatia, implicando-nos num imaginário capaz de nos levar além da nossa experiência individual (Silveirinha, 2006, p. 83).

O tema do cuidado e das cuidadoras esteve aliás presente na emissão de 31 de março, através do relato das experiências quotidianas de uma cuidadora de um casal de idosos e de uma trabalhadora de um lar da Misericórdia, em tempo de confinamento pandémico. Ironicamente, logo de seguida, a rubrica Crónica Criminal centrou-se na insolvência de lares e no despejo de idosos, no Cartaxo.

Por outro lado, e se podemos, no Programa da Cristina, indiciar maiores oportunidades para a visibilidade de questões da esfera íntima e privada no espaço público mediatizado - como, por exemplo, temáticas como a violência doméstica ou a violência sexual, ainda que a sua discussão surja como profundamente individualizada e privatizada, porque não há política no pessoal neste tipo de análises (Silveirinha, 1998, p. 10) - verifica-se simultaneamente um fechamento da representação feminina no quadro da cultura mediática pós-feminista, muito ligada ao consumo. A vigilância sobre o corpo feminino é um desses vetores: nos discursos contemporâneos sobre género nos media, “o corpo é apresentado como a fonte de poder da mulher e, como sempre, desde logo desorganizado, requerendo por isso monitorização, vigilância, disciplina e transformação (...) constantes, de modo a conformar-se aos juízos de valor redutores sobre a atratividade feminina” (Gill, 2007, p. 149). Em mais um movimento de convocação do espetador para a sua intimidade, Cristina Ferreira mostra, aparentando indignação, a visibilidade dos seus cabelos brancos, “ainda por cima brilhantes”. Poderia até ser oportunidade para um statement contrariador das normas estritas do julgamento sobre a beleza feminina - mas, logo de seguida, publicita uma marca de coloração, para “disfarçar as raízes”.

Redes sociais - A imagem pessoal como locomotiva de marketing

Partindo da perspetiva do bem cultural como mercadoria que vigora na economia capitalista liberal, ummodelo de talk show tradicionalmente americano como O Programa da Cristina, esquematizado de forma a alcançar a audiência das massas, adaptou-se à realidade das redes sociais a fim de sustentar e fortalecer a adesão empática de seus espetadores e estreitar a comunicação com eles, criando uma sensação extra de intimidade do cidadão comum com a celebridade. A publicação de fotos e vídeos de curta duração realizada em simultâneo ao programa televisivo na rede social - como se fora a própria Cristina Ferreira a postar suas selfies enquanto realiza atividades quotidianas - permite que o público interaja com os temas apresentados e com os participantes e entrevistados por meio de comentários, atribuição de likes e, ao mesmo tempo, impulsione a audiência assíncrona do programa, extrapolando os limites da transmissão televisiva.

A importância dada a esse impulsionamento de audiência fica evidente quando se percebe que os perfis destinados a esta finalidade são geridos por uma equipa especializada em publicidade nas redes sociais e na web. O posicionamento do nome da apresentadora no ranking de buscas da ferramenta Google, bem como o seu perfil pessoal nas redes sociais, são administrados e monitorizados amiúde, oferecendo aos seguidores um conteúdo selecionado e controlado dos programas. Uma parte da estratégia para atrair o público mais utilizador das redes sociais, amplamente utilizada como ferramenta de divulgação, é contar com a participação dos influenciadores digitais. Cristina Ferreira é a segunda maior influenciadora digital portuguesa. O seu perfil pessoal, DailyCristina, é uma extensa vitrina no Instagram para acessórios, roupas, bijuterias, livros e revistas com sua assinatura.

O papel dos influenciadores digitais vem ganhando importância desde o início dos anos 2010 e o peso destes é mensurado pelo mercado publicitário de acordo com a quantidade de utilizadores e o volume de interações que são capazes de mobilizar entre os seus seguidores. Em volume de utilizadores ativos o Instagram não alcança os números da plataforma Facebook, que é proprietária da marca Instagram, nem de plataformas como o YouTube e o WhatsApp. Ainda assim, se o número de utilizadores do Instagram fosse comparado à lista de países mais populosos do mundo, este só perderia para a China e para a Índia. Um conjunto de pesquisas sobre a demografia da plataforma Instagram foi sintetizada por Mansoor Iqbal (2020). O seu artigo permite conhecer alguns dos fatores críticos que tornam o Instagram um paraíso dos influenciadores digitais. Em média, utilizadores do Instagram utilizam entre 25 a 32 minutos por dia na plataforma (os mais jovens tendem a gastar mais tempo utilizando o aplicativo). Os mais de mil milhões de usuários representam um mercado consumidor diferenciado devido à combinação do alto impacto visual e sintético dos conteúdos publicados nessa plataforma onde a maioria absoluta das publicações são de fotografias (73,5%) ou vídeos (13,7%)[9]. O Instagram é uma plataforma conhecida do público português. A lista mundial de contas com maior número de seguidores é encabeçada por Cristiano Ronaldo que no primeiro semestre de 2020 registava mais de 225 milhões de seguidores. Os números de Cristina Ferreira por meio de sua conta DailyCristina, com pouco menos de 1,3 milhão de seguidores, parecem até modestos quando comparados com as do campeão de futebol, mas é necessário considerar que a projeção do primeiro é de escala global, enquanto que o de Cristina é de alcance essencialmente nacional.

Cristina Ferreira utiliza uma estratégia comum no meio das celebridades para atuar nas redes sociais: a apresentadora mantém um perfil social desenhado cuidadosamente para a atividade nas redes sociais, separado do perfil utilizado para relações familiares e amizades próximas. Além do perfil dedicado à sua identidade de apresentadora (DailyCristina), mantém um perfil separado para o seu programa nas redes sociais Instagram e Facebook. Já para a identidade pessoal da apresentadora são mantidos perfis nas duas plataformas e também no Twitter. No início do período de recolha de dados sobre as redes sociais ligadas ao Programa da Cristina ficou patente o peso da sua rede social no Instagram em comparação com o Facebook. A página do Facebook do programa tinha pouco mais da 188 mil seguidores, metade do volume de seguidores do perfil do programa no Instagram (339 mil)[10]. Este dado serviu de critério para a concentração da análise das atividades do programa na plataforma Instagram de redes sociais digitais.

Quando os perfis da apresentadora e do programa são comparados em relação ao volume e evolução do número de seguidores no Instagram fica mais nítida a diferença de proporções de alcance nas redes sociais entre a personagem e o produto televisivo. Em 02 de abril de 2020, as duas contas de perfil (do programa e da apresentadora) apresentaram respetivamente os seguintes números de publicações: 2.241 (programa) e 7.815 (apresentadora). O número de seguidores do perfil do programa era de 0,34 milhão contra 1,2 milhões de seguidores no perfil da apresentadora; enquanto o perfil do programa seguia outras 4 contas, o perfil de Cristina seguia outros 947 perfis. Estes dados ajudam a observar como o perfil de figura pública de Cristina Ferreira é maior em comparação com o perfil do programa.

 

 

A conta do programa em 11 de junho de 2020 (10 semanas ou 70 dias após a primeira vaga de recolha de dados) apresentou um total de 2.565 publicações e mantinha 352 mil seguidores. Houve no período um aumento de 14,5% na quantidade de publicações (média de 4,6 por dia - incluindo finais de semana) e aumento de 3,5% na quantidade de seguidores (média de 170 por dia).

 

 

Cristina Ferreira atua nas redes sociais principalmente por meio do perfil DailyCristina que está registado nas principais plataformas de media sociais digitais[11] como o Instagram, o Facebook e o Twitter. A tabela abaixo permite observar os dados de tráfego e associações em cada uma das plataformas em março de 2020:

 

 

Os dados das principais redes sociais digitais (ou virtuais) do programa e da apresentadora, quando comparados, permitem constatar que a marca pessoal DailyCristina tem peso muito superior ao do programa (conforme se observa nas tabelas acima). No Facebook, o perfil da apresentadora agrega mais que o dobro de seguidores em comparação com a página do programa. No Instagram, a proporção é de 3,5 vezes mais seguidores para o perfil da apresentadora em comparação com o perfil do programa. Estes dados podem indicar o peso da imagem pessoal para o sucesso do programa, que fez com que a contratação de Cristina Ferreira pela SIC fosse das mais caras na história da televisão portuguesa. Também nos leva a constatar que a imagem pessoal da apresentadora empresta prestígio ao programa, agregando audiência e atraindo consumidores para os anunciantes do canal. Ao compararmos publicações similares feitas entre as contas do programa e da apresentadora chegamos ao seguinte gráfico (em escala logarítmica):

 

 

Os dados exibidos no gráfico acima permitem observar que o comportamento de interação dos seguidores da conta do programa e da conta da apresentadora no Instagram é similar em relação ao mesmo tema (seja sobre o Primeiro Ministro - em linhas vermelhas, seja sobre o figurino da apresentadora - em linhas azuis) e que temáticas tão distintas quanto a prosaica definição do figurino e a receção do líder do governo acabam por rivalizar em total de interações (likes). No caso da visita do PM ao programa na qualidade de entrevistado, que na audiência televisiva teve um share recorde de 24,9%, a postagem relativa à visita no Instagram perdeu por ligeira vantagem para a postagem sobre o figurino de Cristina, tanto na publicação feita pela conta da apresentadora, quanto na publicação feita pela conta do programa.

A diferença entre a audiência da televisão e a do Instagram ao mesmo conteúdo permite que se levantem algumas hipóteses, tais como: i) o público do programa televisivo não é o mesmo público da conta do programa no Instagram, e portanto, regista uma diferença de interesses e preferências; o público do Instagram que segue o perfil da apresentadora tende a ser formado mais especificamente por admiradores da celebridade Cristina Ferreira; ii) os utilizadores do Instagram, por já estarem mais familiarizados com as redes sociais, têm contacto frequente com publicações do Primeiro Ministro através das suas contas no Instagram e também no Twitter, onde é bastante ativo, levando a que a entrevista mais intimista com o Primeiro Ministro não tenha sido para eles uma novidade; iii) a participação do PM no Programa da Cristina repercutiu com publicações dispersas por diversas contas nas redes sociais, e não só por conta do programa da Cristina, sendo provável que a sua audiência tenha acompanhado esse padrão disperso.

Todos esses mecanismos que circundam e dão suporte ao constante esforço dos programas televisivos para alcançar mais audiência são fruto de adaptações que a cultura hegemónica impõe a seus produtores, uma vez que utiliza para a oferta de bens culturais a mesma lógica da oferta de mercadorias. Os bens culturais são transformados em produtos industrializados ou commodities de modo a expandir ao máximo o seu público, e consequentemente, seus lucros.

Conclusão

Neste artigo procuramos situar o sucesso alcançado pelo Programa da Cristina no contexto de reativação de um formato antigo da televisão popular - o talk show matinal protagonizado por uma figura carismática. O programa prolonga, no essencial, as características do formato original, designadamente, a despolitização dos conteúdos, a busca de consensos gerados por uma apresentação esquemática de diferenças sempre resolúveis e o reforço positivo da crença, típica da ficção popular, de que “vai ficar tudo bem”. Esta frase, transformada em slogan da campanha cívica que mobilizou os portugueses para adotarem os comportamentos impostos pela situação de confinamento causada pela pandemia de Covid-19, foi amplamente repetida na semana que analisamos. Nesse sentido, o programa foi um valioso coadjuvante na criação de uma perceção coletiva favorável ao respeito pelo confinamento. A frase metaforiza a ideologia que orienta a lógica da televisão popular, sustentada pela opacização do conflito que atravessa as sociedades e pela mitigação dos dilemas (éticos, políticos, económicos) que separam e dividem as várias comunidades.

A condição de espetador trabalhada pela televisão popular opera na direção oposta, a da amálgama e da partilha. O Programa da Cristina usa um tom emocional para gerar efeitos afetivos e constrói a maioria das suas rubricas na base de testemunhos, histórias de vida e comentários ligeiros sobre situações do quotidiano e pessoas anónimas. Salientamos a forma como são potenciados dois eixos de divulgação e reforço das audiências característicos do ambiente digital em que vivemos. Por um lado, o programa mantém um diálogo aberto com outros espaços da estação de televisão. Em função do seu interesse ou popularidade, conteúdos gerados pelo programa podem reverberar ao longo do dia, incluindo no Jornal da Noite. Por outro, as redes sociais são alimentadas de forma estratégica para aumentarem a transversalidade dos públicos cativados pelo programa. O fechamento no espaço da casa que abriga a maioria das interações, com escassos momentos de reportagem realizados no exterior, é contrariado pelo simulacro do desdobramento. As divisões são habitadas e investidas do modo expectável (a cozinha para a comida e as conversas, a sala para receber convidados, o quarto para as frequentes mudanças de roupa e alguma erotização dos comportamentos entre a apresentadora e o seu parceiro de programa), simulando a partilha íntima e quase fusional com o quotidiano da apresentadora. Cristina Ferreira constrói uma personagem compósita, que integra e dissolve os paradoxos do pós-feminismo: é uma rainha doméstica, uma celebridade familiar, uma empresária-mãe, uma diva afetuosa, uma entrevistadora versátil, que circula com fluência entre os anónimos e os poderosos.

 

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Submetido| Received: 2020.06.29. Aceite | Accepted: 2020.07.07

 

Notas biográficas

Carla Baptista é Professora Associada do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Coordena o GI media e Jornalismo do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA e é sub-diretora da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: FF1B-13F5-CE58. Scopus Author ID: 57189266192 Email: carla.baptista@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

Marisa Torres da Silva é Professora Auxiliar do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. É investigadora do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA e é sub-diretora da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: E811-91FA-DC5E. Scopus Author ID: 56431105300 Email: marisatorresilva@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

Allan Herison Ferreira é doutorando do Curso de Ciências da Comunicação na Universidade NOVA de Lisboa. e do ICNOVA. Tem Mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo. É um dos fundadores e coordenadores do Laboratório de Pesquisa Social (LAPS) do Departamento de Sociologia da USP - ImaRgens.

Ciência ID: 6914-7F85-FF34. Email: ahferreira@campus.fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

[1] Nesta data, Cristina Ferreira deixou a SIC para ser acionista da holding da Media Capital e diretora de entretenimento e ficção da TVI. A saída da apresentadora, cujo contrato só terminava a 30 de novembro de 2022, deixou a SIC (e o mundo mediático) em choque. Na rede social Instagram, três semanas depois, Cristina Ferreira explicou o regresso à TVI: “Sabem quando não há mais nada para fazer porque o melhor já foi feito? É isso.”

[2] https://www.dinheirovivo.pt/empresas/costa-foi-ao-programa-da-cristina-foi-o-mais-visto-do-ano/

[3] Em tradução livre: “A política moderna exige o domínio da televisão. Eu acho que você sabe que eu nunca me senti confortável com a televisão, nem ela comigo. Eu gosto de olhar as pessoas nos olhos. Há algo na televisão com o qual eu nunca me senti confortável.”

[4] Acessível em https://ecpr.eu/Filestore/PaperProposal/56abe3e8-2d1c-4d3c-973398c15188323a.pdf

[5] Aquando da sua híper mediatizada saída da SIC para a TVI, a 17 de julho de 2020, Cristina Ferreira usou o seu perfil no Instagram, no dia 7 de agosto, para falar mais uma vez de questões de género, assumindo a ambição de querer ter poder de decisão e, por outro lado, a dualidade de critérios com que esse desejo é visto sendo mulher, referindo-se aos ataques misóginos de que foi alvo nas redes sociais. “É ambição? É. Vou ganhar mais dinheiro? Vou. Tenho mais poder? Tenho. E sabem que mais? Sou mulher (...). A nenhum homem, quando muda, são atribuídas as palavras ‘ganância’, ‘traidor’ ou ‘sedento de poder’. Num homem é crescimento. Talvez por isso me tenham dito, nos últimos tempos, que tenho uns grandes tomates. Deixem-me dizer-vos que não. Tenho mamas e uma vagina.”

[6] Na emissão do Programa da Cristina de 31 de março de 2020, ao entrevistar dois feirantes que assistiram à paralisação das suas atividades devido à crise pandémica, Cristina Ferreira recorda as suas origens e a experiência passada nas feiras (“Eu sei o que é estar ali, com o público que vai à nossa banca semanalmente”); ou, quando o seu parceiro de programa Ben a apelida de “vidrinhos” porque ficou com o nariz a pingar depois de ter apanhado chuva, reage de imediato: “Cala-te que eu sou do campo! Do campo alguém é vidrinhos? Estás a brincar... Cala-te! Está a chover e a gente de chinelo no pé...”

[7] O sociólogo Jules Naudet, em seu artigo Devenir Dominant de 2002, expõe como os membros já integrados às elites económicas, intelectuais ou burocráticas tendem a valorizar suas origens simples ou de situação de pobreza quando consideram suas posições sociais seguras o suficiente para maior exposição autobiográfica.

[8] Rúben Vieira, ex-assistente de realização do programa e agora co-apresentador, depois da saída de Cláudio Ramos para a TVI, em fevereiro de 2020.

[9] O restante das publicações deriva de aplicativos diversos integrados à plataforma e sempre estão relacionados ao apelo visual.

[10] Dados de redes sociais obtidos por meio das plataformas Facebook e Instagram atribuídas ao Programa da Cristina: acesso em 29-03-2020.

[11] Perfil nas redes sociais: https://www.instagram.com/dailycristina/, https://twitter.com/dailycristina, https://www.facebook.com/Daily.Cristina.blog/

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