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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_12 

ARTIGO

Populismo em Portugal: o factor media

Populism in Portugal: the media factor

Estrela Serrano*
https://orcid.org/0000-0001-8497-7254

* Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA estrela.serrano@sapo.pt


 

RESUMO

Partidos populistas têm obtido sucesso eleitoral na Europa ultrapassando partidos que dominaram o sistema partidário nas últimas décadas. As explicações para o sucesso destes partidos têm-se centrado essencialmente nas desigualdades económicas entre países, na insegurança e no aumento da imigração e do número de refugiados. A importância do populismo não pode ser hoje ignorada. Em Portugal, o sistema partidário tem-se mantido estável com dois partidos hegemónicos ao centro (Partido Socialista e Partido Social Democrata) alternando entre si no poder, com ou sem coligações com partidos mais pequenos à direita ou com acordos à esquerda, estes últimos na legislatura de 2016-2019. As eleições legislativas de 2019 vieram contudo provocar um “abanão” na estabilidade do sistema com a entrada no Parlamento de três novas formações políticas e o enfraquecimento dos dois partidos situados à direita do espectro parlamentar.

Com base nas abordagens conceptuais do populismo este artigo procura manifestações desse fenómeno no discurso político do líder do novo partido parlamentar Chega, tal como representado na imprensa e na televisão, em três acontecimentos que obtiveram grande mediatização. Concomitantemente, a análise procura perceber até que ponto os media podem funcionar como catalisadores ou inibidores de causas e sentimentos populistas. A análise de discurso e a análise de conteúdo são os principais instrumentos de análise utilizados.

Palavras chave: comunicação política; processo democrático; media; populismo; jornalismo; estratégias discursivas


 

ABSTRACT

Populist parties have achieved electoral success in Europe overtaking parties that have dominated the party system in recent decades. The explanations for the success of these parties have centered essentially on economic inequalities between countries, insecurity and an increase in immigration and in the number of refugees. The importance of populism cannot be ignored today. In Portugal, the party system has remained stable with two hegemonic parties at the center (Socialist Party and Social Democratic Party) alternating between them in power, with or without coalitions with smaller parties on the right or with agreements on the left, the latter in the 2016-2019 legislature. The 2019 legislative elections, however, caused a “shake-up” in the stability of the system with the entry into Parliament of three new political formations and the weakening of the two parties located to the right of the parliamentary spectrum.

Based on conceptual approaches to populism, this article seeks manifestations of this phenomenon in the political discourse of the líder of the new parliamentary party Chega, as represented in the press and on television, on the occasion of three events that achieved great media coverage. The analysis seeks to understand the extent to which the media can act as catalysts or inhibitors of populist causes and feelings. Discourse analysis and content analysis are the main analysis tools used.

Keywords: political communication; democratic process; media; populism; journalism; discursive strategies


 

1. Introdução

Este artigo pretende homenagear a memória e o legado científico de Nelson Traquina. O fenómeno aqui analisado - o populismo e os media - não era ainda visível em Portugal, na última vez que o encontrei, em Outubro de 2018, numa das suas curtas deslocações a Portugal. Mas a presidência populista de Donald Trump constituía já para ele motivo de inquietação e de reflexão. Para Traquina era claro que o fenómeno chegaria a Portugal e que era preciso estudá-lo não apenas na sua vertente estritamente política mas sobretudo mediática. O legado científico de Nelson Traquina continua hoje a ser uma base essencial para compreender os desafios que fenómenos como o populismo representam para os media e o jornalismo. Este artigo é de certa maneira um contributo para a compreensão desses desafios.

O populismo não é um fenómeno dos nossos dias. Como afirmou Ionescu já em 1969 (citado em Gidron e Bonikowski, 2013, p. 3),

(…) não pode, no momento, haver dúvida sobre a importância do populismo. Mas ninguém é bem claro sobre exatamente o que é. Como doutrina ou como movimento, é evasivo e protetivo. Move-se em todos os lugares, mas em muitas e contraditórias formas.

Na literatura comparada existe concordância geral em que o populismo é conflituante, camaleónico, ligado à cultura e dependente do contexto (Taggart, 2000; Arter, 2010). Nas suas várias formas o populismo prevalece em diferentes países e regiões. De acordo com Gidron e Bonikowski (2013), uma boa definição de populismo consiste em encará-lo como uma estratégia política através da qual um líder personalista busca ou exerce o poder executivo com base no apoio direto, não mediado e não instituído, de um grande número de seguidores em grande parte não organizados. Independentemente da sua ideologia, os líderes de movimentos e partidos populistas possuem características comuns que contribuem claramente para a sua popularidade e para o seu sucesso político; na maioria dos casos são figuras carismáticas e sabem como lidar com os media. Embora não representem o povo, consideram-se parte integrante dele. Em geral, adoptam atitudes extravagantes e procuram temas controversos que atraem a atenção dos media.

O populismo é um conceito central nos debates actuais sobre política e media. O termo é usado em diferentes contextos e com diferentes significados por cientistas sociais e jornalistas para referirem diversos fenómenos. Mudde e Kaltwasser (2017) definem populismo como uma ideologia que divide a sociedade em dois campos antagónicos - o “povo puro” versus a “elite corrupta” - e privilegia acima de tudo a vontade geral do povo. Independentemente de sua ideologia, os líderes dos movimentos populistas e respectivos partidos têm geralmente características em comum que contribuem para sua popularidade: na maioria dos casos, são figuras carismáticas com bom conhecimento dos media, recursos que se combinam para garantirem notoriedade pública e visibilidade mediática que usam como capital político para atingirem os seus objetivos (Mazzoleni, 2003). Faz parte da estratégia dos líderes populistas tocarem assuntos sensíveis de interesse popular, por exemplo a imigração que assegura constante interesse dos media. Pode dizer-se que quase todos os líderes populistas exibem personalidades extravagantes e buscam agendas altamente controversas que atraem o escrutínio dos media.

Carisma pessoal e conhecimento dos media tiveram um papel significativo nas origens e subsequente construção de movimentos populistas. Segundo Mazzoleni (2003,p. 2) a pesquisa mais recente sobre ciência política desconsiderou amplamente estes dois atributos porque o carisma não é mensurável, enquanto os meios de comunicação usam metodologias que não se coadunam facilmente com a abordagem da maioria dos trabalhos de ciência política. De facto, a literatura sobre populismo confirma que são poucos os trabalhos que se debruçam sobre como os media funcionam como iniciadores ou catalisadores de sentimentos públicos favoráveis aos líderes populistas. Com base na literatura sobre o populismo na Europa e na América Latina, o arti go analisa representações desse fenómeno na cobertura jornalística dos temas e do discurso político do líder de um dos novos partidos que adquiriu representação no parlamento português nas eleições legislativas de 2019. O corpus de análise abrange as edições eletrónicas dos principais diários e televisões nacionais e a análise incide sobre a cobertura de quatro acontecimentos (casos) ocorridos em 2019 e 2020 que alcançaram grande mediatização. Trata-se de uma abordagem exploratória que não pretende ser estatisticamente representativa.

2. Populismo: abordagens conceptuais

De acordo com Hawkins (2010), o estudo do populismo não é de hoje, porém falta consenso sobre questões básicas de definição e operacionalização do conceito. Num trabalho sobre o Chavismo na Venezuela, este autor defende que o populismo é uma visão maniqueísta do mundo expressa numa linguagem identificável não através de um léxico específico mas de elementos difusos como tom, metáfora e tema. Para Hawkins (2010), o populismo não é totalmente anti-democrático mas não é pluralista. Movimentos populistas como o Chavismo não são apenas o produto de crises económicas, globalização ou insatisfação com a democracia, embora esses fatores contribuam para ele. Hawkins (2010) defende uma abordagem do populismo que coloque as ideias no centro da investigação usando a análise qualitativa tradicional do discurso.

Por seu turno, Albertazzi (2008) refere que o populismo se baseia numa premissa democrática radical, segundo a qual o “povo” visto como uma entidade moral homogénea e o seu “senso comum” devem sempre prevalecer e ter precedência sobre qualquer restrição institucional, constitucional e internacional, como sejam tratados, direitos humanos, proteção das minorias, decisões judiciais, organismos reguladores, etc. O apelo ao “povo” ou à “nação” repousam numa desvalorização de qualquer outra divisão funcional.

Os líderes populistas baseiam a sua influência em recursos pessoais em vez de em organizações intermediárias, como os partidos políticos, e vêem quaisquer instituições fora de seu controle como obstáculos a serem contornados ou superados. Não têm um compromisso firme com ideologias e princípios, concentrando-se na busca do poder pessoal e encaram os adversários como ameaças profundas.

Fatores ideológicos e sociais podem ser definidos como condições que facilitam o surgimento do populismo. No entanto, as condições mais significativas para o sucesso do populismo são políticas. Mény e Surel (2002) indicam três condições políticas decisivas para o surgimento do populismo contemporâneo: (1) a crise dos partidos políticos enquanto estruturas de intermediação política; (2) a personalização do poder político; (3) o crescente papel dos media na vida política. Para estes autores, apesar de essas condições serem em grande parte produto irreversível das sociedades contemporâneas, funcionam de maneiras diferentes em diferentes países. É o peso relativo dessas condições e a sua combinação com diferentes situações sociais que abre espaço ao populismo. De facto, embora os partidos políticos, enquanto estruturas de intermediação política, tenham enfraquecido em quase todos os sistemas políticos, o populismo não surgiu em todos eles. Da mesma forma, a política tornou-se personalizada em todas as democracias contemporâneas mas os líderes populistas não surgiram em todas elas.

Num trabalho sobre as motivações que levam muitos cidadãos a aderirem ao populismo, Elchardus e Spruyt (2014) concluíram que o populismo aparece principalmente como uma reação a um diagnóstico social que se traduz no sentimento de que a sociedade está em declínio, incapaz de enfrentar os novos desafios da diversidade e da globalização. Muitos cidadãos sentem que os padrões de sociabilidade e de bem-estar, a economia e a democracia estão a ser minados e que a crescente diversidade cria tensão e conflitos. As causas são atribuídas à incapacidade dos políticos de encontrarem soluções adequadas e daí a crença em soluções de senso comum, como impedir a imigração, diminuir a diversidade e fechar fronteiras. O populismo surge nesse contexto como uma política de esperança capaz de resolver problemas onde a política tradicional falhou. Para Elchardus e Spruyt (2014), uma melhor compreensão dos sentimentos de privação e de declínio que caracterizam muitas sociedades constituiria um passo importante para explicar a ascensão do populismo.

3. Abordagens metodológicas para o estudo empírico do populismo

Apesar das dificuldades em torno de uma definição fechada de populismo, é possível identificar claramente as principais características do fenómeno de modo a permitir análises comparativas em contextos diversos. Gidron e Bonikowski (2013) concentraram a investigação em três principais abordagens conceptuais que emergem da ciência política e da sociologia: populismo como ideologia, como estilo discursivo e como forma de mobilização política. Vejamos como a literatura as distingue e que estratégias podem ser delineadas para a sua operacionalização.

a. Populismo como ideologia

Uma definição do populismo como ideologia foi sugerida por Mudde (2004, p.543) numa série de estudos que se concentram principalmente nos partidos populistas de direita europeus e que consideram a sociedade separada em dois grupos homogéneos e antagônicos: “o povo puro” versus “a elite corrupta”. A ideologia é definida como um conjunto de ideias vagamente inter-relacionadas e não como sistemas de pensamento enquadrados na teoria política. Definir o populismo como uma ideologia tem implicações na forma de investigar o tema. Se o populismo é visto principalmente como um conjunto de ideias, os estudos empíricos incidem preferencialmente no programa, nos documentos internos do partido e nas declarações dos atores políticos, através de análises qualitativas.

b. Populismo como estilo discursivo

Uma abordagem alternativa define o populismo como um estilo discursivo ao invés de uma ideologia.

Analisando o populismo na América Latina, de la Torre (2000, p. 4) define populismo como uma “retórica que constrói a política como a luta moral e ética entre o povo e a oligarquia”. Por seu turno, adotando uma perspectiva comparada que analisa os casos de populismo no tempo e no lugar, Hawkins (2009, 2010) define o populismo como um discurso maniqueísta que atribui uma dimensão moral binária a conflitos políticos. No mesmo espírito, Kazin (1995), na sua análise histórica do populismo americano, define o populismo como uma linguagem usada por aqueles que afirmam falar pela maioria dos americanos. Para Kazin, o populismo não é uma ideologia que capta as crenças fundamentais de atores políticos particulares, mas sim um modo de expressão política usado seletiva e estrategicamente pela direita e pela esquerda. Apesar das claras semelhanças entre as abordagens ideológica e discursiva, as diferenças possuem implicações teóricas e metodológicas significativas. Considerar o populismo como um estilo discursivo pressupõe a sua operacionalização como instâncias específicas de expressão política (Bos et al., 2013) em vez de como atributos essenciais de partidos políticos ou líderes políticos que podem ser apreendidos por uma simples dicotomia populista/não populista. Dado que os atores políticos podem moldar e reformular a sua retórica e o seu estilo mais facilmente do que a sua ideologia oficial, essa distinção permite identificar variações entre diversos tipos de políticas populistas e entre actores políticos (Hawkins, 2009; Pauwels, 2011). Num plano teórico, Laclau (2005 p. 16) elimina da análise do populismo qualquer atitude de condenação ética.

c. Populismo como estratégia política

Em contraste com as abordagens ideológica e discursiva alguns investigadores encaram o populismo como estratégia política. Esta abordagem, particularmente prevalecente entre sociólogos e cientistas políticos que estudam a América Latina, (Madrid, 2008 p. 482) relaciona o populismo como a forma de organização política que visa a redistribuição económica e a nacionalização dos recursos naturais com apoio de uma fração significativa da população, contra os interesses económicos da maioria da população. É um “populismo de esquerda”. O que importa aqui não é o conteúdo das políticas ou o estilo do discurso dos atores políticos mas sim a relação dos líderes com os eleitores. O populismo como estratégia política coloca a ênfase na identidade do líder e na sua relação com o povo. Pressupõe estruturas partidárias centralizadas na figura do líder carismático. Taggart (2000, p. 101) nota que precisamente devido à ausência de valores o populismo assenta na personalidade do líder. Contudo, a personalidade do líder como elemento fundamental do populismo é desvalorizada por Barr (2009) baseado em casos de populismo sem líder carismático (o Perú de Alberto Fujimore). Barr (2009, p. 38) vê o populismo como “um movimento de massas liderado por um outsider ou dissidente que busca obter ou manter o poder usando apelos anti-establishment e ligações plebiscitárias”.

Por seu turno, Jansen (2011) considera que as três abordagens - populismo como ideologia, estilo discursivo e estratégia política - não são mutuamente exclusivas e sublinha duas dimensões do populismo: mobilização e discurso. A mobilização populista é definida como qualquer projeto político de larga escala que mobilize setores sociais até agora marginalizados em ações políticas publicamente visíveis e controversas, ao mesmo tempo que articula uma retórica nacionalista anti-elite que valoriza as pessoas comuns e postula a unidade social natural e a virtuosidade inerente ao “povo “” (Jansen, 2011, p. 84) em oposição com a “elite” antipopular.

Embora os autores apontem para áreas de sobreposição entre estas três abordagens, enfatizam as suas diferenças teóricas, uma vez que essas diferenças possuem implicações relevantes no estudo empírico do populismo.

4. O factor media

A mediatização da comunicação política é indissociável da comercialização dos media e da luta pelas audiências, fenómenos que não sendo de hoje se relacionam com a dinâmica do populismo uma vez que constituem o pano de fundo adequado a mensagens populistas. A política-espectáculo e o primado da imagem exigem que os líderes políticos sejam bons “atores”, capazes de dominarem os instrumentos da representação e de chegarem a uma audiência ávida de emoções. Taguieff (2002) destaca o domínio da televisão por líderes populistas e afirma que o populismo já se transformou em telepopulismo. Os líderes populistas encontram na televisão o meio por excelência para um discurso espetacular e emocional sobre a realidade social e política.

Des Freedman (2018) aponta responsabilidades aos media na disseminação do populismo, nomeadamente a sua orientação para o mercado e a obediência à lógica comercial em detrimento dos valores culturais. O autor identifica falhas na indústria, nas políticas e na regulação dos media, que considera capturadas por interesses privados ignorando o interesse público. Porém, refere também causas estruturais relacionadas com o racismo, a insegurança e o desencanto com o sistema político.

A literatura sobre populismo confirma que os media podem funcionar como catalisadores de reivindicações populistas transformando-se, ainda que inconscientemente, em aliados de líderes populistas (Mazzoleni, 2003, p. 2). Por seu turno, estes utilizam determinadas estratégias para captarem a atenção e o apoio dos media. Os traços de personalidade, o estilo de comunicação, a aparência física das principais figuras dos partidos e movimentos populistas funcionam como pólos de atração dos media populares e tabloides. No entanto, para ser eficaz, um líder populista recorre a técnicas de gestão da comunicação correspondentes à crescente profissionalização da ação política. Mazzoleni et al. (2003) identificam as principais componentes das estratégias de comunicação dos líderes populistas: 1) colocar-se no papel de oprimido; 2) dominar as técnicas profissionais de comunicação; 3) contactar as massas; 4) ter acesso aos media; 5) criar eventos; 6) promover ataques táticos aos media.

Num número especial da revista The International Journal of Press/Politics dedicado ao tema, de Vreese et al (2018, p. 3) propõem como base conceptual para a compreensão do populismo encará-lo como fenómeno de comunicação - “uma expressão do conteúdo da comunicação política e do estilo de comunicação política”. De Vreese et al. partem da constatação de que para alcançarem os efeitos pretendidos as ideias populistas são melhor comunicadas discursivamente. A abordagem destes autores combina a visão do populismo centrada na ideologia de Mudde (2004) com a abordagem de Hawkin (2010) centrada no discurso, definindo este como combinando elementos de ideologia e retórica. Os autores invocam a crescente percepção entre os cientistas políticos de que o discurso é de importância crucial para a compreensão do populismo. Estudos sobre fenómenos populistas na Europa (Albertazzi, 2008) mostram que líderes e movimentos parecem muitas vezes depender de alguma cumplicidade mediática. Em muitos casos, os meios de comunicação podem ter contribuído para a legitimação de questões, palavras-chave e estilos de comunicação típicos dos líderes populistas. Contudo, o fator mediático não é a única variável a considerar. Ou seja, o papel dos media não pode ser separado dos outros fatores estruturais como a natureza do sistema político e as especificidades políticas sociais e culturais. A insatisfação relativa à política e aos políticos não é certamente provocada pelos meios de comunicação social mas ao alimentarem e manterem na agenda pública esse descontentamento os media criam um clima suscetível de ser explorado por políticos populistas.

Sendo a televisão o meio onde a política-espectáculo melhor se afirma, é também o que melhor serve de pano de fundo a manifestações de populismo. Porém, no contexto actual em que a paisagem mediática já não é dominada pelos media tradicionais, as redes sociais e outras plataformas digitais são cada vez mais importantes no modo como as pessoas acedem à informação e se envolvem na política e na vida pública. Não obstante, como refere Mazzoleni (2003, p. 2) a relação entre o populismo e os media tem merecido escassa investigação académica. Este artigo pretende ser um contributo para a análise dessa relação em Portugal no contexto que se seguiu às eleições legislativas de 2019.

5. As eleições legislativas de 6 de Outubro de 2019: os novos partidos com representação parlamentar

Até às eleições legislativas de 2019 a opinião publicada e os media nacionais eram unânimes na constatação de que os movimentos e os partidos populistas não tinham sucesso em Portugal, ao contrário do que acontecia noutros países europeus, como a Hungria, a Polónia a Finlândia ou a América de Trump e o Brasil de Bolsonaro. De facto, em Portugal o sistema partidário manteve-se estável até então, com dois partidos hegemónicos ao centro - Partido Socialista (PS) e Partido Social Democrata (PSD) - alternando entre si no poder, com ou sem coligações com os partidos mais pequenos à direita (Centro Democrático Social, CDS) ou com acordos à esquerda (Bloco de Esquerda - BE - e Partido Comunista Português, PCP), estes últimos na legislatura de 2016-2019. As eleições legislativas de 2019 vieram provocar um “abanão” na estabilidade do sistema com a entrada no Parlamento de três novas formações políticas e o enfraquecimento dos dois partidos (PSD e CDS) à direita do espectro parlamentar.

As eleições de 2019 alteraram pois significativamente o quadro parlamentar, não obstante os dois partidos maioritários desde 1975 se terem mantido como tal. Três novos partidos - Chega, Iniciativa Liberal e Livre[1] - elegeram, cada um, um deputado adquirindo representação parlamentar. (Figura 1)

 

 

Na distribuição dos assentos parlamentares, os deputados do Chega e da Iniciativa Liberal situam-se nas bancadas à direita e a deputada do Livre à esquerda. Embora a aritmética parlamentar tenha mantido uma maioria de esquerda (PS+BE+PCP) o PS optou por não formalizar qualquer acordo prévio com estes partidos.

Tratando-se de um governo minoritário sem acordos parlamentares, a estabilidade da governação ficou dependente de votações pontuais, transformando o Parlamento no centro da decisão política. Paralelamente, a expectativa criada em torno dos novos partidos ainda durante a campanha eleitoral contribuiu também para reforçar a atenção dos media ao Parlamento que se tornou o palco privilegiado de exibição dos novos partidos e dos seus líderes. O facto de os três novos partidos terem apenas um deputado acentuou a tendência de personalização da cobertura jornalística (Serrano, 2006), em prejuízo dos programas e das propostas para o país, apesar de em dois deles - Iniciativa Liberal e Livreos deputados eleitos não serem os líderes[2].

Nas redes sociais, particularmente no Facebook, as postagens dos líderes destes dois partidos foram objecto de grande número de visualizações e partilhas, em particular do líder do Chega devido às polémicas em que se envolveu. As edições eletrónicas dos media analisados reproduziram postagens de André Ventura no Facebook.

6. Objectivos e metodologia

O presente artigo analisa o populismo enquanto “expressão do conteúdo e do estilo de comunicação política” (de Vreese et al, 2018, p.3) do líder do novo partido Chega, André Ventura, e incide sobre a cobertura jornalística de quatro acontecimentos (casos) que mereceram larga referência nos media tradicionais, em particular nas suas edições electrónicas. Trata-se de uma análise de tipo qualitativo que não pretende ser estatisticamente representativa. O objectivo é identificar na mediatização das intervenções públicas de André Ventura relativas a esses acontecimentos os temas e o estilo discursivo apontados na literatura de referência como marcas de populismo (Kazin, 1995; Gidron e Bonikowski, 2013).

Os casos cuja cobertura jornalística se analisa são:

(1) Debate parlamentar do programa do novo governo saído das eleições legislativas de 2019 (03/10/2019 e 01/11/2019);

(2) Manifestação das forças de segurança pública frente ao Parlamento (21/10/2019).

(3) Proposta devolução do património das ex-colónias portuguesas às comunidades de origem (28/01/2020).

(4) Proposta de criação de um plano específico de confinamento para as comunidades ciganas, durante a pandemia COVID 19 (08/05/2020)

A escolha do líder do Chega deve-se ao interesse que a sua figura polémica e mediática desperta nos meios políticos e jornalísticos. Atente-se na descrição que dele faz o historiador Riccardo Marchi:

Líder jovem, assertivo, mediático, politicamente pragmático e ideologicamente flexível - características liquidadas como oportunismo e vazio pneumático pelos críticos e celebradas como facetas estrategicamente funcionais na época pós-ideológica pelos apoiantes - é uma figura inédita no espaço à direita do CDS desde 1974.[3]

No mesmo artigo, o autor define o Chega como “um partido populista de direita de cunho liberal-conservador para captar o maior número de descontentes de todo o espectro político e da abstenção”.

Na escolha do Chega e do seu líder pesou sobretudo o facto de lhe serem reconhecidas características que na literatura são atribuídas aos líderes populistas[4], entre as quais, (1) um bom conhecimento dos media e da sua linguagem - André Ventura foi até recentemente comentador de futebol num canal de televisão (CMTV) onde representava um dos maiores clubes de futebol do País e comentava assuntos jurídicos, e detinha uma coluna de opinião no jornal do mesmo grupo empresarial, Correio da Manhã, o diário português de maior audiência;[5] e possui forte presença nas redes sociais, entre as quais, um canal no Youtube[6]; (2) tem como tema central da sua agenda política os imigrantes e os ciganos, temas significativos na origem de movimentos populistas (Mazzoleni, 2003); (3) aposta na crítica ao regime constitucional vigente como estratégia para ganhar e exercer o poder (Hawkins, 2010); (4) usa um estilo retórico com um discurso simplista e polarizador (Müller, 2016); (5) apresenta-se como uma corporização da vontade popular[7] contra as elites e as instituições políticas e sociais estabelecidas; (6) confessa a sua admiração por líderes e partidos populistas (o italiano Salvini[8] e o partido espanhol Vox)[9]; (7) incita a mudanças sociais e políticas radicais (Bartolini, 2011) com propostas de alteração do regime constitucional português[10]; (8) não tem um compromisso firme com ideologias e princípios[11].

Na sua página oficial na internet[12], o Chega apresenta-se como

(…) um partido de base e natureza essencialmente popular. Nasce da profunda incapacidade dos partidos e dos Partidos / Movimentos políticos existentes em lidar com as rápidas mudanças em curso por toda a Europa quer a nível económico-financeiro quer do ponto de vista ético e sociológico.[13]

No seu programa político[14] Ventura diz-se “liberal e conservador”. Propõe-se “recentrar o regime e refundar o sistema”, “demolir a III República” e “construir a IV República.”

7. Casos em análise

(1) Debate parlamentar do programa do Governo (30 e 31 de Outubro e 1 de Novembro de 2019)

O debate parlamentar do programa do governo é um acontecimento-chave da democracia portuguesa de cuja aprovação depende o início de uma nova legislatura. Das eleições de 2019 resultou, como atrás se refere, um novo quadro parlamentar com a entrada de três novos partidos. A expetativa dos media e da opinião pública recaía sobre estes, sobretudo no mais votado, o Chega, por um lado, pela personalidade mediática e controversa do seu líder, André Ventura; por outro, porque surgia como o primeiro líder de um partido português com um discurso assumidamente de ruptura com o sistema político vigente. A sua primeira intervenção formal como deputado líder de um partido[15] foi o debate parlamentar do programa do Governo. Nela estão presentes as ideias-chave e os chavões que viriam a ganhar centralidade nas suas intervenções - as minorias, a segurança, a corrupção, as elites, “nós” os que trabalhamos e “eles” os que vivem de subsídios - e chavões como os “subsídio-dependentes” e a palavra “vergonha”. Os media dedicaram-lhe atenção e captaram algumas dessas ideias-chave:

Escreve a edição electrónica do Público[16]: “André Ventura trouxe para plenário a crítica aos subsídio-dependentes que «vivem à conta do Estado» em contraste com os portugueses que são chamados todos os dias a trabalhar»”.

Ventura refere-se ao rendimento mínimo de inserção criado pelo governo socialista destinado a apoiar socialmente pessoas com rendimentos baixos. A mesma ideia surge mais clara na peça da SIC Notícias[17] relativa à mesma intervenção de Ventura:

Este Governo diz no seu programa que quer alargar a habitação pública, imagine-se, aqueles de sempre, aqueles que já conhecemos e que o Governo chama minorias de vários tipos, minorias de vários géneros, esqueceu a ampla maioria de portugueses que trabalham, que pagam impostos, e que se esforçam por ter uma vida digna (…) e apresentou um programa de Governo que não refere, igualmente, os agentes e as forças de segurança.

A palavra “vergonha” surge em vários contextos no discurso de André Ventura, como refere a TVI[18]:

Na sua primeira intervenção durante o tempo dedicado ao debate sobre o Programa de Governo (…) o parlamentar do Chega usou por diversas vezes a palavra “vergonha”, incluindo para classificar o XXII Governo Constitucional.(…) “É uma vergonha, sobretudo quanto tivemos em plena campanha eleitoral mais uma mulher que foi morta por alguém que devia estar na cadeia e não estava”

As “forças de segurança” são juntamente com os imigrantes dois temas colocados recorrentemente em pólos opostos no discurso do líder do Chega. Na sua intervenção, citado pela TVI, acusou o governo de “ignorar e humilhar as forças de segurança e nem sequer ousar tocar nos problemas de segurança do país.” (…) “Onde estão as medidas para combater as esquadras fechadas” ou “os suicídios nas forças policiais?” A pulsão securitária do líder do Chega ouviu-se em várias partes do seu discurso. Eis outro excerto da crítica ao programa do governo, citado pela RTP[19]: “É um programa que esquece os grandes problemas do país, é uma fantasia na saúde, é sobretudo o ignorar e o humilhar das forças de segurança e da nossa segurança.”

Temos nestes excertos a dicotomia populista entre o “eles” (as “minorias”) e o “nós” (a “ampla maioria dos portugueses”) em que Ventura se inclui, que surge frequentemente no seu discurso parlamentar assumindo formas diversas: os “portugueses que são chamados a trabalhar todos os dias” e “os que vivem de subsídios”; e, no outro polo, as “minorias” (leia-se, os imigrantes e os ciganos) e as “nossas forças de segurança” contra “os portugueses de bem”.

(2) Manifestação das Forças de Segurança[20] e do Movimento Zero[21] (21 de Novembro de 2019)

Cerca de 13 mil agentes da PSP e militares da GNR participaram de forma pacifica na manifestação desta quinta-feira. E o até agora anónimo Movimento Zero passou a ter milhares de rostos e tomou as ruas”, titulava a edição digital do jornal Público.

Por seu turno, a edição digital do Diário de Notícias, titulava:

“Os dois maiores sindicatos da PSP e da GNR foram quase apagados num protesto em que dominou o Movimento Zero e em que André Ventura foi o único a discursar.” (Figura 2). A manifestação despertou desde o seu anúncio grande interesse dos media, tendo merecido cobertura em directo de todos os canais informativos de televisão. A tensão criada pela presença de polícias dos dois lados do protesto - os que se manifestavam e os que garantiam a ordem da manifestação - justificava a expectativa. A participação do Movimento Zero era o elemento imponderável da manifestação, antes de André Ventura se tornar no seu principal protagonista.

 

 

Eis um excerto do relato da RTP[22]:

Nós só queremos Ventura no poder, Ventura no poder (…) é desta forma que o líder do Chega é recebido junto à escadaria da Assembleia da República. Com a camisola do Movimento Zero vestida (…) o deputado do Chega é o único político a dirigir-se aos manifestantes a partir do palco montado pela organização. E diz-lhes: Não queriam que aqui viessem, montaram barreiras para nos impedir de falar. Montaram barreiras para vos impedir aqui de manifestar. Nunca o aceitaremos e vamos continuar a lutar para que os nossos polícias e as nossas forças de segurança tenham as melhores condições possíveis. Viva a polícia, viva Portugal.

Continua o relato da RTP:

Ficou clara a cumplicidade e a proximidade entre o Movimento Zero e o partido populista de extrema-direita Chega. Vestido com uma t-shirt do movimento de polícias anónimos, André Ventura foi o único político a subir ao carro de som da organização da manifestação - alegadamente sem ter pedido aos dirigentes dos sindicatos - e a discursar: Hoje vocês mostraram que a polícia unida jamais será vencida, gritou [o deputado}, seguido de uma chuva de aplausos e de gritos sonoros “Ventura! Ventura!

A análise de Bárbara Reis, no Público[23], detém-se na estratégia de Ventura:

Relevante é a forma como Ventura usa o marketing e manipula a realidade. E como, para esse objectivo, os polícias são presa fácil. Ventura quer chamar a atenção. Para ser notado, a cada frase que diz no Parlamento grita é uma vergonha!

Segundo o relato da TVI, o dirigente do sindicato da PSP acusou Ventura de “tentativa de colar os polícias a uma ideologia partidária”. Também o presidente da Associação dos Profissionais da GNR considerou o momento “um aproveitamento político” do deputado.

O episódio da intervenção do deputado do Chega foi intensamente debatido nos canais de televisão. André Ventura foi a “estrela” do dia e da noite, relegando para segundo plano as reivindicações das forças de segurança que organizaram a manifestação.

(3) Proposta do partido Livre para que o património das ex-colónias portuguesas, na posse de museus e arquivos nacionais seja restituído às comunidades de origem

A proposta foi apresentada no parlamento português pela deputada única do Livre, Joacine Katar Moreira, natural da Guiné-Bissau, com dupla nacionalidade guineense-portuguesa. O assunto ganhou especial destaque mediático a partir de uma postagem do deputado do Chega, André Ventura, na rede social Facebook que foi reproduzida nas edições electrónicas de jornais e televisões.[24]

Depois desta postagem (Figura 3) a discussão transferiu-se para as redes sociais com milhares de seguidores a apoiarem o deputado enquanto outros o apelidavam de “racista” e “xenófobo”.

 

 

Segundo o Público[25],

André Ventura explicou que a linguagem usada “é obviamente irónica”, “não estava a referir-se a uma deportação física” e que a intenção é demonstrar que “quem permanentemente ataca a história de Portugal, se calhar, não está cá a fazer nada”. “Nesse sentido, tudo o que nós investimos nas nossas colónias, deveria ser devolvido.

André Ventura foi alvo de duras críticas e manifestações de repúdio do presidente do Parlamento e de todos os partidos parlamentares. A polémica desviou a atenção dos media da proposta do Livre, dando origem a uma discussão paralela centrada na pessoa da deputada Joacine Katar Moreira, explorando o facto de ela ser negra e originária da Guiné-Bissau.

(4) Proposta de criação de um plano específico de confinamento para as comunidade ciganas durante a pandemia COVID 19 (08 de Maio de 2020)

A fixação do líder do Chega nos imigrantes e nos ciganos levou-o a pedir o apoio dos partidos da direita parlamentar a uma proposta sua de confinamento da comunidade cigana durante a pandemia Covid-19.

O Público[26] cita partes da carta que André Ventura enviou ao líder do PSD, Rui Rio:

Esse plano envolverá “mais policiamento junto das zonas de residência dessas comunidades, maior investimento em acções de formação e sensibilização e regras de confinamento específicas”, caso haja absoluta recusa em realizar os testes que se verifiquem necessários. “Penso que concordará que as comunidades ciganas - ou melhor, o seu comportamento e atitudes específicas - não caindo em generalizações de qualquer tipo, representam hoje um forte problema de segurança e saúde pública nalgumas regiões do país”.

Na mesma carta, antevendo a reação negativa de Rui Rio, Ventura escreve: “Sei, porque o vivi na pele[27], a oposição que existe dentro do PSD a tratar da ‘questão cigana’ de forma frontal, directa e objectiva.”

O Público[28] dá nota de reações de repúdio da sociedade civil à proposta do deputado do Chega: “Mais de duas dezenas de associações e uma centena de activistas e figuras públicas repudiam aquilo a que chamam a “estratégia demagógica e populista” de André Ventura, líder do Chega, “de incitamento ao rancor”.

O caso ganhou dimensão emotiva quando o jogador da selecção nacional de futebol, Ricardo Quaresma, de etnia cigana, figura querida e admirada de muitos portugueses, escreveu na rede social Facebook[29] um texto de resposta ao deputado do Chega largamente citado em jornais, rádios, televisões[30]. Eis os excertos mais citados: “Eu sou cigano. Cigano como todos os outros ciganos e sou português como todos os outros portugueses e não sou nem mais nem menos por isso.”[31]

André Ventura reagiu às palavras do jogador afirmando que Quaresma não podia ter-lhe respondido: “lamentável que um jogador da selecção nacional se envolva na política”, disse Ventura,[32] o que provocou nova onda de críticas nas redes sociais contra o líder do Chega, acusado de querer coartar liberdade de expressão do jogador.

André Ventura, comentador de assuntos de futebol, foi aparentemente surpreendido por uma crítica vinda não do campo político mas, ironicamente, do futebol, onde o seu opositor, um campeão nacional, tem presença e apoios seguramente mais alargados.

Conclusões

A análise realizada mostra que muitas das características fundamentais do populismo identificadas na literatura (Canovan, 1981; Mény e Surel, 2002; Taggart, 2000) correspondem às atitudes e ao comportamento político do líder do partido Chega, entre as quais: (a) a tendência para reivindicar para si próprio a capacidade de interpretar e articular as necessidades das “pessoas que trabalham” em oposição às “minorias” e aos “subsídio-dependentes”; (b) a impaciência com as regras formais da democracia, notória na “promessa” de mudar o sistema constitucional vigente; c) a agenda securitária, com aproximação a movimentos inorgânicos, como o “Movimento Zero”; (c) a hostilidade aos imigrantes e aos ciganos, a marca mais visível no seu discurso político.

A análise mostra que no estilo discursivo e nas ideias do líder do Chega se identificam as principais componentes das estratégias de comunicação dos líderes populistas: (1) colocar-se no papel do povo (os que trabalham); (2) dominar as técnicas profissionais de comunicação; (3) procurar o contacto com as massas; (4) ter acesso aos media; (5) criar acontecimentos polémicos.

André Ventura beneficia de alguma cumplicidade mediática, sobretudo, como atrás se refere, na qualidade de comentador de futebol e de assuntos jurídicos num dos canais de televisão, e colunista do jornal diário de maior audiência do país. Por outro lado, as transmissões televisivas em direto de debates parlamentares, habituais nos canais informativos portugueses, contribuem para a legitimação de questões, palavras-chave e estilos de comunicação de líderes com especial vocação para usarem os media em seu proveito, como é o caso de André Ventura. Também o ativismo de André Ventura nas redes sociais, particularmente no Youtube e no Facebook, bem como a sua página de deputado e as páginas não oficiais geridas por militantes e simpatizantes (não analisados neste artigo) ampliam o alcance das suas mensagens estendendo-as a um universo alargado, para o que contribuem os media tradicionais nas suas edições electrónicas, como mostram os casos analisados neste artigo.

Como refere Mazzoleni (2008), ao privilegiar a personalização da política o “fator media” favorece o surgimento de líderes capazes de explorarem as condições políticas e sociais e contribui para legitimar lideranças personalizadas e populistas. Em suma, da análise realizada é possível concluir que a liderança populista de André Ventura se alimenta essencialmente da sua presença nos media. O conteúdo das suas mensagens e o estilo discursivo das suas intervenções enquadram-se claramente nas duas dimensões do populismo citadas por Jansen (2011): mobilização e discurso. O “fator media” é, pois, o elemento essencial da estratégia do líder do Chega.

 

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Submetido| Received: 2020.06.01. Aceite | Accepted: 2020.07.17

 

Nota biográfica

Estrela Serrano é doutorada em Sociologia da Comunicação, da Cultura e da Educação (ISCTE), investigadora no ICNOVA e membro do Conselho de Opinião da RTP. Foi vogal do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), docente do mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação ISCTE e de Jornalismo na ESCS.

Email: estrela.serrano@sapo.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

 

[1] O LIVRE viria a perder representação parlamentar em 3 de Fevereiro de 2020 em virtude de ter entrado em conflito com a sua deputada única que se manteve no Parlamento como deputada independente.

[2] O líder da Iniciativa Liberal abandonou o partido cerca de dois meses após o acto eleitoral, sucedendo-lhe na liderança o deputado eleito. Quanto ao Livre, como já foi referido, viria a perder representação parlamentar em virtude de divergências profundas com a única deputada eleita que passou ao estatuto de deputada independente.

[3] Riccardo Marchi, “um Olhar exploratório sobre o partido Chega”, in Observador, 21/12/2019. https://observador.pt/opiniao/um-olhar-exploratorio-sobre-o-partido-chega/ (acedido em 14/05/2020).

[4] “André Ventura, líder do Chega, no seu programa político define-oum “partido securitário” e da “direita identitária”, pugnando por “uma política comum de defesa contra a invasão maciça dos países do sul do mediterrâneo”, pela abolição das “autorizações de residência para ‘proteção humanitária’” e pelo estabelecimento de “uma lista de países seguros na origem”, a la Donald Trump.” (acedido em 11/05/2020) https://www.dn.pt/edicao-do-dia/02-nov-2019/o-populista-andre-e-o-politicamente-correto-ventura-11463959.html

[5] Em maio de 2020 André Ventura deixou de ser colaborador da CMTV e do jornal Correio da Manhã. Segundo a direção deste jornal, citada pelo Expresso (19/05/2020), “recentes posições do deputado do Chega colocam em causa os direitos previstos na Constituição.”

[6] https://www.youtube.com/channel/UC-Wo4qU-W0CNd-9Q23GIWKg (acedido em 13/05/2020).

[7] Num post publicado no Facebook, André Ventura escrevia em Outubro de 2019, sobre a razão de crescimento do Chega “nas sondagens e na rua”: “Porque já não é só a nossa voz individual, os nossos desejos e as nossas ambições. O CHEGA é a voz de um povo inteiro farto de corrupção e de impunidade.” https://www.dn.pt/poder/ciganos-imigrantes-e-prisoes-o-que-diz-andre-ventura-11379814.html (acedido em 16/05/2020).

[8] Em artigo de opinião no jornal i, Ventura considera Mateo Salvini “uma lufada de ar fresco” https://ionline.sapo.pt/artigo/667871/-a-lufada-de-ar-fresco-de-salvini?seccao=Opini%C3%A3o (acedido em 11/05/2020).

[9] Riccardo Marchi (2019), op. cit.

[10] “Hei de quebrar o sistema político português, acabar com a III República e iniciar uma outra, demore o tempo que demorar.” (Jornal de Notícias acedido em 11/05/2020). https://www.jn.pt/nacional/canal/legislativas-2019/andre-ventura-admirador-de-matteo-salvini-quer-quebrar-a-iii-republica-11289240.html

[11] Riccardo Marchi, op. cit.

[12] https://partidoChega.pt/

[13] https://partidoChega.pt/

[14] https://partidochega.pt/programa-politico-2019/

[15] Segundo o semanário Expresso, a primeira intervenção de André Ventura no Parlamento foi vista 452 mil vezes. https://expresso.pt/politica/2020-05-15-Ventura-aproveita-casos-e-polemicas-para-travar-queda-nas-sondagens.-Sera-que-a-estrategia-vai-resultar (acedido em 15/05/2020).

[16] https://www.publico.pt/2019/11/01/politica/noticia/chega-iniciativa-liberal-cativam-te-mas-cds-1892092 (acedido em 13/05/2020).

[17] https://sicnoticias.pt/pais/2019-10-30-Chega-classifica-Governo-como-uma-das-maiores-vergonhas-da-historia-democratica (acedido em 13/05/2020).

[18] https://tvi.iol.pt/programa/ana-leal/5bec51560cf26bfdcaedf1f9/videos/-/-/video/5db986e60b7022ee6b9b2328 (acedido em 13/05/2020).

[19] https://www.rtp.pt/noticias/politica/programa-de-governo-foi-apresentado-e-debatido-no-parlamento_n1182766 (acedido em 13/05/2020).

[20] A manifestação das forças de segurança decorreu em frente da Assembleia da República vigiada por um enorme dispositivo da Polícia de Segurança Pública e barreiras de segurança. Os manifestantes iam vestidos à paisana”.

[21] O Movimento Zero foi criado nas redes sociais por elementos da PSP e da GNR sob a capa do anonimato e surgiu em maio de 2019, na sequência da condenação de vários agentes da PSP por ofensas à integridade física e injúrias a moradores do Bairro da Cova da Moura, nos arredores de Lisboa. O movimento reivindica melhores condições de trabalho, melhores salários, progressão de carreiras e respeito pela profissão.

[22] https://www.rtp.pt/noticias/pais/manifestacao-de-policias-discurso-de-andre-ventura-no-palanque-causou-mal-estar_v1187276 (acedido em 13/05/2020).

[23]https://www.publico.pt/2019/11/21/politica/opiniao/sabonetes-ventura-vende-policias-1894578 (acedido em 13/05/2020).

[24] https://www.dn.pt/poder/ventura-propoe-devolucao-de-joacine-a-guine-bissau-livre-fala-em-racismo-11759131.html (acedido em 14/05/2020).

[25] https://www.publico.pt/2020/01/28/politica/noticia/andre-ventura-propoe-joacine-devolvida-pais-origem-livre-acusao-racismo-1902024 (acedido em 14/05/2020).

[26] https://www.publico.pt/2020/05/06/politica/noticia/ventura-pede-apoio-psd-cds-il-retrato-plano-contingencia-comunidades-ciganas-1915280 (acedido em 18/05/2020).

[27] André Ventura foi vereador em Loures pelo PSD numa lista de coligação PSD/CDS nas eleições autárquicas de 2017, era então líder do PSD Pedro Passos Coelho, tendo-se demitido em Outubro de 2018, quando se preparava para criar um novo partido, alegando “discordâncias políticas” de “âmbito nacional” com o PSD. Durante a campanha eleitoral, numa entrevista ao semanário Sol publicada em 17 de Julho, acusava já a comunidade cigana de viver de subsídios e de não acatar as leis do País. https://sol.sapo.pt/artigo/572564/andre-ventura-os-ciganos-vivem-quase-exclusivamente-de-subsidios-do-estado (acedido em 18/05/2020).

[28] https://www.publico.pt/2020/05/06/sociedade/noticia/cem-activistas-figuras-publicas-manifestamse-plano-ventura-populacao-cigana-1915421 (acedido em 18/052020).

[29] https://www.facebook.com/RicardoQuaresma/posts/2942439712477584 (acedido em 18/05/20120).

[30] https://www.publico.pt/2020/05/06/desporto/noticia/quaresma-insurgese-populismo-racista-andre-ventura-1915311

[31] https://www.dn.pt/desportos/quaresma-ataca-populismo-racista-do-andre-ventura-12158697.html (acedido em 16/05/2020).

[32] https://www.cmjornal.pt/desporto/futebol/detalhe/quaresma-volta-a-responder-a-andre-ventura-nao-me-vai-calar (acedido em 16/05/2020).

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