SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número37Populismo em Portugal: o factor media índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.20 no.37 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.14195/2183-5462_37_13 

RECENSÃO

Piçarra, Maria do Carmo (2020). Projectar a Ordem.

Cinema do Povo e Propaganda Salazarista - 1935-1954. Caxias: Os Pássaros. 420 págs.

Francisco Rui Cádima*
https://orcid.org/0000-0002-5449-8831

* Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA. frcadima@fcsh.unl.pt


 

A leitura que vamos fazer desta obra de Maria do Carmo Piçarra centrar-se-á, em particular, num ponto mais específico, designadamente em torno de uma questão que muito temos trabalhado, em particular no domínio da história da televisão durante o salazarismo em Portugal. No caso concreto da obra agora publicada, a nossa principal questão será então analisar mais em detalhe qual, efectivamente, a presença de Salazar (do seu corpo físico, jurídico e político) nos documentários e “actualidades cinematográficas” de propaganda do regime. Interessa-nos saber se, de facto, a estratégia de propaganda específica delineada para o Cinema Ambulante do regime - a ter existido - de alguma forma, inverte um dado que tem sido comum em diversas investigações, incluindo sobre a própria televisão pública, que remete fundamentalmente para a questão da invisibilidade de Salazar e a proverbial aversão à “publicidade” da sua pessoa - quer do seu “corpo” político-jurídico, quer sobretudo da sua “presencialidade” física e das suas eventuais “aparições” ou alocuções públicas, por assim dizer. E, em consequência, se a figura-presença do ditador ela própria se disponibilizou e foi mobilizada para uma estratégia de propaganda do regime através dos meios audiovisuais.

Calculamos que no Jornal Português tenha sido feito algum esforço pelos seus responsáveis no sentido de colocar Salazar “em cena”, mas, de facto, os poucos documentos e reportagens que ficaram, de 1931 a 1951, foram retirados das filmagens de grandes eventos ou efemérides em que o ditador participou, de resto, em grande medida, ele está “fora de campo”. De facto, o ditador português tinha características opostas às do líder panfletário e carismático, era avesso a aparições públicas, “não se envolvia senão de forma fugaz nas eleições e referendos do regime e não emprestava o seu rosto a cartazes de campanhas eleitorais (…), recusava participar em comícios de massas (…), a adoptar símbolos de poder autoritário” (Meneses, 2014, pp. 113-114).

Deste modo, a nossa hipótese de partida aqui é justamente a de que Salazar não tinha aquilo a que se pode chamar um “culto de personalidade”, em particular no domínio do cinema e da televisão, ao contrário do que se poderá eventualmente considerar relativamente aos meios escritos, que terão sido objecto de uma tentativa mais assertiva de o construir. Ao contrário dos meios audiovisuais, a imprensa sempre foi o meio preferido de Salazar, considerava-a incontornável e decisiva no contexto da influência da opinião pública (Cádima, 2019), algo que lhe terá ficado desde o período de 1928 a 1933, sobretudo quando recorre à imprensa estrategicamente para se afirmar como líder, através dos seus discursos, notas oficiosas e entrevistas (Matos, 2010, p. 7).

Embora tivesse nascido com ela, Salazar não era, claramente, um “contemporâneo” ou tão somente um espectador da sétima arte. Mas enquanto político emergente, e ao contrário do que sucedeu com o audiovisual - cinema e televisão - soube controlar, gerir e ter e uma “boa imprensa”, foi ela que o transformou no “miraculoso ditador das Finanças” (Matos, 2010, p. 11). Ao que se associa também nessa sobre-exposição inicial de Salazar, a própria criação do Secretariado Nacional da Propaganda (SPN), em 1933, muito embora não se possa retirar daí uma definição programática para uma estratégia de comunicação mobilizadora e/ou panfletária do regime. Dir-se-ia que se congregava a palavra e a acção do ditador, reservando a sua imagem pública, expondo o possível para esconder o essencial, mantendo o seu estado natural de “invisibilidade” (Gil, 1995; Cádima, 2017) procurando alimentar assim a construção do mito salazarista. O próprio Jornal Português- Revista Mensal de Atualidades (1938-1951) vem demonstrar isso mesmo: em cerca de 484 peças (“notícias”) produzidas e emitidas ao longo desses 14 anos, apenas cerca de 2% das peças foram centradas na figura de Salazar e/ou do Presidente do Conselho.

Temos então que a partir de 1936 e da experiência do Cinema do Povo em Lisboa, em praças, escolas e quartéis, com sessões públicas de actualidades e documentários de propaganda diversos, desenhos animados e filmes alemães, seguiu-se o Cinema Ambulante do SPN, que percorreria o interior do país, ambos com o objectivo de divulgar a “política do Espírito” e os “valores” do salazarismo, isto é, mais prosaicamente, “combater o comunismo, promover o corporativismo e as Casas do Povo” e levar a política e os discursos (mais do que a imagem) de Salazar e do regime ao ecrã, bem como o próprio império, neste caso com filmes que viriam também a ser produzidos nas colónias, sobretudo nos anos 40. Genericamente, constituíam o programa-tipo diversos documentários de propaganda do regime, o Jornal Português (1938-1951), uma “revista de atualidades cinematográficas”, e A Revolução de Maio de António Lopes Ribeiro, este o modelo mais frequente. O cinema ambulante teria também filmes e documentários espanhóis, e por vezes algum cinema americano. Mas um dos filmes mais passados foi, efectivamente, A Revolução de Maio, que põe em cena a metamorfose de um “agitador bolchevique” convertido ao Estado Novo, conversão em boa parte sugestionada pelo discurso de Salazar, em Braga, nas comemorações do décimo aniversário da revolução de Maio.

Se, de facto, Salazar é o “verdadeiro protagonista” de A Revolução de Maio, é porque essa é mesmo a metáfora de toda a propaganda audiovisual do regime: promover Salazar, a sua política, mas, simultânea e paradoxalmente, também o recolhimento do “ditador silencioso”, nas palavras do jornalista francês Raymond Recouly. Como se, no fundo, a sua imagem distante, ou a presença do “espectro”, reforçasse a legitimação do corpo jurídico-político do ditador, e, por conseguinte, o regime.

Segundo diversos testemunhos e relatos de imprensa, a catarse dava-se quando aparecia na tela a imagem do ditador ou então nas “passagens de maior vibração patriótica”: os espectadores aplaudiam “calorosamente” e “entusiasticamente aclamavam” o Estado Novo (como refere por exemplo o Diário da Manhã de 27/2/1938), ou, ainda, a “comoção atingia o auge” quando surgiam as figuras de Carmona e Salazar (Piçarra, 2020, p. 230). Ou também com o Hino Nacional, a assistência punha-se então “de pé com o braço estendido, fazendo a saudação à romana, ouvindo-se no final muitos ‘vivas’ ao Estado Novo, a Portugal, a Carmona e a Salazar” (Piçarra, 2020, p. 266). Alguém terá inclusivamente reconhecido, e claramente verbalizado, caso do Presidente da Junta de Fortios, o “prodígio” da “máquina cinematográfica” de Salazar. O clima de idolatria era assim criado à revelia de uma presença específica do idolatrado, como se apenas um conjunto reduzido de imagens de arquivo, ou de algumas alocuções públicas do líder, fossem suficientes para construir uma estratégia propagandística ao longo de várias décadas.

Um outro aspecto relevante prende-se com a estratégia de produção e exibição pensada estritamente para as colónias, da qual resultou nomeadamente um conjunto de seis documentários de António Lopes Ribeiro (1940-1946). Produção que surgiu a partir do Decreto nº 27.859, de 14 de Julho de 1937, que veio reconhecer a necessidade de “intensificar” a propaganda nas colónias portuguesas: “Considerando que a propaganda pela cinematografia é mais impressionante e eficiente (…). É criada no Ministério das Colónias uma missão cinegráfica às colónias de África do Império, destinada à preparação e realização de documentários de propaganda que evidenciem o esforço civilizador dos portugueses”. No início de 1950 haveria mesmo “cinema móvel”, nomeadamente em Angola, com relatos, por exemplo, de uma sessão ao ar livre num bairro de Luanda a que assistiram “2500 a 3000 indígenas e europeus” e um balanço global da passagem por várias cidades de Angola tendo atingido cerca de 200 mil pessoas, sendo que “195500 eram ‘indígenas’” (Piçarra, 2020. p. 361).

O décimo aniversário da revolução de Maio, em 1936 teria sido pretexto para Salazar testar um primeiro plano de propaganda através do cinema. Para Ferro, o sucesso da empreitada não merecia dúvida, quanto mais não fosse pelo número de espectadores que o cinema ambulante tinha atingido em dez anos (1937-1947): cerca de 2,3 milhões com uma média anual de cerca de 230 “espectáculos”. Mas a verdade é que no que ao cinema dizia respeito, a estratégia de propaganda do regime estava claramente dependente da discricionariedade de Salazar, sabendo-se, à partida, que ele não acreditava no Cinema como um meio estratégico para a divulgação da sua política. Tal como sucederia, aliás, cerca de vinte anos mais tarde com a televisão. Como refere Carmo Piçarra, “Salazar não reconheceu ao cinema a importância dada a este meio por outros ditadores seus contemporâneos” (Piçarra, 2020, p. 39). O cinema era, para Salazar, uma “distracção perturbante” e uma arte “horrivelmente cara” (Granja, 2000, p. 195). Terá revelado a Christine Garnier que após assistir a A Revolução de Maio, de que “muito gostou, não pôde dormir de noite nem trabalhar, como era seu dever” (Piçarra, 2020, p. 132). Salazar, ele próprio, desacreditava uma política de comunicação panfletária, preferia a propaganda como “informação e formação” do que como um estratagema para entreter “a natural impaciência do povo” (Torgal, 2000a, pp. 65-66). Mas, sobretudo, era Salazar quem tinha a última palavra quando eram pedidos aumentos de salários para os trabalhadores (motorista, projecionista) do Cinema Ambulante, ou relativamente ao envio de um dos cinemas ambulantes do SNI aos Açores, ou mesmo para a reparação do camião do próprio Cinema Ambulante: em Setembro de 1952 o SNI teve autorização expressa da Presidência do Conselho para avançar com a despesa... Segundo João Bénard da Costa (apud Piçarra, 2020, p. 348), “ao que parece, o Salazar detestou mesmo o Camões”, e o fraco acolhimento pelo público teve como consequência que acabasse o apoio directo à produção de cinema de enredo por parte do Secretariado. Daí que a estratégia de propaganda do regime através do cinema tenha sido sempre de serviços mínimos, por assim dizer.

Se tivesse de dar um título a este texto, esse título seria talvez “Da ‘cinegrafia’ ao olho-táctil de Salazar”. De facto, falar de “cinema” ao tempo de Salazar (e do cinema feito “por” e “para” Salazar) é talvez excessivo. Melhor dito, o cinema do salazarismo foi mais uma “cinegrafia” ou um “agit-prop” algo comezinho, de brandos costumes, apesar de tudo - de baixa intensidade, por vezes revisteiro, do que cinema propriamente dito. A chamada sétima das artes não se pode reconhecer em narrativas de propaganda totalitária e dificilmente se poderá reconhecer naquele arquivo - dos primeiros filmes, e reportagens aos “jornais de actualidades”, passando inclusivamente pelas principais referências - de Lopes Ribeiro a Leitão de Barros - com uma ou outra excepção, como o caso de Manoel de Oliveira, e pouco mais.

Por outro lado, todo o processo de gestão da atividade cinematográfica da ditadura - da produção à distribuição e exibição - foi algo extremamente amador e de parco orçamento, com solicitações permanentes, por carta a Salazar, para cabimentar despesa, como referimos. A razão para isso, talvez resida nesse “olhar-táctil” de Salazar e do salazarismo, desde logo um olhar contabilístico, e depois um olhar que se projecta ou pronuncia sobre pormenores (Torgal, 2000, p. 34-35) e menos sobre, por assim dizer, o “plano de conjunto” ou o sentido do filme, o que terá sido verdadeiramente uma impossibilidade háptica de (pre)ver, de ver/conhecer. Dito de outro modo, uma não alfabetização do olhar para a tela e a linguagem emergente do cinema. Ainda que para António Ferro a importância do cinema, embora “nem sempre reconhecida” (et pour cause…), fosse “vital” por se tratar de um “meio de recreação”. Meio que, segundo o mesmo António Ferro, se encarregava de “pensar e sonhar por nós”. Para ele, “a sua magia, o seu poder de sedução, a sua força de penetração, são incalculáveis. Mais do que a leitura, mais do que a música, mais do que a linguagem radiofónica a imagem penetra, insinua-se, sem quase se dar por isso, na alma do homem” (Ferro, 1950, pp. 43-44).

De facto, Ferro, que era fundamentalmente um adepto da estratégia propagandística através do documentário, e de modo nenhum através da via comercial ou da comédia revisteira - considerava a comédia o “cancro” do cinema - terá conseguido alguns recursos para, como diz Carmo Piçarra, “meter o cinema na ordem” e projectar o Estado Novo. Mas não terá conseguido certamente convencer Salazar para um investimento mais assertivo num contexto de propaganda ao nível do que foi feito pelas ditaduras congéneres europeias. Veja-se, por exemplo, que quanto a cinema de propaganda, em cerca de sessenta filmes produzidos nos anos 30 e 40, apenas dois reproduziram diretamente a ideologia salazarista - A Revolução de Maio e Feitiço do Império (Torgal, 2000a, p. 72). Quanto aos chamados filmes históricos, em geral, também não têm “um carácter marcadamente ideológico ou de propaganda” (Torgal, 2000, p. 21). Carmo Piçarra nota que, afinal, nunca foi devidamente valorizado por Ferro e pelos relatórios de balanço de atividade do Cinema Ambulante, nunca foi verdadeiramente evidenciado que essa divulgação tivesse sido um eixo fundamental do dispositivo cinematográfico para projectar a “política do Espírito”, o Estado Novo e Salazar.

Como também refere Carmo Piçarra a “política do Espírito” de Ferro não incluiu uma política para o cinema pelo cinema. Houve, hipoteticamente, uma vontade de realizar “uma política de aproveitamento das potencialidades do cinema, documental e ficcional, desde a sua produção para efeitos de propaganda à sua exibição como prática de doutrinação” (Piçarra, 2020, p. 22) Mas, claramente limitada pelo olhar débil, pelo olho-táctil de Salazar sobre o audiovisual, tal como se veio a ver com o exemplo da chegada tardia da televisão a Portugal e, depois, da sua débil instrumentalização por parte da ditadura, entregando a RTP aos diferentes humores e pulsões dos seus comissários políticos (Cádima, 1996). No fundo, não se pode dizer de facto, como sugere Granja (2000, p. 195) que tenha havido no Estado Novo “uma instrumentalização clara do cinema, tal como se verificou na Alemanha ou na Itália”. O que não deixa de ser, também, uma das especificidades marcantes da ditadura salazarista e do fascismo português.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cádima, F. R. (2019). Da invisibilidade de Salazar à presencialidade de Caetano. Sobre os media, a televisão eaditadura em Portugal. Media & Jornalismo, 19(35), 197-209. DOI: 10.14195/2183-5462_35_13        [ Links ]

Cádima, F. R. (2017). Salazar, o regime e a televisão: para uma arqueologia da ‘invisibilidade’ televisiva do ditador. In J. L. Garcia, T. Alves & Y. Léonard (Eds.), Salazar, o Estado Novo e os Media (pp. 327-345). Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Cádima, F. R. (1996). Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa. Lisboa: Presença.         [ Links ]

Ferro, A. (1950). Teatro e Cinema (1936-1949). Lisboa: Edições SNI.         [ Links ]

Gil, J. (1995). Salazar: a retórica da invisibilidade. Lisboa: Relógio de Água.         [ Links ]

Granja, P. J. (2000). A Comédia à Portuguesa, ou a máquina de sonhos a preto e branco do Estado Novo. In L.R. Torgal (Coord.), O Cinema Sob o Olhar de Salazar (pp. 194-233). Lisboa: Círculo de Leitores.         [ Links ]

Jornal Português - Revista Mensal de Atualidades (1938-1951). (2015). Lisboa: Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.

Matos, H. (2010). Salazar - a Construção do Mito. Lisboa: Círculo de Leitores e Temas e Debates.         [ Links ]

Meneses, F. R. de (2014). Salazar - Uma Biografia Política (Vol. II). Lisboa: Edições D.Quixote/Expresso.         [ Links ]

Piçarra, M. C. (2020). Projectar a Ordem. Cinema do Povo e Propaganda Salazarista - 1935-1954. Caxias: OsPássaros.         [ Links ]

Torgal, L. R. (Coord.).(2000). O Cinema Sob o Olhar de Salazar. Lisboa: Círculo de Leitores.

Torgal, L. R. (2000a). Propaganda, Ideologia e Cinema no Estado Novo. In L.R. Torgal (Coord.), O Cinema Sob o Olhar de Salazar (pp. 64-91). Lisboa: Círculo de Leitores.

 

Submetido| Received: 2020.06.15. Aceite | Accepted: 2020.07.03

 

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico

 

Nota biográfica

Francisco Rui Cádima é Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH. Investigador Responsável do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA, é diretor da revista Media & Jornalismo.

Ciência ID: 231F-D7BA-F635. Scopus Author ID: 57063529500 Email: frcadima@fcsh.unl.pt

Morada institucional: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons