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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.21 no.39 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.14195/2183-5462_39_5 

Artigo

Mundo do jornalismo e história do tempo presente: Um olhar sobre o jornalismo dos anos 1980 no Brasil

The world of journalism and the history of the present time: A perspective on the journalism in the 1980s in Brazil

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. marialva.barbosa@eco.ufrj.br


Resumo

O artigo faz uma síntese das transformações do jornalismo brasileiro, nos anos 1980, priorizando as mudanças que afetaram diretamente as práticas profissionais dos jornalistas. O objetivo é caracterizar essas transformações, correlacionando o contexto histórico com o das mutações do fazer jornalístico, exercitando opções metodológicas para a construção de uma história do jornalismo do tempo presente. Discute-se também a questão do anacronismo, central para quem realiza interpretações históricas, e analisa-se o projeto de modernização do jornal Folha de S.Paulo, implantado na década e exportado como modelo para jornais de todas as regiões do país.

Palavras-chave: jornalismo; Brasil; anos 1980; projeto Folha

Abstract

The article synthetizes the transformations of the Brazilian journalism in the 1980s, prioritizing the changes that have affected directly the journalists’ professional practice. The aim of the text was to distinguish these transformations, correlating the historical context to the alterations in journalistic production, exercising methodological options to construct a history of the journalism of the present time. Moreover, we discussed the anachronism, that is basic to the ones who perform historic interpretations, and we analyzed the Folha de S.Paulo’s modernization project, adopted that time and exported as a model to other journal companies of all Brazilian regions.

Keywords: journalism; Brazil; the 1980s; Folha´s project

Introdução

Durante os anos 1980, o jornalismo brasileiro iniciou um processo que pode ser qualificado como “caleidoscópio de mudanças” (Barbosa, 2007). Um tempo de interregno entre um mundo que gradualmente deixaria de ser analógico para migrar para o digital. Com ele, viriam as transformações ininterruptas e intermitentes no fazer jornalístico, com reflexos profundos nos processos e nas práticas profissionais. No centro dessas transformações na história do jornalismo do tempo presente, figura, como espécie de emblema da época, a entrada das redações no mundo digital, com a introdução dos primeiros computadores nos jornais diários, inicialmente em São Paulo, em 1983, na redação do jornal Folha de S.Paulo, em 1985, em O Globo, no Rio de Janeiro, e nos anos subsequentes em diversas publicações por todo o país. O objetivo deste artigo é caracterizar essas transformações, sobretudo as mutações no campo profissional, procurando correlacionar o contexto histórico às imagens memórias de quem narra e viveu pedaços dessa história, de forma a exercitar opções metodológicas como possibilidade de construção de uma história do jornalismo do tempo presente. Dividimos o artigo em duas partes. Na primeira, fazemos algumas considerações sobre a categorização de uma história do jornalismo do tempo presente, procurando ver os limites e as possibilidades de uma abordagem concomitante ao tempo de vida do próprio pesquisador. Em consonância com essa reflexão, emerge a categoria anacronismo. O que é uma história do jornalismo do tempo presente? As interferências dos trabalhos de memória de quem narra a história podem desvirtuar a interpretação? É possível se livrar do tempo da vida nas interpretações históricas? Como considerar o anacronismo? Como uma inscrição peculiar do tempo que faz com que haja interdições às possiblidades humanas no passado ou como intercâmbio de temporalidades, uma multiplicidade de tempos em diálogo, que sempre existe na análise histórica?

Na segunda parte do texto, caracterizamos brevemente as transformações no cenário jornalístico brasileiro dos anos 1980:

  • mudanças dos jornais em conformidade com os ditames liberalizantes do mercado, como novo projeto político do país, que saía pouco a pouco de um período de 21 anos de ditadura militar;

  • inclusão de novos profissionais no mercado jornalístico, reflexo da expansão do ensino universitário, em função da implantação de novos cursos de Comunicação desde a década anterior, o que seria definitivo na luta geracional travada no interior das redações;

  • mudanças nos códigos de regulação da profissão, com a determinação da obrigatoriedade do diploma de curso superior de Jornalismo, que vigorou, no Brasil, de 1979 a 2009.

Abordamos com destaque sobretudo o projeto modernizante da Folha de S.Paulo, cuja síntese simbólica foi a introdução do computador na redação, espaço onde reinavam até então de maneira imperiosa as velhas máquinas de escrever, introduzidas gradualmente nos jornais desde os anos 1910 e com maior intensidade já nos anos 1930 e 40.

Anacronismo e tempo presente

Antes de prosseguir contando essa história, convém fazer algumas considerações sobre a questão da temporalidade e das correlações entre tempos que são determinantes na configuração do olhar histórico. A primeira delas diz respeito ao fato de o histórico a que estamos nos referindo ter sido vivido em concomitância com o tempo da vida de quem conta essa história. Assim, as interferências dos trabalhos de memória são determinantes nas formas de reinterpretar o passado. E mais: há certa subversão da memória pessoal pela memória histórica. Desse modo, não importa o que as lembranças do pesquisador que agora escreve evoquem; determinados acontecimentos-emblemas cristalizaram-se nessa história do jornalismo como marcas características da época - nessa análise, os anos de interregno marcados pelo fim da década de 1970 e os anos 1980. A segunda consiste na problemática do anacronismo, complexa questão sempre presente para quem se arvora na presunção de interpretar o passado, seja ele próximo, seja distante. Tido pelos historiadores da École des Annales como uma espécie de pecado que deveria ser evitado, da qual a frase de Bloch (1993, p. 29) é síntese, ao definir a história como “a ciência dos homens no tempo”, para Rancière (2011), anacronismo é um conceito-emblema da história, indispensável na construção da sua própria cientificidade, autenticando a verdade da sua narrativa.

Há, portanto, duas posições diametralmente opostas em relação ao conceito de anacronismo e que estão associadas a duas tradições teóricas/metodológicas distintas: uma que considera a temporalidade encadeada, produzindo épocas que detêm especificidades, ou regimes de verdade, para usar a expressão de Foucault (2009), que lhe são próprios; e outra que leva em conta tempos impuros e justapostos, de clara inspiração benjaminiana, que postulava a construção de uma história “a contrapelo”, uma história intempestiva (Benjamin, 1992), uma história cuja ideia de cadeia de acontecimentos é substituída por ruínas sobre ruínas, cacos dispersos, fragmentos nos quais o historiador também se encontra imerso, como herdeiro de um passado sempre inconcluso. Assim, o passado nunca é o outro tempo; é concomitantemente também o nosso tempo.

É nessa condição que devemos ver o outro (que se situa em relação à nossa posição temporal no passado), de maneira peculiar, levantando véus e permitindo a ele atitudes que, por questões de superioridade de uma narrativa historiadora, interditamos ao passado. Assim, não deve haver interdito para as atividades desses homens, possibilitando a abertura para o incompreensível, o indizível, os dissensos, fazendo dele não alguém inferior a nós apenas por ser de outra época, mas alguém que pode pensar e sentir como nós, que está aberto a modos de vida que absolutamente não são próprios apenas do contemporâneo percebido, dessa forma, sempre como um tempo superior. Fazer uma história “a contrapelo” é tentar entrar naquele mundo estranho, emocionar-se com as atitudes desses homens diferentes/semelhantes, porque simplesmente são humanos. É ver o presente não como lugar da superioridade absoluta e impedir alguém do passado de pensar ou agir de tal modo apenas por pertencer a determinado tempo ou época. É, na feliz expressão de Darnton (1990), permitir que se estabeleça o diálogo, a “conversa com os mortos”, que elimina o tempo como “operador da interdição” (Rancière, 2011).

Nessa operação teórica/metodológica, podemos adensar a teia de relações entre presente e passado inserindo o futuro como possibilidade ou expectativa (Koselleck, 2006). Logo, acompanhando a inquietante proposição de Ricoeur (2002), de que “o passado tinha um futuro”, insere-se a presunção de futuro que os homens do passado possuíam, tal como fazemos nós em relação a eles, como presunção de passado. Eles também criaram fantasias, mas sobretudo expectativas no que tange aos que seriam os agentes futuros dos seus atos não realizados e das suas possibilidades interditadas. Aquilo que a eles não foi possível fazer, os homens do futuro poderiam realizar, numa espécie de recompensa tardia, ou, mais do que isso, marcando a possibilidade humana inscrita no futuro como expectativa do passado. Portanto, apesar do exotismo do passado, dessa viagem sempre por terras desconhecidas, “é precisamente do homem, meu semelhante, que eu me aproximo a cada vez”, diz Ricoeur (2002, p. 376). A dimensão histórica ocupa-se dos semelhantes, e é como semelhante que procuro contar essa história.

Assim, como semelhante, pode-se arvorar o papel de observador atento dos processos dos quais também fomos testemunhas e produzir sobre uma época - os anos 1980 - uma significação, construindo esse tempo da história com começo, meio e fim. O que faz com que elejamos os anos 1980 como emblema dessa história do jornalismo? De fato, essas transformações que elencamos produziram acontecimentos dignos de serem referenciados e colocados em posição de destaque? É sempre a reinterpretação produzida pelo historiador que reintroduz o aspeto historicizante do tempo, na medida em que a história está ligada a uma dupla temporalidade: a do pesquisador que conta aquela história e a época a que se refere a pesquisa realizada. Teorias e métodos fornecem, portanto, as chaves de realização dessa condição de possibilidade de alçar um acontecimento à categoria de histórico.

Mas o que é a história do jornalismo do tempo presente1? A primeira especificidade dessa história em relação ao conceito de história do tempo presente institucionalizado pela historiografia diz respeito ao fato de os estudos de comunicação, no Brasil, privilegiarem análises concomitantes ao tempo da vida. O presentismo é a característica mais marcante das pesquisas e, em função disso, quase meio século depois das primeiras defesas de dissertações e teses, tais investigações constituem documentos privilegiados para contar a própria história dos processos e práticas jornalísticos. Analisadas essas transformações no momento das suas produções, instala-se uma interpretação de processos inacabados, que se constituiriam no devir, mas que são capazes de fornecer interpretações singulares sobre uma espécie de história do tempo presente em movimento. Uma história com interpretações que carregam as possibilidades de um presente absoluto, mas que agora serão percebidas pelas lentes de um futuro que enquadram aqueles discursos como possibilidades de passado.

Uma série de outros documentos com essa característica testemunhal das transformações, como os boletins informativos das recém-criadas sociedades científicas, os textos de revistas especializadas na descrição dos processos jornalísticos e do mundo da comunicação (por exemplo, a Revista Imprensa, criada em 1988), reproduzem testemunhos, impressões, interpretações, dados e informações sobre os anos 1980, criando uma espécie de presente estendido das transformações do mundo do jornalismo. Um duplo presente: o presente das narrativas que sedimentaram impressões, testemunhos, sentidos de uma época, por olhares interpretativos; e o olhar testemunhal do narrador do presente, que viveu aqueles mesmos processos como presença e agora precisa narrá-los como ausência.

Assim, o que denominamos história do tempo presente do jornalismo é a reinterpretação dos processos históricos de um passado que coincide com o tempo de vivência do pesquisador. Uma história do jornalismo do tempo presente num espaço social particular, o Brasil, alargando a ideia de territorialidade e amalgamando-a como conjunto significativo.

Entretanto, não podemos deixar de apontar que tentar explicar um mundo no qual estamos imersos, e do qual somos parte é profundamente difícil (Rousso, 2001). Fazer a história do tempo presente é fazer uma história que investiga o nosso próprio tempo e com uma memória que pode ser a nossa. É considerar o presente vivido como passado, analisando-o como algo que está passando e as diferenças que enseja em relação ao momento mais contemporâneo.

Logo, como definir um marco inicial? No caso dessa análise, consideramos a década de 1980 por diversos motivos. Foi na década de 1980 que se iniciou, nos meios de comunicação, a transformação tecnológica, ainda em curso, e que tornaria o mundo cada vez mais próximo, com a inserção das tecnologias da informática e da rede mundial de computadores.

Grosso modo, podemos dizer que a passagem do mundo analógico para o digital e as mutações no jornalismo formam os grandes eixos de transformação que marcaram a história da comunicação nos últimos 40 anos. Em relação às mutações no mundo do jornalismo, destaca-se: o processo de acirramento da concentração das empresas jornalísticas, as transformações nas estratégias narrativas e a identificação de uma crise continuada desse mesmo jornalismo em função da inclusão no cotidiano do público das mídias digitais.

É das transformações no jornalismo que vamos tratar no próximo item, enfatizando a adoção de projetos modernizantes pelos periódicos e que reverberaram nas práticas cotidianas do mundo profissional. Deixamos de enfocar outros processos que, a nosso ver, também tiveram ingerência sobre a forma de fazer jornalismo: mudanças nos códigos de regulação da profissão e a luta geracional que se estabeleceu decorrente em parte da ocupação das redações pelos jovens recém-saídos da universidade2.

Projetos modernizantes

Começamos a refletir sobre a história do jornalismo brasileiro na década de 1980 a partir de duas fotografias. A primeira é um panorama da redação de O Globo antes da introdução dos computadores nas redações, e a segunda reproduz a cena já com os computadores espalhados por cima das mesas, como personagens privilegiadas da trama narrativa da imagem3.

Diante das imagens, para Didi-Huberman (2008, p. 31), estamos impedidos do anacronismo, porque, “sempre ante a imagem, estamos ante o tempo”. Reacende-se a presença do passado como sobrevivência, assim como memórias que embaralham também as lembranças do pesquisador-historiador, montando tempos anacrônicos, que se tornam presentes como indícios de um passado sobrevivente. Portanto, diante das imagens não há anacronismo possível, já que elas instauram um tempo que dura, enquanto estiverem em presença do olhar daqueles que as observam e constroem outras imagens-lembranças de tempos que deixam de ser idos e se transmutam em tempos sobrepostos. Há sempre diferentes temporalidades e memórias contidas nas imagens. Essas imagens sobreviventes manipulam tempos não exclusivos daqueles que as produziram, incluindo as percepções do passado dos que hoje as observam como contemporâneos (Didi-Huberman, 2008, p. 35).

No que diz respeito a esses tempos que sobreviveram, as imagens mostram jornalistas sempre numa posição atenta, e, mesmo que a tecnologia denuncie diferenças nas rotinas de trabalho, há permanências das práticas jornalísticas de uma situação em relação à outra. Por exemplo, sobre as mesas se espalham sempre, seja no tempo inicial dos computadores, seja no tempo das velhas máquinas de escrever, inúmeros papéis em desalinho. Por outro lado, a arrumação das máquinas e dos computadores não provocou de imediato a transformação no espaço físico das redações: as mesas continuaram contíguas, extremamente próximas, denotando partilhas intensas de uns com os outros. Todavia, diante de cada um, os terminais passaram a impedir o olhar genérico para o espaço, negando a conquista visual total. Os novos aparelhos de escrita induziram a concentração e impediram a dança dos olhares na direção de todos os cantos da sala.

Nas memórias dos jornalistas, a proliferação das máquinas de escrever nas redações, ainda no fim dos anos 1930 e, sobretudo, na década seguinte, produziu estranhamentos. Ao se substituir a escritura do texto do contato direto do corpo com a letra, intermediada apenas pela caneta, por uma máquina cuja autonomia das letras aleatórias sobre o teclado introduziu um novo gesto para a escrita, havia mais do que a falta de destreza para manejar aqueles objetos estranhos e desconhecidos. Mudava-se o sentido perene que possuía a escrita produzida em outras materialidades e, principalmente, com outros gestos.

Sobressaem as lembranças das dificuldades do manejo das novas máquinas. “Era difícil de usar, pesada e nós éramos lentos” (Anísio Netto citado em Baldessar, 1998, p. 43). A lentidão revela o desconhecimento da tecnologia e a falta de destreza para lidar com os processos de intermediação da produção textual em aparelhos ainda não domados, mas gradualmente elas foram se imponho e construindo uma nova paisagem nas redações. Na década de 1980 cederam lugar, mais uma vez, pouco a pouco, aos computadores.

Nas memórias dos jornalistas, construídas no momento em que já estavam em contato com os computadores, destaca-se também a glamourização dos tempos de outrora, em que até mesmo inconvenientes, como as manchas de tinta que o papel-carbono das cópias deixavam nas roupas e no corpo, eram referenciados como marcas de tempos mais felizes. No passado havia uma “louca sinfonia de gritos, gargalhadas, telefones, campainhas reverberavam impunemente [...] e o impiedoso papel-carbono tingia mesas, paletós, mangas de camisa, dedos, mãos e rostos menos atentos” (Fontenelle; Chaves, 1987 citado em Baldessar, 1998, pp. 17-18), enquanto hoje:

As persianas amarrotadas foram substituídas por um moderno sistema de iluminação que inclui um requinte inimaginável: calhas especialmente desenhadas, cujos focos de luz só iluminam as mesas dos terminais, sem reflexos nos olhos ou nas telas [...] um sistema de ar-condicionado central acabou com o clima tropical que sufocava [...] e a sinfonia das pretinhas deu lugar a um silêncio cibernético, propiciado pelos 140 terminais e suas 138 teclas. (Fontenelle; Chaves, 1987 citado em Baldessar, 1998, pp. 17-18).

Na descrição há a referência à velha atmosfera da redação que marca a memória dos jornalistas - o barulho, a confusão generalizada, a fumaça dos cigarros enevoando o ambiente, ou seja, a falta da imposição de limites ao mundo do trabalho -, em contraposição ao novo ambiente, marcado pela assepsia, pelo silêncio, pelo ordenamento. A memória está sempre submetida aos acordos, aos desejos, aos limites de quem fala, de onde fala e do tempo em que se ancora a sua própria narrativa, mas, no jogo de composição do tempo de antes em relação ao de agora, percebem-se sentimentos profundos no que concerne às transformações produzidas no mundo do trabalho.

As mudanças do jornalismo brasileiro nos anos 1980 não atingiram de maneira unívoca todos os jornais. Num mercado amplo e diverso, os principais veículos estavam concentrados sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. No caso do Rio de Janeiro, desde a década de 1980, anota-se a conquista da hegemonia do jornal O Globo ante os outros periódicos da cidade. Em 1995, o jornal atingia mais de 700 mil exemplares aos domingos, enquanto O Dia, na segunda colocação, vendia 454.641 exemplares. O Jornal do Brasil, em crise econômica, imprimiu pouco mais de 150 mil (Imprensa, 1994).

No início dos anos 1980, a tiragem média de O Estado de S. Paulo era, aos domingos, de 290 mil exemplares, o que representava 25% do mercado de venda avulsa dos jornais diários da Grande São Paulo. Já a Folha de S.Paulo, o seu principal concorrente, tinha tiragem média aos domingos de 320 mil exemplares, detendo 50% do mercado de venda avulsa (Roxo, 2013, p. 48). No que diz respeito ao mercado jornalístico paulista, no fim dos anos 1990, a Folha de S.Paulo atingia a circulação média anual de 471 mil exemplares, enquanto o seu principal concorrente chegava a 366 mil. O Globo, no mesmo período, tinha circulação de 336 mil exemplares (Instituto Verificador de Comunicação).

O diagnóstico da decalagem entre os estados no que diz respeito à adoção de processos modernizantes é mostrado em diversos estudos. Ao descrever os processos de transformação no Rio Grande do Sul, Fonseca (2005) identifica que algumas mudanças só atingiram a plenitude nos primeiros anos do século XXI. Portanto, as ações que vamos descrever concentram-se, no primeiro momento, no Rio e em São Paulo e só gradualmente migraram para periódicos de outras regiões. Há que se considerar que muitos jamais atingiram o padrão dos grandes centros. As experiências são díspares e desproporcionais, num país de escala territorial e cultural tão diversa como o Brasil. Portanto, é sempre uma generalização perigosa falar em jornalismo brasileiro, já que essa homogeneidade não existe. O que há são jornalismos que adotam padrões próprios em temporalidades às vezes muito distantes em relação às transformações já experimentadas nos grandes centros.

Os anos 1980, por outro lado, expõem a estreita relação da imprensa com a política, no momento histórico em que o país promovia o seu processo de redemocratização após 21 anos de ditadura militar. Os jornais e a mídia de maneira geral tornaram-se atores centrais, também por meio das polêmicas em que se envolveram, tomando posições que foram decisivas. Essas posições caracterizavam-se muitas vezes pela dubiedade: num primeiro momento, abraçavam causas para refutá-las logo a seguir; ou, ao contrário, promoviam o silêncio no tocante a determinados processos, só os reconhecendo quando já não era mais possível promover cortinas de fumaça nem de silêncio4. Quanto aos mercados e às empresas jornalísticas, houve retração, em função da crise econômica que atravessava décadas e, na sequência, a introdução das modernas tecnologias que passaram a exigir menor quantidade de mão de obra (Adghirni, 2005)5. Os grandes conglomerados de mídia e os jornais mais importantes aderiram sem reservas às estratégias do liberalismo econômico, que passou a ser cultuado como modelo político/ideológico dominante. O passo seguinte foi a adoção do modelo taylorista nas indústrias de mídia, seguindo os padrões neoliberalistas advoga-

dos pela política e pelo mercado.

A adesão a esses ditames significou mudança na gestão do trabalho dos jornalistas, cujo ponto inflexivo e simbólico foi a entrada dos computadores nas redações. A rigor, esse processo, que se tornou uma espécie de síntese visível da face modernizante dos jornais, foi construído nas mais importantes empresas jornalísticas com a implantação de projetos editoriais/políticos como, por exemplo, o Projeto Folha, do jornal Folha de S.Paulo, classificado pela própria empresa como a adoção de preceitos baseados na administração do jornal como uma “empresa industrial moderna” (Folha de S.Paulo, 1984).

Esses projetos foram adotados, na sequência, por outros jornais, às vezes com décadas de atraso em relação ao original, e o projeto idealizado pela Folha se tornou, para empresas de menor porte, um padrão desejado e que muitos queriam alcançar não importava o preço6. Essa é uma das razões pela opção que fizemos, neste artigo, de concentrar a análise crítica no Projeto Folha, percebido também como reverberador de ações e do desejo, por vezes, irrealizável, dos outros diários situados em lugares de poder e prestígio menos expressivos.

O Projeto Folha

Projeto Folha é o nome atribuído ao plano de renovação da Folha de S.Paulo, liderado pelo herdeiro do jornal, que assumiu a direção do periódico em 1984, Octávio Frias de Oliveira. De acordo com Niemietz (2016, p. 318), as estratégias adotadas serviram também para sedimentar o caminho de Octávio Frias no longo processo de transformação que ocorreu na empresa desde o período ditatorial brasileiro, marcado por pequenas e contínuas modernizações que adotou e se esforçou por alardear7.

Antes do golpe militar de 1964, após ter sido adquirido pela família Frias, o periódico contratou Cláudio Abramo, em 1963, já que, na concepção dos donos do jornal, Abramo, que fora secretário de Estado e também tinha adquirido prestígio como jornalista de O Estado de S. Paulo, possuía capital simbólico suficiente para aumentar a credibilidade do jornal diante dos leitores (Niemietz, 2016, p. 317).

Logo Abramo promoveu uma série de pequenas reformas, enfatizando mudanças de conteúdo. A página opinativa do jornal, por exemplo, passou a incluir debates de ideias de diferentes personalidades, situadas muitas vezes em lados opostos na arena política. Mas, com a implantação da ditadura, tornou-se perigoso continuar tendo entre os seus quadros um jornalista reconhecido pelos militares como de esquerda. Niemietz (2016, p. 318) identifica na saída de Cláudio Abramo uma ruptura em relação à forma de fazer jornalismo que, até então, vigorava na Folha.

Com a saída de Abramo, assumiu seu lugar Boris Casoy, com posições políticas conservadoras, tendo até mesmo apoiado o golpe e mantido bom relacionamento com os militares. Casoy permaneceria no jornal até 1984. A substituição cumpria três funções: afastava do jornal o seu vínculo com a esquerda, aproximava o periódico do governo ditatorial e sedimentava o caminho para que o filho do dono assumisse os negócios da família.

Por outro lado, há que se considerar que implantar processos modernizantes para o jornalismo brasileiro é uma possibilidade de ocupar espaços simbólicos não apenas no campo jornalístico, mas também na sociedade. Modernização constitui-se, dessa maneira, durante toda a história do jornalismo do século XX, numa categoria mítica buscada a cada tempo, a cada década e liderada por empresas que possuem em cada momento importância e relações atávicas com as estruturas de poder. Assim foi no início do século XX, quando os jornais se transformaram em “indústrias da informação” (Barbosa, 2010), continuou nos anos 1950, tidos como o período “áureo” desse padrão modernizante (Ribeiro, 2002), e seguiu, mais uma vez, na década de 1980, quando outras tecnologias, processos administrativos, ingerências no campo profissional e relações políticas determinaram mais um ciclo modernizante, dessa vez liderado pela imprensa paulista.

Ao analisar o Projeto Folha, Lins da Silva (2005, p. 97), ele mesmo participante engajado no jornal, ocupando cargos de chefia durante o período, lista seis documentos que, na sua opinião, foram definidores do projeto:

  • “Levantamento e Pontos Indicativos de Posição Editorial e Avaliação Sistemática do Momento Político”,

  • “A Folha e Alguns Passos que é Preciso Dar”;

  • “A Folha em Busca do Apartidarismo, Reflexo do Profissionalismo”;

  • “A Folha Depois da Campanha das Diretas Já”;

  • “Projeto Editorial da Folha - 1985-1986”;

  • “Projeto Editorial da Folha - 1986-1987”.

O primeiro, datado de 1978, postula a formulação da tendência editorial, a ser equacionada pelo Conselho Editorial, e analisa a conjuntura política diante da iminência do término da ditadura, quando o jornal apostava nas possibilidades de alianças futuras que sedimentariam o seu sucesso editorial. O segundo documento, datado de 1981, é, de certa forma, uma reação à adesão dos jornalistas da Folha à greve da categoria de 1979 (Roxo, 2013), da qual participaram até mesmo profissionais que ocupavam postos de chefia.

No terceiro documento, em que a questão do profissionalismo é referenciada já no título, destaca-se a importância de o jornal se constituir como “apartidário” e aponta o remédio para conseguir alcançar esse ideal: o “profissionalismo”. Conforme o documento, “profissionalismo é sinônimo de desengajamento. É uma luta sem tréguas contra o parti pris, contra o preconceito, contra o senso comum, contra a falta de clareza e concisão, contra as informações incompletas ou ambíguas” (Folha de S.Paulo, 1982 citado em Lins da Silva, 2005, p. 103).

Dois anos depois, em 1984, o quarto documento, “A Folha Depois da Campanha das Diretas Já”, aproveitou o prestígio alcançado pelo jornal em função da cobertura do movimento em prol de eleições diretas para enquadrar definitivamente as práticas e o trabalho dos jornalistas num modelo que apregoava a padronização, o enquadramento em parâmetros rígidos, de acordo com a lógica de uma economia de mercado como norteadora das práticas, que passaram a ser rigidamente controladas. Os considerados não aptos foram sumariamente demitidos, e para eles se alardeou o fato de não serem mais capazes de executar o padrão modernizante adotado. Os que se manifestaram de forma contrária ao novo modelo organizacional/ideológico também foram rapidamente expelidos da empresa. Não à toa, Lins da Silva (2005, p. 104) classifica esse documento como “a matriz a partir da qual os documentos seguintes serão apenas versões atualizadas”. Nele fica evidente a necessidade de enquadrar a redação na ótica do novo modelo, baseado na padronização da prática jornalística e na adesão irrestrita ao projeto ideológico/político do jornal.

Depois de listar “os graves problemas de estrutura jornalística” (Lins da Silva, 2005, p. 106), o documento cita “serviços noticiosos precários, qualidade das edições flutuante, fluxo interno cheio de percalços e irregularidades, mecanismos de controle falhos, falta de instruções precisas e uniformes para o desempenho das tarefas jornalísticas” e, por fim, “alto número de jornalistas, cuja qualificação profissional não está à altura das exigências colocadas pelo Projeto Folha” (Lins da Silva, 2005,

p. 106). E já se deixava antever o caminho que seria escolhido, a demissão dos que não estivessem previamente “adestrados”:

Não há tempo nem condições materiais para adestrá-los e prepará-los (aos jornalistas com qualificação profissional abaixo das exigências); terão que ser substituídos. A empresa terá que investir para viabilizar essas substituições e para remunerar melhor a maioria que permanecerá. (Lins da Silva, 2005, p. 106, grifo meu).

As consequências do aviso seriam logo sentidas: 27 jornalistas foram, em conjunto, demitidos em julho de 1984, por terem “avaliação profissional (que) revelava incompatibilidade de várias naturezas em relação às expectativas do conjunto das chefias e às demandas de exigência técnica crescente colocadas pelo projeto” (Folha de S.Paulo, 1984 citado em Lins da Silva, 2005, p. 106). O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo protestou de modo veemente, destacando que o jornal “feriu brutalmente a dignidade da profissão, ao demitir, com uma só penada”, os jornalistas, sob a “alegação de que não se enquadravam às exigências do Projeto Folha” (Jornal Unidade, 1984, p. 4).

Depois desse aviso, logo concretizado, o jornal qualificou o que esperava para a Folha e sintetizou num slogan não apenas a linha editorial, mas o projeto político: “Trata-se de um jornalismo crítico, pluralista, apartidário e moderno” (Folha de S.Paulo, 1984 citado em Lins da Silva, 2005, p. 108). O modelo modernizante era baseado na substituição de jornalistas considerados não adequados por outros que poderiam ser “adestrados”, o que também foi possível graças à grande quantidade de profissionais no mercado, em parte decorrente da ampliação dos cursos de Jornalismo. Nessa adequação figuravam a adesão irrestrita ao modelo que o jornal postulava e a desvalorização intelectual do próprio jornalista. No projeto padronizador, a construção do Manual Geral de Redação seria central, bem como a adoção de um padrão textual caracterizado pela intensificação de textos curtos, ao lado do uso abundante de gráficos e tabelas.

Temos que publicar textos mais corretos, mais objetivos, mais concisos, mais claros, mais completos e sobretudo mais enxutos. A chefia da Agência está concentrando esforços numa verdadeira batalha pela exatidão em todos os níveis, esta é a tarefa prioritária. É imprescindível que todos nós estejamos firmemente engajados nela. (Folha de S.Paulo, 1984 citado em Lins da Silva, 2005, p. 108).

Todavia, o engajamento não se deu da maneira como esperavam os dirigentes do jornal. O próprio Lins da Silva (2005), defensor ferrenho do projeto, no livro em que o expõe detalhadamente, reconhece, com base nos estudos de duas pesquisadoras (Londoño, 1985, p. 120; Festa, 1985, p. 98), que “a maioria dos jornalistas entendeu que a execução do projeto se dava de forma arbitrária e autoritária, reclamava do que era considerado ‘dureza excessiva’ com que o projeto se desenrolava” (Lins da Silva, 2005, p. 110). Em apenas seis meses, quatro dos seis editores saíram do jornal. Além disso, o comando das duas maiores sucursais - Brasília e Rio - e uma das chefias de reportagem da Agência Folha foram substituídos ainda no primeiro semestre da administração de Octávio Frias.

Também pelos jornalistas o projeto foi repudiado. Em fevereiro de 1985, 50 jornalistas da Folha se reuniram no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo e elaboraram um abaixo-assinado encaminhado à direção com a assinatura de 155 jornalistas, ou seja, 65% do total das redações da capital. Os jornalistas, ainda que concordassem com “a maioria dos princípios estabelecidos no Projeto Folha” (Lins da Silva, 2005, p. 122), discordavam dos métodos utilizados para a sua implantação, afirmando que estes estavam “em flagrante contradição não só com estes mesmos princípios, mas com toda uma proposta jornalística desenvolvida desde o início do chamado processo de abertura política” (Lins da Silva, 2005, p. 122).

Além disso, os jornalistas fizeram menção à alta rotatividade de pessoal em todos os níveis e afirmaram que “as relações de trabalho entraram em rápido processo de deterioração, com claros reflexos no produto final” (Lins da Silva, 2005, p. 114). Na sequência, reclamaram dos modelos implantados deixando antever que eles tinham sido gestados por pessoas alienígenas ao jornalismo:

O Projeto Folha encontra-se neste momento seriamente ameaçado tanto na teoria como na prática. Os princípios nele estabelecidos não se revelam nas relações das chefias com os seus subordinados. Uma enorme teia burocrática impede o debate aberto e, frequentemente, ergue obstáculos na busca da informação. A pauta jornalística vem sendo substituída por ideias abstratas e regida por memorandos, comunicados, ordens e contraordens. Os modelos recomendados não são os de um jornal diário e pouco têm a ver com o nosso dia a dia, com a nossa tentativa de retratar e mostrar aspectos mais evidentes da realidade. (Unidade, 1985, p. 4-7 citado em Lins da Silva, 2005, p. 115, grifo meu).

O documento termina com propostas e lista:

Discussão de toda a estrutura operacional existente nas redações, rediscussão do sistema de avaliações de desempenho, definição de uma política salarial que dê prioridade aos que já trabalham na empresa e leve em conta os processos obtidos e observados por um sistema democrático e criterioso e rediscussão imediata do Manual Geral de Redação entre todos os jornalistas, resultando em um novo conjunto de normas e regras que jamais funcione como um [Ato Institucional Número Cinco] AI-5. (Unidade, 1985, p. 4-7 citado em Lins da Silva, 2005, p. 116).

A alusão ao Ato Institucional Número Cinco (AI-5), o mais autoritário instrumento do período ditatorial, sintetiza a forma como os jornalistas qualificavam o projeto: regras e normas que se pautavam pelo autoritarismo, sem considerar a discussão pluralista nem, sobretudo, os princípios democráticos.

A reação da direção da Folha de S.Paulo aos signatários que eram funcionários do jornal não tardou: todos os que ocupavam cargos de editor e editor-assistente foram afastados. Clóvis Rossi, que integrava o Conselho Editorial e assinou o documento, também foi afastado. Quatro outros profissionais que ocupavam cargos de confiança foram demitidos. Mesmo depois dessa grave crise interna, as restrições ao projeto continuaram a existir. Em entrevista, em junho de 1985, Ricardo Kotscho, então repórter especial do jornal, afirmava:

No caso da Folha, eu não sei aferir se o jornal está vendendo mais agora como resultado da campanha das diretas, que deu muito prestígio ao jornal e é um prestígio que permanece, ou se é por essas mudanças de fazer matérias mais curtas, secas, assim tipo linguagem telegráfica das agências noticiosas. Hoje você tem a Folha num estilo mais semelhante ao dos jornais americanos, de linguagem seca, sem adjetivos, sem emoção. (citado em Londoño, 1986, p. 136, grifo nosso).

Na crítica do jornalista sobressai a adoção de padrões em relação à linguagem jornalística e à pasteurização textual, caracterizada por um estilo entrecortado que, de certa forma, antecipava o que seria dominante na era inicial do jornalismo digital. Por outro lado, o estilo denunciava a adoção de um jornalismo de mais fácil aplicação, estruturado sobre um conjunto de estereótipos apresentados sob a capa de linguagem simplificada.

O quinto documento do conjunto de normas e valores que orientaram as transformações adotadas foi divulgado em junho de 1985. A partir daí, o documento passou a ser chamado apenas como Projeto Folha. Depois de reafirmar os valores do documento anterior, a proposta de 1985 introduziu dois novos pilares que sustentariam, juntamente com os anteriores, a ideologia jornalística da Folha: serviço e didatismo (Lins da Silva, 2005, p. 121). A ênfase recaía na ideia de que o jornalismo deveria se aproximar do leitor pela adoção de informações úteis para “a sua vida concreta, prática”. O vínculo com o cotidiano do leitor criaria elos duradouros.

Quanto ao outro pilar, partia-se do princípio de que o jornalismo deveria preencher a lacuna de desconhecimento do leitor, afirmando que tudo deveria ser “explicado, esclarecido e detalhado”, sempre numa linguagem “tanto coloquial e direta quanto possível”. Esse aspecto deveria ser facilitado pela inclusão de elementos visuais, de modo que a “apreensão pelo leitor” se tornasse “fácil, clara e rápida [...]. A rigor, tudo o que puder ser dito sob a forma de quadro, mapa, gráfico ou tabela não deve ser dito sob a forma de texto” (Folha de S.Paulo, 1985 citado em Lins da Silva, 2005, p. 122). O sexto e último texto, para o período de 1986-1987, foi apresentado à redação em setembro de 1986 e, além de reforçar os pontos básicos anteriores, insistiu na necessidade de obter “informações exclusivas, inéditas e de impacto” (Folha de S.Paulo, 1986 citado em Lins da Silva, 2005, p. 124).

Depois de destacar o fato de ter assumido o posto de “maior jornal diário de maior circulação no país”, o documento da Folha informava que de junho de 1984 a junho de 1986 a circulação paga crescera 39,5%, chegando a um total de 291.659 exemplares em média por dia, e definia a nova prioridade: “A preocupação mais profunda e permanente da Folha neste momento é a informação exclusiva” (Lins da Silva, 2005, p. 124).

Considerações finais

Embora na breve descrição do projeto, Lins da Silva (2005) afirme que não havia nada de “revolucionário” na proposta, não fazendo nada mais do que revigorar princípios de sustentação ideológica do jornalismo norte-americano como modelo para o jornalismo brasileiro, a rigor o Projeto Folha, copiado como modelo modernizante da imprensa brasileira, impôs padrões e normas cuja síntese se fundamentava na pasteurização das práticas jornalísticas e no controle e na vigilância de seus profissionais, procurando apagar valores históricos importantes como, por exemplo, o vigor intelectual. Era um modelo modernizante que assumia a vocação dos jornais enquanto empresa que visava ao lucro, e a notícia exponenciava seu caráter mercadológico (Bergamo, 2020).

As novas tecnologias e a mercantilização generalizada dos produtos jornalísticos - expostos no projeto - promoveram a fragmentação do mercado profissional e as múltiplas formas de precarização do trabalho, que aumentariam nas décadas subsequentes. O jornalista passou a fazer a pauta, apurar, redigir, cortar o texto, editar a matéria, titular, selecionar fotos, legenda, propor gráficos e ilustrações, numa multiplicidade de tarefas que não cessam de aumentar. Na esteira da concentração das tarefas, desaparece uma série de postos antes ocupados por jornalistas: pauteiros, copidesques, revisores, diagramadores, entre outros. Nas décadas seguintes, as jornadas de trabalho ampliaram-se ainda mais com a entrada das redes sociais e dos computadores móveis. O trabalho em ambiente doméstico multiplicou-se, e o jornalista sem vínculos empregatícios formais passou a ser predominante nas organizações.

Apresentadas, a maioria das vezes, como ferramentas facilitadoras do trabalho, as imposições são, em rigor, lógicas de disciplinarização e enquadramento do modelo de jornalismo que deveria ser adotado e seguido como ideal. Na prática, ampliou-se a precarização do trabalho e produziu-se a extinção de numerosos postos de trabalho. A fúria modernizante iniciada nos anos 1980, mais do que um simples modismo, foi uma imposição do mercado. No momento de sua implantação, os jornalistas puderam ver suas consequências. Em primeiro lugar, foram demitidos cem revisores, com a extinção da categoria na Folha, já em 1984. Depois, foram 27 jornalistas, que ousaram se rebelar contra o projeto.

Esse pedaço da história que descrevemos e procuramos interpretar foi feito com base na presunção de que, como historiadores, nada mais somos do que herdeiros do passado (Ricoeur, 1994). Nessa condição, como artesãos de uma narrativa de um tempo vivido, procuramos perpetuar o passado e ver movimentos do tempo que continuam afetando o presente no qual nos movemos. Enfim, entre histórias imortalizadas em documentos, em teias narrativas de produções interpretativas de outros tempos, procuramos produzir uma interpretação, dividindo espaço entre a história e as memórias, o desafio permanente dos que se aventuram numa história que se autoinstitui como do tempo presente.

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1 No centro das transformações das pesquisas históricas nos últimos 50 anos, a abordagem histórica do tempo presente foi ganhando adeptos e formuladores conceituais que, em meio à ampla renovação no campo disciplinar da história, passaram a considerar o tempo presente. Com propostas que aceitavam e valoravam o testemunho direto e reconheciam a subjetividade do historiador, o testemunho também passou a ser fonte privilegiada, deixando margens para o estudo do século XX e observando a emergência da noção de história do tempo presente. As expressões que acompanharam essas reflexões (contemporary history, histoire du temps présent, zeitgeschichte) entraram no vocabulário dos historiadores especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando, segundo Ferreira (2000, p. 119), se assistiu à convergência de escolas históricas na França. Abriu-se caminho para explorar as ruturas e transições de uma história recente. Apesar das críticas que sofreu, a história do tempo presente constituiu-se como um ramo da história, elegendo temáticas que marcam ruturas do século XX (a Segunda Guerra Mundial, o ano de 1989 e a queda do mundo comunista, por exemplo).

2 A análise desses processos é feita por Bergamo (2020, p. 337-368), identificando a tensão entre o mercado jornalístico e as universidades ao longo da década de 1980, quando foi, de um lado, instituída a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão e, de outro, proibida a realização de estágios para os estudantes universitários. No mesmo artigo, o autor reflete sobre o conflito entre antigos e novos jornalistas, em decorrência das mudanças nas formas de trabalho e na percepção do ofício, como elementos-chave de constituição da identidade profissional. Sobre a questão da identidade jornalística, ver a tese de doutorado de Fernanda Lima Lopes (2012).

3 As fotos descritas no texto podem ser vistas em: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/do-globo-infoglobo-20859250. Acesso em: 9 fev. 2021.

4 Como exemplo, podemos citar: a posição de O Globo no processo eleitoral para governadores, em 1982, em que houve a acusação de que o grupo teria participado da tentativa de fraude nas eleições para impossibilitar a vitória do candidato de esquerda Leonel Brizola ao governo do Rio; o silêncio em relação à campanha das “Diretas Já”, ignorando o movimento de cunho popular clamando pela aprovação da emenda parlamentar que restituiria as eleições diretas ou aderindo tardiamente a ele; a deflagração das denúncias em relação ao presidente Collor de Mello (que fora incensado pelos principais meios de comunicação como representante de uma modernidade transformadora, apoiando e construindo sua imagem como o novo na política, sob a bandeira de que lutaria contra a corrupção, debaixo do manto do caçador de marajás); e, na sequência, o apoio aos movimentos que exigiam o seu impeachment. Todos esses movimentos foram deflagrados, inflados, visibilizados e conduzidos pela mídia brasileira.

5 No diagnóstico que produz, Adghirni (2005, p. 50) elenca imperativos que passaram a atingir o campo jornalístico: desafios tecnológicos; concentração de grupos de mídia; concorrência acirrada entre diversas mídias; endividamento das empresas; explosão das faculdades de comunicação; oferta de mão de obra profissional abundante; precariedade das condições de trabalho do jornalista, etc.

6 Além do exemplo já referido do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS), podemos citar as inovações editoriais propostas pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE), em 1989. Naquele ano publicou a Carta de Princípios. Dois anos depois, lançou o Código de Ética da Empresa Jornalística O Povo e implementou a função de ombudsman. Entretanto, só no fim dos anos 1990, adotaria um novo “projeto gráfico-editorial”, que reformulou visual e editorialmente o jornal, com o mesmo discurso simbólico adotado pela Folha de S.Paulo, ser amplificador da voz e dos desejos do público, já que entre as principais metas estava o seu reconhecimento como “principal mediador da sociedade” (O Povo. Edição especial O Povo 80 anos).

7 Nesse período, o jornal reformulou o sistema de distribuição, introduzindo o offset, a fotocomposição e as novas impressoras, o que faz com que alguns autores identifiquem essa época como a da “revolução tecnológica”: “A ideia de arrojo dos novos empreendimentos surge a cada passo para registrar o pioneirismo no plano das inovações técnicas do jornal [...]. O discurso dominante é o da modernização [...], assumindo a fala do progresso, da revitalização e da modernização” (Mota & Capelato, 1981, p. 190).

Recebido: 28 de Março de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

Marialva Babosa é Professora titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora 1D do CNPq. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (1976), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1992) e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (1996). Possui pós-doutorado em comunicação (1999) pelo LAIOS-CNRS, Paris - França. Já foi Vice-Presidente da INTERCOM (2011-2014) e Diretora Científica (2009-2011) e Presidente da INTERCOM (2014-2017). Autora de várias obras. ID Lattes: 9819532476888552. Morada institucional: Universidade Federal do Rio de Janeiro. 22.291-090, Rio de Janeiro, Brasil

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