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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.21 no.39 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.14195/2183-5462_39_10 

Artigo

Jornalismo e memórias em 360°. O caso do The Daily 360: Genocide Legacy

Journalism and memories in 360°. The case of The Daily 360: Genocide Legacy

1 Universidade Johannes Gutenberg. Alemanha. idesousa@uni-mainz.de

2 Universidade Federal. Brasil. Fluminense carlaramalho@id.uff.br


Resumo

O artigo analisa o especial de quatro reportagens em vídeo denominado The Daily 360: Genocide Legacy, veiculado em abril de 2017 pelo New York Times. Nas reportagens em vídeo curtas, o sentido é produzido a partir da imersão em 360 graus do espectador, que acessa os lugares do acontecimento e escuta os testemunhos. A análise foi amparada no método qualitativo da análise de conteúdo, tendo sido elaboradas categorias e subcategorias a partir do conteúdo. As reportagens em 360 graus permitem a democratização de lugares de memória e a aproximação com o acontecimento histórico. Além disso, ilustra a configuração de formatos distintos de transmissão de memória a partir da reestruturação de novas linguagens jornalísticas.

Palavras-chave: New York Times; jornalismo; genocídios; experiência imersiva; rememoração

Abstract

The article analyzes the special of four video reports called The Daily 360: Genocide Legacy, published in April 2017 by the New York Times. In short video reports, the meaning is produced through a 360-degree immersion of the viewer, who accesses the places of the event and listens to the testimonies. The analysis was based on the qualitative method of content analysis, and categories and subcategories were developed according to the content. The 360-degree reports allow the democratization of places of memory and the approximation with the historical event. Moreover, it illustrates the configuration of distinct formats of memory transmission through the restructuring of new journalistic languages.

Keywords: New York Times; journalism; genocides; immersive experience; rememoration.

Introdução

Atualmente, vivemos um momento marcado por transformações tecnológicas e, mesmo diante de um cenário permeado por dispositivos móveis e pelo avanço de tecnologias, o século XXI é também marcado por um boom da memória. Este contexto fica evidenciado nos produtos culturais que emergem e evocam novamente o passado, rememorando e reconstruindo tais acontecimentos. O passado é constantemente rememorado porque atua enquanto âncora, oferecendo uma sensação de estabilidade, num mundo onde a velocidade e a tecnologia provocam o efeito de imediatismo e instabilidade (Huyssen, 2000).

Nesse rememorar, estão presentes narrativas que pretendem desafiar uma narrativa oficial e institucional, que também silencia uma série de vozes que hoje procuram falar e ser ouvidas. O resultado é a emergência de uma história vista por debaixo, ou seja, uma memória subterrânea, que promove a expansão de uma história que antes era concentrada nas mãos de elites simbólicas (Haskins, 2007; Thompson, 2001; Pollak, 1992). Tais narrativas outras confrontam a história oficial e oferecem, assim, outra interpretação sobre o fenômeno, ilustrando versões alternativas daquele acontecimento. Nesse processo, fenômenos históricos são ressignificados, e a memória é reconstruída.

A memória, por não ser estática, está permanentemente em construção, sendo mediada pela memória individual e coletiva (Halbwachs, 1990). Nesse processo, os meios de comunicação são essenciais, já que atuam, por exemplo, na construção do senso comum, ancoram representações sociais e provocam a assimilação cultural (Hall, 1999; Höijer, 2011). Possuem, assim, um papel mediador. No centro deste processo, está o jornalismo que, através das suas técnicas (como a neutralidade, imparcialidade e objetividade), desenvolvidas a partir de marcadores históricos como o cientificismo, atua nas dinâmicas de legitimação dos discursos (Barbosa, 2004; Tuchman, 1999).

Assim como em outros produtos culturais, o boom da memória está também evidente no jornalismo, que por vezes relembra matérias do passado, em um processo de rememoração que também confirma o testemunho e a importância dos jornais em tais momentos históricos (Gonçalves, 2018; Musse e Viana, 2018). Em outros momentos, procura investigar tal passado, recontando e ressignificando histórias, como é o caso do projeto 1619 do New York Times que aborda o processo de colonização dos Estados Unidos pela Inglaterra; e o livro reportagem Holocausto Brasileiro, escrito por Arbex (2013).

Reconhecendo a importância do jornalismo para a reconstrução da memória e da história, é fundamental entender como tais fenômenos históricos são ressignificados, especialmente ao entender que a memória também pode ser reconstruída no presente. Dessa forma, o presente artigo procura analisar a websérie em 360.º denominada The Daily 360: Genocide Legacy, produzida pelo New York Times. A série se diferencia porque procura rememorar os genocídios de Ruanda, Camboja, Namíbia e o Holocausto. A produção dos vídeos em 360 graus permite que os espectadores consigam vivenciar o processo de imersão no conteúdo, a partir do controle da câmera e do percurso pela reportagem. A rememoração, assim, vai além do evocar do passado, já que permite a experiência do passado. Por meio da interação do usuário com a matéria, que tem uma visão em primeira pessoa do acontecimento, ele passa a se inserir no passado, experienciando uma realidade que não vivenciou. Nesse sentido, o presente artigo procura entender como ocorre a rememoração de tais narrativas, percebendo aspectos como a presença do repórter; uso de sons; escolha de fontes e temas abordados.

O projeto The Daily 360 foi lançado em 1 de novembro de 2016 pelo New York Times, tendo sido produzido até o dia 31 de dezembro de 2017 e posteriormente descontinuado. O seu diferencial foi trazer diariamente vídeos em 360 graus produzidos por jornalistas do New York Times localizados em diversas partes do mundo. Trata-se, assim, de um dos subgêneros de produções em vídeo presentes no canal Times Video. Além dele, são também encontrados vídeos opinativos, denominados Op-Eds, videorreportagens e webséries especiais, tais como a websérie Conception e Modern Love (Musse, C.F; Gonçalves, 2020a, 2020b). O projeto é mais uma das iniciativas de produção de jornalismo digital do New York Times, um jornal referência, quando se analisa a transformação do modelo de negócios. A partir da adoção de uma nova estratégia, a empresa conseguiu superar a crise do jornalismo, a partir de um conteúdo voltado à lógica de nichos e digital (Gonçalves, 2019).

Ao acessar o canal The Daily 360, torna-se possível visualizar uma série de especiais. Um deles é o Genocide Legacy, objeto deste artigo. Além dele, estão disponíveis: a) As novas sete maravilhas do mundo; b) Vida em Marte; c) Onde isto é feito;

d) Estados Unidos; e) Mundo; f) Cultura; g) Ciência; h) Viagem; i) Esporte j) Política;

k) Nova York e Região. A iniciativa do Daily 360, nesse sentido, apresenta uma nova proposta de experiência informativa alinhada às mudanças produzidas pelo espaço digital, tanto em relação ao consumo, quanto à produção da informação (Canavilhas, 2014), que também afetaram os modelos de negócio do jornalismo. De acordo com Costa (2015), para que os diversos veículos de comunicação continuem ocupando um espaço de relevância no tecido social, o novo modelo de negócio do jornalismo deve adotar uma forma distinta de relacionamento entre jornais, leitores e espectadores, assim como respeitar as novas formas de consumo encontradas. Nesse sentido, o autor defende ser fundamental investir em tecnologia, além de produzir informações que estejam alinhadas com as mentes dos já nativos digitais. Por fim, Costa (2015) também determina ser necessário expandir o portfólio de serviços tradicionais, de modo a oferecer novos produtos. Nessa perspectiva, é possível afirmar que tal canal se alinha a tais princípios, por ser ele produto de uma inovação tecnológica, além de procurar uma nova forma do fazer jornalismo, alinhado à realidade digital.

No entanto, apesar de localizar a influência da demanda mercadológica na produção de novas propostas informativas no jornalismo, compreendemos que a busca por uma maior conexão e relevância para a audiência permanece sendo multifatorial, em que a tecnologia não é necessariamente determinante. Desde o comprometimento com temáticas que impactem na sociedade, a linguagens e conteúdos que possibilitem identificação/representação de determinados grupos, diversos recursos são historicamente utilizados pelos jornalistas em detrimento tanto do consumo noticioso quanto para a produção de subjetividades e conexões. Assim, ao analisar a websérie imersiva The Daily 360, consideramos tanto seu aspecto inovador alinhado às demandas do mercado digital, quanto a potência de uma narrativa jornalística que propõe a experiência como forma de produção de subjetividade e identificação, revelando uma característica própria do campo que está relacionada ao estabelecimento de vínculos que legitimam sua relevância e função social.

O primeiro vídeo do The Daily 360 tem um minuto e dez segundos, estando centrado nas consequências de um ataque aéreo a Sana, Yemen, no qual mais de 100 pessoas foram mortas. Ao longo do vídeo, o espectador consegue visualizar o hall de uma recepção chique, que foi deixada em destroços em consequência do ataque. Assim como outros produtos do Daily 360, o vídeo é curto e não há intervenção de fala do repórter. O espectador, assim, recebe as informações apenas de forma escrita, por meio de legendas, que dão alguns detalhes sobre o acontecimento, mas não entregam todas as respostas. No vídeo, é possível ouvir sons ambientes e explorar o local destruído.

Os vídeos em 360.º colocam o espectador no centro da cena, permitindo-lhe olhar para a esquerda, direita, acima, abaixo, frente e atrás. As formas de assistir aos vídeos são variadas, podendo o usuário escolher entre os dispositivos celular, tablet ou computador, não havendo, para tanto, a necessidade de óculos.

Jornalismo e memória discursiva: o acontecimento como visão social do mundo

A noção de acontecimento pode ser entendida por diversas perspectivas, e sua definição faz parte de um debate interdisciplinar que inclui filósofos, sociólogos, jornalistas e demais estudiosos da sociedade e da mídia. Um dos pontos centrais para a discussão do conceito se localiza na dimensão de sua autonomia ou externalidade em relação à linguagem e a significação, ou seja, em que medida o acontecimento descrito como um fenômeno que se produz no mundo se sustenta de forma independente à percepção/interpretação humana.

Para Moretzsohn (2007), no caso do jornalismo, o ponto sensível da discussão também se relaciona à pretensão de distinguir claramente o fato (ou a informação, ou acontecimento) da pura interpretação (ou a opinião), localizando que o conflito se dá entre aqueles que afirmam e rejeitam a razão como instrumento de compreensão do mundo. Assim, tomar uma compreensão de que o acontecimento é algo totalmente “espontâneo” à interpretação humana tornaria possível que os jornalistas o capturassem em sua forma “bruta” e, assim, o acontecimento seria dado “tal qual ele é”. Por outro lado, a partir de uma noção construcionista do jornalismo, compreendemos que as notícias são convenções culturais que se desenrolam a partir de sentidos compartilhados, e podem ser ainda entendidas como realidades construídas (Tuchman, 1999) a partir de determinados padrões de discursos.

É importante considerar, no entanto, que o paradigma das notícias como construção não lhes conferem um caráter ficcional, abstrato ou inteiramente subjetivo, mas localiza a importância da cultura e as dinâmicas discursivas para a formação de sentidos sobre uma ideia, grupo ou mesmo, um acontecimento. Nesse trabalho, tomamos a noção de acontecimento enquanto um fenômeno construído, ou seja, que requer um trabalho por parte do sujeito de construção de sentido por meio de um ato de linguagem, definido por Charaudeau (2019) como tematização. Essa definição está ainda relacionada à noção de que é a capacidade de produção de sentidos e de significação que sustenta a construção social da realidade, que mesmo possuindo um caráter dialético, manifesta a dependência da percepção e significância de sujeitos que, coletivamente, interpretam o mundo (Tuchman, 1993).

Assim, consideramos que jornalismo se constitui, historicamente, como um campo legitimado e especializado em produzir tais relatos, de modo a fornecer informações para que os cidadãos possam exercer a sua liberdade de autogovernança (Kovach; Rosenstiel, 2003). No entanto, entendemos que essa função desempenhada pelo jornalismo se relaciona intimamente com o ideal positivista de esclarecimento, legitimando-se a partir de parâmetros como a neutralidade e objetividade, que frequentemente afastam uma compreensão de que tal relato é construído a partir de uma série de práticas e rituais operadas segundo um sistema hierárquico de valores, que funcionam como critérios para selecionar ou mesmo recortar os acontecimentos. Silva (2005) pontua que a necessidade de um gerenciamento e organização de critérios para a produção da notícia surge em um contexto prático, que limita espaços possíveis em virtude da infinidade de acontecimentos que atravessam o cotidiano. Nesse sentido, diante de tal volume de insumos, “é preciso estratificar para escolher qual acontecimento é mais merecedor de adquirir existência pública como notícia” (Silva, 2005, p. 97). A partir dessa perspectiva, podemos entender os elementos que compõem o conceito de valor-notícia (White, 1993) como parâmetros de relevância utilizados na seleção e interpretação dos acontecimentos. Ao considerar os estudos de Vicent Campbell, Silva (2005) reforça que é na teia das construções sociais/ culturais que tais valores se movimentam, de modo a produzir uma relação de afetamento simultâneo, em que “os valores-notícia determinam a seleção dos acontecimentos e, ao mesmo tempo, a seleção de fatos noticiosos, também determina os

valores-notícia” (Silva, 2005, p.106).

Se o acontecimento que se apresenta a partir do discurso midiático está sob efeito do contexto histórico-social no qual se localiza, compreendemos que os seus sentidos e significados também constituem e alimentam o que Pêcheux (1999) classifica como memória discursiva. Para o autor, haveria dois jogos de força atuando sobre a memória; um deles, atuaria no sentido de manter uma regularização de sentidos pré-existentes, estabilizando a integração do acontecimento até absorvê-lo, já o segundo provocaria uma “desregulação” que viria para perturbar a rede do que está implícito. No jornalismo, entendido como esse campo em que os acontecimentos são construídos, é possível perceber a ação desses dois efeitos, ora conformando os acontecimentos e seus contextos histórico-sociais, ora rompendo com determinada naturalização, promovendo rupturas em determinados valores, sentidos e interpretações. Nesse sentido, reinterpretar os acontecimentos do passado e suas construções de sentido também pode oferecer novas perspectivas e compreensões, especialmente quando feitas a partir de outros contextos históricos e culturais e de experiências e afetos inteiramente diferentes. Podemos tomar como exemplo as narrativas jornalísticas que rememoram o passado, em busca de oferecer caminhos possíveis para o presente, como as reportagens que cobrem a participação política das mulheres na atualidade e as trajetórias dos movimentos feministas, ao longo dos anos para a conquista desse e outros direitos. Assim, entendemos que ao reconhecer e considerar a importância do percurso passado, somos capazes de compreender mais do que a história, mas também uma série de processos e dinâmicas que fazem parte

do que entendemos como presente. Além disso, ao reconhecer as disputas ideológicas que se localizam na produção dos discursos jornalísticos (Moraes; Silva, 2019), identificamos que questionar ou reinterpretar os acontecimentos a partir da memória discursiva faz parte de um compromisso ético, especialmente quando essas narrativas sobre os acontecimentos, se referem a grupos vulneráveis que foram sistematicamente silenciados ao longo da história. Por isso, neste trabalho, objetivamos discutir como a proposta de rememoração Genocide Legacy produzida em 2017 pelo jornal New York Times apresenta novas formas de interpretar, a partir da experiência de vídeos em 360 graus, quatro dolorosos genocídios da humanidade, oferecendo também novas oportunidades de reflexão, aprendizado, empatia e responsabilização desses acontecimentos.

A narrativa imersiva no jornalismo

Ao longo do século XX, o início do que hoje chamamos de internet trouxe a possibilidade do compartilhamento de dados a partir da linguagem binária e seu sistema de codificação pelas máquinas. Martino (2015) aponta que a partir da segunda metade do século XX, a relação entre as novas mídias e o cotidiano passou a ser investigada. No entanto, mais que tentar traçar um “ano zero” para a compreensão das mídias digitais, o autor destaca a importância de compreendermos como esse novo espaço/dispositivo tecnológico articula transformações sociais, movimentando e criando novas dinâmicas, sobretudo nos processos comunicacionais.

Para Canavilhas (2014), essas mudanças provocadas por um novo nível de relação com as mídias atingiram de forma particular o jornalismo, tanto pela perspectiva da produção da notícia quanto de seu consumo, em que novas arquiteturas noticiosas possibilitam percursos não lineares e novas experiências, a partir de diferentes tessituras informativas, em que a hipertextualidade e multimedialidade são características centrais. Ao localizar o caráter multimidiático da comunicação humana (a partir da combinação de sentidos para a compreensão do mundo), Salaverría (2014) aponta que no jornalismo, os conteúdos multimídia já possuem cerca de dois séculos de história. Afinal, se pensada por uma perspectiva de combinação de linguagens em uma mensagem, a multimedialidade pode ser encontrada nos diários e gazetas, que combinavam a linguagem textual às fotografias; no cinema, com a linguagem corporal, sonora e da imagem; e na televisão e outros espaços audiovisuais. No entanto, para o autor, o desenvolvimento do espaço digital possibilitou outras práticas e características capazes de ampliar o conceito, trazendo também a necessidade de uma polivalência, tanto temática, quanto mediática e funcional, em que os jornalistas, além de combinarem linguagens e plataformas, agora trabalham com e para distintos meios, desempenhando diversas funções dentro de uma mesma redação.

Se a expansão da internet e das tecnologias móveis permitiu a integração de diferentes tipos de linguagem, impactando a forma como o conteúdo é criado (Caerols Mateo et al., 2020), os celulares, tablets, as lentes de longo alcance, câmeras, notebooks e televisores conectados a videogames e outros dispositivos, também inauguraram uma nova forma de interação com o audiovisual, produzindo novas funcionalidades e tecnologias. Neste trabalho, tomaremos a produção audiovisual em 360 graus como objeto de estudo para pensar a rememoração no jornalismo.

O aumento da divulgação de conteúdos jornalísticos em realidade virtual ocorreu ao final de 2015, a partir de iniciativas de jornais como The New York Times, The Los Angeles Times e USA Today (Doyle et al., 2016). Hoje em dia, a tecnologia permite que vídeos em 360° sejam produzidos facilmente com o uso de câmeras de baixo custo, mas tal formato não permite uma experiência completamente imersiva (Mabrook & Singer, 2019; Watson, 2017). De acordo com Toursel & Useille (2019), o jornalismo imersivo tem características híbridas, misturando elementos do jornalismo, cinema e videogames. Por suas características de imersão, as expectativas do formato são de criar uma conexão mais profunda com a audiência. Para tanto, foca-se na noção da experiência, que vai muito além da recepção em si, já que se concentra em aspectos do sensível (Caerols Mateo et al., 2020; Toursel & Useille, 2019).

Nesse sentido, é concreto dizer que as narrativas imersivas buscam aproximar o sujeito (ou usuário) do cenário, temática ou acontecimento que está sendo abordado, funcionando como uma experiência virtual, na qual ele faça parte do acontecimento. Essa aproximação do cenário pode ocorrer em primeira pessoa ou através de um personagem e, a partir desse contato com o ambiente, o participante consegue experienciar imagens, sons e, em um aspecto mais amplo, sentimentos e emoções (de la Peña et al., 2019). Tal aproximação auxilia também o entendimento do acontecimento e do conteúdo, já que o maior envolvimento da audiência permite uma conexão mais profunda com o conteúdo (Hendriks et al, 2019; Shin & Biocca, 2018). Para Marciano (2016), foi a partir da popularização do conceito de realidade virtual, sobretudo pelo mercado de games, que as narrativas imersivas passaram a ocupar novos espaços, dentre eles, o jornalismo. Assim, a realidade virtual também se configura como alternativa para as narrativas audiovisuais - sejam elas baseada em fatos, acontecimentos e personagens reais ou não. Longhi (2017) pontua que a diversidade e aumento de possibilidades das experiências dos dispositivos tecnológicos (sobretudo voltados ao entretenimento) possibilitou ao jornalismo uma incorporação das narrativas imersivas.

Desde que os videogames popularizaram a ideia de imersão em mundos virtuais, quando o termo Realidade Virtual passou a ser mais conhecido do grande público, o jornalismo vem buscando maneiras de fortalecer esse tipo de conteúdo narrativo. Isso foi alcançado especialmente depois que o ambiente hipermidiático e online do webjornalismo proporcionou maiores possibilidades, tanto tecnológicas quanto expressivas. E, justamente, as primeiras tentativas de colocar o leitor na cena, pelo webjornalismo, acontecem com a criação de newsgames, com o principal objetivo de simular situações e “mundos” a serem “explorados” pelos leitores/usuários (Longhi, 2017, p.5)

Nesse tipo de conteúdo, a dinâmica é de experimentação, a partir do desenvolvimento de propostas distintas (Caerols Mateo et al., 2020). Tais experimentos servem para provocar alterações no jornalismo como um todo, já que mesmo que o formato não seja utilizado no longo prazo, suas características podem ser incorporadas em produtos distintos (Toursel & Useille, 2019). Nesse contexto, é importante ainda observar que as narrativas imersivas no jornalismo também fazem parte de uma demanda mercadológica que estimula as dinâmicas experimentadas no ambiente virtual. Conforme Watson (2017), uma das motivações para o maior investimento em realidade virtual é justamente a inovação de marca, posicionando organizações enquanto modernas. No entanto, diante das possibilidades abertas pelo processo de imersão, tornando a possibilidade de participação amplificada, entendemos que as narrativas imersivas no jornalismo são também potenciais espaços de desconstrução ou ressignificação de determinados acontecimentos, especialmente por ter a experimentação como elemento-chave para o reconhecimento de uma determinada realidade ou aquela situação que se queira comunicar. Assim, na experiência imersiva, a descrição dos fatos e dos acontecimentos, feita por um mediador (jornalista) não bastaria para experimentar determinado fato, e dessa forma, tal mediação acontece na própria concepção e produção da experiência imersiva, que passa a centralizar a figura do próprio usuário, e que é também personagem.

Ademais, consideramos importante pontuar que as ofertas de narrativas imersivas, por si só, não garantem uma maior participação ou algum tipo de mobilização e reflexão por parte dos sujeitos que as experimentam. Dessa forma, nossa reflexão se volta para a discussão da criação de novas possibilidades de vínculos narrativos e informativos que também são potenciais espaços para a reflexão crítica. Nesse sentido, o jornalismo, ao incorporar novas formas de consumir, interagir e interpretar a informação, abre espaço para a diversificação das narrativas e personagens, criando novos arranjos interpretativos para além daquele acontecimento.

Método

Nosso estudo objetiva discutir o jornalismo enquanto alternativa potente de reconstrução da memória e da história, a partir de seus processos de significação e sentidos que constroem os acontecimentos. Para tanto, a partir das reflexões sobre memória e jornalismo imersivo, procuramos compreender como o processo de rememoração ocorre, percebendo a ressignificação dos fenômenos históricos e a relação entre passado e presente por meio dos recursos jornalísticos. De acordo com Mabrook & Singer, os vídeos em 360 graus não se constituem em um tipo de narrativa completamente imersiva. No entanto, por sua característica de fácil produção, o formato abre caminhos para novos fazeres de jornalismo, justamente por sua facilidade de criação.

Assim, os quatro vídeos publicados da série Genocide Legacy foram analisados de forma qualitativa, a partir da análise de conteúdo. Para tanto, foram verificados aspectos como duração do vídeo, presença do repórter, sons da matéria, escolha das fontes e temas abordados. Conforme é orientado por Bardin (2011), antes de serem elencadas categorias e subcategorias, é necessário fazer uma leitura flutuante do objeto. Nesse sentido, os vídeos foram vistos uma vez, para, então, serem criadas categorizações. A partir do que foi visualizado, foram estabelecidas as seguintes categorias e subcategorias: i) Presença do repórter - a) off, b) intervenção escrita (uso de legendas); ii) Sons - a) Trilha Sonora, b) Voz do repórter, c) Som ambiente, d) Voz de fontes; iii) Escolha de fontes - a) Vítimas, b) Culpados, c) Instituição Memorial, d) Descendentes, e) Professores; iv) Temas Abordados - a) Importância da memória;

b) Depoimentos das vítimas; c) Situação atual.

Tabela 1 Categorias e Subcategorias de Análise 

Fonte: Elaboração Própria

Por se tratar de um corpus pequeno, formado apenas por quatro vídeos, o método qualitativo se configura enquanto a melhor escolha para análise, já que permite um aprofundamento no conteúdo. Na seção abaixo, são analisados cada um dos episódios e posteriormente demonstrados os resultados.

Análise do The Daily 360: Genocide’s legacy

Os vídeos do Genocide’s Legacy obedecem a um formato estético encontrado em outros produtos do The Daily 360. Os produtos audiovisuais são curtos e possuem entre 2 minutos e 2 minutos e meio. Ademais, percebe-se que a experiência está centrada na absorção dos lugares e da atmosfera.

O primeiro vídeo “Preserving Auschwitz” (Preservação de Auschwitz) mostra, ao início, uma parte do campo de concentração. Ao longe, veem-se turistas que caminham, assim como se escuta os seus passos. Como primeira intervenção de reportagem, aparece a legenda informando que mais de um milhão de pessoas, a maior parte judia, foi morta no local. Em seguida, outra legenda informa que Auschwitz era uma rede de campos de concentração nazista que operou entre 1940 e 1945. O complexo incluía Auschwitz I, onde havia trabalho escravo, assim como prisioneiros de guerra. Há um corte no vídeo e vê-se depois um espaço interno, referente a Birkenau 2, onde estavam localizadas as câmaras de gás.

Posteriormente, há um novo corte para dois homens que trabalham de forma conjunta em uma obra. A legenda explica que a Fundação Auschwitz-Birkenau, que ajuda a manter o local, iniciou um projeto com o objetivo de preservar as barracas. O único som que pode ser ouvido é o do trabalho das serras que cortam madeira. Depois, é apresentado o depoimento da líder do plano de preservação, Anna Lopuska. Ela defende a importância da preservação e de como é fundamental permitir que os visitantes interajam com os locais e objetos. Há um corte rápido para o interior de um laboratório, onde pessoas de jaleco trabalham na preservação de objetos. Após novo corte, um outro local do campo é apresentado. A voz de Anna Lopuska continua a explicar que se trata do espaço mais antigo do campo, tendo sido construído pelos prisioneiros de guerra da União Soviética entre os anos de 1941 e 1942. A principal razão para a deterioração, de acordo com ela, foi o fato de os prédios terem sido construídos de forma rápida e em péssimas condições.

O vídeo é novamente cortado para o interior do museu, onde são exibidas as provas dos crimes, com pilhas de objetos pertencentes aos judeus exterminados. Nesse momento, não há mais off. Ouve-se apenas o som dos visitantes que passam. A legenda informa que mais de dois milhões de pessoas visitaram Auschwitz em 2016. Alguns locais do museu são mostrados, como partes de exibições e locais externos. As cenas são acompanhadas pela voz em off de Anna, que alega não existir memorial capaz de fazer com que o espectador entenda o que aconteceu no campo. De acordo com ela, é só possível experienciar os prédios, os espaços e os elementos, mas que os acontecimentos estão muito além da imaginação. Ela encerra, no entanto, contando que a preservação do lugar de memória permite uma aproximação maior com a história.

A partir do vídeo, percebe-se que a presença do repórter ocorre apenas pela intervenção escrita. É possível ouvir sons ambientes, assim como a voz de Anna Lopuska. A fonte não aparece no vídeo, estando ela presente somente através do off. Como fonte, foi escolhida apenas uma representante da instituição memorial. Por fim, as temáticas abordadas são: a) importância de memória e c) situação atual. Por meio da videorreportagem, fica evidente que o elemento central de valorização é o lugar. O espectador consegue ficar imerso em Auschwitz, mesmo sem nunca ter estado lá. O efeito, assim, reforça a mensagem da líder do plano de preservação de que lugares de memória são responsáveis por aproximar a história.

O segundo vídeo é denominado “A Reconciliation Village em Rhuanda” (Uma vila de reconciliação em Ruanda). Inicialmente, é demonstrado um espaço simples e rural, onde é possível visualizar uma estrada de chão, um espaço gramado, além de algumas casas. Escuta-se o barulho da enxada atingindo a terra e veem-se-se diversas pessoas, algumas paradas e outras que trabalham no campo. A voz em off da repórter explica que aquela era uma vila de reconciliação de Ruanda, onde vítimas e culpados convivem lado a lado. De acordo com ela, pelo menos 800 mil pessoas morreram em 100 dias de violência que tiveram início em abril de 1994. No entanto, 23 anos depois, o país iniciou o processo de reconciliação a partir de locais como esta vila.

No vídeo, veem-se então duas pessoas que se sentam próximas a uma casa: Jacklin Mukamana e Mathias Sendegeya. Mathias revela que matou pessoas em 1994. De acordo com ele, teve um papel no assassinato dos pais e de membros da família de Jackeline, a moça que se sentava ao seu lado. “Eu me desculpei e pedi perdão”. Jackeline responde: “Eu sou uma dos sobreviventes. Ele confessou e pediu por perdão. Quando ele tiver um problema, pode me ligar e pedir ajuda. E eu posso fazer o mesmo.”

Posteriormente, é mostrada uma sala de aula onde crianças interagem com o professor. A voz da repórter informa que na instituição existe um currículo voltado para a reconciliação. Há, novamente, um corte para a cena inicial do vídeo, na qual pessoas trabalham a terra. De acordo com a jornalista, na manhã da gravação do vídeo, a vila estava envolvida em um trabalho obrigatório, voltado para incentivar a cooperação. Por fim, a última cena mostra crianças que cantam sorridentes. A repórter encerra com a informação de que enquanto os adultos trabalham, as crianças brincam e performam uma dança tradicional. Com o objetivo de transformar a sociedade em uma comunidade inclusiva, a estratégia é fazer com que as crianças se identifiquem primeiramente como ruandenses.

No vídeo, a presença da repórter ocorre por meio do off, mas também é possível ouvir sons ambientes e os depoimentos de testemunhas. Como escolha das fontes, foi dada voz a vítimas e culpados, sendo esta uma dialética importante para a tentativa da reconciliação. Como temas abordados, identifica-se as subcategorias b) depoimentos de vítimas; c) situação atual. Nesse vídeo, o elemento central são as pessoas, que recontam o acontecimento e demonstram a necessidade de reconciliação. O local, assim, aparece enquanto secundário, já que são as relações humanas que permitem a reconciliação do passado.

O terceiro vídeo “A Museum in a Khmer Rouge Prison” (Um museu em uma Prisão Khmer Rouge) aborda o genocídio ocorrido em Camboja. Inicialmente, vê-se um local interno, sem muitos detalhes. A sobrevivente de Khmer Rouge, Chum Mey, traz o depoimento: “Eles usaram esses grilhões e uma corrente para prender minhas pernas. E aí eles removeram minhas algemas e tiraram a minha venda. Este é o lugar onde eles aprisionaram as pessoas. Depois de nos acorrentar, eles saíam”. Após um corte seco, é possível visualizar, então, a prisão, assim como escutar o som ambiente, com os passos dos visitantes que transitam pelo museu.

Ao longo do vídeo, é possível também visualizar outros ambientes, sendo a informação disponibilizada por legendas. Elas informam que Chum Mey ficou presa por mais de 2 meses, sendo uma das poucas sobreviventes dentre milhares. De acordo com as legendas, entre 1975 e 1979, 1,7 milhões de pessoas morreram em Khmer Rouge. O vídeo mostra algumas celas onde as pessoas eram aprisionadas, torturadas e mortas.

Hoje, o espaço, assim como no caso de Auschwitz, funciona como um museu. Há um corte para uma cena com várias crianças dentro do espaço. Elas escutam atentamente a explicação de uma professora. De acordo com as legendas, as instituições educacionais de Camboja procuram ensinar sobre a história traumática do país. A professora, em off, explica que o museu é um local histórico que todos os cidadãos de Camboja, em especial os mais novos, deveriam conhecer. Ela diz ter o desejo de que eles aprendam um pouco sobre a história que os pais e avós vivenciaram. A partir do produto audiovisual, é possível perceber que a presença do repórter ocorre apenas por meio das legendas. No vídeo, escuta-se o som ambiente e as fontes, que também aparecem no vídeo. As fontes escolhidas foram: a) vítimas e e) professores. Por fim, os temas abordados foram: a) importância da memória, b) depoimentos de vítimas, e c) situação atual.

Finalmente, o quarto vídeo é intitulado “It’s True, the Germans Killed Us” (É verdade, os alemães nos mataram) e aborda o genocídio de Namíbia. No início, é apresentada uma família de 6 pessoas, reunida do lado externo de uma pequena casa amarela. O local é afastado e desértico, sendo possível apenas ver umas poucas outras casas nas proximidades. No início do vídeo, escuta-se apenas o barulho dos pássaros e do vento. Ao usar o recurso de 360.º, veem-se pessoas que passam próximas à casa, assim como um cachorro. No entanto, a família permanece sentada no mesmo local. A legenda informa que a Alemanha está em negociação para reconhecer um genocídio que ocorreu naquele lugar há mais de 100 anos. Em off, uma das fontes diz que os alemães os mataram. “Eles vieram e quiseram se estabelecer na nossa terra. Quando os Hereros se recusaram, nós fomos mortos.”

Depois de um corte, a cena mostra a paisagem próxima à montanha de Waterberg. A voz de um idoso Herero, Uatondua Mutjavicua, ocupa o vídeo. Ele fala que, quando jovem, ouviu a história de um Herero. “Ele disse que a primeira bala foi disparada em Hamakari à meia noite. Ele correu e escalou a montanha de Waterberg. Enquanto estava no topo da montanha, olhou para baixo e viu como as pessoas foram mortas.” Após um corte, o vilarejo inicial é novamente exibido, sendo possível ouvir o som ambiente mais uma vez. A legenda informa que outras vítimas morreram após as autoridades alemãs impedirem o fornecimento de água.

O vídeo exibe posteriormente o interior da casa, e Uatondua volta a dar seu depoimento. Ele conta ter 84 anos e diz que os seus próprios pais estiveram envolvidos diretamente na batalha. Além disso, defende que os alemães deveriam pagar pela morte daquelas pessoas. Por fim, é exibida a imagem de um cemitério. A legenda informa que 80% dos hereros foram mortos. Entretanto, os túmulos são de soldados alemães, sendo que apenas uma pequena placa na parede faz referência aos hereros mortos na batalha.

Neste vídeo, a presença do repórter ocorre por meio de intervenção escrita. Os sons utilizados foram: a) som ambiente e c) voz da fonte, sendo que a fonte escolhida aparece no vídeo, sendo ela uma vítima. Por fim, os temas abordados foram: b) depoimentos de vítimas, c) situação atual.

A partir da análise, chegou-se aos seguintes resultados:

Quadro 1: Resultados encontrados 

Fonte: elaborado pelas autoras

A análise revela que a série The daily 360: genocide legacy procura mostrar, conforme o próprio título diz, a situação atual dos povos afetados por genocídios, contrastando o passado com o presente. Para contar tais histórias, procurou-se valorizar a memória, utilizando-se, para tanto, os depoimentos orais, fato que fortalece a informação, uma vez que as falas são combinadas aos lugares de memória. Estes elementos, segundo Motta (2013), se configuram como estratégias argumentativas, contribuindo para o efeito de real e efeito de sentido desejado. Este efeito fica ainda mais fortalecido pelo uso majoritário de legendas, que informam os fatos de forma fria, elencando os números de vítimas e períodos de genocídio, estatísticas que contribuem para o tom de verdade do documento. Provavelmente, a opção por não utilizar a voz do repórter na maioria dos vídeos é explicada por tal intencionalidade de reforçar a realidade, trazendo um tom de objetividade. Ademais, a ausência do repórter também contribui para maior imersão, já que o espectador tem a impressão de não existir mediador. Ele consegue mover a câmera como pode, em primeira pessoa, ver as testemunhas e ainda ouvir os sons dos ambientes. A partir dos vídeos, fica evidente que as produções audiovisuais procuram valorizar os lugares de memória e os depoimentos dos testemunhos. Elas contribuem, assim, para dar voz a pessoas que foram silenciadas, permitindo que abordem as suas vivências.

Considerações Finais

A busca por elementos que promovam, cada vez mais, a identificação entre conteúdo e público é uma realidade vivida por muitos produtos midiáticos. Se a necessidade de participação do público já poderia ser identificada, por exemplo, na alteração da dinâmica de produtos audiovisuais, como a sequência de produções cinematográficas, a reconfiguração do destino de personagens nas telenovelas por meio da interação com os telespectadores, o surgimento de blogs especializados em analisar e repercutir os produtos midiáticos; o movimento que reforça a conexão entre mídia e público se intensifica também na narrativa jornalística. As movimentações dos internautas no Facebook e Twitter, comentando e reagindo simultaneamente à programação dos telejornais e demais produções televisivas, também apontam os espaços digitais como locais que possibilitam a conexão do público com o conteúdo. Nesse sentido, a própria popularização dos conteúdos por demanda (como Netflix) são um indicativo deste novo movimento de consumo em que, o estabelecimento de uma conexão, que permita determinados níveis de participação dos indivíduos, é peça central para audiência e o engajamento.

Centralizando a experiência no usuário, a iniciativa de The New York Times em “The daily 360: genocide legacy” permite não só o reconhecimento de histórias de sofrimento, em genocídios ocorridos em Ruanda, Camboja, Namíbia e em Auschwitz, mas sim uma forma de rememoração e resgate consciente destes tristes períodos na história. É vivendo o acontecimento passado no tempo presente, que a narrativa nos propõe experimentar realidades do passado. Assim, apesar de não se configurar enquanto completamente imersiva, a narrativa em 360° do New York Times procura estabelecer um vínculo que ultrapassa a característica de um conteúdo informativo que nos situa sobre a trajetória humana, convidando à experimentação do lugar do outro. Além disso, potencializa a vivência do fato que já aconteceu, no tempo presente. A emergência de novas tecnologias de realidade virtual permitiu uma nova forma de fruição do produto midiático, que deixa de se restringir à ação de assistir, ler ou ouvir, porque evolui para uma nova configuração, que é a de experienciar. Os vídeos em 360°, por sua vez, permitem uma nova forma do fazer jornalístico. Por poderem ser produzidos em câmeras de baixo custo, democratizam, assim, a exploração de um novo formato, oferecendo novas formas de imersão no conteúdo, ainda que não de forma plena.

No Brasil, iniciativas similares prometem oferecer ao público novas possibilidades de enfrentamento da realidade. Em 2017, a Rede Justiça Criminal realizou a campanha “Encarceramento em massa não é justiça”, em realidade virtual, que simulava o encarceramento em massa no país - que já possui a terceira maior população carcerária do mundo - estando atrás apenas de China e Estados Unidos (Agência Brasil - EBC, 2017). A iniciativa imersiva procura evidenciar a realidade de presídios superlotados em que muitos dos presos não foram sentenciados ou sequer tiveram seus “crimes” investigados. O vídeo em 360.º é uma reconstituição de uma cela superlotada com figurantes de pessoas que já haviam passado pelo cárcere privado. Como parte da campanha, a experiência foi levada para a Avenida Paulista, em São Paulo, através de óculos de realidade virtual. Através da imersão, as pessoas puderam compartilhar uma realidade vivida por mais de 620 mil pessoas no país.

No entanto, ainda que as narrativas imersivas representem alternativas para a experimentação do tempo presente - mesmo que nele sejam representados os acontecimentos passados - visam atender a uma demanda mercadológica (identificada também pelo jornalismo). Por isso, é preciso se atentar na construção e finalidade de suas utilizações, de modo que não representem apenas uma forma de viver e não compreender os acontecimentos. Afinal, se para Kovach e Rosenstiel (2003) a verdadeira função do jornalismo estaria ligada ao fornecimento de informações necessárias para que os cidadãos possam se autogovernar, a utilização dos recursos tecnológicos que promovam a aproximação de realidades precisa fornecer informações que sejam absorvidas e compreendidas, de modo a representar, de fato, uma alternativa para o enfrentamento dos desafios em sociedade.

No caso da série Genocide Legacy, o legado dos vídeos é transportar os espectadores para os lugares de memória (Nora, 1996). Essa viagem é valiosa porque nem todos têm a possibilidade de visitar tais locais. Nesse sentido, os vídeos em 360 graus democratizam a experiência, tornando possível uma aproximação do acontecimento histórico. O projeto, demonstra como os tempos atuais são permeados por novas formas de produção de sentido a partir da reestruturação das linguagens. O resultado é a configuração de novos formatos de transmissão de memória, promovendo outras formas de relacionamento entre os indivíduos e o passado.

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Recebido: 22 de Março de 2021; Aceito: 23 de Outubro de 2021

Isabella Gonçalves é doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade Johannes Gutenberg de Mainz. Mestre em Comunicação e Bacharela em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Morada institucional: Universidade Johannes Gutenberg, 55122, Mainz, Alemanha

Carla Procópio é doutoranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da UFF. Mestre em Comunicação e Bacharela em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Morada institucional: Universidade Federal Fluminense, 24210-510, Niterói, Brasil

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