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Media & Jornalismo

Print version ISSN 1645-5681On-line version ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.21 no.39 Lisboa Dec. 2021  Epub Dec 31, 2021

https://doi.org/10.14195/2183-5462_39_12 

Varia

Narrativas mediáticas sobre o femicídio na intimidade em Portugal

Media narratives about intimate partner femicide in Portugal

Ariana Pinto Correia1 

Sofia Neves2 

1 Universidade da Maia - ISMAI;Portugal acorreia@ismai.pt

2 Universidade da Maia - ISMAI Centro Interdisciplinar de Estudos de Género Portugal asneves@ismai.pt


Resumo

O presente artigo caracteriza o femicídio na intimidade em Portugal, na forma consumada e tentada, a partir da análise das narrativas mediáticas publicadas no jornal Correio da Manhã e no Jornal Público, entre 2000 e 2017. O corpus de análise, constituído por 853 peças noticiosas, corresponde a 644 casos de femicídio na intimidade. A partir de uma análise triangulada dos dados, ou seja, com recurso a uma análise quantitativa e qualitativa, emergiram diferenças na forma e conteúdo de ambos jornais, que se acentuaram na última década. Enquanto o jornal Correio da Manhã tende a narrar os crimes como reações passionais e imprevisíveis, associadas aos ciúmes e não aceitação da separação, recorrendo a narrativas paralelas que desresponsabilizam o perpetrador, o jornal Público apresenta, tendencialmente, o crime de forma contextualizada. Esta polarização, além de desconectada das diretrizes preconizadas pela Convenção de Istambul (2011), contribui para uma construção social do crime enviesada, com efeitos não só na opinião pública, mas nas vítimas e pessoas agressoras na intimidade.

Palavras-chave: femicídio; intimidade; Portugal; imprensa

Abstract

This investigation paper intends to characterize intimate partner femicide in Portugal, in the attempted and consummated form, starting from media narratives analysis published in Portuguese newspapers Correio da Manhã and Público, between years 2000 and 2017. The analysis corpus, consisting of 853 news, corresponds to 644 intimate partner femicide cases. Departing from a triangulated data analysis, meaning that quantitative and qualitative analysis had been made, a clear distinction from both newspapers has emerged in its form and content, accentuated in the past decade. Therefore, while Correio da Manhã tends to narrate the crimes as passionate and unpredictable, associated with jealousy and the non-acceptance of the separation, appealing to parallel narratives that exonerates the perpetrator, Público tends to present the crime in a contextualized way. This mediatic polarization, besides disconnected from Istambul Convention guidelines (2011), contributes to a skewed social construction of intimate partner femicide, with effects not only in public opinion, but in intimate partner violence victims and offenders.

Keywords: femicide; intimacy; Portugal; press

Introdução

A violência contra as mulheres baseia-se em assimetrias estruturais promotoras de desigualdades de género que se repercutem em todas as dimensões da vida social, em particular na intimidade (Neves, 2016). O femicídio na intimidade, como expoente máximo da violência de género na intimidade (Radford & Russel, 1992), configura um crime de ódio, apresentando-se como o corolário da opressão que recai sobre as mulheres no contexto das suas relações amorosas e é o resultado, na grande maioria das vezes, de um histórico prévio de violência doméstica (Campos, 2015; Dobash et al., 2004; Dutton & Kropp, 2000). De acordo com o Global Study on Homicide, apesar de os homens serem mais vítimas de homicídio do que as mulheres, estas são mais vezes mortas pelos seus companheiros ou ex-companheiros ou por membros da família, a nível mundial (UNODC, 2019).

Ainda que Portugal tenha vindo a adotar políticas públicas que visam prevenir e combater a violência doméstica desde a década de 90 do século XX (Neves & Brasil, 2018), o país não constitui exceção no que toca à realidade da violência contra as mulheres. Com efeito, o último Relatório Anual de Segurança Interna indica que, em 2020, Portugal registou um total de 27.637 denúncias por violência doméstica. Destas, 85% ocorreram em contexto de intimidade (SSI, 2021). De acordo com um estudo recente da Polícia Judiciária (2020), entre 2014 e 2019 ocorreram no país 128 homicídios perpetrados por pessoas com as quais as vítimas mantinham, ou tinham mantido, uma relação íntima. Em ambos os casos, quer se trate de vítimas de violência doméstica ou de vítimas de homicídio em contexto de intimidade, estas eram predominantemente do sexo feminino, sendo as pessoas homicidas sobretudo do sexo masculino. Ainda, entre 2007 e 2018, as condenações por homicídio qualificado adquiriram especial destaque, com os homicidas de sexo masculino a representar a esmagadora maioria das pessoas condenadas (DGPJ, 2019). O crime, de forma geral, apresenta-se entre as temáticas mais frequentemente mediatizadas, sob um espetro de construções noticiosas. A forma como a notícia é enquadrada, ou seja, como é salientada na construção noticiosa, afeta a forma como o público perceciona a temática ou a ocorrência, sendo nessa medida o enquadra-

mento considerado uma forma de controlo social (Ayres & Jewkes 2012).

No que ao crime genderizado diz respeito, a sua mediatização é regularmente pautada pela reprodução, naturalização e legitimação de estereótipos de género (Comas-d’Argemir, 2014), sendo que estes valores e crenças, quando mediatizados de forma natural e acrítica, ecoam na forma como o público compreende e prioriza ou desvaloriza e legitima estes fenómenos (Baldry & Pagliaro, 2014; Belknap, 2007; Fairbain & Dawson, 2013; Simões, 2008). Décadas depois das lutas feministas reclamarem a politização do espaço privado, evidenciando as assimetrias estruturais e as desigualdades simbólicas como alicerce da violência na intimidade, a mediatização sobre estes crimes mantém-se conservadora, acompanhando a resistência da sociedade em perceber e aceitar a violência na intimidade e, por consequência, o femicídio na intimidade, como fenómenos eminentemente socioculturais (Simões, 2014).

Sabendo que a aceitação acrítica das narrativas mediáticas, será tanto maior, quanto menor for o conhecimento do público, os media tornam-se não apenas fonte primária, mas muitas vezes, a única fonte de informação (Carlyle et al., 2008; Capezza & Arriaga, 2008. Silveirinha, 2006; Taylor, 2009).

Gitlin (1980 as cited in (Gamson & Modigliani, 1989, p. 3) define o processo de enquadramento ou framing como padrões persistentes de cognição, interpretação, ênfase, apresentação da seleção e exclusão, a partir dos quais os/as jornalistas organizam o seu discurso, como ideias organizadoras centrais integradas num pacote interpretativo”. Assim, a construção noticiosa e todas as decisões que a compõem quer na forma, quer no conteúdo, como a apresentação gráfica, o tipo e quantidade de fontes informativas recolhidas, o recurso e tipo de imagem, a extensão e localização do texto, a titulação e o tipo de narrativa são escolhas conscientes, que materializam o enquadramento realizado pelos/as jornalistas, plasmando-se no conteúdo manifesto da notícia, o qual impacta na forma como o público apreende, interpreta e avalia os eventos (D’Angelo & Shaw, 2018; Jewkes, 2010).

A partir do seu estudo seminal, Iyengar (1991) problematizou as consequências das notícias em função do enquadramento sob o qual são construídas, temático ou episódico. No que concerne às narrativas mediáticas sobre o femicídio na intimidade, quando retratadas sob um enquadramento temático, caracterizam-se pela contextualização e informação sobre o crime, distanciando-se de abordagens individualistas, essencialistas e redutoras, promovidas por um tipo de enquadramento episódico. Neste último, o femicídio na intimidade é tendencialmente retratado como um crime imprevisível, exaltando-se especificidades individuais, como traços da personalidade ou psicopatologia do perpetrador. A motivação subjacente ao crime é, regularmente atribuída à passionalidade, associando-o a uma ação irracional e intempestiva, movida por ciúmes, humilhação ou rejeição do perpetrador, no seguimento de alegada ou suspeita infidelidade, em frequentes exercícios de desresponsabilização do perpetrador e culpabilização da vítima. Na mesma medida, a narrativa caracteriza o crime como tragédia familiar, remetendo-o para o foro privado, desareigado do contexto sociocultural de origem (Coimbra, 2007; Neves et al., 2016; Simões, 2008). O enquadramento episódico é ainda característico de um tipo de jornalismo sensacionalista, que privilegia o imediatismo e o consumismo. As narrativas mediáticas apresentam-se, assim, estruturalmente simples, mas cativantes, pautadas por informação excessivamente detalhada e titulações sugestivas, centralizando o crime em torno de um elemento acessório, o qual é hiperbolizado, desviando a atenção do público da matriz estrutural que subjaz ao femicídio (Fairbairn & Dawson, 2013; Richards et al., 2014; Rotherberg, 2014; Smith et al., 2019). Ainda de sublinhar que a construção noticiosa poderá reverberar com intensidades diferentes, consoante o nível de identificação da pessoa recetora, especificamente nas pessoas vítimas e pessoas agressoras de violência na intimidade. Assim, nas vítimas de violência na intimidade, poderá potenciar a sua vulnerabilidade, sentimento de desproteção e descrença no sistema de justiça, desmotivando o pedido de ajuda, desempoderando-as. Consequentemente, poderá facilitar a manutenção na relação violenta, adensando o risco da (sua) letalidade (Carlyle et al., 2008). Nas pessoas agressoras, destaca-se o potencial mimético ou efeito copy cat, associado na literatura ao suicídio, especificamente denominado Efeito Werther, com evidências transnacionais que justificaram a construção de documentos orientadores para a mediatização do suicídio. Este efeito, no que ao femicídio na intimidade diz respeito, antecipa uma relação de causalidade de prova complexa, percebendo-se, todavia, que é mediada por características individuais, situacionais, sociais, culturais e mediáticas (Niederkrotenthaler et al., 2010; Torrecilla et al., 2019; Vives-Cases et al., 2009). Relativamente ao impacto das narrativas mediáticas na opinião pública, poderão, em função do seu enquadramento, contextualizar ou enviesar a construção social do femicídio na intimidade, materializando-se de duas formas, através de atribuições causais que legitimam ou minimizam o crime, com a dessensibilização temática do público ou, por outro lado, promovendo o engajamento e mobilização civil, com reflexo na agenda política e propulsora de transformação social (Carlyle et al., 2008; Vresse, 2009). De sublinhar que as narrativas mediáticas do femicídio na intimidade são também indicadas como fator protetor das vítimas, tendo-se notado que iniciativas que promovem a prevenção e/ou a intervenção contra a violência de género (eg., medidas legislativas, políticas públicas, condenações judiciais) parece ter um efeito dissuasor para os agressores (Vives-Cases et al., 2009; Torrecilla et al., 2019). Neste sentido, e alicerçando o presente estudo, parece fulcral problematizar em que medida operam os media ao nível das atitudes e dos comportamentos, tanto do público em geral, como nas pesoas que apresentam maior probabilidade de identificação com as narrativas mediatizadas, ou seja, vítimas e pessoas agressoras de violência na intimidade.

II - Estudo empírico

1. Sinopse

Considerando-se as dinâmicas sociais e estruturais na génese e manutenção do femicídio na intimidade e a evolução massiva e centralidade dos meios de comunicação social na sociedade, apresenta-se indispensável a análise desta relação, especificamente na forma como o femicídio na intimidade é caracterizado noticiosamente, que elementos são relevados, omissos e/ou enviesados e quais as implicações desta narrativa na construção da realidade criminal no espaço público.

O presente estudo pretende responder a esta necessidade, procedendo à análise de 853 peças jornalísticas respeitantes a um período de 18 anos (2000-2017), recolhidas a partir de dois jornais diários na versão impressa da edição norte, produto de linhas editoriais distintas - Correio da Manhã e Público, abrangendo diferentes públicos.

2. Caracterização do corpus de análise

O corpus de análise do presente estudo é composto pelas peças jornalísticas sobre femicídio na intimidade, na forma consumada e tentada, publicadas na versão impressa da edição norte dos jornais diários Correio da Manhã e Público, entre 1 de janeiro de 2000 a 31 de dezembro de 2017, constituindo-se em 853 peças noticiosas: 637 (74.7%) recolhidas do Correio da Manhã e 216 (25.3%) recolhidas do Público. Foi selecionado este período temporal, pois foi no ano 2000 que a violência doméstica foi criminalizada ao nível público, e 2017, por ser o ano anterior à publicação e operacionalização da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 «Portugal + Igual».

Os jornais alvo de análise, embora ambos diários generalistas nacionais, são produto de linhas editoriais distintas, uma mais sensacionalista (CM), outra eminentemente informativa (Público) (Carvalho, 2007).

3. Técnicas de recolha de dados

3.1 Grelha de registo das peças noticiosas

Tendo como suporte a literatura sobre o femicídio na intimidade e a sua análise mediática, construiu-se previamente à recolha, uma grelha de registo para sistematização dos dados. A grelha foi composta por dois grupos de variáveis, um respeitante à forma das peças noticiosas e outro, respeitante ao seu conteúdo. Sucintamente, quanto à forma contemplam-se dados respeitantes à dimensão das peças, o recurso à imagem e que tipo de imagem, a autoria da notícia. No que concerne ao conteúdo das peças noticiosas, contemplaram-se as características sociodemográficas da vítima e do perpetrador, especificamente a idade, nacionalidade, descendência e ocupação profissional. Também a tipologia do crime, a ocorrência de suicídio do perpetrador, as circunstâncias e dinâmicas da perpetração do crime, a sua distribuição geográfica e temporal, o local e período de ocorrência. Ainda analisados os elementos presentes a titulação e as reações sociais ao crime.

4. Procedimentos

4.1 Recolha das peças noticiosas

O processo de recolha das peças noticiosas realizou-se presencialmente na Biblioteca Municipal do Porto para o acesso ao arquivo do jornal Correio da Manhã (2000-2017) do jornal Público (2000-2001), após pedido de autorização. No que respeita à recolha das peças publicadas pelo jornal Público, foi efetuado o acesso online à edição impressa entre o ano 2002, primeiro ano disponível para consulta integral online e 2017. O acesso online foi efetuado mediante a subscrição do serviço de assinante, o que permitiu o acesso à edição norte do jornal em formato pdf, por forma a respeitar os critérios de recolha. As palavras-chave utilizadas foram: homicídio, violência doméstica, violência conjugal, crime passional, casal, matou mulher, matou companheira, matou namorada, tentou matar mulher, tentou matar companheira, tentou matar namorada.

5. Técnicas de tratamento e análise de dados

Após a recolha, e num processo de pré-análise, procedeu-se à leitura exaustiva de cada peça noticiosa, codificando-a com as iniciais do jornal, o ano, mês e número atribuído à notícia (e.g., CM2002_10_01; P2002_10_01). Seguidamente procedeu-se à análise da forma e análise do conteúdo das peças noticiosas, cujo processo se explana de seguida.

5.1 Análise da forma das peças noticiosas

Com recurso ao IBM SPSS software (versão 26), realizam-se análises descritivas simples dos indicadores quantitativos definidos aquando da construção da grelha de registo, plasmada na base de dados criada.

5.2 Análise do conteúdo das peças noticiosas

Com recurso ao IBM SPSS, analisaram-se as variáveis que comportam ao crime e definidas previamente, eminentemente quantitativas.

Numa lógica de triangulação e complementaridade dos dados, a análise do conteúdo das peças noticiosas comporta uma análise quantitativa, operacionalizada a partir de análises descritivas simples de variáveis previamente assinaladas e uma análise qualitativa, com recurso à análise de conteúdo categorial, com vista a uma maior amplitude e compreensão do fenómeno. Nesta última, procedeu-se à análise dos elementos da titulação das peças noticiosas, por forma a perceber quais os elementos do crime valorizados e se estes comportam a culpabilização direta ou indireta da vítima. Considerando a natureza dos dados, optou-se por uma análise de conteúdo categorial. Desta forma, passando pelo crivo de uma pré-análise e codificação, procedeu-se à criação de categorias significativas, a partir da significação dos elementos constitutivos da mensagem (Bardin, 2010). A mesma análise foi realizada para as reações sociais ao crime, através de citações diretas ou indiretas a partir das peças noticiosas, recolhidas junto da comunidade de pertença de vítima e perpetrador, por forma a perceber o seu papel na prevenção, ou não, do crime.

6. Apresentação e discussão dos resultados

A apresentação que se segue comporta a análise da forma e do conteúdo das peças noticiosas. Conquanto na análise primeira, eminentemente quantitativa, debruçamo-nos sobre a configuração das peças, a análise do conteúdo, mais densa e concebida de forma complementar à forma, permite-nos aprofundar o conhecimento sobre o femicídio na intimidade em Portugal e como as narrativas mediáticas que o caracterizam têm acompanhado a evolução jurídico-penal e política do crime das últimas duas décadas.

6.1 Análise da forma

Relativamente à dimensão ocupada pela peça noticiosa, verificou-se no Correio da Manhã uma preponderância das peças com ¼ de página em 31.1% (n=198) e ½ página 30.3% (n=193). Uma página é atribuída em 20.5% (n=132) das peças, 13.2% (n=83) apresentam-se como peças de tamanho reduzido - breves, e por oposição, duas páginas é o espaço atribuído em 4.9% (n=31) dos casos. De relevar ainda que à medida que se avança no tempo, o espaço atribuído foi gradualmente aumentando, sendo que as peças de tamanho reduzido (breves) e de ¼ de página foram dando lugar às peças de meia página e página inteira. No que ao recurso à imagem diz respeito, constata-se que a maioria das peças publicadas no CM - 80.8% (n=515) comportam texto e imagem, sobretudo imagens do local do crime - 27.4% (n=141); imagem da vítima - 23.9% (n=123) e de terceiros - 16.5% (n=85), contrastando com as peças publicadas no P, com imagem apenas em 37% (n=80) das peças, sobretudo de profissionais de intervenção no crime - 41.2% (n=33). No que concerne à autoria das peças noticiosas, evidencia-se o facto de o CM ter um valor consideravelmente baixo de peças não assinadas - 10.5% (n=67), porém foram contabilizados 141 jornalistas na autoria das peças, numa rotatividade que denuncia falta de especialidade. No que concerne ao Público, verifica-se que 46.3% (n=100) das peças não são assinadas, sobretudo as notícias breves, tendência que, em relação ao espaço atribuído e autoria, decresceu ao longo da última década, tendo sido assinadas por 51 jornalistas.

6.2 Análise de conteúdo

Debruçamo-nos agora sobre a análise do conteúdo das peças noticiosas, efetuada sob uma abordagem quantitativa - análises descritivas simples e sob uma abordagem qualitativa - análise de conteúdo categorial. Uma vez que este objetivo visa a caracterização do femicídio na intimidade, o corpus de análise comportará os 644 casos noticiados, entre as 853 peças noticiosas recolhidas, de forma independente do jornal onde é publicado, tendo-se procedido à realização de análises descritivas simples às variáveis associadas apenas ao crime de femicídio na intimidade, que se apresentam de seguida. Ainda de referir que 209 casos foram noticiados por ambos os jornais, 428 casos noticiados apenas pelo jornal Correio da Manhã e 7 casos apenas noticiados pelo jornal Público.

6.2.1 Análise quantitativa do conteúdo das peças noticiosas

Caracterização sociodemográfica - No que diz respeito à caracterização sociodemográfica das vítimas, esta evidencia-se pela sua heterogeneidade, pese embora se destaquem as mulheres em idade ativa, mais concretamente 28.4% (n=183) entre os 36 e os 50 anos e 21.1% (n=136) entre os 24 e os 35. De apontar ainda uma percentagem de mulheres mais idosas, com mais de 65 anos, que totaliza 8.2% (n=53) dos casos. Tal vai ao encontro dos dados nacionais, que colocam estas mulheres em idade ativa, sobretudo entre os 36 e os 60 anos, mas também acima dos 65 anos (23%), de nacionalidade portuguesa (90%), casadas (58%) e, em 57% dos casos, com descendentes do perpetrador (PJ, 2020; UMAR, 2020). Pese embora a ocupação profissional destas mulheres ser apenas mencionada em 38.3% (n=247) das peças recolhidas, evidenciam-se as mulheres com trabalhos não qualificados, tal como verificado em 8% (n=52) das peças, e em situação de desemprego, em 7.1% (n=46) dos casos.

Ainda que sejam de nacionalidade portuguesa em 93.1% (n=600) dos casos, 6.8% (n=44) das vítimas dos crimes consumados eram cidadãs estrangeiras. Importa destacar que a maioria das vítimas estrangeiras foi assassinada às mãos dos seus ex ou atuais parceiros também estrangeiros, apresentando-se como femicídios intracomunidade, assinalando-se as múltiplas fragilidades das mulheres imigrantes, que as diluem nas cifras negras deste crime, sintomático da necessidade de uma abordagem intersecional do crime, já assinalada na ENIND, num reconhecimento da desproteção acrescida destas mulheres. Evidência ainda para o impacto dos femicídios nos/as descendentes, já que cerca de metade destas mulheres eram mães - 51.7% (n=333). Desta forma percebe-se que entre 2000 e 2017, 419 crianças, jovens e adultos/as ficaram orfãos/ãs de mãe, entre os/as quais 121, de mãe e pai/padrasto, derivado ao suicídio deste último, por vezes testemunhas dos crimes. Ainda de registar 188 filhos/as das sobreviventes de femicídio, muitas vezes também eles/as vítimas de violência doméstica e, por vezes, testemunhas do crime.

No que diz respeito às características sociodemográficas dos femicidas, 93.8% (n=606) são/eram cidadãos nacionais. Já no que concerne às idades, à semelhança das vítimas, situam-se predominantemente em idades ativas, ainda que tendencialmente com idade superior à das vítimas. Embora com particular incidência entre os 36 e os 50 anos - 32% (n=206), 18% (n=116) apresentavam-se entre 51 e os 64 anos e 13% (n=84), com mais de 65. Ainda assim, evidencia-se o trabalho qualificado na indústria, construção e artífices, nomeadamente empregados no setor da construção civil - 8.5% (n=21), mas também desempregados - 7.9% (n=51) e reformados - 6.5% (n=42). Esta caracterização mostra-se, assim, concordante com os dados nacionais mais recentes, que caracterizam o femicida predominantemente em idade ativa, sobretudo entre os 36 e os 64 anos, casado com a vítima, com escolaridade até ao ensino básico, empregado, sobretudo na construção ou trabalhador não qualificado (PJ, 2020; UMAR, 2020).

Tipologia do crime: Entre os 644 crimes analisados a partir da recolha noticiosa, verificaram-se 383 femicídios consumados (59.5%) e 261 tentados (40.5%). Ao enfocar apenas o crime na forma consumada (N=383), 39.7% (n=152), este foi perpetrado depois da separação e em 60.3% (n=231) dos casos, no âmbito de relações de intimidade atuais, destacando-se o marido como protagonista, tal como verificado em 72.3% (n=167) dos casos. Quanto às tentativas (N=261), estas ocorrem tanto no âmbito de relações de intimidade atuais - 51.3% (n=134), como após a separação - 48.7% (n=127). Em 56.7% (N=365) dos crimes, a perpetração ocorreu no âmbito de uma relação atual e em 43.3% (n=279), a relação era passada. Entre estes últimos, em aproximadamente 25% (n=71), a separação tinha ocorrido há menos de 30 dias e em 23.4% (n=64), tinha ocorrido há mais de um mês, mas menos de um ano. A taxa de perpetração do crime desce significativamente após um ano da separação - 9.3% (n=26) e embora não fosse feita referência ao período de separação em 42.3% (n=118) das peças, é óbvia a perigosidade no pós-rutura, especialmente no primeiro ano da separação.

A distribuição dos crimes pelo tipo de relação encontra-se alinhado com a literatura, que indica que entre 1/3 e 50% das mulheres assassinadas se encontravam separadas do femicida à data do crime, revestindo-se a situação de particular perigo nos dois primeiros meses após a separação ou quando a vítima apresenta uma nova relação num curto espaço de tempo pós-rutura, decrescendo o risco de letalidade um ano após a separação (Campbell et al., 2009; PJ, 2020; Spencer & Stith, 2018; Websdale, 2019).

Modus Operandi (MO) - No que diz respeito ao MO, a arma de fogo mostrou-se preferida em 46.4% (n=299) dos crimes, seguida de arma branca, utilizada em 35.1% (n=226) dos femicídios, sobretudo facas de uso doméstico, também destacados nos RASI ao longo dos anos. Ainda de ressalvar as mortes particularmente violentas, verificadas em 18.5% (n=119), especificamente a morte por agressão em 8.2% (n=53) dos casos, estrangulamento em 5.4% (n=35) e recurso a fogo, gás, ácido ou bomba, utilizado em 4.8% (n=31) dos femicídios, evidenciando o ódio e o desprezo que subjaz a estes crimes, evidenciando-os como crimes de ódio, tal como defendido por Radford e Russel (1992). Se nos debruçarmos apenas sobre os crimes consumados (N=383), evidencia-se a arma de fogo como a forma mais eficaz para a letalidade, utilizada em 52.2% (n=200) destes crimes. Já nas tentativas (N=261), destaque para a utilização de arma branca, utilizada em 40.6% (n=106), denotando-se menor eficácia na consumação do crime quando o recurso se faz a esta última. O recurso a arma de fogo e arma branca encontra-se alinhado com os dados nacionais mais recentes (PJ 2020; SSI, 2021; UMAR, 2020).

Femicídio-suicídio - De relevar ainda os casos de suicídio do perpetrador, consumado em 18.9% (n=122) dos casos noticiados, e tentado em 9.1% (n=59) dos mesmos, tendo-se verificado que 62.3% (n=76) dos casos de femicídio-suicídio consumado ocorreram no âmbito de uma relação de intimidade atual e 37.7% (n=46) no âmbito de uma relação de intimidade pretérita. A prevalência do suicídio ou a sua tentativa, nas peças noticiosas recolhidas (28%), vai ao encontro dos dados internacionais, que apontam entre 27% e 32% da totalidade destes crimes (Campbell et al., 2007; PJ, 2020).

Motivação para o crime - A partir da análise das peças noticiosas, é por demais evidente que as motivações atribuídas ao crime são os ciúmes doentios e a não aceitação da separação, totalizando 95.7% dos motivos atribuídos para a ocorrência do crime. Enquanto os ciúmes, apontados como motivo subjacente ao crime em 52.2% (n=336) dos casos, regularmente associada à perceção de infidelidade por parte da vítima ou comportamentos considerados inadequados para uma mulher numa relação de intimidade, a não aceitação da separação do femicida, apontada como motivo do crime em 43.5% (n=280) dos casos, tem também na sua base os ciúmes, que naturalizam comportamentos desajustados, repressivos, desproporcionais e/ou violentos, senda na realidade exercícios de dominação. A separação ou manifestação da sua intenção, sobretudo quando há coabitação, tem-se destacado como um dos fatores de risco com maior índice de predição, podendo acionar fatores de risco pré-existentes, encadeando-se os eventos numa escalada de severidade da violência, comportando um aumento alarmante do risco de femicídio no que Wilson e Daly (1998, p.3) denominam de violência subletal. Em 2% (n=13) dos casos, todos em casais com idades mais avançadas e suicídio do perpetrador, o motivo apresentado prende-se com a alegada doença da vítima e, por vezes também atribuída ao perpetrador, sendo o femicídio transformado mediaticamente num exercício de compaixão, eutanásia ou pacto de amor.

Denúncia - No que à denúncia formal diz respeito, destaque para a ausência de informação em mais de – dos casos noticiados (n=497), impossibilitando o alcance devido para o conhecimento mais aprofundado da realidade criminal. Pese embora o dado omisso em mais de – do corpus de análise, confirma-se a formalização da denúncia em 18.1% (n=116) e em 4.8% (n=31) é expresso o histórico prévio de vitimação, ainda que sem denúncia formalizada. De mencionar que nas últimas duas décadas, foi atribuída, ainda que paulatinamente, visibilidade ao dado denúncia, acompanhando as reformas jurídico legais.

Distribuição geográfica: Ao nível distrital, destaque evidente para Lisboa com 18.4% (n=119) dos casos recolhidos, seguido de perto pelo distrito do Porto com 16.6% (n=107) e o distrito de Setúbal com 9.4% (n=61) dos crimes, totalizando-se nestes três distritos 45% dos femicídios, considerando-se como territórios urbanos e com elevada densidade populacional, concordante com os dados nacionais ((PJ 2020; SSI, 2021; UMAR, 2020).

Local de ocorrência: No que diz respeito aos femicídios em relações de intimidade atuais (N=365), destaque para a casa como cenário preferencial da fatalidade, como expresso em 82.7% (n=302) dos casos. Em relações passadas (N=279), a casa mantém-se como o cenário preferencial, embora de forma substancialmente menos expressiva - 53% (n=148), seguida pela via pública, local da ocorrência em 23.3% (n=65), o local de trabalho e os espaços públicos frequentados pela vítima, verificados em 9.6% (n=27) e 8.6% (n=24), respetivamente. A casa assume destaque, tanto na forma consumada - 82.7% (n=302), como na tentada - 53% (n=148), embora nestes casos substancialmente menos expressivo, sendo ainda assim inequívoca a tendência da perpetração do crime no espaço privado, sinalizando-o como o local mais perigoso (UMAR, 2020; PJ, 2020).

Período: O período noturno distingue-se como o mais prevalente quando o crime ocorre no âmbito de relações de intimidade atuais (N=365), representando 33.7% (n=123) dos crimes, já que é por norma o horário pós-laboral e de convivência, apresentando os períodos da tarde e da manhã taxas de perpetração de 23.3% (n=85) e 18.7% (n=68) respetivamente. Se circunscrevermos o crime perpetrado em relações passadas (N=279), destaca-se o período da tarde com 31.2% (n=87) dos casos, seguido pelo período da manhã com 26.5% (n=74) e da noite com 25.1% (n=70), com uma distribuição mais uniforme entre horário laboral e pós-laboral, podendo estar relacionado com a perseguição da vítima até ao local de trabalho ou escola, que associado à separação recente e histórico de vitimação na relação, foi descrito por Campbell (2007) uma tríade de particular risco.

Distribuição temporal: Destaque isolado para o ano de 2014 com 61 crimes noticiados (34 consumados e 27 tentativas), 2015 com 44 crimes (24 consumados e 20 tentativas), 2002 com 42 femicídios (26 consumados e 16 tentados) e ainda 2012 e 2013, ambos com 41 crimes noticiados - 26 consumados e 15 tentativas e 23 consumados e 18 tentativas, respetivamente. De sublinhar o impacto que as tentativas têm na prevalência dos crimes, correspondendo a 40% dos femicídios na intimidade (n=261).

O OMA destaca os anos de 2008, 2010 e 2014, com 46, 44 e 45 femicídios, entre os quais 40, 40 e 35 perpetrados na intimidade, respetivamente, tendo sido necessário desagregar estes dados, por forma a poder comparar os dados, já que não são contabilizados apenas o crime na intimidade, mas também em contexto familiar e outros (UMAR, 2005-2020).

Também o estudo publicado pela Polícia Judiciária destaca, mais uma vez, o ano de 2014 como totalizando 25% dos inquéritos desta natureza (n=19). Porém, aqui relembrar que o estudo em questão não se debruça apenas sobre os femicídios (87%), mas sobre os homicídios na intimidade (PJ, 2020).

De acordo com as peças noticiosas recolhidas, maio e março destacam-se como os meses, ao longo dos dezoito anos da análise, com maior prevalência de femicídios, registando 10.6% (n=68) e 10.4% (n=67) respetivamente, somando-se abril com 9.8% (n=63) dos casos. Os meses de verão, como tem vindo a ser notado, registam elevada taxa de perpetração do crime. Não obstante verificar-se, em anos anteriores, um número superior de casos nos meses de verão, o primeiro trimestre tem-se apresentado fatal de forma constante (PJ, 2020; UMAR, 2020). Embora os dados não se cruzem de forma líquida, convém considerar que a metodologia e a concetualização são diversas, pelo que a comparação de números em estado bruto poderá enviesar a análise.

6.2.2. Análise qualitativa do conteúdo

Titulação principal

A partir da leitura exaustiva da titulação principal emergiram sete discursos mediáticos que apresentamos na tabela infra.

Tabela 1 Análise de conteúdo da titulação das peças noticiosas 

Neste sentido, a partir da análise da titulação de ambos os jornais, anteciparam-se diferentes tipos de narrativa, uma de caráter mais sensacionalista, no CM, com recurso a citações diretas a partir de fontes de informação na comunidade, que frequentemente resvala num discurso culpabilizante da vítima e que desresponsabiliza o perpetrador, dando-se voz a uma comunidade permissiva, que associa o crime ao espaço privado como argumento da sua inação, evidenciando-se a complacência e a falta de consciência cívica. Também verificada uma titulação que desumaniza a vítima, terciarizando a sua história e individualidade, trocada por detalhes acessórios do crime, por vezes através de exercícios gráficos que apelam à emoção. De sublinhar que este tipo de narrativa poderá constranger a motivação e confiança das atuais vítimas de violência na intimidade para o procedimento criminal (Neves et al., 2016).

De forma exclusiva no jornal Público, destaque para a titulação em forma de descrição policial, construída a partir de comunicados divulgados pelas forças policiais, esta titulação (e respetiva notícia) é curta e estritamente factual, privilegiando a objetividade e a linguagem técnica, destacando-se o uso do termo suspeito e ainda a titulação que enfatiza o caráter sancionatório do crime, destacando não a perpetração do crime per se, sequer a exploração dos/as protagonistas, antes as consequências legais do crime, com utilização mais regular e gradual ao longo da última década, sinal de uma maior visibilidade social, legal e política do crime.

Reações sociais ao crime

Por forma a perceber qual o papel da comunidade na prevenção, ou não, do crime, em que vítima e protagonista estão ou estiveram inseridos, realizou-se uma análise de conteúdo categorial às reações sociais ao crime e aos seus protagonistas, cujas categorias são vertidas na tabela infra.

Tabela 2 Análise de conteúdo das reações sociais 

Destaque para a polarização na caracterização da vítima, entre a mulher sofrida e a mulher arisca. À primeira, exalta-se a dedicação à família, razão pela qual se mantém na relação abusiva e, frequentemente, não reporta o crime às autoridades, sendo retratada como mártir - Ela era um anjo, a força desta família que agora perdeu o rumo. Ele já a ameaçava matar há mais de 20 anos e agora roubou-nos o nosso pilar [CM2013_07_22]. A categoria mulher arisca, caracteriza a vítima de femicídio como insubordinada, contrariando o estereótipo da vítima passiva. Neste sentido, Capezza e Arriaga (2008) mostraram que a culpabilização das vítimas é superior quando as mulheres não cumprem o imaginário de género (e.g., empresárias), comparativamente às consideradas mulheres tradicionais (e.g., donas de casa e mães), sendo as primeiras percebidas como mais frias e insensíveis às questões domésticas, e como tal, mais culpáveis. No que diz respeito ao femicida, destaque para a tendência da associação do crime à psicopatologia, regularmente com o diagnóstico efetuado pelas próprias comunidades e amplificado pelos media, que retratam o femicida como um homem transtornado que agiu sob impulso à luz da passionalidade - São horas do diabo [CM2008_07_17], ou o femicida como um homem com mau feitio, retratado como uma pessoa conflituosa e desconfiada, reconhecido como pessoa agressora na intimidade, porém com atribuição a características individuais, como a ruindade e maus instintos - Tem a ruindade com ele! Deixava-a toda negrinha. [P2005_11_22]. A naturalização da violência, por parte das comunidades a que vítima e perpetrador pertenciam, foi por demais evidente na análise das reações sociais relativamente ao casal. Enquanto a alguns casais não lhes era associado histórico de violência na intimidade, aludindo-se à normalidade do casal, adensando a inexplicabilidade do crime

- Parecia que não havia ninguém naquela casa [P2002_05_05], noutros casos, todos/ as têm conhecimento do repertório abusivo, minimizam-no, associando-o à esfera privada - Problemas existem em todas as casas [CM2000_08_17]. Ainda a permissividade e complacência da comunidade, faz com que o femicídio seja uma tragédia anunciada [CM2013_02_01]. Aqui, a comunidade percebe a gravidade da situação, tanto que antevê o seu desfecho, porém mantém-se como observadora. Esta legitimação da violência apresenta-se também como um dos objetivos prioritários da ENIND. O motivo do crime é frequentemente destrinçado entre as reações sociais, especialmente as mais imediatas e em local próximo da ocorrência, todavia a comunidade é perentória em apontar os ciúmes do perpetrador como gatilho do crime, exaltando-se a possessividade em relação à vítima, independentemente de o casal se encontrar junto ou separado, oscilando entre os ciúmes doentios [CM2000_06_11], que retratam um estado conturbado e impulsivo do femicida, numa mostra da intensidade dos seus sentimentos e a não aceitação da separação, associados ao despeito e à honra. A partir desta análise, muito embora o processo evolutivo de desocultação do fenómeno seja positivo, progride a uma cadência que não é a necessária. Os media deverão aliar-se de unânime e integralmente como ferramenta de informação,

contextualização, cabais para a consciencialização cívica e transformação social.

Reflexões finais

A análise das narrativas mediáticas permitiu confirmar que os jornais diários analisados se distinguem, claramente, na forma e no conteúdo. Ainda assim as diferenças foram-se acentuando ao longo das duas décadas, especialmente a partir de 2009, sem que possamos traçar uma causalidade com a Lei 112 de 16/09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção às vítimas. Até então, tanto o CM como o P, assentavam a construção noticiosa sobre o femicídio na intimidade num estilo policial, com dimensões reduzidas, poucas imagens e utilização de narrativas simplistas, com recurso a linguagem técnica (e.g., alegadamente, suspeito), cingida aos (poucos) factos, especificamente no que diz respeito à existência de denúncia formal.

A partir de 2010 verifica-se no P um aumento gradual da dimensão das peças noticiosas e um investimento na alocação dos/as redatores/as especialistas à temática da violência de género. Embora se perceba que a publicação dos crimes não é exaustiva, as narrativas gradualmente adotam uma abordagem informativa, contextualizada e sancionatória do crime, destacando não só a perpetração do crime per se ou exploração dos/as protagonistas, antes as consequências legais do crime e evidências empíricas. Tais estratégias assemelham-se a um enquadramento temático, considerando a atualidade da temática, contextualização e as consequências, apresentando-se como um retrato informativo, facilitando a literacia mediática (Feezell et al., 2019; Iyengar, 1991).

No que ao CM diz respeito, este diário foi também, e gradualmente, dando maior visibilidade ao crime, atribuindo-lhe maior centralidade nas páginas do jornal, passando dos cadernos regionais para os cadernos centrais. Ainda atribuindo maiores dimensões às notícias, geralmente com mais do que uma imagem, por norma do local do crime, imagens da vítima já cadáver e a operação que lhe assiste, ainda imagens da vítima e/ou de pessoas da comunidade, quando interpeladas para um relato pós-

-crime, frequentemente emotivo. As narrativas são longas e descritivas, explorando características pessoais e/ou familiares e relacionais dos/as protagonistas, que secundarizam o crime, frequentemente pontuadas por discursos diretos de membros da comunidade que remetem para a desresponsabilização do femicida, associando-

-lhe loucura ou ciúmes doentios, como motivação do crime. Tais estratégias encontram-se alinhadas com um enquadramento episódico, característico de um tipo de jornalismo sensacionalista, que privilegia o imediatismo, recorrendo regularmente à criação de narrativas paralelas para captação de audiência com conteúdo acessório (Gillespie et al., 2013; Richards et al., 2014).

Com a entrada em vigor da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (CE, 2011), Portugal está obrigado a adotar um conjunto vasto de medidas que contrarie a cristalização de estereótipos de género também no que aos media diz respeito. Todavia assiste-se a uma realidade mediática polarizada, por um lado alimentando uma cultura de desresponsabilização e impunidade do perpetrador, que age por impulso tomado pela passionalidade, frequentemente validado pelas comunidades, o que promove a culpabilização e desempoderamento das vítimas, podendo inclusivamente engrossar o potencial mimético e constranger a denúncia. Por outro lado, e num esforço de informação, diversidade e rigor, operam-se as narrativas sobre o crime como ferramenta de capacitação e consciencialização pública sobre o fenómeno.

No cômputo geral, quer por razões económicas ou editoriais, a seleção e construção noticiosa sobre o femicídio é permeada por resistências de alguns grupos de comunicação em materializar o estatuto do/a jornalista e o Código Deontológico que lhe assiste, sublinhando-se a necessidade de uma atividade mais robusta por parte da Entidade Reguladora para a Comunicação, tal como prevista no Artigo 17.º da Convenção de Istambul (2011).

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Recebido: 28 de Fevereiro de 2021; Aceito: 23 de Setembro de 2021

Ariana Pinto Correia é doutorada em Psicologia na Universidade do Porto, tendo integrado como investigadora, colaboradora ou coordenadora, equipas de projetos de investigação sobre violência de género. Ciência ID: F315-1250-DC0B Morada institucional: Universidade da Maia, Avenida Carlos de Oliveira Campos, Castêlo da Maia / 4475-690 Maia

Sofia Neves é doutorada em Psicologia, Professora Associada na Universidade da Maia (ISMAI) e membro integrado do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG - ISCSP/ ULisboa). Ciência ID: F316-59A3-F991 Morada institucional: Universidade da Maia, Avenida Carlos de Oliveira Campos, Castêlo da Maia / 4475-690 Maia

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