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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.22 no.40 Lisboa jun. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.14195/2183-5462_40_7 

Artigo

Populismo Autoritário e Meio Ambiente no Brasil: Enquadramentos do discurso antiambiental de Jair Bolsonaro em editoriais nacionais e internacionais

Authoritarian Populism and the Environment in Brazil: Framings of Jair Bolsonaro’s anti-environmental discourse in national and international editorials

Bruno Araújo1 
http://orcid.org/0000-0002-8288-2718

Fernanda Safira Soares Campos2 
http://orcid.org/0000-0003-3772-6203

1 Faculdade de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil. bruno.araujo@ufmt.br

2 Grupo de Pesquisa Observatório do Populismo do Séc. XXI e do Grupo CICLO/UFMT. Brasil. fsafirac@gmail.com


Resumo

O estudo analisa os enquadramentos de veículos brasileiros e internacionais de referência sobre a política ambiental de Jair Bolsonaro. Parte-se de uma discussão sobre a relação do populismo autoritário com a pauta ambiental, seguida de uma reflexão acerca da função política dos editoriais. No plano empírico, recorre-se à análise de enquadramento, combinada com a análise lexical, para o estudo de um corpus de 50 editoriais. Os resultados mostram a mobilização de categorias do populismo-autoritário na interpretação mediática de Bolsonaro, embora haja diferenças na forma como aquelas categorias são mobilizadas na cobertura editorial dos veículos brasileiros e estrangeiros.

Palavras-chave: populismo; meio ambiente; Bolsonaro; editoriais

Abstract

The study analyses the framings of Brazilian and international reference media outlets on Jair Bolsonaro’s environmental policy. It starts from a discussion about the relation of authoritarian populism with the environmental agenda, followed by a reflection about the political function of editorials. At the empirical level, we resort to the framing analysis, combined with lexical analysis, for the study of a corpus of 50 editorials. The results show the mobilisation of categories of populism-authoritarianism in the media interpretation of Bolsonaro, although there are differences in the way those categories are mobilised in the editorial coverage of Brazilian and foreign media outlets.

Keywords: populism; environment; Bolsonaro; editorials

Introdução

O discurso antiambientalista configura-se como um dos elementos definidores do populismo autoritário de Jair Bolsonaro. Desde as eleições que o conduziram à Presidência do Brasil em 2018, tem havido o fortalecimento de um discurso que aponta as políticas ambientais como entraves ao desenvolvimento do país. Em meados daquele ano, pesquisas de intenção de voto já evidenciavam que boa parte dos eleitores de Bolsonaro estava em áreas de influência do agronegócio1, como Mato Grosso, maior estado exportador de grãos do país. O pouco valor dado a questões ambientais pela candidatura Bolsonaro estava patente já no seu plano de governo, no qual o termo ‘meio ambiente’ aparecia apenas uma vez, no contexto de uma promessa não concretizada: a fusão do Ministério do Meio Ambiente com o Ministério da Agricultura, o que poderia provocar, na prática, a extinção do primeiro, já que o segundo atua, em larga medida, como espaço de reverberação dos interesses do agronegócio.

Como avalia Scantimburgo (2018), as intenções do plano de governo sugeriam, já naquela altura, um desmonte das políticas ambientais pelas quais o Brasil se notabilizou nas últimas décadas, especialmente com a promulgação da Constituição de 1988, que abriu espaço para a organização de marcos regulatórios para o meio ambiente e garantiu direitos fundamentais a povos indígenas, frequentemente alvejados por ataques de quem pretende invadir as suas terras para a extração de madeira e minerais, não raras vezes insuflados pela retórica e pelas ações adotadas pelo governo Bolsonaro. Um relatório de maio de 2021, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela o crescimento vertiginoso das invasões de Terras Indígenas (TIs). Enquanto em 2018, 14.757 famílias indígenas foram afetadas por invasões, em 2019 foram 26.621, chegando a 58.327 em 2020, quase o quádruplo do registrado no período anterior à eleição de Bolsonaro.

Apesar de a aglutinação dos dois ministérios não se ter efetivado formalmente, a agenda de desconstrução das políticas ambientais mostrou-se intensa desde os primeiros momentos do novo governo. No dia de sua posse, Bolsonaro nomeou Ricardo Salles para o cargo de ministro do Meio Ambiente. Salles não possuía nenhum conhecimento técnico sobre a pauta ambiental, mas chegou ao governo por pressões de figuras ligadas ao setor ruralista, que haviam apoiado Bolsonaro na campanha. O ministro passou a atuar como ventríloquo daqueles interesses, buscando meios de enfraquecer a fiscalização e deslegitimar aos organismos de controle do desmatamento ilegal na Amazônia, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Em 22 de abril de 2020, uma fala de Ricardo Salles tornou-se célebre. Em reunião ministerial, no Palácio do Planalto, o ministro afirmou que era momento de “passar a boiada” - metáfora usada para sinalizar os planos de uma ampla desregulamentação da área ambiental, aproveitando-se de um momento em que, de acordo com ele, a imprensa estava ocupada da cobertura da pandemia da Covid-19. Por outro lado, Salles havia sido condenado, em 2017, por improbidade administrativa, como resultado de uma ação civil ambiental movida pelo Ministério Público2. A sua saída do governo, porém, veio apenas em 2021, quando passou à condição de investigado no Supremo Tribunal Federal (STF), por suposto favorecimento de empresários do setor de madeiras3.

Outra característica determinante do populismo autoritário do governo Bolsonaro em matéria ambiental são os ataques constantes a Organizações Não-Governamentais (ONGs), ativistas, indígenas e quilombolas. Durante a Abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2020, o presidente responsabilizou populações tradicionais pelos incêndios na Amazônia, afirmando que “a floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior” e que “os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”4.

Sem dúvidas, características do populismo-autoritário (Norris; Inglehart, 2016) podem ser identificadas nas diferentes esferas de ação de Bolsonaro. No contexto ambiental, sobressaem-se aspectos negacionistas, nacionalistas, racistas e autoritários. Com base numa abordagem da relação populismo/meio ambiente, este estudo pretende analisar como a cobertura editorial de veículos de imprensa nacionais e internacionais enquadraram a política ambiental do Governo Bolsonaro. O estudo parte de duas perguntas: (i) De que maneira os veículos enquadraram a figura de Bolsonaro em editoriais sobre a política ambiental brasileira em tempos de populismo autoritário? (ii) Em que medida recorreram a categorias do populismo autoritário para interpretar as ações do governo na área ambiental?

Para responder aos questionamentos, adota-se o enquadramento como operador analítico de um corpus de editoriais sobre meio ambiente, publicados entre janeiro de 2019, primeiro mês de governo, e agosto de 2021, nos jornais brasileiros Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, e nos internacionais Le Monde, The Guardian, The New York Times, Süddeutsche Zeitung, Público e The Economist (esta última, uma revista de informação de referência). Para a identificação dos enquadramentos, realiza-se, antes, uma análise lexical, com auxílio do software Iramuteq, para o mapeamento dos principais núcleos de sentido dos editoriais.

Além desta introdução, o texto conta com a seguinte estrutura: (ii) uma discussão sobre populismo e meio ambiente; (iii) questões metodológicas; (iv) análise empírica; (v) e conclusões.

Populismo e Meio Ambiente

O mundo tem assistido, nos últimos anos, à ascensão de líderes populistas de caráter autoritário, que se notabilizam pela articulação de discursos simplistas, ataques permanentes às instituições e a grupos vulneráveis. Atuam como mobilizadores de discursos de ódio e teorias da conspiração, com base nos quais buscam fabricar inimigos imaginários e deslegitimar as elites, especialmente aquelas produtoras de conhecimento, como cientistas e jornalistas. Ao mesmo tempo em que causam temor, os populistas autoritários têm, ao mesmo tempo, suscitado apoio de parcelas expressivas da população em países como Mongólia, Filipinas, Turquia, Índia, Polônia, Suíça, Estados Unidos e Brasil. Nesse contexto, os estudiosos do fenômeno têm tentado entender as razões do fortalecimento dessas figuras em democracias até então consideradas consolidadas, como os Estados Unidos, ou em processo de consolidação, como o Brasil.

Assim como o autoritarismo, o populismo não é um fenômeno novo. Estudado nas Ciências Humanas e Sociais, o conceito mobiliza, há décadas, uma multiplicidade de compreensões, nalgumas vezes complementares, em outras, antagônicas. Encarado pela perspectiva clássica como pejorativo, o termo “populista” carrega, entretanto, sentidos que ultrapassam os limites político-ideológicos, com manifestações que vão da direita à esquerda. Mudde e Kaltwasser (2017) asseveram que o pouco consenso se dá por vários fatores, como a própria experiência populista, que varia de um contexto geográfico e político para outro. Na Europa, o populismo está bastante associado à xenofobia e a ações anti-imigração, ao passo que, na América Latina, a experiência histórica é mais associada a aspectos da gestão econômica e a relações de clientelismo na política.

Neste estudo, adotamos a perspectiva de Norris e Inglehart (2019), que trabalham com o populismo autoritário. Assim como na abordagem ideacional de Mudde e Kaltwasser (2017), no populismo-autoritário, a noção de “voz do povo” é central, dado que os populistas identificam as elites como adversárias ou inimigas do povo. Tais elites podem ser de natureza econômica, cultural ou midiática.

A autoridade da voz do povo é valorizada mesmo quando em conflito com especialistas profissionais (‘A Grã-Bretanha está farta de especialistas’), autoridades legais (‘os chamados juízes’), comentaristas da mídia convencional (‘notícias falsas’), cientistas (‘a mudança climática é uma farsa’) e políticos eleitos (‘apenas por conta própria’). (Norris and Inglehart, 2019 p. 66, grifo nosso).

Norris e Inglehart (2019) destacam, ainda, a flexibilidade da retórica populista e o seu poder de adaptação a ideologias distintas. O populismo é encarado, assim, como uma ideologia tênue ou estreita, que não é capaz de oferecer respostas complexas para os problemas da sociedade, limitando-se a uma visão de como o mundo deveria ser, mas no âmbito de uma configuração imaginativa do populista - a sua heartland. Nessa perspectiva, o populismo, especialmente se estiver em causa a defesa da “voz do povo”, camufla práticas autoritárias e ameaçadoras da democracia, ao mesmo tempo em que se consegue suscitar apoio popular. Assim, é muito próprio do populista-autoritário o culto ao medo como tática de fabricação de inimigos, que precisam ser combatidos em nome da proteção dos “cidadãos de bem”. É, portanto, necessário, na visão populista, fortalecer políticas que protejam o “nós” do “eles”. Essa proteção tende a surgir a partir da rejeição da legitimidade de instâncias cuja atuação assenta em evidências científicas, deliberações fundamentadas e fatos. “Em vez disso, o discurso celebra a autenticidade da experiência direta (‘Acredite em mim’), opiniões de massa (‘Muitas pessoas dizem …)” (p. 67).

O populismo autoritário se notabiliza, ainda, pelo viés nacionalista, antielitista, com rejeição especial a intelectuais e especialistas e a identificação de inimigos internos (quase sempre minorias étnicas ou religiosas, imigrantes, refugiados) que sirvam de bodes expiatórios para a canalização da cólera pública. Tudo isso em articulação com ataques às normas, quase sempre perpetrados a partir do poder Executivo.

Neste trabalho, partimos do pressuposto de que a dinâmica do populismo autoritário encontra uma oportunidade de articulação relevante no terreno da agenda ambiental (McCarthy, 2019). As evidências estão em episódios conhecidos, como a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris, notificada à Organização das Nações Unidas em 2019, após decisão de Donald Trump, e a intensificação da perseguição a ambientalistas em várias regiões da América Latina. Ou, ainda, a exploração de recursos naturais em terras indígenas, sob o argumento de que tais riquezas pertencem à “nação” e devem ser usados para o seu desenvolvimento.

Por outro lado, na agenda ambiental, populistas autoritários tendem a atacar dados oficiais, demonizar supostos inimigos internos e externos como “antipatriotas”, estimular medos, além da exploração de recursos naturais como moeda de troca de apoio político, geralmente com desprezo pelos direitos humanos e ambientais. O populismo se esforça para ressignificar a “natureza” como “nacional”: um território nacional, com recursos nacionais e autossuficiência nacional. O populista atua, assim, de maneira a obscurecer ideias globais ou transfronteiriças em nome da defesa do “nós” (McCarthy, 2019).

Nesse sentido, a experiência brasileira oferece elementos para a compreensão de como populismo autoritário articula-se com a agenda ambiental, especialmente por meio do desinvestimento em instituições de proteção ambiental, do negacionismo em relação a dados científicos ou, ainda, do estímulo à violência contra povos originários. Note-se a contrariedade do governo Bolsonaro em relação aos dados que apontam a destruição ambiental na região amazônica. Em 2019, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais foi alvo de uma escalada de ataques por parte de Bolsonaro, que culminou na exoneração do então presidente do instituto, Ricardo Galvão, um cientista com reconhecimento internacional5. Por causa da divulgação de dados que mostravam o aumento do desmatamento, Bolsonaro reagiu, acusando o órgão científico de “falta de responsabilidade, respeito e patriotismo”. Bolsonaro ainda afirmou que Galvão agia “a serviço de alguma ONG” e que seu trabalho prejudicava a imagem do Brasil6.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) também foram prejudicados com cortes de verbas e ameaças do governo. Um levantamento divulgado pela BBC Brasil mostra que, até janeiro de 2021, os três órgãos, que fiscalizam as questões ambientais no país, já haviam perdido uma média de 10% de seus servidores, o que prejudica, ainda mais, a garantia de uma política ambiental efetiva7. Dados como esses levaram a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) a denunciar Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional de Haia8. O presidente foi acusado de genocídio e, também, ecocídio - uma nova tipificação de crime contra a humanidade.

Em meio ao conjunto de ações antiambientais perpetradas pelo governo de um país que figurou, no cenário internacional, como importante player na discussão de uma agenda ambiental global, os jornais se posicionaram ativamente com diagnósticos, alertas e recomendações direcionadas à sociedade e às instituições, em uma série de editoriais focados na atuação de Jair Bolsonaro, como veremos adiante.

2. O papel político dos editoriais

Na medida em que esta pesquisa analisará editoriais publicados na imprensa, importa proceder a alguns apontamentos sobre este formato jornalístico e o seu papel no debate público. As empresas jornalísticas possuem interesses e podem atuar para protegê-los. A escolha das fontes, o espaço dado aos temas e os enquadramentos empregados são alguns dos recursos de que um veículo pode lançar mão para fazer passar a opinião do jornal, mesmo em textos do gênero informativo, como as notícias (Marques e Mont’Alverne, 2015). Isso evidencia que o jornalismo não atua propriamente como um reflexo da realidade, mas como uma instância de construção do mundo social.

Nos diferentes veículos, há espaço para a expressão da opinião da empresa jornalística sobre assuntos da vida social, política e cultural, por meio do “editorial” e de outros formatos que constituem o gênero opinativo (Melo e Assis; 2016). O editorial é um texto que apresenta a opinião oficial do jornal sobre determinado assunto. Por ser opinativo, tem como objetivo influenciar as instituições sociais sobre temas de interesse coletivo através de alertas, considerações e recomendações. Luiz Beltrão chegou a defini-lo como “a voz do jornal, sua tribuna” (1980, p. 52), por considerar que, nesse espaço, são expressos posicionamentos a respeito de acontecimentos ligados tanto à comunidade quanto à existência e ao desenvolvimento da empresa jornalística.

Uma questão importante se relaciona com o público a que os editoriais se destinam. Embora possam direcionar-se ao público amplo, esses textos de caráter argumentativo são orientados, muitas vezes, aos governantes e ao Estado. Alfred Stepan (1971) defende que os editoriais privilegiam temas de política justamente porque se voltariam ao Estado. Nesse contexto, a análise de editoriais permite uma leitura do posicionamento institucional compartilhado com o público, o qual, pode, em certas circunstâncias, influenciar, inclusivamente, o espaço da informação (Fonseca, 2003).

Trata-se, assim, de um espaço onde as escolhas editoriais podem ser percebidas de forma mais cristalina, configurando-se como lócus de expressão dos pontos de vista do jornal, que argumenta, alerta e revela interesses. A análise realizada neste trabalho permitirá identificar, nos editoriais, os quadros interpretativos mobilizados pelos veículos para significar, simbolicamente, Jair Bolsonaro, no contexto de suas ações antiambientais.

3. Questões metodológicas

Neste artigo, analisamos como a opinião de veículos jornalísticos brasileiros e estrangeiros enquadrou a agenda antiambiental do governo de Jair Bolsonaro. Vamos analisar um corpus de editoriais publicados nos jornais brasileiros Folha de S. Paulo (FSP), O Estado de S. Paulo (OESP) e O Globo (OG), e nos veículos internacionais Le Monde (França), The Guardian (Reino Unido), The New York Times (Estados Unidos), Süddeutsche Zeitung (Alemanha), Público (Portugal) e The Economist (Reino Unido).

Para a coleta, realizada no buscador próprio de cada veículo, consideramos a presença, em conjunto, dos termos “Bolsonaro” e “meio ambiente”, em editoriais publicados no período de janeiro de 2019 a agosto de 2021. Foram coletados 198 textos (168 nacionais e 30 internacionais), dos quais foram considerados 50 editoriais para esta análise, divididos, de maneira proporcional, em 30 editoriais nacionais, e 20 editoriais estrangeiros. Os editoriais foram escolhidos de forma aleatória, dentro do conjunto coletado. Em razão da quantidade de editoriais nacionais, estes foram divididos, proporcionalmente, entre os anos de publicação9.

Para a análise, o estudo recorre às teorias de enquadramento, em linha com a proposta metodológica de pesquisas anteriores (Araújo e Prior, 2021; Guazina, Prior e Araújo, 2019; Mont’Alverne, 2017). Entende-se por enquadramento o trabalho de ordenação semântica do real pelos media sobre os diversos assuntos da agenda pública. Partimos da compreensão de Entman (1993), de acordo com a qual os enquadramentos são quadros interpretativos de compreensão da realidade, articulados com base nos realces e silenciamentos em torno de um dado tema. O autor entende que esses quadros ordenam o real, fazendo prescrições sobre ele, à medida em que funcionam como identificadores de problemas, cujas explicações são dadas em termos de causas e consequências, mas também de julgamentos e do apontamento de soluções.

Como parte do escrutínio do corpus, submetemos o conjunto de editoriais a uma análise lexical preliminar, com o objetivo de identificar as ocorrências semânticas mais expressivas no discurso opinativo dos jornais, a partir das quais os enquadramentos se configuram. Para isso, utilizamos o software de análise linguística Iramuteq. A partir do programa, buscamos realizar uma abordagem numérica dos textos e uma análise de similitude, para identificar quais as associações predominantes entre os termos escolhidos pelos editorialistas para tratar do tema Bolsonaro/ Meio Ambiente. Todos os textos dos jornais estrangeiros foram traduzidos, livremente, para a língua portuguesa.

Após a exploração preliminar do corpus, identificamos algumas categorias presentes nos editoriais, que expressam elementos centrais da chave populismo/meio ambiente no material analisado, conforme disposto na Tabela 1.

Tabela 1 Categorias analíticas na articulação populismo/meio ambiente em editoriais sobre Jair Bolsonaro 

Fonte: Elaborado pelos autores

Esclarecemos que essas categorias não são mutuamente exclusivas, nem esgotam as leituras sobre o corpus. Desse modo, há diversos pontos de contato entre elas, bem como ocorrências simultâneas no mesmo excerto discursivo, como buscaremos mostrar, na sequência, na análise e discussão dos enquadramentos.

4. Resultados: a agenda antiambiental de Jair Bolsonaro nos editoriais

4.1 Análise dos jornais nacionais

Em busca da estrutura lexical a partir da qual os enquadramentos se configuram, realizamos uma análise de ocorrência de termos, com o auxílio do software Iramuteq. Buscamos identificar os cinco termos de maior ocorrência, independentemente de classe gramatical. Nos editoriais nacionais, são estes os mais comuns: ‘Bolsonaro’ (116), ‘governo’ (114), ‘presidente’ (94), ‘ambiental’ (88) e ‘Brasil’ (78). Ao lado de ‘Brasil’, ‘Salles’ aparece em 5º lugar, com 78 ocorrências. Além dos termos, realizamos a análise por classe gramatical. Os cinco substantivos de maior ocorrência são: ‘Bolsonaro’ (116), ‘governo’ (114), ‘presidente’ (94), ‘Brasil’ (78) e ‘Salles’ (78). Entre os adjetivos, os de maior proeminência são: ‘ambiental’ (88), ‘brasileiro’ (65), ‘nacional’ (36), ‘europeu’ (32) e ‘queimado’ (26). Nos verbos, destacam-se: ‘dever’ (24),

‘dar’ (19), ‘ficar’ (16), ‘acusar’ (15) e ‘desmatar’ (15).

Em seguida, apresentamos o Grafo 1, dos editoriais nacionais, relativo à análise de similitude. Conforme Klamt e Santos (2021), essa análise permite observar relações de proximidade e distanciamento semânticos entre os termos, revelando os temas e a articulação dos sentidos dominantes do corpus. Para uma melhor visualização, consideramos apenas os termos com 12 ou mais ocorrências ao longo do corpus.

Grafo 1 Análise de similitude lexical dos editoriais nacionais. Fonte: Elaboração própria, por meio do Iramuteq 

No Grafo 1, os termos ‘governo’, ‘Bolsonaro’ e ‘presidente’ ganham o maior destaque e aparecem bem próximos de ‘Brasil’, ‘desmatamento’, ‘ambiental’ e ‘Amazônia’. Outras ramificações sugerem a criação de núcleos de sentido que chamam a atenção. No quarto quadrante do grafo 1, é possível observar uma ramificação que tem o termo ‘Salles’ em destaque; o sobrenome do ex-ministro do Ambiente está bastante ligado aos termos ‘PF’ e ‘madeireiro’. Em maio de 2021, Ricardo Salles passou a ser investigado por esquema de exportação ilegal de madeira. Na ocasião, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão e afastou 10 gestores da pasta e do Ibama.

Outra ramificação que se mostra relevante é a que tem início a partir do termo ‘país’, localizada no segundo quadrante do grafo 1. A partir dela, é possível observar a preocupação dos editorialistas com o episódio do possível veto da União Europeia, em 2020, ao acordo comercial com o Mercosul, em razão da política ambiental de Bolsonaro. Ligados ao termo ‘país’, aparecem ‘acordo’, ‘mercosul’, ‘comércio’, ‘união’ e ‘europeu’. Destacamos, ainda, a ramificação que conecta ‘Bolsonaro’ e ‘Amazônia’. Localizada no primeiro quadrante, mostra a relação entre ‘Amazônia’, ‘incêndio’, ‘Alemanha’ e ‘Macron’. Trata-se de um destaque a episódios em que Bolsonaro, em 2019, questionou os interesses de França e Alemanha na ajuda anunciada para combater as queimadas na Amazônia, em evidente esforço daquele de recodificar a discussão sobre o ambiente em termos nacionalistas, como é próprio da articulação do populismo/meio ambiente (McCarthy, 2019).

Partindo para os dados coligidos a partir das categorias da chave populismo/meio ambiente, para mapear os principais enquadramentos, observa-se a intensificação das críticas ao governo com o passar do tempo, nos editoriais brasileiros. No editorial de 01 de março de 2019, intitulado “Cerco ao Ibama”, a FSP destaca os primeiros ataques ao Ibama pelo governo Bolsonaro. O editorialista identifica que, na figura do ministro do Ambiente, o governo tenta emplacar uma série de medidas que dificultaria a aplicação de multas a infratores. O jornal destaca as ações para enfraquecer a instituição e ONGs ambientais: “Bolsonaro teve como promessa de campanha acabar com o que, na sua opinião, seria uma fonte de verbas para ONGs que abomina - e Salles já se apressa em satisfazer o capricho do chefe”.

Em 17 de março de 2019, no editorial “Caprichos ambientais”, a FSP identifica a atuação de Bolsonaro e Salles como “errática e emocional”, ao tentarem minar instituições como Ibama e ICMBio. O editorial cita um episódio em que o ministro ameaça abrir processo disciplinar contra servidores do Ibama que não compareceram a um evento no qual ele estava presente. Ao longo deste, observa-se a identificação da categoria violência por meio da estimulação de medos e do incentivo ao desrespeito a órgãos de proteção ambiental. “Não será surpresa se aqueles que atuam à margem da lei nos rincões do país se sentirem com isso incentivados a retomar atentados contra veículos e repartições federais, colocando em risco a incolumidade de agentes do Estado”, afirma o editorialista.

Outro tema que ganha bastante destaque é a postura adotada por Bolsonaro na política externa. Em 9 de janeiro de 2019, o editorial “Passos para o Acordo de Paris”, d’O Estado de S. Paulo, ressalta a importância de que o Brasil siga

o acordo e apresente resultados satisfatórios. O tom adotado até o momento é de atenção e recomendação, o que foi mudando ao longo do tempo. Já em 25 de agosto de 2019, o editorial “A defesa da soberania nacional” aponta que, em oito meses de mandato, a atuação de Bolsonaro foi “autoritária e imprudente”, especialmente em relação à Amazônia. Destaca-se o nacionalismo de Bolsonaro e seu esforço para obscurecer ideias globais e apontar inimigos externos, como outros países e organizações não-governamentais, o ataque às elites produtoras de conhecimento, além do negacionismo. “Para começar, Bolsonaro implodiu o Fundo Amazônia, bancado por Alemanha e Noruega, sob o argumento de que financiava ONGs - organizações que, segundo o bolsonarismo, estão a serviço de uma grande conspiração da esquerda internacional contra o Brasil”. O editorialista destaca o ataque do governo a dados oficiais sobre o desmatamento: “Em seguida, chamou de “mentirosos” os números do Inpe que mostraram, em julho, um avanço significativo do desmatamento na Amazônia, e ainda acusou a direção do respeitado órgão de estar ‘a serviço de alguma ONG’”.

Em 2020, no auge da crise das queimadas no Pantanal, que devastaram mais de 4.344.000 hectares10, o equivalente a 29% da área do bioma, FSP fez ressalvas acerca dos verdadeiros responsáveis pela devastação recorde: “Seria tolo, decerto, atribuir toda a culpa às políticas de Bolsonaro e de seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A estiagem deste ano no Pantanal é a maior em décadas”, traz um trecho do editorial de 10 de outubro de 2020. Em outro trecho, entretanto, o editorialista ressalta o negacionismo de Bolsonaro e recomenda a demissão do ministro do Ambiente. “Se a situação seria difícil para qualquer governante, torna-se dramática quando gerida por um presidente negacionista da crise do clima e um ministro empenhado no desmonte da área”.

O mesmo aspecto é ressaltado por O Globo (OG), no editorial de 23 de setembro de 2020, que aponta o fato de Bolsonaro não reconhecer a gravidade da crise ambiental no país no discurso feito na abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Além disso, ressalta o racismo do presidente contra indígenas e caboclos, que os culpou pelo fogo na região. “Ao discursar para empresários do agronegócio, (Bolsonaro) minimizou o desastre. Afirmou que o fogo de queimadas ‘acontece ao longo dos anos’. Só esqueceu que não na dimensão atual. O Ibama estimava que o fogo já destruíra quase 20% do bioma pantaneiro. No discurso de ontem, acusou índios e caboclos por incêndios ‘que ocorrem sempre nos mesmos lugares’, para preparar ‘roçados em áreas já desmatadas’. Desmentiu os satélites”. A responsabilização dos povos originários assume-se como marca distintiva do populismo, que fabrica inimigos e bodes expiatórios contra os quais o populista busca canalizar a raiva pública e as falhas de sua própria ação.

Em “O desmonte pernicioso dos órgãos ambientais”, de outubro de 2020, OG dedica-se a explicar como se dá o enfraquecimento da fiscalização de crimes ambientais promovida pelo governo. Aponta os cortes nos orçamentos do Ibama e do ICMBio e como Bolsonaro contribuiu para a crise ambiental: “O estrangulamento da estrutura ambiental também envolve não repor o pessoal que se aposenta. Tudo somado, resultam as tragédias amazônica e pantaneira deste ano. Numa estação extremamente seca, portanto já propícia a incêndios, a leniência do governo contribui para a maior onda de queimadas no Pantanal desde 1998. Na Amazônia, a destruição pelas chamas em setembro é a maior desde 2017”.

Após dois anos de mandato e diante do agravamento dos números relacionados à destruição ambiental, os jornais brasileiros recrudesceram as críticas ao governo, dando ênfase aos impactos gerados pela postura do presidente no país e no exterior. Em “Negação da negação”, de 22 de abril de 2021, a FSP classifica o discurso de Bolsonaro na cúpula do clima organizada por Joe Biden, na qual ele admitiu o aquecimento global e firmou metas para diminuir o desmatamento, como “cinismo”. Para a FSP, a retórica do presidente seria apenas uma tática para ganhar tempo. A estratégia põe em perigo, conforme o jornal, o agronegócio brasileiro, setor econômico que mais sofreria com o isolamento político de Bolsonaro. “Se ações eficazes antidesmate não ficarem logo evidentes, o pujante agronegócio brasileiro será punido por nações importadoras. Quando se trata de Jair Bolsonaro, a negação da negação não leva necessariamente a resultado virtuoso”, alertou a FSP.

Os prejuízos ao agronegócio também são apontados pelo OG, em 2021, como uma das razões para o afastamento do ministro Salles. Em “Para apuração das denúncias, Salles precisa ser afastado”, de 27 de maio de 2021, o veículo destaca o prestígio de Salles diante de Bolsonaro, apesar das pressões para que o primeiro deixe o governo. “A despeito de conduzir uma política ambiental tóxica, contaminada por recordes de desmatamentos e queimadas - que degrada a imagem do Brasil e causa prejuízos ao agronegócio -, Salles continua com prestígio diante do chefe. Um dia depois da operação que escancarou o escândalo envolvendo o ministro e o presidente do principal órgão ambiental do país, Bolsonaro disse que Salles é um ‘excepcional ministro’”.

4.2 Análise dos jornais internacionais

Nos editoriais internacionais, os cinco termos mais recorrentes são: ‘Bolsonaro’ (117), ‘Brasil’ (101), ‘ano’ (71), ‘floresta’ (70) e ‘presidente’ (62), todos substantivos. Entre os adjetivos, destacam-se: ‘brasileiro’ (56), ‘indígena’ (45), ‘climático’ (35), ‘maior’ (34) e ‘tropical’ (32). Nos verbos, os termos que mais aparecem são: ‘dizer’ (28), ‘parecer’ (20), ‘levar’ (18), ‘proteger’ (18) e ‘reduzir’ (17). Apresentamos, de seguida, o Grafo 2, com a análise de similitude, como fizemos aos editoriais brasileiros. Optamos por gerar um grafo com termos que aparecem 10 ou mais vezes, de forma a capturar os elementos semânticos mais representativos no corpus analisado.

Grafo 2 Análise de similitude lexical dos editoriais internacionais. Fonte: Elaboração própria, por meio do Iramuteq 

As quatro ramificações de maior destaque no grafo 2 partem dos seguintes termos: ‘Bolsonaro’, ‘ano’, ‘Brasil’ e ‘floresta’. A ramificação com maior concentração de termos está localizada no primeiro quadrante, onde se observam expressões alusivas ao populismo. Nesta ramificação, aparecem ligados a ‘Bolsonaro’ os termos ‘líder’, ‘populista’, ‘ditadura’, ‘militar’, ‘nação’, ‘direito’, ‘política’ e ‘internacional’. Chama a atenção a presença do termo ‘Trump’, em referência ao ex-presidente dos Estados Unidos, considerado por Norris e Inglehart (2016) como emblemático do populismo autoritário. No título de um de seus editoriais, publicado em 10 de abril de 2019, o francês Le Monde chama Bolsonaro de “o Trump dos trópicos”. Já o alemão Süddeutsche intitula um dos textos como “Bolsonaro e Trump dois irmãos em espírito”, publicado em 04 de janeiro de 2019. No segundo quadrante, está presente a ramificação que parte do termo ‘ano’, que se liga a ‘conflito’, ‘morte’, ‘terra’, ‘indígena’, ‘empresa’,‘área’, ‘liderança’ e ‘Guajajara’. É possível inferir que os editorialistas estrangeiros deram maior centralidade aos retrocessos do governo Bolsonaro, com ênfase nos ataques aos povos indígenas. Em editorial de 21 de janeiro de 2020, o jornal Público destaca que, nos últimos 11 anos, 2019 foi o ano em que mais indígenas foram mortos, que os povos originários no país enfrentam uma grave crise de suporte e que pedem socorro. Assim como nos nacionais, os internacionais também dão destaque à ameaça que o Brasil representa ao acordo do Mercosul com a UE, pela forma como a pauta ambiental é conduzida sob Bolsonaro. Ligados ao termo ‘Brasil’, aparecem ‘acordo’, ‘comercial’, ‘UE’, ‘forma’, ‘ambiental’, ‘país’, ‘economia’ e ‘número’. Já a quarta ramificação, no terceiro quadrante, parte do termo ‘floresta’. Nesta, aparecem ‘destruição’, ‘Amazônia’, ‘amazônico’, ‘aumentar’, ‘proteger’, ‘biodiversidade’, ‘aquecimento’, ‘global’, ‘mudança’, ‘climático’, ‘ajudar’, ‘relatório’, ‘incêndio’, ‘desmatamento’ e ‘espécie’.

A análise lexical permite antever que os editoriais internacionais deram ênfase a termos mais relacionados à chave populismo/meio ambiente, em comparação com o que se observou nos textos nacionais. Os termos ‘populista’, ‘ditadura’ e ‘corrupção’ não tiveram nenhuma ocorrência no corpus brasileiro. Os mesmos termos apareceram 10, 12 e 12 vezes, respectivamente, no internacional. Neste sentido, conforme mostra a Tabela 2, ‘nação’, ‘militar’ e ‘Trump’ estiveram, também, menos presentes nos editoriais nacionais, relativamente aos internacionais.

Tabela 2 Comparativo de ocorrência de termos que se relacionam à chave populismo/meio ambiente. 

Fonte: Elaboração própria

Os dados da Tabela 2 ajudam a compreender, preliminarmente, como os editorialistas interpretam Bolsonaro diante das ações de seu governo na pauta ambiental. Com efeito, a configuração semântica operada pelos enquadramentos jornalísticos tem relação com as escolhas lexicais, as quais participam do processo de discursivização do mundo. Passando à análise dos enquadramentos, percebe-se que vários jornais internacionais ressaltaram o esforço de Bolsonaro para recodificar a “natureza” como questão “nacional”, numa clara alusão à categoria nacionalismo, própria dos líderes populistas, ainda que, no caso bolsonarista, essa marca se assuma, com frequência, como mera retórica. O britânico The Guardian é um dos veículos que mais reforça a ideia de que o presidente do Brasil atua para obscurecer ideias globais e transfronteiriças de proteção ambiental.

Em “The Guardian view on Amazon deforestation: Europe must act to prevent disaster”, de 28 de julho de 2019, define-se que: “O discurso de Bolsonaro para o público nacional e estrangeiro é o mesmo: a Amazônia brasileira não é da conta de ninguém, exceto do Brasil”. Em outro trecho, a publicação destaca o nacionalismo articulado à fabricação de inimigos, especialmente em relação aos indígenas. “Ele despreza a conservação e os direitos indígenas, alegando que seus oponentes estrangeiros querem que as tribos amazônicas vivam ‘como os homens das cavernas’”. Abordagem muito semelhante pode ser observada em “The Guardian view on the threat of Bolsonaro: tropical disasters man-made”, de 26 de agosto de 2019, quando o jornal defende que autoridades estrangeiras pressionem o Brasil a assumir compromissos em defesa da Amazônia. Neste editorial, Bolsonaro é chamado de “populista” e comparado a Trump, associação bastante feita nos veículos internacionais: “O presidente populista de extrema direita do Brasil encorajou a destruição desenfreada da maior floresta do mundo. Ele foi humilhado, mas não parou”. Em outro trecho, ressalta-se o ataque às elites produtoras de conhecimento e o negacionismo no discurso de Bolsonaro. “O presidente brasileiro, que assumiu o poder em janeiro, nomeou negadores do clima para cargos de destaque. Quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do país revelou um aumento do desmatamento na Amazônia em julho resultado da reversão das proteções ambientais e da fiscalização o presidente disse que os números eram falsos”.

The New York Times dedica-se, em “Brazil’s Lethal Environmental Negligence”, de 31 de janeiro de 2019, a apontar os aspectos reacionários e autoritários no discurso de posse do novo presidente brasileiro. Ao identificar a violência, o editorialista faz um prognóstico acerca dos grupos que mais deveriam sofrer os ataques de Bolsonaro. A identificação dos grupos remete à fabricação de inimigos própria do populismo. O jornal interpreta, assim, a posição do presidente: “Assim que Bolsonaro tomou posse como presidente do Brasil, no dia de Ano Novo, ele lançou uma fonte de decretos de extrema direita, minando as proteções ao meio ambiente, aos direitos à terra indígena e à comunidade LGBT, colocando organizações não-governamentais sob o monitoramento do governo e expurgando empreiteiros que não compartilham de sua ideologia”.

O diário estadunidense compara Bolsonaro a outros autoritários: “Mobilizar a raiva, o ódio e o medo se tornou estratégia comum a supostos autoritários, e Bolsonaro se baseou amplamente no manual de estratégias de nomes como Rodrigo Duterte, das Filipinas, Viktor Orban, da Hungria, e Recep Tayyip Erdogan, da Turquia”. Por outro lado, percebe-se que a ameaça aos indígenas é uma preocupação também do Times. Em “Brazil’s New President Threatens ‘the Lungs of the Planet’”, de 19 de março de 2019, o qualificam-se os povos indígenas da Amazônia como “as tropas de choque na luta contra as mudanças climáticas”, ameaçadas, severamente, por Bolsonaro. Na caracterização do brasileiro como um populista que age para minar a proteção do ambiente, Bolsonaro é, novamente, comparado a Trump. “Embora há muito tempo em perigo, a floresta está em maior ameaça agora sob a presidência de Jair Bolsonaro, um líder populista polarizador nos moldes do presidente Trump”. O mesmo editorial ressalta, ainda, a atuação antiambientalista do governo com alusão às categorias de ataque às elites produtoras do conhecimento e fabricação de inimigos: Desde sua posse, Bolsonaro enfraqueceu ou despojou agências governamentais que supervisionam as proteções para a Amazônia e os povos indígenas e atribuiu essas responsabilidades ao Ministério da Agricultura, pró-agricultura, pró-mineração e pró-madeira”.

O Le Monde também é enfático ao definir a conduta do presidente brasileiro na pauta ambiental como uma “ameaça”, não apenas aos indígenas, mas à comunidade internacional. O jornal aponta, em diversas passagens, a necessidade de o mundo exercer pressão para fazer frente a Bolsonaro. Em “L’Amazonie, bien commun universel”, de 24 de agosto de 2019, lê-se: “Bolsonaro deve aceitar os compromissos internacionais”, uma vez que o “desmatamento massivo e as queimadas são parte da perturbação global do sistema climático”. O editorialista define a postura de Bolsonaro como “colonialista” e considera que o negacionismo climático é responsável por incentivar o crescimento vertiginoso nos casos de incêndios florestais.

A polarização alimentada pelo presidente ganha destaque no editorial “Brésil: la dangereuse fuite en avant de Bolsonaro”, de 18 de maio de 2020. Para o Le Monde, o negacionismo de Bolsonaro leva o Brasil a viver um mundo paralelo, movido pela desinformação: “(...) o Brasil de Bolsonaro vive em um mundo paralelo, um teatro do absurdo onde fatos e realidade não existem. Nesse universo tenso, alimentado por calúnias, inconsistências e provocações mortais, a opinião se polariza em uma nuvem de ideias simples, mas falsas”. O periódico entende que Bolsonaro mostra não possuir condições de ocupar um cargo de estadista. A violência é evidenciada mais uma vez: “Depois de praticar o negacionismo histórico ao elogiar a ditadura, negar a existência de incêndios na Amazônia e a gravidade da pandemia Covid-19, Bolsonaro e sua tentação autoritária correm o risco de arrastar o país a uma perigosa corrida de ponta a ponta”.

Na mesma linha, o Süddeutsche Zeitung aponta que Bolsonaro tem “planos perigosos” e que o mundo deveria estar atento. Em “Bolsonaro und Trump zwei Brüder im Geiste”, de 04 de janeiro de 2019, o editorialista compara Bolsonaro a Trump e afirma que ambos foram grotescamente subestimados e chegaram com projetos autoritários, tecendo, essencialmente, a mesma narrativa. “O populista Donald Trump e o extremista de direita Jair Bolsonaro são semelhantes em tom e estilo. Usando métodos semelhantes, eles conseguiram conquistar os mais altos cargos no Brasil e nos Estados Unidos”. Já em “EU und Mercosur schaffen Freihandelszone”, de 29 de junho de 2019, o jornal ressalta os esforços internacionais para barrar os empenhos antiambientalistas de Bolsonaro e o descontentamento de líderes estrangeiros. “Na quarta-feira, a chanceler Angela Merkel também expressou preocupação no Bundestag sobre o desmatamento da floresta tropical no Brasil, o que a fez desagradar o presidente populista de direita Jair Bolsonaro”.

No editorial “2019, o ano em que o Brasil mais matou indígenas”, de 21 de janeiro de 2020, o Público salientou o quão devastadora pode ser a busca pela ostracização do outro, articulada, especialmente, ao ataque às minorias indígenas. “Ao todo, 9 indígenas foram assassinados em 2019, sendo o último há pouco mais de 40 dias do último assassinato do Guardião da Floresta, Paulo Paulino Guajajara”. Por outro lado, em “Solidariedade internacional ao Brasil: Portugal denuncia política genocida de Bolsonaro”, de 28 de julho de 2021, o jornal lista os grupos alvos do governo. “Esta face mais visível de um trágico empreendimento que inclui a destruição de ecossistemas e a venda de patrimônio nacional, o desejo de aniquilação de culturas e povos originários, direito aos direitos humanos, às indígenas e quilombolas, a criminalização de ativistas e movimentos sociais, além da perseguição aos grupos mais oprimidos”.

Por fim, o nacionalismo e o negacionismo de Bolsonaro são as categorias mais identificadas pela revista britânica The Economist. No editorial “Deathwatch for the Amazon”, de 01 de agosto de 2019, a revista defende que a conduta do presidente acelera o colapso ambiental. Novamente, as autoridades internacionais são cobradas para a implementação de ações que impeçam a política de destruição ambiental engendrada por Bolsonaro. O texto evidencia o esforço contínuo em recodificar a “natureza” como questão “nacional” e aponta o obscurantismo do brasileiro. “Ele rejeita descobertas científicas. Ele acusa os estrangeiros de mentirem os países ricos não derrubaram suas próprias florestas? e, às vezes, de usar o dogma ambiental como pretexto para manter o Brasil pobre. ‘A Amazônia é nossa’, esbravejou o presidente recentemente. O que acontece na Amazônia brasileira, pensa ele, é problema do Brasil”.

Conclusões

Este estudo analisou como veículos brasileiros e estrangeiros enquadraram a agenda ambiental brasileira em tempos de populismo autoritário. Estudamos um conjunto de editoriais, a partir dos quais propusemos cinco categorias para compreender como o populismo se articula com a questão ambiental: nacionalismo, negacionismo, ataque às elites do conhecimento, fabricação de inimigos e violência.

Com efeito, a agenda do ambiente é um espaço importante de articulação do populismo no Brasil da atualidade, seja pelo negacionismo do governo em face de dados oficiais sobre o aumento das queimadas em biomas como Amazônia e Pantanal, seja pela aposta na fabricação de inimigos, como ativistas e povos originários, apontados pela retórica populista como agentes com interesses não declarados, no caso dos primeiros, ou como entraves ao desenvolvimento do país, no caso dos segundos. Ao analisar de que maneira os veículos se posicionaram, verificamos que tanto os nacionais quanto os estrangeiros mobilizaram categorias do populismo-autoritário para enquadrar a política ambiental de Bolsonaro, embora tenham-no feito de forma diferente. O tom dos editoriais brasileiros vai se tornando mais crítico ao longo do governo, ao passo que os estrangeiros se mostraram céticos desde o primeiro momento, interpretando Bolsonaro como uma ameaça global.

A análise também demonstra semelhanças temáticas nos editoriais, ainda que sob enquadramentos diferentes. O possível veto da UE ao acordo comercial com o Mercosul, por exemplo, tem destaque nos dois grupos de editoriais. No Brasil, os veículos apontam como o veto pode impor dificuldades econômicas ao país; já os veículos internacionais defendem vetos e boicotes a produtos brasileiros como forma de pressão da comunidade internacional por uma mudança na política ambiental brasileira. Em suma, o estudo da forma como a imprensa enquadra a chave populismo/meio ambiente, como procuramos fazer neste texto, ajuda a entender de que maneira os media interpretam um fenômeno tão complexo quanto ameaçador às democracias liberais, como é o populismo autoritário, neste início de século XXI.

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Notas

1 Disponível em https://outraspalavras.net/direita-assanhada/os-mapas-do-poder-dos-ruralistas/. Acesso em: 01 de setembro de 2021.

5 Em dezembro de 2019, Ricardo Galvão foi eleito um dos 10 cientistas do ano pela renomada revista científica britânica Nature.

7 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55849937. Acesso em 20 de setembro de 2021.

9 O detalhamento do corpus, com identificação dos editoriais, título e data de publicação está disponível em: https://drive.google.com/file/d/14Yu-zXdY182zMHA2yjCcKk_SlaoAyyhi/view?usp=sharing.

10 Dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/345753590_Nota_tecnica_LASA_-_Area_queimada_Pantanal_situacao_ate_09_de_novembro_2020. Acesso em 08 de setembro de 2021

Recebido: 10 de Outubro de 2021; Aceito: 10 de Fevereiro de 2022

Bruno Araújo é professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso, investigador do Projeto Internacional Observatório do Populismo do Século XXI e colaborador do ICNOVA e do Ceis20/UC. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-8288-2718 Morada: Faculdade de Comunicação e Artes da UFMT, Av. Fernando Corrêa da Costa, 78070-000, Cuiabá MT, Brasil

Fernanda Safira Soares Campos é mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso, membra do Grupo de Pesquisa Observatório do Populismo do Séc. XXI e do Grupo CICLO/UFMT. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-3772-6203 Morada: Faculdade de Comunicação e Artes da UFMT, Av. Fernando Corrêa da Costa, 78070-000, Cuiabá MT, Brasil

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