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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.22 no.41 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.14195/2183-5462_41_3 

Artigo

Quando Mário Mesquita entrevistou Elihu Katz

When Mário Mesquita interviewed Elihu Katz

1 ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Portugal telmo71.goncalves@gmail.com


Resumo

Pretende-se neste trabalho assinalar os desaparecimentos recentes de Elihu Katz e Mário Mesquita, fazendo uma homenagem a estes dois autores que se cruzaram, tendo como móbil principal a teoria dos acontecimentos mediáticos (media events). Estabelece-se, em primeiro lugar, um enquadramento sobre a importância desta teoria dos média criada por Elihu Katz e Daniel Dayan no trabalho de divulgação académica e reflexão teórica de Mário Mesquita. Procede-se, em segundo lugar, à reedição de uma entrevista a Elihu Katz, publicada por Mário Mesquita em 2003, na qual o sociólogo norte-americano expõe o seu pensamento acerca das transformações da esfera pública contemporânea - dos efeitos da Internet e dos então novos media ao nível da cidadania e da vida democrática - e da própria evolução da teoria dos acontecimentos mediáticos num ambiente marcado pela pulverização e globalização mediáticas.

Palavras-chave: acontecimentos mediáticos; Elihu Katz; Mário Mesquita; esfera pública; internet e novos media

Abstract

The purpose of this paper is to mark the recent passing of Elihu Katz and Mário Mesquita, paying tribute to these authors who crossed paths having as their main motive the theory of media events. Firstly, a framework is established on the importance of this media theory developed by Elihu Katz and Daniel Dayan in Mário Mesquita’s academic work. Secondly, we republish the interview with Elihu Katz, published by Mário Mesquita in 2003, in which the American sociologist shared his thoughts on the transformations of the contemporary public sphere - the effects of the Internet and the new media (at the time) on citizenship and democratic life -, and on the evolution of the theory of media events in an environment characterised by media pulverization and globalization.

Keywords: media events; Elihu Katz; Mário Mesquita; public sphere; internet and new media

Menos de cinco meses separam os desaparecimentos recentes de Elihu Katz e Mário Mesquita. Dois intelectuais e académicos que se conheceram, conviveram, cruzaram experiências, saberes e, cada um nas suas circunstâncias e contextos, influenciaram várias gerações de estudantes e investigadores dos media e do jornalismo. A associação dos dois nomes afigura-se-nos como um dado absolutamente incontornável no contexto dos estudos dos media e do jornalismo em Portugal. O pensamento de Elihu Katz constituiu uma das mais importantes inspirações a nível internacional do trabalho académico de Mário Mesquita, que retribuiu o estímulo intelectual transformando-se de forma muito natural num dos principais divulgadores e precursores entre nós do longo trabalho deste autor pioneiro na pesquisa sobre a comunicação e os media.

Destaca-se, desde logo, a publicação em língua portuguesa da obra Media events - The live broadcasting of history (A história em direto - Os acontecimentos mediáticos na televisão), na qual Elihu Katz e Daniel Dayan deram a conhecer em 1992 a sua teoria dos media events. Deve-se a Mário Mesquita a publicação desta obra de referência, na coleção Comunicação, que o próprio criou e dirigiu durante a sua longa colaboração com a editora MinervaCoimbra.

A teoria dos acontecimentos mediáticos (media events) encontrou no trabalho de Mesquita um dos ecos mais produtivos para os estudos dos media e do jornalismo, como é reconhecido pelos próprios autores. “Mário Mesquita trouxe para o nosso trabalho a rica experiência que ganhou com as suas três vidas, como académico, jornalista e ator político. E claro, tornou-se nosso amigo”, contam Dayan e Katz na abertura do dossier de revisitação da teoria dos media events do livro de homenagem a Mário Mesquita, A liberdade por princípio (2021). Curiosamente o único texto do próprio que consta da obra em sua homenagem é o artigo em inglês resultante de uma conferência proferida, em julho de 2000, num encontro dedicado à teoria dos media events, organizado em Londres pelas universidades de Westminster e Stirling. Neste artigo, Mário Mesquita analisa a cobertura televisiva em direto do funeral de Francisco Sá Carneiro (1980) enquanto cerimonial televisivo, tendo como referência o quadro concetual cunhado por Katz e Dayan; um trabalho que de certa forma representa o projeto de doutoramento que Mário Mesquita abraçava então e que encontrava na teoria dos acontecimentos mediáticos a sua ancoragem teórica de base1.

A reflexão profunda e o questionamento de Mário Mesquita sobre as virtualidades e os limites da aplicação do quadro concetual dos acontecimentos mediáticos deram origem a uma variedade de textos teóricos, muitos dos quais o autor agregou no capítulo final do seu O quarto equívoco, e que constituem, do ponto de vista teórico, a parte mais densa e homogénea da sua obra académica de maior fôlego. No conjunto desses seis textos, encontramos autênticas sessões de genealogia e anatomia das telecerimónias enquanto género televisivo, num debate constante do autor com as conceções desenvolvidas por Katz e Dayan. Questionando, por exemplo, a relevância atribuída à participação do público, como se a sua presença pudesse representar um sentido acrescentado em acontecimentos que na realidade são concebidos como atos performativos do poder, com as suas coreografias e guiões próprios. Desafiando a própria designação do conceito enquanto media events, ao qual contrapõe a noção de acontecimentos cerimoniais. Defendendo que nem todos os acontecimentos mediáticos se constituem em cerimónias públicas. Testando os limites da aplicação operativa do conceito na análise de acontecimentos mediáticos como os funerais do Imperador Hirohito, ou a reconfiguração televisiva da missa cantada que precedeu o cortejo fúnebre de Francisco Sá Carneiro. Desafiando as fronteiras que delimitariam as três categorias de acontecimentos cerimoniais avançadas pelos autores - coroações, competições, conquistas. Ou ainda sistematizando as várias dimensões críticas (lexical, sintática, semântica, pragmática e ideológica) suscitadas pelos estudos de Katz e Dayan sobre os media events (2004, pp. 281-365).

A própria metáfora do O quarto equívoco, o feliz título que Mário Mesquita deu à sua obra, através da qual podemos rapidamente sintetizar a complexidade da tradicional problemática do poder e dos efeitos dos media perante conceções mais lineares e próximas de uma ideia de media todo-poderosos, não é, certamente, alheia à inspiração e ao reconhecimento suscitados pelas pesquisas de Elihu Katz sobre os efeitos dos media e a importância da influência interpessoal na mediação das relações dos indivíduos com as comunicações de massas, desde a teoria dos efeitos limitados (two step flow of communication) à abordagem da escola dos “usos e gratificações”… Abordagens teóricas que marcam a história e o conhecimento da pesquisa sobre as comunicações de massa e tiveram sempre presença assídua nas disciplinas de Teorias do Jornalismo dirigidas por Mário Mesquita.

Encontros na Arrábida

Elihu Katz e Mário Mesquita mantiveram ao longo de mais de duas décadas uma relação de proximidade que ultrapassou várias distâncias (geográficas, etárias, percursos de vida). Katz foi presença central em vários encontros académicos organizados por Mesquita. Quando estava de visita a Lisboa, mesmo para outros compromissos académicos, Mesquita fazia questão de organizar um encontro - regra geral, um jantar - com Elihu e Ruth Katz, sua mulher, para o qual convidava alguns amigos chegados e familiares. O convívio rapidamente se transformava em tertúlia aberta a todos os temas que pontuassem as “inquietações” do momento, muito para além do campo dos media e da comunicação, numa conversa sempre bem-humorada e animada pela curiosidade natural de Elihu e a sagacidade fina de Ruth.

Entre os encontros académicos organizados por Mário Mesquita sobressai o ciclo de conferências, em julho de 2003, sob o tema Os Acontecimentos Mediáticos, a Televisão e a Sociedade Civil, realizado no âmbito das Conferências da Arrábida. Durante três dias, Mário Mesquita reuniu investigadores nacionais e estrangeiros no Convento da Arrábida para debater diretamente com os pais da teoria dos media events o papel dos media no “pós-11 de Setembro” e a pertinência dos seus conceitos teóricos para compreender os tempos desafiantes que se desenhavam. No painel de discussão apresentava-se um panorama mediático em profunda reconfiguração, ou mesmo convulsão, ainda a viver o trauma do “superterrorismo” hipermediatizado, num clima de explosão informativa, por via da televisão globalizada 24 horas por dia

e dos então designados “novos media” emergentes, num regime já de progressiva erosão da influência dos “media tradicionais” perante uma fulgurante afirmação da Internet a todos os níveis das nossas vidas.

Cristina Ponte (2021, p. 43) recorda desse encontro o momento em que sentiu “um arrepio na sala quando, na sua intervenção, Elihu Katz riscou no quadro branco as designações de momentos de celebração política e simbólica (coroações, competições e conquistas) e sublinhou que a teoria dos acontecimentos mediáticos como suportes de consensos sociais precisava de ser revista em tempos estilhaçantes como aqueles”. Para admiração e surpresa dos presentes, um dos fundadores das pesquisas sobre a comunicação e os media, depois de décadas de estudo e investigações, “estava disposto a pensar tudo de novo” (Ponte, 2021, p. 44).

O ciclo de conferências teve um momento destacado com o lançamento de uma pequena antologia organizada por Mário Mesquita, na sua coleção Cadernos Minerva, intitulada Televisão e públicos no funeral de Diana, composta por três textos2. Entre os quais, uma entrevista com Elihu Katz, realizada em 22 de junho de 2000, no contexto de uma visita a Portugal para participar em sessões do seminário que Mário Mesquita então coordenava no mestrado em Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

O adeus a Diana - O feminismo contra a família real foi o título com que a entrevista originalmente se apresentou aos leitores. Título consonante com o espírito da obra e do evento académico do seu lançamento, mas necessariamente curto para espelhar toda a abrangência e o alcance que entrevistador e entrevistado procuraram atingir. Trata-se, na realidade, de uma entrevista de largo espetro, que pretende explorar o pensamento do sociólogo norte-americano acerca das mudanças da esfera pública contemporânea, dos efeitos da Internet ao nível da cidadania e da vida democrática, da validade presente e futura da teoria dos acontecimentos mediáticos num ambiente de pulverização e globalização mediática.

A conversa aprofunda o pensamento de Elihu Katz sobre a evolução da “esfera pública” contemporânea, partindo desde a noção de “esfera pública burguesa” e sua diluição na teoria de Jurgen Habermas, passando pela importância da conversação na teoria de Gabriel de Tarde - “o herói” de Katz -, testando a validade da teoria dos efeitos limitados de Paul Lazaresfeld e Katz perante uma realidade social com media muito mais poderosos e globalizados, até à visão crítica de Michael Schudson de uma conversação anulada e substituída pelos novos media.

Uma teoria selvagem

Neste percurso, o entrevistado deixa uma “teoria selvagem”, necessariamente crítica, sobre a esfera pública contemporânea na era da Internet. Os “novos média fragilizam a nação”, à medida que a “sociedade de redes” para a qual somos empurrados através da Internet se afasta das instituições democráticas. “Ao contrário de autores que sustentam que vivemos numa democracia sem cidadãos, a Internet e os novos média criam cidadãos sem democracia”, afirma Katz (2003, p. 9). O problema já não é estarmos a viver uma “Democracia sem cidadãos”, como sugeriu a obra de Robert Entman (1989), mas sim termos “cidadãos sem democracia”. Adverte, no entanto: “Mas essa é a ideia selvagem que eu tenho, por favor, afastem-se dela!” (Katz, 2003, p. 14). Teoria selvagem que sugere a Mesquita uma nota de “algum pessimismo” do autor quanto à possibilidade de uma revitalização da vida democrática, impulsionada pela corrente dos novos media e da globalização, contrariando assim espíritos mais otimistas do momento. A tese provocatória enunciada ali por um dos principais impulsionadores da pesquisa sobre as comunicação de massas, mais do que uma análise sobre a realidade social emergente em inícios do novo milénio, ressoa sobretudo como alerta à navegação para o que se estava a desenhar com a nova “sociedade em rede” - hoje diríamos “sociedade digital” - e suas potenciais perversões (ou mesmo “disfunções”) para a estruturação do debate público, com impacto sobretudo ao nível da coesão social e da existência de uma comunidade política as-

sente em valores e regras próprias das instituições democráticas.

Da análise da esfera pública contemporânea, a conversa evolui para a exploração da base conceptual que está na origem da teoria dos acontecimentos mediáticos. Mário Mesquita procura esclarecer o que separa os acontecimentos mediáticos, o papel da televisão cerimonial, do pensamento crítico da Escola de Frankfurt; se não se trata da continuação por outros meios de um debate antigo entre a teoria do modelo de comunicação em duas etapas (Lazarsfeld & Katz) e as conceções da teoria crítica? Elihu Katz reconhece a condição “emocional” das telecerimónias, indo assim ao encontro do diagnóstico crítico segundo a perspetiva da Escola de Frankfurt. Mas rapidamente se dissocia desta quando sustenta, com apoio em Durkheim e na sociologia funcionalista, a importância de as sociedades viverem os seus cerimoniais de união, que são uma condição essencial para promover a solidariedade social.

O entrevistador procura então aprofundar as diferenças entre as três categorias de acontecimentos mediáticos avançadas por Dayan e Katz - competições, conquistas e coroações. Questiona a utilização da noção de acontecimento, mais associada a acontecimentos noticiosos, eventos mais conflituais, mais disruptivos, para definir acontecimentos que existem enquanto cerimónias vividas coletivamente através da televisão (telecerimónias). Sugere, na esteira da interpretação francófona, acontecimento cerimonial como uma designação porventura mais adequada. Katz manifesta algumas reservas quanto à sugestão, embora conceda para efeitos de tradução. Mas, no essencial, reafirma sempre a importância dos acontecimentos mediáticos, nas suas três categorias, e o seu caráter cerimonial, como rituais de revisitação dos valores centrais de uma sociedade. “Mesmo em acontecimentos mais racionais, há uma reiteração do compromisso com as regras, as pessoas estão cientes disto, é uma socialização dos rituais democráticos…”, defende Katz (2003, p. 18).

Nesta sequência Mesquita sugere agora a análise de acontecimentos de dimensão cerimonial temporalmente mais próximos. Katz centra-se no funeral de Diana de Gales, que vê como uma “conquista” e não uma “coroação”, na medida em que “forçou a família real a abandonar a sua posição de ostracismo”; uma conquista em nome do feminismo contra o conservadorismo da coroa britânica. Seguem-se, na observação de Katz, a transferência da administração de Hong Kong para a China, uma “coroação” vista por diferentes perspetivas consoante os países envolvidos; e a visita de João Paulo II a Israel, também uma cerimónia de “coroação” entre múltiplas expetativas conflituais.

E haverá espaço para os acontecimentos mediáticos no futuro, com a multiplicação e pulverização de meios de comunicação e sua crescente globalização? Elihu Katz elabora sobre a questão, mas deixa a resposta em aberto, na incerteza sobre as possibilidades reais de interseção entre as dimensões nacional e global.

É este o percurso da entrevista que os leitores são agora convidados a conhecer (ou a revisitar). A sua leitura leva-nos a escutar uma bela conversa entre dois homens com percursos, experiências, conhecimentos, culturas e espíritos académicos ímpares, e a formular pontos de apoio para continuar a dar sentido crítico - como certamente os dois aprovariam - ao debate sobre os media, o jornalismo e os seus efeitos nas nossas sociedades.

O adeus a Diana- O feminismo contra a família real3

Mário Mesquita - Quando se refere à esfera pública e mediática, na atualidade, utiliza o conceito no mesmo sentido que lhe foi dado por Jurgen Habermas?

Elihu Katz - Sim, refiro-me ao mesmo conceito, embora Habermas fosse totalmente pessimista. Gostaria de fazer a ligação entre Habermas e o meu “herói”, Gabriel Tarde. Ambos partilham a ideia de que a esfera pública é constituída por quatro componentes: imprensa, conversação, opinião e ação. Ora, tanto no tempo de Tarde como no espaço público iluminista estudado por Habermas, a imprensa resumia-se aos jornais. Hoje diríamos “media”. Então, seria: media, conversação, opinião e ação. Isso significa, idealmente (trata-se de um modelo ideal), que a interação entre estes quatro elementos constitui uma esfera pública em que os cidadãos, agindo de forma independente do governo, são informados pelos media de deliberações governativas, problemas sociais e outros, juntam-se para discutir (no tempo de Tarde

e na época estudada por Habermas havia aquela visão romântica das reuniões nos cafés, em que as pessoas tinham um “menu” e uma agenda de debate), chegam a formar algumas opiniões e estas, através da interação, adquirem dimensão pública. A imprensa volta, novamente, a intervir, para representar estas opiniões. Como resultado deste processo, geram-se dois tipos de ação: ao nível da escolha individual, através da opção por uma moda ou um produto; outra, ao nível do governo, que, ao interpretar como uma forma de pressão a opinião pública representada na imprensa, procura agir em conformidade com ela, ou pelo menos, sem a afrontar demasiado.

M.M. - Considera que, atualmente, a conversa ainda desempenha o mesmo papel na esfera pública, embora as imagens preponderem nos meios de comunicação e os fluxos internacionais sejam mais fortes do que no séc. XVIII?

E.K. - É por isso que Habermas afirma que a situação atual é tão diferente da chamada “esfera pública burguesa” do séc. XVIII. A independência da sociedade civil foi comprometida pela invasão do “big government”, das grandes empresas mediáticas e da manipulação. A produção das imagens tornou-se central na sociedade moderna e “esmagou” a racionalidade que presumivelmente caracterizava a sociedade cívica. Por isso Habermas sustenta que regressámos ao tempo dos reis, em que o monarca aparecia nos seus trajes majestosos, deslumbrava e hipnotizava o povo com a sua legitimidade e autoridade, dizendo “L’état c’est moi”. Na sua teoria, voltámos a esse tempo. A influência da sociedade civil está muito reduzida porque as grandes corporações e os governos têm muito poder. Proliferam os agentes de relações públicas. A racionalidade da conversação está comprometida pela enorme quantidade de imagens, por tanta manipulação, por tanto cinismo.

M.M. - Concorda com essa posição?

E.K. - Bem, eu sempre tive alguma esperança. Efetuei alguns estudos, em 1999, nos Estados Unidos, conjuntamente com dois colegas, da Universidade de Annenberg, na Pensilvânia, Robert Wyatt, do Tenessee, e Joohan Kim, que estava a estudar numa pós-graduação em Pennsilvanya e, depois, voltou para a Coreia. Usando esta fórmula (media, conversação, opinião, ação), encontrámos uma correlação muito elevada entre exposição ao jornalismo político e a conversa sobre a política (definindo “política” de forma muito geral, incluindo educação, crime, etc.), isto é, entre media e conversação. Também verificámos a correlação entre conversação e opinião, mas essa relação é mais complexa.

Partimos da hipótese de que a conversação tornaria a opinião mais consistente e racional. Se um indivíduo tivesse uma opinião à esquerda, no assunto A, num contínuo esquerda-direita, também teria uma opinião à esquerda no assunto B. Mas não confirmámos isso, o que é interessante. Descobrimos que mais conversas sobre assuntos políticos geram mais opiniões, medidas a partir de uma pesquisa, o que se traduz no número de perguntas a que as pessoas respondem sem dizer “não sei”.

O mais interessante é que as pessoas que têm mais conversas políticas sabem mais sobre a opinião dos outros. Encontrámos esta correlação entre media, conversação, opinião e ação, entendendo-se aqui ação por participação em campanhas políticas, empenho em questões relacionadas com o bem comum e outras intervenções cívicas. Mas isto são correlações. Não significa que se apliquem a um grande número de pessoas. Permitem concluir apenas que os cidadãos que recebem informação política através dos media conversam mais sobre esses temas, desenvolvem opiniões mais sofisticadas e participam em mais ações políticas. Mas isso não se aplica, de modo algum, à maioria da população...

M.M. - Qual a sua opinião sobre as teses de Michael Schudson acerca do lugar da conversa na esfera pública contemporânea?

E.K. - Schudson tem uma visão diferente. Considera que conversação política é uma contradição nos termos, corresponde a um oximoro. A conversa, em seu entender, é casual, agradável, não é focada, vagueia sobre vários assuntos, enquanto a política é desagradável, conflitual e orientada para a produção de legislação, o que, em seu entender, corresponde a ação política.

Pessoalmente, discordo de Michael Schudson, designadamente no livro The Good Citizen, porque define a conversa política enquanto exercício de argumentação apenas com alguém com quem não se está de acordo, conforme acontece no Parlamento. Schudson considera que o Parlamento é o único lugar e sítio mais adequado para a conversa política, enquanto as restantes pessoas devem ter uma vaga ideia do que se discute para saberem como votar nas próximas eleições. Não reserva um papel importante aos cidadãos, exceto na reclamação de direitos.

Discordo do ponto de vista de Schudson porque, embora a maioria das pessoas falem de política com indivíduos que, no essencial, partilham das mesmas opiniões, isso não significa que as opiniões não sejam relevantes, ou que essas pessoas não participem na ação política. Pelo contrário, em meu entender, conversar sobre política com alguém que possui a mesma opinião é uma espécie de ensaio para discutir com pessoas das quais discordamos.

M.M. - Como vê o papel dos media nessa relação entre a política e o cidadão. Concorda com o ponto de vista de cidadãos, como a reitora da sua Universidade (Annenberg, Pensilvânia), Kathleen H. Jamieson, que se refere a uma espécie de “espiral do cinismo” na relação entre as instituições políticas, os media e os cidadãos?

E.K. - Num extremo está a posição, em parte concordante com a de Michael Schudson, segundo a qual os novos media ocupam o lugar da conversação. Esta posição não é idêntica à de Schudson, no que se refere ao papel do Parlamento, mas coincide com o ponto de vista segundo o qual as pessoas assistem aos talk-shows e que isso funciona num sucedâneo da sua própria conversa. Outra posição é aquela que considera que as pessoas que veem estes debates se tornam mais cínicas, e seria o jornalismo - ele próprio cínico, visto que deixou de ser ideológico, que seria criador desse cinismo. Isso não me parece tão evidente, embora algumas pessoas pensem que sim, por exemplo Baumann, sociólogo inglês, da Universidade de Leeds. Provavelmente, sou demasiado ingénuo (risos)...

M.M. - Não acredito nessa sua ingenuidade... Estabeleceu uma conexão entre a obra de Gabriel Tarde e a teoria da comunicação em duas etapas (two step flow of communication) de Lazarsfeld e Katz, formulada nos anos 50. A sua tese continua válida nos nossos dias, numa sociedade em que o contexto mediático é mais poderoso ainda se mantém o papel de intermediário dos líderes de opinião?

E.K. - Continua válida, a meu ver, nas relações pessoais. Gabriel Tarde dizia que os jornais eram ineficazes se não houvesse conversa. Essa ideia refletiu-se e inspirou a teoria do fluxo de comunicação em duas etapas de Paul Lazarsfeld. Em nosso entender, a “sociedade de massa” não é um bom modelo, porque as pessoas estão inseridas em redes de comunicação interpessoal, onde há determinados membros especializados em certos tipos de conhecimento que são procurados por outros indivíduos para influenciar a sua ação. No modelo clássico de Lazarsfeld, qualquer membro da família pode ter essa função: não é um líder de opinião que está colocado numa torre, mas apenas o marido a sugerir à mulher em quem votar, ou um amigo que aconselha a investir o dinheiro...

M.M. - Esse modelo de redes comunicacionais permanece válido?

E.K. - Estamos a regressar a uma sociedade de redes, principalmente através da Internet. Estamos a ser empurrados para sociedades de redes. Receio é que estas redes já não estejam ligadas a instituições democráticas. Tenho uma teoria selvagem. Não sei se a quer ouvir?...

M.M. - Com certeza, especialmente se é selvagem...

E.K. - Gabriel Tarde abordava dois tipos de influência mediática: uma funcional, ao nível da conversa sobre a imprensa; outra institucional, na medida em que a imprensa permite unificar o país, no período de construção das nações na Europa, ao mesmo tempo que fragiliza o estatuto do Rei. Até ao surgimento da Imprensa, só o rei sabia o que se passava nos vários locais do país, porque tinha espiões ou burocratas ao seu serviço.

Apliquemos esta teoria de Tarde aos media posteriores à imprensa: rádio, televisão e Internet. No plano funcional, a rádio libertou as pessoas iletradas, motivando mais conversas. No plano tecnológico, tal como a imprensa fragilizou o Rei, a rádio enfraquece o Parlamento. Porquê? Porque Roosevelt podia “desintermediar” - isto é, passar por cima do Congresso. Hitler podia mesmo abolir o Reichstag e restabelecer a ligação direta entre a população e o líder, tal como disse McLuhan, que chamou à rádio “voz tribal”.

A imprensa tem um efeito positivo ao nível funcional e enfraquece o poder do rei, o que também é bom. A rádio, usando a mesma lógica, produz o mesmo efeito funcional, mas fragiliza o poder do parlamento, que é uma instituição democrática. Tarde também afirmou que a imprensa não só ameaçava o poder do Rei, como introduzia a regra da maioria, tornando-a possível em termos parlamentares, porque até esse tempo as pessoas tinham uma ideia do seu país como comunidade imaginária, pensavam apenas na “sua região”.

À medida que a nação tomou forma, graças à imprensa, as pessoas perceberam que a regra da maioria podia funcionar. Aplicando esta lógica à rádio, diria que serviu a democracia ao nível funcional, mas também impulsionou o poder de grandes líderes com tendências “imperialistas”, como Richard Nixon. E depois, o que faz a televisão? Por um lado, prossegue o processo de emancipação, mas, ao nível tecnológico, transforma a política por dentro e enfraquece os partidos, que se baseiam em relações com os líderes dos blocos...

M.M. - E como interpreta, nesse quadro, a internet e os novos media?

E.K. - Se a imprensa enfraquece o Rei, se a rádio enfraquece o parlamento, se a televisão enfraquece os partidos políticos, a internet e os novos media enfraquecem a nação. Porquê? A própria televisão está atualmente segmentada, já não funciona enquanto meio de integração nacional. Ao contrário da imprensa, rádio e televisão, que se foram sucedendo como meios de construção do quadro nacional, a internet é tudo menos isso, tal como a televisão também já não é. A Internet é individualização, por um lado, e globalização, por outro. Os novos media fragilizam a nação. É essa a minha teoria selvagem.

M.M. - Fragilizam a nação e tentam criar uma nova esfera pública global? Ou isso é totalmente impossível?

E.K. - Parece-me impossível, mas posso estar enganado. Não pode haver cidadãos sem democracia. Por um lado, há mais participação, se não considerarmos a questão do cinismo. Por outro lado, não é claro que haja alguma coisa em que participar: nem partidos políticos, nem parlamento, nem nação. Mas essa é a ideia selvagem que eu tenho, mas, por favor, afastem-se dela!

M.M. - Está a dizer que a conversação se mantém, mas numa espécie de vazio?

E.K. - Sim, é isso mesmo. Há um livro de Robert Entman intitulado A democracia sem cidadãos… Pelo meu lado, sustento que, com a internet e os novos media, há cidadãos sem democracia. Entman, tal como Schudson, defende que a democracia funciona sem cidadãos, considero que temos cidadãos sem democracia. Mas é apenas uma teoria selvagem. Não se deve levá-la muito a sério...

O lado cerimonial das competições

M.M. - Quando começou a trabalhar com Lazarsfeld no modelo da “comunicação em duas etapas” entraram implicitamente em polémica com a Escola de Frankfurt, em particular com Adorno. O seu trabalho, em conjunto com Daniel Dayan, sobre os acontecimentos mediáticos e a televisão cerimonial, não será ainda um prolongamento desse debate com a Escola de Frankfurt?

E.K. - Não. Neste trabalho, estamos mais próximos da perspetiva da Escola de Frankfurt. Defendemos que estes eventos cerimoniais têm um grande poder, são emocionais, não têm o carácter racional defendido por Tarde e Habermas. São acontecimentos que celebram o sistema. Nas sociedades democráticas, há mais “competições”, dos três tipos de eventos que definimos, o que é um paradoxo, porque estas orientam-se por regras legais que são racionais, e no entanto desenrolam-se de forma cerimonial. Tal como dissemos ontem no seminário, em princípio uma luta deveria dividir as pessoas, e isso é assim porque o herói são as regras. Aceita-se o julgamento do vencedor, e sabe-se que haverá outra oportunidade de ganhar para o ano. Mas é muito delicado. Neste sentido, nós afirmamos que nas sociedades democráticas é possível haver eventos cerimoniais sob a forma de “competições”, e é provavelmente mais característico...

M.M. - …Mas as “competições” não serão os eventos menos cerimoniais?

E.K. - Menos cerimoniais, em que sentido?...

M.M. - São mais argumentativas...

E.K. - Não, se estivermos a torcer pela nossa equipa...Não é muito argumentativo ir para o campo de futebol e começar a lutar. É delicado, tem que haver regras democráticas para que estes eventos funcionem. Assim, em primeiro lugar, nós consideramos que as “competições” são eventos mediáticos. Em segundo lugar, consideramos que a televisão, nas sociedades democráticas, é independente do governo, em termos normativos, e pode recusar um acontecimento mediático. Também pode negar ao Presidente dos Estados Unidos uma transmissão, ou exigir o contraponto da oposição. E consideramos que as “competições” têm esse lado racional que referiu, presente nos debates, convenções, julgamentos. E todos têm uma forma cerimonial.

M.M. - Estava a referir-me às competições políticas, como os teledebates, que são, de todos os “media events” aqueles que, porventura, mais se aproximam daquilo que Habermas designava por “esfera pública”, e as “coroações” aqueles que melhor se integram naquilo que este autor designava por “representação”?

E.K. - Sim, absolutamente. Perguntava-me há pouco acerca do debate Lazarsfeld/ Adorno. Estamos mais próximos, de certa forma. Há uma referência no livro, que V. leu mais recentemente do que eu, à relação com a Escola Crítica. Se aceitarmos, o que é controverso, que o modelo dos “efeitos limitados” foi precedido por um “modelo hipodérmico” ou dos “efeitos poderosos”, isso é muito próximo da Escola de Frankfurt, apenas difere no que diz respeito à persuasão, um efeito a curto prazo, enquanto a Escola de Frankfurt teorizava efeitos a longo prazo.

Quanto às “conquistas” e “coroações”, Durkheim diria que mesmo as sociedades mais racionais precisam de um certo tipo de cerimonial, uma certa expressão de solidariedade, sejam feriados religiosos ou civis. Se morreram soldados numa guerra, e há um dia de memória, trata-se de um cerimonial de união. A Escola de Frankfurt não gostaria disto, porque é de certa forma uma manipulação, mas é, de acordo com os teóricos funcionalistas, crucial para a solidariedade social. Há teorias sobre os feriados em geral que defendem que a sociedade sublinha a divisão do trabalho, e Durkheim insere-se nelas. Isto sobre as “coroações”. Quando um grande líder morre assassinado, como John F. Kennedy, as pessoas tiveram realmente necessidade de se juntar e partilhar a sua dor. A “conquista” é interessante nas sociedades democráticas. A Rússia nunca, pelo menos ao início, arriscou a transmissão em direto de um lançamento espacial, não podiam correr o risco de falhar publicamente, enquanto os Estados Unidos expuseram-se a isso. Se a nossa definição é correta, “coroações” e “competições” são baseadas em regras e tradição, têm uma constituição racional. As “conquistas” são contra as regras, são carismáticas, desafiam as regras, é uma expressão de uma liderança que se impõe, esperando que a opinião pública a acompanhe, o que pode acontecer.

M.M. - Talvez seja por isso que as “conquistas” são tão ambíguas, tal como o conceito de carisma em Max Weber, que foi muito criticado, por questionar a liderança democrática. Alguns académicos pensam que os acontecimentos mediáticos são um conceito e uma teoria importantes, mas consideram que a designação não é adequada, porque no senso comum e na linguagem jornalística o termo está associado a acontecimentos noticiosos, a eventos conflituais. Por exemplo, um historiador francês, Pierre Nora, afirma, num artigo que escreveu em 1974 para a revista francesa Communications, que não há acontecimentos felizes. Ele considera que o acontecimento é disruptivo, como um vulcão.

E.K. - Quando lhes chamámos acontecimentos mediáticos, sabíamos que havia alusões intertextuais, que contrariavam a nossa ideia. Daniel Boorstin escreveu sobre pseudo-acontecimentos. Depois, há também o uso comum do termo, em que a designação nomeia qualquer coisa que envolva a nação inteira, um acidente, um escândalo, um ataque terrorista... Uma versão mais sofisticada deste último uso defende que os acontecimentos mediáticos são aqueles que não chegariam a ter atenção se os media não os exagerassem. Isto é uma questão de agendamento (agenda setting). Veja-se o exemplo do caso Monica Lewinsky. É muito interessante ver que a opinião pública tenta recusar o acontecimento como algo que mereça tanta atenção dos media por um período tão prolongado. Os críticos chamaram-lhe acontecimento mediático, não no sentido que nós lhe atribuímos, mas no sentido do uso comum do termo ou da sua versão sofisticada que considera que os media estão a exceder-se. E a opinião pública, efetivamente, disse com clareza aos media que este tipo de mexericos não era o trabalho deles. Isto foi um exemplo muito interessante em que o próprio público disse aos media que estavam a inflacionar um acontecimento para além do seu valor. Penso que no uso comum do termo, este é o criticismo mais sofisticado da expressão, mas é diferente do sentido que Dayan e eu lhe damos. Tentámos reservar o uso deste termo para acontecimentos celebrados pelos media, mas que já tinham um sentido social, não são invenções ou inflações, mas qualquer coisa que merece o estatuto de ser transmitido para a sociedade civil ou para a nação, de modo a proporcionar uma experiência partilhada, num sentido cerimonial. É possível também ter experiências partilhadas num ataque terrorista, ou numa guerra ou num grande conflito, mas nenhuma destas experiências tem um sentido cerimonial.

M.M. - “Acontecimento cerimonial” seria mais adequado?

E.K. - Talvez. Na tradução francesa aproxima-se disso: televisão cerimonial. Temos alguma ambivalência quanto a isso. Mas há muitos jornalistas que querem promover o livro que já está atualmente traduzido em sete idiomas.

M.M. - Quando na vossa investigação se referem a ritual e a acontecimentos partilhados, Paddy Scannel considera, na crítica ao vosso livro, que estão a aplicar nomes velhos a fenómenos novos. Quando Dayan e Katz se referem a ritual, trata-se apenas de uma metáfora? Há realmente uma dimensão ritual nestas cerimónias?

E.K. - Há um aspeto ritual em toda a gama destes acontecimentos. Há expressões rituais: as pessoas juntam-se para assistir à cerimónia, servem bebidas para marcar a ocasião, brindam, choram, telefonam a outras pessoas que também estão a assistir, expressam algum compromisso, preocupação ou mesmo reavaliação dos valores fundamentais da sociedade. Não sei se querem chamarlhe ritual ou não, mas o que constitui a ritualidade são os gestos simbólicos em comunhão com um valor central da sociedade. No Natal, há um ritual da Igreja, da família, na tradição judaica há um jantar com um aspeto litúrgico, etc. Consideramos o casamento real como um acontecimento cerimonial. E aqui deparamo-nos com um dilema teórico: como pode haver um ritual único? Ritual presume repetição. Respondemos a isso, em relação ao casamento real, alegando que as pessoas estão enquadradas no simbolismo. Dou-lhe um bom exemplo: tive uma aluna, natural da União Indiana, que estudou a transmissão televisiva do funeral de Indira Ghandi. Nessa investigação, relatava que, antes do início do programa, os empregados foram convidados a assistir no salão principal da casa, lavaram as mãos antes de o programa começar, vestiram-se especialmente para a ocasião, etc. Estes são gestos rituais. Tal como os que têm lugar num jogo de futebol: as pessoas fazem claque, discutem, dizem piadas... em frente à televisão. A televisão torna-se um meio interativo, pelo menos ao nível simbólico, em que as pessoas atuam. A dor sentida no funeral de Kennedy é outro exemplo, embora seja uma “coroação”, o tipo de acontecimentos em que a aplicação do conceito de ritual é mais simples. Mas mesmo em acontecimentos mais racionais, há uma reiteração do compromisso com as regras, as pessoas estão cientes disto, têm de aprender os rituais da democracia, é uma socialização dos rituais democráticos...

M.M. - Concorda que a “coroação” é a forma mais ligada ao ritual. Ao analisar o caso Aldo Moro, a socióloga Wagner Erika Robin Paciffici afirma que, nas sociedades complexas, é mais correto falar de teatro do que de ritual. De qualquer maneira, há sempre uma ligação entre estes dois termos... O que pensa disso?

E.K. - Tem de haver uma adaptação do conceito de ritual. Talvez Scannel tenha alguma razão, mas não a suficiente para invalidar a tentativa de estabelecer um paralelo. A maior crítica que faz ao nosso trabalho tem a ver com a falta de detalhes dos casos que apresentámos.

A “coroação” da internet por Bill Clinton

M.M. - Gostava que me falasse um pouco acerca de acontecimentos cerimoniais e mediáticos mais recentes, isto é, posteriores à publicação do vosso livro em 1992...

E.K. - Vamos recordar os eventos mais recentes. Aqueles que me interessam mais são os do Papa em Israel, o funeral de Diana, a transmissão de poderes em Hong Kong, o julgamento de O. J. Simpson. O caso Monica Lewinsky não tem dimensão cerimonial, exceto quanto aos debates no Congresso para decidir sobre a eventual destituição de Clinton.

M.M. - Gostaria de o ouvir, em especial sobre o funeral de Diana, visto que também estudaram em profundidade o casamento.

E.K. - O funeral de Diana pode ser considerado uma “conquista” e não uma “coroação”. A sua morte forçou a família real a abandonar a posição de ostracismo. O amante egípcio desapareceu. A Rainha veio assistir ao funeral de Diana, que teve lugar numa grande catedral, com a bandeira a meia haste. O irmão de Lady Di desafiou abertamente a família real, falando em nome dela. Tudo isso constitui uma “conquista”, contra a família real em nome do feminismo. Diana tornou-se uma heroína feminista. Assim, o acontecimento teve mais do que um significado de “coroação”. As mulheres estavam encantadas com Diana. Os homens nem tanto. Foi um grande acontecimento. Com a retrospetiva do casamento real, o funeral ganhou ainda mais significado. As pessoas que estão num primeiro acontecimento tendem a estar no último.

M.M. - Também afirmou, no seminário de mestrado da Universidade Nova de Lisboa, que podia ser feita outra interpretação, a de que a Família Real tinha integrado Diana no passado da família.

E.K. - Mas ela forçou isso. A Rainha não queria vir a Londres...

M.M. - Qual a sua análise acerca do caso da transmissão de poderes do Reino Unido para a República Popular da China em Hong Kong. Isso, além do mais, é muito interessante para nós, portugueses, visto que tivemos uma cerimónia semelhante em Macau...

E.K. - O acontecimento de Hong Kong relaciona-se com a questão da globalização. Existem várias leituras quanto à classificação do tipo de evento. Um grupo de investigadores chineses afirmou que foi um acontecimento diferente consoante as diversas perspetivas. O governo de Pequim tentou apresentá-lo como uma “coroação”: o regresso do filho perdido. O Reino Unido olhou-o de modo diferente: a perda de um filho que criaram. Taiwan leu-o como uma ameaça, os Estados Unidos como uma derrota do capitalismo... É muito interessante como acontecimento global, porque, numa primeira impressão, parece apenas uma “coroação”: estes entram, aqueles saem... Mas foi muito mais profundo do que isso.

No caso da visita de João Paulo II a Israel, o Papa enquadrou-a como uma peregrinação, como costuma fazer. Os judeus esperavam que fizesse referência às culpas da Igreja Católica na II Guerra Mundial e pedisse perdão. Os palestinianos esperavam que ele reconhecesse o Estado Palestiniano. Os israelitas esperavam que, tal como Sadat, o Vaticano reconhecesse a legitimidade de Israel, não só como uma compensação pela aniquilação de milhões de judeus no Holocausto, mas enquanto reafirmação da promessa de Deus, desde o tempo de Moisés, de devolver a Terra Santa aos judeus.

O Papa moveu-se muito bem no meio de tantas expetativas conflituais, desempenhou vários papéis diplomáticos, em simultâneo com a cerimónia de “coroação”. Mas terá sido um acontecimento mediático? A audiência local praticamente não estava lá. Os judeus não se mostraram muito interessados no acontecimento, à exceção de alguns intelectuais e da imprensa escrita, muito entusiasmada.

M.M. - E qual é a sua perspetiva sobre o futuro dos acontecimentos mediáticos?

E.K. - Agora que há tantos canais de televisão, tantas transmissões em direto, uma tal profusão de câmaras, a ideia de interrupção da “grelha televisiva” para transmitir um acontecimento mediático em direto não parece muito viável. E há que considerar a globalização. A quem “pertencem” os acontecimentos? Serão nacionais? Dayan e eu teorizávamos ao nível nacional, mas isso pode estar a mudar, o que levanta uma nova questão: haverá uma sociedade civil global?

M.M. - Não será possível que os acontecimentos mediáticos passem a ser um momento de unificação de várias comunidades?

E.K. Ou podem ser, ocasionalmente, acontecimentos que recordam a existên-

cia de nações, uma vez que tudo o resto está tão globalizado. Se o presidente morre, há um momento de união nacional.

M.M. - E um meio que interessa as audiências mais globalmente do que ao nível nacional, pode também ter perspetivas diferentes sobre Hong Kong ou os Jogos Olímpicos?

E.K. - Claro. No caso dos Jogos Olímpicos, isso acontece porque cada país está representado lá. Tento distinguir estas “competições” representativas e outras em que falta alguém, como Taiwan reclamando a sua separação.

M.M. - Também há acontecimentos mediáticos na Internet? Estou a lembrar-me de uma entrevista que Clinton, quando ainda era Presidente dos Estados Unidos, concedeu em direto na Internet. As perguntas eram colocadas através do correio eletrónico, o que provocou um enorme afluxo de mensagens...

E.K. - Não me parece que seja um “acontecimento mediático”, no sentido da nossa definição. É o caso de uma entrevista em que se celebra um meio de comunicação. É a “coroação” da Internet pelo Presidente e não a Internet a “coroar” Clinton...

Agradecimentos

O autor do texto e a revista Media & Jornalismo agradecem a Ana Mesquita e à MinervaCoimbra por autorizarem a republicação da entrevista de Mário Mesquita a Elihu Katz neste número especial da Media & Jornalismo. A entrevista foi originalmente publicada em Televisão e públicos no funeral de Diana, de Daniel Dayan e Elihu Katz, numa antologia de textos organizada por Mário Mesquita e publicada por aquela editora em 2003.

Referências

Dayan, D., e Katz, E. (1999). A história em directo - Os acontecimentos mediáticos na televisão. MinervaCoimbra. [ Links ]

Dayan, D., e Katz, E. (2003). Televisão e públicos no funeral de Diana. Cadernos Minerva. MinervaCoimbra. [ Links ]

Entman, R. M. (1989). Democracy without citizens: Media and the decay of american politics. Oxford University Press. [ Links ]

Mesquita, M. (2004). O quarto equívoco - O poder dos media na sociedade contemporânea (2ª ed.). MinervaCoimbra. [ Links ]

Ponte, C. (2021). Mário Mesquita: exigência, inquietação e questionamento. In C.G. Riley, C. Henriques, P. M. Gomes e T. Cardoso e Cunha (Eds.), A liberdade por princípio - Estudos e testemunhos em homenagem a Mário Mesquita (pp. 35 -47). Tinta-da-china. [ Links ]

Nota biográfica

1 O artigo mereceu um comentário detalhado de Elihu Katz e um comentário posterior de Mário Mesquita, ambos publicados no “Dossier Media Events” na obra de homenagem A liber- dade por princípio (2021, pp. 683-691).

2 Uma entrevista com Elihu Katz que percorre o pensamento do autor sobre várias temáticas da análise dos media e do jornalismo e da sua obra e que aqui reproduzimos; uma entrevista com Daniel Dayan dedicada ao esclarecimento de aspetos associados à utilização do conceito de acontecimentos mediáticos (ou telecerimónias); e, por fim, um artigo em que Daniel Dayan analisa o funeral de Diana, Princesa de Gales, pela lente da teoria dos acontecimentos mediáticos (2003).

3 Entrevista de Mário Mesquita a Elihu Katz (2003, pp. 9-20).

Recebido: 30 de Abril de 2022; Aceito: 29 de Agosto de 2022

Telmo Gonçalves é Encarregado de Proteção de Dados e Investigador de Media e Jornalismo da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Foi Professor Adjunto do Departamento de Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social (ESCS) do Instituto Politécnico de Lisboa e investigador do CIMJ - Centro de Investigação Media e Jornalismo. Ciência ID: E610-B618-663C Morada: Avenida 24 de Julho, n.º 58, 1200-869 Lisboa, Portugal

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