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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.22 no.41 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.14195/2183-5462_41_10 

Varia

Para além das erratas: implicações democráticas da crítica do ombudsman de imprensa nos jornais Correio da Paraíba, Folha de S. Paulo e O Povo nos anos 1995 e 2019

Beyond correction: democratic implications of press ombudsman’s criticism from newspapers Correio da Paraíba, Folha de S. Paulo and O Povo in 1995 and 2019

Juliana de Amorim Rosas1 
http://orcid.org/0000-0002-2868-4227

1 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Observatório da Ética Jornalística (objethos), Brasil. rosasjuliana@yahoo.com.br


Resumo

Este artigo apresenta uma análise sobre a crítica jornalística produzida pelo ombudsman de imprensa e sua relação com a democracia. Foi investigada a crítica jornalística brasileira em colunas de ombudsman em dois períodos distintos - 1995 e 2019, em jornais considerados referenciais em escala regional e nacional: Correio da Paraíba, Folha de S. Paulo e O Povo. Como método de investigação, foi utilizada a Análise de Conteúdo delineada por Laurence Bardin (2011), auxiliada pelo software Iramuteq. A base teórica incluiu a Teoria da Crítica de Imprensa (Wyatt, 2007) e os modelos de democracia e suas implicações normativas para o jornalismo traçados por Jesper Strömbäck (2005). Entre outras características apresentadas, conclui-se que, preponderantemente, veículos noticiosos e ombudsmans possuem visões distintas de modelos democráticos no jornalismo e poucas vezes a crítica alcança o ideal deliberativo proposto pela teoria utilizada.

Palavras-chave: jornalismo; ombudsman; crítica de imprensa; democracia

Abstract

This article presents an analysis of the journalistic criticism produced by the press ombudsman and its relationship with democracy. Brazilian journalistic criticism was investigated in ombudsmen’s articles in two different periods - 1995 and 2019, in newspapers considered referential on a local and national scale: Correio da Paraíba, Folha de S. Paulo and O Povo. Content Analysis (Bardin, 2011), aided by the Iramuteq software, makes up the methodology. The theoretical foundation includes the Theory of Press Criticism (Wyatt, 2007) and the models of democracy and their normative implications for journalism outlined by Jesper Strömbäck (2005). Among other characteristics presented, it is concluded that, predominantly, news vehicles and ombudsmen have a different view of democratic models in journalism and the criticism rarely reaches the deliberative ideal proposed by Wyatt (2007).

Keywords: journalism; ombudsman; press criticism; democracy

Introdução

Investigações brasileiras envolvendo crítica de imprensa tendem a apresentar um ponto de vista exterior sobre o produto analisado. Expõe-se a visão do autor, majoritariamente acadêmico, sobre produtos midiáticos. O presente artigo é um recorte de uma tese de doutoramento (Rosas, 2021), portanto, também acadêmica; porém, o produto analisado é a própria crítica jornalística. Não a crítica acadêmica ou a mais popularmente conhecida, em que articulistas das mais variadas especialidades analisam acontecimentos do dia ou temas pertinentes de sua escolha, mas a crítica ao jornalismo por um olhar ao mesmo tempo interno e externo: o do ombudsman1. O ombudsman de imprensa no Brasil teve experiências curtas e diversas, como mostram, entre outros autores, Javorski e Gadini (2018). As práticas aqui analisadas são as mais longevas do país, embora uma delas não mais exista há anos. Folha de S. Paulo, Correio da Paraíba e O Povo, jornais dos estados brasileiros de São Paulo, Paraíba e Ceará, foram os três primeiros periódicos a adotar o ombudsman de imprensa no país, respectivamente, nos anos de 1989, 1991 e 1993. No início de 1996, o Correio encerra de vez a participação do ombudsman em suas páginas. Atualmente, Folha e O Povo são os únicos jornais que incorporam o ombudsman de imprensa no Brasil. O ano de 1995 é o período coincidente da presença do ombudsman nos três jornais. A década de 1990 foi quando mais surgiram experiências de ouvidorias de imprensa no país, sendo 1995 quando se contabiliza o maior número destas, mesmo acontecendo em apenas 11 veículos. A época possui características de contingências políticas e democráticas para tal. A escolha de análise e cotejamento com o ano de 2019 se dá por motivos acadêmicos e históricos, incluindo a celebração de 30 anos do surgimento do ombudsman no Brasil.

Folha de S. Paulo é o jornal de maior circulação nacional e é publicado em versões impressa e eletrônica. O mesmo ocorre com O Povo, jornal de abrangência regional e o maior do estado do Ceará. O Correio da Paraíba deixou de circular em versão impressa em 2020, transformando-se em portal eletrônico. Foi um importante veículo regional e, durante as últimas três décadas de sua existência, o impresso de maior vendagem do seu estado. De forma geral, os três jornais estavam inseridos em um mercado de pluralismo interno. Eram veículos importantes em seu estado (e também nacionalmente, no caso da Folha), líderes em audiência, com perfil político liberal e conservador.

A pesquisa original da qual este artigo é recorte possui a Teoria da Crítica de Imprensa, da pesquisadora americana Wendy Wyatt (2007), como sua principal base teórica. Em sua teoria, a autora sustenta que o télos da imprensa é uma esfera pública comunicativa e que o propósito da imprensa deve ser contribuir para o funcionamento de uma democracia deliberativa. Uma vez que a Teoria da Crítica de Imprensa está baseada na teoria deliberativa habermasiana e que no mundo empírico são encontrados modelos distintos de democracia, a pesquisa é auxiliada pelos quatro modelos de democracia e suas implicações normativas para o jornalismo (Strömbäck, 2005). Este último aspecto é o que será destacado neste artigo.

Tanto Wyatt (2007) quanto Strömbäck (2005), ao discorrerem sobre jornalismo ou imprensa, estão considerando notícias jornalísticas e não suas plataformas. O corpus do trabalho é composto de colunas publicadas em jornais impressos, na década de 1990; e de forma impressa e eletrônica no ano de 2019. O relatório 2021 do Instituto Reuters (Newman et al., 2021) revela que a inserção da internet é de 71% entre a população brasileira. O impresso como fonte de notícias caiu de 50% para 12% entre 2013 e 2021, enquanto o uso de redes sociais para se informar cresceu de 47% para 63% no mesmo período. Nas colunas publicadas na última década, é notável a influência de novas mídias na cobertura e crítica jornalísticas.

A metodologia utilizada foi a Análise de Conteúdo, com auxílio do Iramuteq, software livre de origem francesa bastante utilizado para análises de conteúdo qualitativas. Neste artigo, são apresentados os principais resultados da pesquisa e dados comparativos gerados nas análises Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e Nuvem de Palavras, provenientes do software2. O corpus da pesquisa foi composto de 216 colunas de ombudsman publicadas nos jornais brasileiros supracitados, 126 colunas do ano de 1995 e 90 textos de 2019.

O artigo objetiva mostrar uma das principais descobertas de uma pesquisa mais ampla. O presente texto apresenta qual modelo de democracia (Strömbäck, 2005) prevalece na crítica jornalística do ombudsman considerando as implicações normativas para o jornalismo e tendo como base a Teoria da Crítica de Imprensa, que equivale crítica e deliberação (Wyatt, 2007, p. 97)

1. Jornalismo e democracia

É longo o histórico de imbricação entre jornalismo e democracia, como bem explana Wyatt (2007), ainda que esta justaposição tenha apresentado distintas visões históricas, geográficas e discordâncias de profissionais e pesquisadores ao longo do tempo. Há algumas décadas, a mídia desempenha um papel crucial na esfera pública enquanto arena de debate e persuasão, como ferramenta de informação e também de propaganda.

Hanitzsch e Vos (2016) relataram algumas atribuições assumidas por jornalistas em diferentes localidades, incluindo em países não democráticos. Há neste e em outros estudos, diversos papéis assumidos empiricamente pelo jornalismo: o adversário, o watchdog, de entretenimento, ideológico ou partidário, entre outros. Contudo, caso este esteja inserido em uma sociedade democrática e assuma o papel ou, pelo menos, o desejo de servir à democracia, deve ser signatário de algumas regras e princípios, assim como acontece com outras instituições. Habermas (2011, p. 27) afirma que, na esfera pública, os indivíduos possuem uma relação argumentativa e crítica em relação ao Estado. Supervisionam e procuram persuadir o poder, mas não possuem o domínio do Estado. O efeito comunicativo do discurso não substitui o poder administrativo, podem apenas influenciá-lo (Habermas, 2011, p. 80).

Michael Schudson (2003) não vê uma associação tão forte entre jornalismo e democracia. Mais especificamente, não observa uma relação de consequência ou antecedência: há notícia onde não há democracia e o consumo destas não necessariamente se transforma em mais cidadania ou ações democráticas. O autor não nega a importância da imprensa para uma democracia. “Mas a imprensa por si só não é democracia e não cria democracia. Ela coexistiu década após década com regimes antidemocráticos, autoritários e repressivos”3 (Schudson, 2003, p. 198).

Discorda de James Carey (1974) quando este afirma que jornalismo e democracia se equivalem. Contudo, acrescenta: “As notícias têm pouco a ver com democracia política, a menos que o Estado inclua ou tolere um grau de autogoverno e críticas ao poder estatal” (Schudson, 2003, p. 197). Ou seja, se jornalismo e democracia podem coexistir, uma democracia que não tolera críticas será falha ou não poderá ser assim chamada. Wolfgang et al. (2018, p. 2) comentam que, embora na equivalência de Carey (1974) o sentimento tenha mérito, a declaração não deve ser interpretada literalmente. Jornalismo e democracia estão necessariamente relacionados, mas é importante desmistificar o vínculo e obter um melhor entendimento de como esta associação funciona.

Notícias e instituições de notícias existem mesmo onde não há democracia. A notificação pública sobre política não requer ou mesmo implica inclusão política geral. Informações e comentários organizados e regulares sobre assuntos contemporâneos são fornecidos ao povo da China ou de Cuba, da mesma forma que o foram para o povo da União Soviética, da Itália fascista e da Alemanha nazista. Notícias nessas configurações podem ter várias funções. Podem recrutar pessoas para fins nacionais, reunir apoio para o governo ou fornecer um texto comum para a desconstrução subversiva e a “leitura nas entrelinhas” que caracterizaram as atitudes dos cidadãos em relação às notícias na Europa Oriental comunista. As notícias são democráticas em todos os lugares apenas no sentido de serem informações publicadas não exclusivas e potencialmente disponíveis para qualquer pessoa que as deseje. Não promovem necessariamente uma cidadania ativa e empoderada. (Schudson, 2003, p. 197)

Schudson (2003, p. 212) recorre a Jürgen Habermas para explanar sua visão de onde o jornalismo se posiciona: “Habermas enfatizou como o jornalismo foi vital para a abertura de uma esfera pública onde pessoas privadas pudessem discutir e debater livremente as questões públicas da época. Este é o lugar das notícias na promoção da política democrática”. Em outro trabalho, o autor lembra que o jornalismo que hoje consideramos tradicional tem apenas um século (Schudson, 2013, p. 163) e que ações como apuração de notícias, relacionamento com fontes, políticos e política passaram por mudanças consideráveis ao longo do tempo. O jornalismo foi de amador a profissional, de mero coletor de informações a um grupo imerso em questões políticas.

Waisbord (2012) afirmou que é impossível dar uma resposta direta à pergunta “quanta democracia o jornalismo precisa?”, pois nem jornalismo nem democracia são conceitos inequívocos. “Ambas são ideias complexas, intelectualmente ricas e contestadas” (Waisbord, 2012, p. 1). O autor pontuou que, por séculos, filósofos e cientistas políticos discutiram os múltiplos significados da democracia, tendo esta variados qualificadores. Sendo assim, qualquer tentativa de esclarecer a relação entre jornalismo e democracia precisa explicitar o modelo de democracia envolvido e o que pode parecer um bom jornalismo para a democracia representativa é equivocado para outros modelos. Questão que Strömbäck (2005) também aborda.

Ao propor questionamento semelhante ao de Waisbord (2012), Beate Josephi aponta que muito depende da definição de jornalismo. A resposta é inevitavelmente afirmativa se este é visto em termos de sistemas de mídia e está teórica e inextricavelmente ligado à forma política da democracia. Porém, ao tomar como base a prática jornalística, “torna-se evidente que a prática também foi tradicionalmente definida em sua relação com a forma política da democracia, e que isto, por sua vez, moldou os valores que definem a prática do jornalismo” (Josephi, 2012, p. 481).

Normativamente, esta discussão trata de que jornalismo é esperado em distintos modelos de democracia. Uma vez que esta é uma reflexão complexa e abrangente, tomou-se na pesquisa o que é relevante em relação ao ombudsman e à crítica de imprensa. Jesper Strömbäck (2005, p. 331) lembra que a mídia e o jornalismo são frequentemente criticados por seu conteúdo e efeitos negativos em certos aspectos da democracia. Porém, em geral, os críticos não são claros sobre qual padrão democrático estão aplicando ao examinar a mídia, pois uma coisa é criticar o cinismo político, enquadramentos estratégicos, etc., outra seria especificar por que e como isso poderia prejudicar a democracia.

Strömbäck (2005, p. 332) explica que jornalismo e democracia operam em termos de um contrato social. O jornalismo necessita da democracia na forma de liberdade de expressão e independência; a democracia necessitaria do jornalismo para o fluxo de informação, discussão pública e para a função de vigilante (watchdog) independente do Estado. Embora diversas acepções dessas imbricações sejam aceitas, algumas definições tornam-se controversas. Ainda que haja concordância em afirmar que o propósito da imprensa é prover informação ao povo de modo que os seus membros tomem suas próprias decisões, o consenso desaparece quando se tenta definir que tipo de informação seria essa (Strömbäck, p. 333).

Algumas consonâncias sobre a democracia dizem respeito a eleições livres e frequentes, liberdade de expressão, cidadania inclusiva, regimento por leis, entre outras.

Além disso, há distintas visões normativas do que seriam boas democracias. Os mais importantes e discutidos modelos, segundo o autor, são: democracia competitiva, democracia participativa e democracia deliberativa. A estes, Strömbäck acrescenta procedural democracy, traduzida como democracia processual e, mais frequentemente, procedimental ou procedimentalista, relativo a procedimentos, ainda que estes vocábulos sejam mais usualmente utilizados na linguagem jurídica.

O que esses modelos têm em comum é que tratam dos procedimentos e processos de tomada de decisão política, e não de ações políticas diferentes. Isso faz todo o sentido, já que a democracia é, em última análise, uma ideologia relativa à tomada de decisão, enquanto as ideologias políticas tratam de políticas distintas dentro (ou fora) da estrutura democrática. Além disso, com base na teorização anterior sobre esses modelos de democracia, sabemos que tais modelos carregam expectativas normativas díspares para cidadãos e políticos. Portanto, é razoável esperar que eles também atribuam obrigações normativas diferentes à mídia e ao jornalismo. (Strömbäck, 2005, p. 333)

De acordo com Strömbäck (2005, p. 334-336), a democracia procedimentalista não impõe exigências normativas aos cidadãos para que votem, consumam notícias, participem da vida pública ou estejam bem informados. A democracia competitiva implica que a elite aja e cidadãos reajam, não se espera que tenham conhecimentos básicos sobre como funcionam a sociedade e o sistema político, nem há expectativa que participem da vida ou esfera públicas. Já no modelo de democracia participativa, espera-se que as pessoas se engajem na vida civil e pública. Na democracia deliberativa, ninguém tem o direito de dominar ou coagir participantes e a paixão deve ser governada pela racionalidade (Strömbäck, 2005, p. 337).

O que é importante no modelo deliberativo de democracia é que (1) as decisões sejam tomadas por discussões tanto na esfera pública como em ambientes menores; (2) que as discussões estejam comprometidas com os valores de racionalidade, imparcialidade, honestidade intelectual e igualdade entre os participantes; e (3) que as discussões deliberativas possam ser vistas tanto como fins em si mesmas quanto como meios de produzir acordo ou pelo menos uma melhor compreensão dos valores subjacentes a um conflito. (Strömbäck, 2005, p. 336)

Na realidade, nenhuma democracia existente pode ser caracterizada como um modelo puro, como bem assinala o pesquisador. O que indica que tipo de democracia um país tem ou almeja não depende apenas dos seus cidadãos e representantes. Pensar para que tipo de democracia contribuem a mídia e o jornalismo é de maior ou igual importância. E cada um dos modelos apresentados tem implicâncias normativas distintas para o jornalismo.

De forma resumida, no modelo procedimentalista é importante que as regras e procedimentos da democracia sejam respeitadas nas palavras e nas ações. Cabe aos proprietários de mídia decidirem como utilizar a liberdade que lhes é concedida e espera-se que as pessoas distingam a verdade em meio ao ruído de notícias. No modelo de democracia competitiva, é esperado mais da mídia, uma vez que o povo deve escolher entre as elites concorrentes. A mídia e o jornalismo devem estabelecer a agenda e não deixar que os políticos o façam. O papel dos cidadãos é ativo no modelo de democracia participativa e as implicações normativas disto é que as notícias devem prover informações sobre problemas sociais relevantes e sobre como funcionam sociedade e processo decisório. A agenda noticiosa deve ser estabelecida pelo povo (Strömbäck, 2005, pp. 338-340).

O modelo de democracia deliberativa pode ser visto como uma extensão do modelo participativo. Em ambos, pressupõe-se que cidadãos tenham conhecimentos básicos sobre questões políticas e sociais e, consequentemente, o jornalismo deve prover tais informações qualitativamente. O modelo põe ênfase nas discussões políticas e na importância de serem deliberativas. Sendo principalmente através da mídia e do jornalismo que os cidadãos acessam as discussões políticas, o modelo deliberativo da democracia impõe demandas exigentes aos mesmos.

Em outras palavras: a democracia nunca pode se tornar mais deliberativa sem a participação ativa da mídia e do jornalismo. Portanto, o papel dos jornalistas como “participantes justos” é da maior importância para o modelo deliberativo de democracia. Além de fornecer informações factuais sobre problemas sociais, as palavras e ações de representantes do governo e como a sociedade e os processos políticos funcionam, o jornalismo deve promover ativamente discussões políticas caracterizadas por imparcialidade, racionalidade, honestidade intelectual e igualdade entre os participantes. Em vez de permitir que aqueles com mais recursos e as críticas mais severas obtenham a maior atenção, [...] o jornalismo deve proporcionar uma arena para todos com argumentos fortes e direcionar sua atenção para aqueles que podem contribuir para aprofundar a discussão. (Strömbäck, 2005, p. 340-341)

Com relação ao jornalismo noticioso especificamente, Strömbäck (2005, p. 341) resume a implicância normativa de cada um dos modelos de democracia. Demandase da democracia procedimental respeitar os procedimentos democráticos, agir como cão de guarda ou como alarme, expondo ações erradas. Na democracia competitiva, o foco é nos atores políticos e o jornalismo deveria agir como vigilante ou alarme e concentrar-se nos agentes públicos e nas plataformas dos candidatos e partidos políticos. Espera-se normativamente que na democracia participativa cidadãos definam a agenda e que mobilizem o interesse, engajamento e participação dos cidadãos na vida pública. O foco é na resolução de problemas. Na democracia deliberativa, o jornalismo deve agir para tornar as discussões inclusivas, mobilizar o interesse, o engajamento e a participação dos cidadãos em discussões públicas. Deve promover discussões públicas caracterizadas por racionalidade, imparcialidade, honestidade intelectual e igualdade.

A principal conclusão é que somente especificando a que tipo de democracia estamos nos referindo quando usamos o termo e especificando suas implicações normativas para a mídia e o jornalismo podemos entender plenamente como a mídia e o jornalismo afetam a democracia. Consequentemente, segue-se que simplesmente não é válido afirmar que a mídia e o jornalismo, por si, minem ou contribuam para a democracia. (Strömbäck, 2005, p. 343) Josephi (2012) lembra que é importante atentar para, além dos sistemas político e de mídia, como se inserem os profissionais jornalistas enquanto grupo e indivíduos neste entremeio, citando distintas pesquisas que chegaram a conclusões semelhantes sobre a visão dos jornalistas a respeito de sua atividade, independentemente de qual sistema político estavam inseridos. Nesta mesma direção, Wolfgang et al. (2018, p. 16) concluem que os jornalistas provavelmente responderão a esta questão com base em expectativas normativas, sendo improvável que demonstrem menosprezar qualquer forma de democracia, mesmo que a desvalorizem na prática. Percebe-se que o jornalismo e a crítica podem ter visões distintas de democracia e do papel do jornalismo dentro desta. Ou, mais especificamente, o ombudsman pode discordar da cobertura do jornal onde trabalha por esperar que este cumpra uma função democrática distinta da que o veículo se propõe.

2. O jornalismo entre a norma e a prática

Mesmo reconhecendo-se a importância do ombudsman, nota-se sua diminuição ao longo dos anos e as principais razões apontadas são corte de gastos, de pessoal e crise financeira. Decisões jornalísticas ainda são tomadas majoritariamente levando-se em conta questões econômicas. Daí a necessidade de além da norma considerar o mundo empírico e seus entraves. “Notícias nunca são produzidas no vácuo. São produzidas por jornalistas dentro de organizações de mídia com relações e interações complexas com diferentes conjuntos de atores, tanto internos quanto externos”, reforçam Jesper Strömbäck e Michael Karlsson (2011, p. 644).

Embora uma parte importante da base teórica aqui apresentada seja uma teoria normativa da crítica de imprensa, não se pode desconsiderar que se encontram no mundo empírico ações que vão de encontro ao normativo, relacionadas tanto ao jornalismo como à democracia. Como afirmou Josephi (2005, p. 575), poucas disciplinas ficaram tão presas na tensão entre regimental e empírico como o jornalismo. Segundo a autora (2012), tem se demonstrado nos últimos anos que as democracias podem oferecer enquadramento legal para a liberdade de expressão, mas não oferecem proteção para serviços jornalísticos que têm de ser financiados em grande parte por entidades privadas e que a dependência dos proprietários dos meios de comunicação não é menor em muitas nações democráticas do que em países não democráticos.

A pesquisadora afirma que, assim como foi apontado por outros estudiosos, as origens da democracia e do jornalismo estão historicamente conectadas, mas em seus momentos embrionários não se assemelhavam ao tipo de jornalismo ou à democracia que viemos a esperar hoje. “No entanto, o caminho que o jornalismo e a democracia tomaram, e o papel que o jornalismo desempenhou nesse desenvolvimento, moldaram o ethos jornalístico”.

[...] o ethos do jornalismo tornou-se cada vez mais ligado à forma política da democracia. Era um casamento que convinha tanto aos estudiosos quanto aos jornalistas. Para os profissionais, serviu para definir a sua profissão, dando ao seu papel uma dimensão política que legitimou a sua reivindicação de liberdade da supervisão do Estado. Para os estudiosos, ligar o jornalismo à democracia serviu como um atalho para construir um conjunto de normas contra as quais o jornalismo podia ser medido. (Josephi, 2012, p. 475)

Esta concepção ajudou a construir teorias subsequentes à construção do paradigma de que o jornalismo deve servir à democracia, uma herança do chamado pensamento europeu ocidental. Josephi (2012) vai inclusive apontar, em suas palavras, a arrogância de James Carey (1974), quando este afirma que não há jornalismo sem democracia. Era uma época em que os Estados Unidos acreditavam ser a única superpotência que restava para guiar o mundo (Josephi, 2012), o que também fortaleceu a crença de que a visão americana do jornalismo era a que deveria ser respeitada. Uma soberba que ainda pode ser vista atualmente em diferentes campos e lembrada também por Conboy (2018).

O jornalismo é global, mas muitas vezes percebe a si mesmo ou como um modelo anglo-americano ou pelo menos com um template anglo-americano. Uma consequência disto é o reconhecimento errado de que o jornalismo está intrinsecamente ligado à democracia. Ele apresentou no passado e certamente demonstra no presente uma aptidão para lubrificar muitas outras formas de governança, não só a democrática. (Conboy, 2018, p. 19)

Nesta linha, Zelizer (2017) afirma que o chamado Ocidente, em especial os Estados Unidos, desempenhou um papel central do vínculo entre jornalismo e democracia como um dado naturalizado. A pretensão de que o jornalismo alimentaria a política democrática foi amplamente difundida, mas a afirmação oposta, de que a democracia alimentaria o jornalismo, não foi recebida da mesma forma. Vai ao encontro de Schudson (2003) quando declara que

embora se possa argumentar que o jornalismo foi historicamente necessário para a democracia, a afirmação oposta não se mantém na mesma medida. Na verdade, circunstâncias mostram que a democracia não foi necessária para o jornalismo, e a ideia de que a democracia é a tábua de salvação do jornalismo não foi apoiada na prática. Isso não nega o fato de que ser jornalista em sociedades democráticas pode ser menos perigoso do que ser jornalista em regimes não democráticos. Mas sugere que o jornalismo de alguma forma floresceu em lugares onde a democracia não prosperou. (Zelizer, 2017)

Hanitzsch e Vos (2016) discorrem sobre diferentes papéis no jornalismo levando em conta contextos não democráticos e não ocidentais, indo ao encontro do pensamento de Josephi (2012), afirmando que a pesquisa dita ocidental sobre jornalismo reproduziu a hierarquia de valores com ideais liberais e democráticos no topo, privilegiando um mundo jornalístico mais restrito do que aquele que reside na prática. E lembram que “o jornalismo sempre se estendeu para além do espaço democrático - na verdade, o jornalismo dentro da democracia é desfrutado apenas por uma minoria da população mundial” (Hanitzsch & Vos, 2016, p. 150).

O modelo ocidental de jornalismo assume que a mídia noticiosa é relativamente autônoma em relação ao Estado e que os jornalistas são agentes independentes envolvidos em uma relação antagônica ao poder enquanto representam o povo (Nerone, 2013)4. O modelo foi exportado para o mundo em desenvolvimento, juntamente com muitas outras crenças e práticas ocidentais - uma transferência da ideologia ocupacional do Ocidente para países do Sul Global (Golding, 1977)5. Assim, quando os estudos encontram semelhanças substanciais nos papéis jornalísticos em todo o mundo, é bem possível que essas semelhanças sejam produzidas pelas expectativas normativas do modelo-padrão ocidental que enformaram a maioria dos questionários e que pode ter feito com que as respostas dos jornalistas convergissem com esse modelo (Josephi, 2005)6. (Hanitzsch & Vos, 2016, p. 150)

Josephi quis demonstrar que a democracia não é uma pré-condição para o jornalismo e sugeriu que, em vez de impor um sistema político como principal quadro de referência para o jornalismo, jornalistas e seu trabalho deveriam ser utilizados para avaliar as conquistas da área. Há jornalismo sendo praticado de diferentes formas em diversos países, incluindo países não democráticos, como na China, onde não se espera que os jornalistas defendam a deliberação. “O debate na China, por enquanto, é privado e não público, pois é visto como pondo em risco a harmonia social (e política)” (Josephi, 2012, p. 486). Alguns autores questionam até mesmo a eficácia da democracia como solução política e o papel do jornalismo para promover o debate ou a simples tarefa de levar informação à população, como relataram Câmara e Melo (2018, p. 13).

Em estudo sobre accountability da mídia na Holanda, Harmen Groenhart (2013, p. 282) reconhece os motivos, valores normativos e operacionais dos jornalistas em relação ao accountability midiático, porém, conclui que características profissionais específicas do jornalismo impedem uma implementação frutífera da responsabilidade da mídia de forma pública, no nível do jornalista individual, da organização jornalística e da autorregulamentação da profissão. Segundo o autor, a liberdade de imprensa não só alimenta os fluxos de informação como evita interferências no processo jornalístico. Ou seja, o ethos profissional é resistente a influências externas, o que acaba influenciando na adoção ou não de procedimentos normativos, fazendo com que a liberdade de imprensa seja clamada não apenas como defesa de valores profissionais e democráticos, mas também corporativistas. Isso quando o discurso não é deturpado em usos políticos individuais e egocêntricos.

Muitos jornalistas lamentam a frequente baixa qualidade do feedback público e tipificam sua audiência como um “monstro de muitas cabeças”, às vezes sábio e útil, mas na maioria das vezes mal-educado, desinformado e polarizado. Embora o feed-back pouco educado da audiência seja um problema real, os jornalistas também reconhecem sua própria sensibilidade. Alguns jornalistas se caracterizam - ainda que de forma benigna - como opinativos, vaidosos e teimosos, e seu trabalho como criativo, individualista e intuitivo. Estas características reforçam mais do que reduzem uma postura defensiva dos jornalistas. (Groenhart, 2013, p. 281)

Ombudsmans de imprensa em diferentes partes do Brasil e do mundo não trabalham do mesmo modo. Há diferenças estilísticas, de forma e conteúdo, influências editoriais, políticas e mercadológicas dos jornais, além de, claro, bagagem pessoal, caráter, comportamento e mesmo personalidade de cada profissional. Não se pode esquecer que, mesmo distanciado fisicamente e profissionalmente do cotidiano da redação, sendo o ombudsman também jornalista, o ethos jornalístico igualmente faz parte deste.

3. Ombudsman e crítica de imprensa

Ao fazer uma análise de como a mídia responde à crítica, Torbjörn von Krogh e Göran Svensson (2017, p. 48) afirmam que junto às críticas vem a questão da responsividade (responsiveness), também traduzida como capacidade de resposta. Realizar crítica jornalística tem tanto a ver com sua capacidade de responder à crítica como de fazê-la, referindo-se à abertura e reflexividade desta. O ombudsman realiza crítica pública e responde aos leitores, porém, para satisfazer a este processo ou corresponder a expectativas normativas, deveria também realizar autocrítica de si e estar aberto a réplicas internas e externas.

De especial interesse para uma relação responsável e receptiva entre os meios de comunicação e os utilizadores dos meios de comunicação é a crítica comunicativa (Fornäs 2013)7, uma crítica que é reflexiva e aberta à influência de outros (Svensson 2015)8. Neste caso, a crítica e o sujeito da crítica entram em diálogo. Cada parte está preparada para refletir sobre seus valores, normas e formas de entendimento e para mudar sua posição com base no resultado do processo de comunicação. As respostas que incluem ouvir, interpretar ou agir sobre a crítica incorporam todas as qualidades comunicativas. (Krogh & Svensson, 2017, p. 48)

Em sua pesquisa de doutorado, Torbjörn von Krogh (2012, p. 15) adotou uma visão mais abrangente do que é crítica de mídia - “relacionado à estrutura, conduta, desempenho, conteúdo, papel e influência da mídia, formulada tanto por indivíduos quanto por organizações da sociedade civil, corporações e governos” -, uma vez que constatou que este não é um campo muito estudado e sua pesquisa objetivava observar a crítica no processo de accountability. Amparou-se também em Bertrand

(2002) e em estudos deste sobre Media Accountability Systems (MAS), onde a crítica de mídia é um dos fatores principais no processo de responsabilização.

O ombudsman, além de ser considerado um meio de accountability, estando entre os MAS definidos por Claude-Jean Bertrand (2002), é também tido como uma forma de autocrítica no jornalismo. Wendy Wyatt (2018) lembrou que o ombudsman, assim como conselhos de imprensa, são por vezes mais frequentemente considerados meios de prestação de contas do que lugares de autocrítica. Provavelmente pelo seu histórico inicial nos EUA, de canal com os leitores e sem crítica pública.

Cheruiyot (2019, p. 20, 24) afirma que a função da crítica vai além de tornar organizações e jornalistas accountable. Esta deve inspirar e fazer com que profissionais aspirem ao bom jornalismo. A crítica não tem que oferecer soluções, mas conduzir a deliberações sobre padrões jornalísticos. Os críticos geralmente relacionam padrões e qualidades, mas há também visões subjetivas e idealistas do que o jornalismo deveria ser. E esse ideal está invariavelmente associado a que tipo de democracia se tem em mente e à função do jornalismo dentro desta, como lembram Strömbäck (2005) e Waisbord (2012).

Conclusões distintas sobre a presença de ombudsman podem ser encontradas em estudos variados, sobre sua falta de reflexividade nas redações ou mesmo se seu trabalho leva jornalistas à reflexão (Pritchard, 1993; Meyers, 2000; Hilligoss, 2014). Para Wyatt (2018, p. 3), o fato de os jornalistas possuírem memória coletiva curta levou que discussões similares sobre a área ocorressem ao longo do tempo, mas isso não impeliu necessariamente a mudanças sistêmicas.

Analisando a crítica da cobertura jornalística em 30 anos da coluna de ombudsman da Folha de S. Paulo, Azeredo e Silva (2020, p. 19) concluíram que “de forma geral, não é possível afirmar que a Folha aprenda com os próprios erros, mesmo quando eles são assumidos e criticados publicamente”, pois algumas situações se repetiram ao longo destas três décadas. A absorção da crítica, ou falta desta, por parte da equipe, pode ter inúmeras razões, incluindo ações hierárquicas, estilo do ombudsman e como a redação reage a este.

Deve-se igualmente considerar que a reflexividade do ombudsman no veículo está interligada a sua dupla função de crítico e ouvidor dos leitores. Se pesquisas mostram que ele não provoca mudanças na redação, há que se considerar se sua relação é positiva com os leitores. Ambas as perspectivas podem caminhar juntas, pois assume-se que se o leitor reclama, quer ver mudanças. Porém, as reclamações podem ser de naturezas diversas, inclusive discordância ideológica. E, a partir disso, o ombudsman pode continuar a exercer uma função crítica, bem como pedagógica e democrática, ao mostrar para o leitor como opera o jornalismo. Ferrucci (2018, p. 9), descrevendo como outros autores viam o papel do ombudsman, aponta que o profissional deveria ilustrar como e por que uma organização de notícias falha, fazer com que a mesma reconheça o erro e levar o público a compreender o deslize.

4. Análise do corpus e principais resultados

Os resultados da investigação do corpus aqui apresentado mostram dados comparativos das análises da Classificação Hierárquica Descendente e Nuvem de Palavras no Iramuteq. A CHD é considerada a mais importante análise provida pelo software. Nela, os segmentos de texto são correlacionados, formando um esquema de classes de vocabulários em formato dendograma. A partir disso, pode-se inferir o conteúdo do corpus, realizar categorizações e compreender grupos de conteúdos, ideias e enunciados. A análise Nuvem de Palavras é simples, porém, visualmente interessante, apresentando um bom resumo panorâmico do estudo. Quanto maior a palavra, maior sua representatividade no texto.

Entre as semelhanças encontradas nas colunas dos ombudsmans brasileiros em 1995 estão: críticas mais personalizadas e inflexíveis, rusgas entre o ocupante do cargo e a redação, ofensas a grupos sociais, leitores ou ao veículo. Nas análises geradas no Iramuteq, obviamente emergem vocábulos em comum relacionados ao cotidiano jornalístico, como edição, reportagem, página, manchete, foto, coluna, editor. O que se aborda na crítica pode ser resumido em três grandes tópicos: cobertura noticiosa; jornalismo e política; relacionamento com leitores e sociedade. Em cada um cabem outras questões relacionadas, a exemplo do uso de técnicas jornalísticas, jornalismo como ator político, jornalismo como profissão e função social do jornalismo.

As classes surgidas via CHD manifestam essas simetrias (Figura 1). Os corpora9 da Folha de S. Paulo e do Correio da Paraíba possuem o mesmo tipo de hierarquia superior e ramificações. Embora o corpus d’O Povo seja um pouco distinto, as semelhanças se encontram também nas hierarquias superiores e conteúdo.

Figura 1 CHD - Corpora 1995. Fonte: Iramuteq e elaboração da autora 

A contemplação das nuvens de palavras formadas pelas formas mais reproduzidas nos jornais de 1995 salienta a crítica dos ombudsmans voltadas para seu veículo em particular, bem como a interação dos leitores. “Jornal” era preponderantemente usado para substituir o nome do veículo e o destaque deste vocábulo e de “leitor” ressaltam a atividade dupla do ombudsman: criticar o diário e ouvir leitores. Ao mesmo tempo, revela o caráter ambíguo da função, pois críticas jornalísticas nem sempre agradam o público e levar em consideração a audiência nem sempre se traduz em democracia. Ao justapor numa mesma imagem todas as nuvens de palavras (Figura 2), os nomes dos veículos analisados, e os vocábulos “jornal” e “leitor” continuam destacados, contornados por formas que remetem a temas jornalísticos, sociais e políticos.

Figura 2 Nuvens corpora 1995 e 2019. Fonte: Iramuteq e elaboração da autora 

Ao comparar os termos em destaque nos dendogramas da CHD dos corpora de ambos os períodos examinados, 1995 e 2019, neste último ano observa-se maior diversidade de assuntos e inclusão de vocábulos que remetem ao mundo digital. As temáticas gerais abarcam jornalismo, política e sociedade, mas amplia-se a abordagem social ao se destacarem palavras relacionadas a questões econômicas, de gênero e etnia. No ano de 2019, ao sobressaírem-se pela primeira vez nas classes da Classificação Hierárquica Descendente vocábulos como “democracia”, “liberdade”, “debate” e “discutir” (Figura 3), deduz-se que reflexões de caráter democrático e deliberativo avançam em relação aos textos publicados em 1995.

Figura 3 CHD corpora 1995 e 2019. Fonte: Iramuteq e elaboração da autora 

A imagem a seguir (Figura 4) fornece um resumo de onde se insere a crítica de imprensa do ombudsman com base nos modelos de democracia procedimental, competitiva, participativa e deliberativa (Strömbäck, 2005) e como estes normativamente tenderiam a afetar cobertura e recepção jornalísticas. O ombudsman da Folha de S. Paulo em 1995 e o conteúdo noticioso do jornal no mesmo ano apresentam características dos modelos procedimentalista e competitivo de democracia. O mesmo se deduz do conteúdo noticioso do Correio da Paraíba em 1995; da Folha em 1995 e 2019; e de O Povo de 1995 e 2019. A crítica da ombudsman de O Povo em 1995 qualifica-se entre os modelos competitivo e participativo; e a ombudsman deste veículo no ano 2019 possui mais características deste último. Entre os modelos participativo e deliberativo estão os ombudsmans do Correio da Paraíba em 1995 e da Folha de S. Paulo em 2019.

Figura 4 Modelos de democracia em veículos e ombudsmans: gráfico comparativo. Fonte: elaboração da autora 

Este estudo utilizou-se da categorização de Strömbäck (2005) sobre modelos de democracia e suas implicações normativas para o jornalismo, colaborando para o cotejamento entre imprensa e democracia delineadas por Wendy Wyatt (2007), bem como verificação da aproximação ou não da crítica do ombudsman aos preceitos da Teoria da Crítica de Imprensa, uma vez que a autora defende a crítica deliberativa.

Considerações finais

Conclui-se que todos os veículos examinados, sejam os publicados em 1995 ou 24 anos depois, apresentam conteúdo noticioso que se aproxima dos modelos procedimental e competitivo, configurações que menos exigem participação do público. Os ombudsmans, por sua vez, com exceção de Marcelo Leite, da Folha de S. Paulo, em 1995, apresentam críticas que costumam envolver mais a audiência. As críticas mais categóricas e com conteúdo democrático mais próximo do deliberativo foram o ombudsman do Correio da Paraíba e as ombudsmans da Folha de S. Paulo em 2019. Nenhuma crítica, contudo, inseriu-se totalmente no modelo deliberativo, o tipo que mais demanda engajamento do público.

No modelo deliberativo, o conteúdo jornalístico e a crítica devem agir para promover discussões inclusivas, mobilizar o interesse de cidadãos, unir debatedores e fomentar reflexões caracterizadas pela racionalidade, imparcialidade, honestidade intelectual e igualdade. Conclusões possíveis e não excludentes são: veículos e críticos estão referindo-se a modelos diferentes quando aludem à democracia; o ombudsman demanda um jornalismo mais inclusivo e participativo justamente por o veículo não apresentá-lo; amarras mercadológicas impedem empresas noticiosas de promover deliberação em seus espaços. Esta última inferência se dá por todos os veículos, de ambos os períodos (1995 e 2019), estarem inclusos nos modelos de menor engajamento público.

Recorda-se que os modelos de Strömbäck (2005) foram pensados para o jornalismo de notícia (news journalism) e a categorização do corpus foi baseada na crítica do ombudsman sobre a cobertura do veículo e não nas notícias em si. A Teoria da Crítica de Imprensa de Wendy Wyatt (2007) igualmente está tomando o jornalismo enquanto notícia (news), e não informações de meios midiáticos como um todo, principal razão de nomear sua teoria de press criticism e não media criticism.

Como nos revelam as análises de Classificação Hierárquica Descendente do Iramuteq e etapa interpretativa, a cobertura do cotidiano e sobre a vida política, as chamadas hard news, são o núcleo duro da crítica de ombudsman. Portanto, de modo preponderante, a crítica do ombudsman mira as notícias e reportagens - e não artigos, comentários, editoriais ou outro texto de conteúdo opinativo ou que tenham como objetivo explicar o contexto noticioso.

Ademais, o pesquisador sueco usa o termo news journalism para diferir de mídia (media) frisando que irá versar sobre notícias jornalísticas e não trocas midiáticas em geral. Bem como presume-se sua ênfase no padrão de notícias do jornalismo tradicional e não em outros tipos, como jornalismo de entretenimento. Assim, neste estudo, aponta-se para o fato de que a audiência das hard news consome um jornalismo cuja característica eminente é a exposição de malfeitos dos poderosos e cobertura da política como um jogo e não parte da vida em sociedade. O diagnóstico dos dados revelados pelo quinto domínio da crítica permite afirmar que o jornalismo apresentado em três jornais brasileiros e em duas épocas distintas não serve à democracia deliberativa.

Como mencionado no relatório 2021 do Instituto Reuters (Newman et al., 2021), a internet no Brasil cresceu e a população começou a se informar majoritariamente via redes sociais. O ombudsman em redações caiu ainda mais vertiginosamente do que o impresso como fonte de notícias. Observa-se o ombudsman atual ocupado em explicar ao leitor como funciona o jornalismo devido a dúvidas deixadas pelo noticiário e porque supõe-se que a audiência foi influenciada por informações advindas de redes sociais. Assim como o público estaria bombardeado com notícias falsas, o crítico estaria sobrecarregado ao tentar argumentar racionalmente em meio ao caos desinformativo.

Se o jornalismo impresso hoje é lido por apenas 12% da população e, de acordo com a crítica do ombudsman, o veículo não se engaja suficientemente com a audiência, o jornalismo não estaria cumprindo seu papel democrático como anuncia. As características de cobertura encontradas incluem o jornal propondo a agenda e alimentando o jogo estratégico da política, características da democracia competitiva. O conteúdo está atingindo apenas uma pequena parcela da população. A maior fração poderia estar sujeita a bolhas ideológicas da internet e redes sociais com conversações que provavelmente não chegarão à esfera pública.

Para esta conclusão, considera-se a democracia deliberativa. Veículos jornalísticos tradicionais asseveram ser democráticos, mas esta democracia é a do modelo competitivo. Portanto, este jornalismo, além de não estar incluindo quase 90% da população brasileira, falha em engajar os seus 12% de audiência. É o que se constata da crítica de imprensa do ombudsman no Brasil no corpus examinado.

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Nota biográfica

1 Ombudsman é uma palavra sueca, usada para todos os gêneros. Na língua inglesa, costuma-se usar as flexões de gênero e plural próprias deste idioma. Neste artigo, empregam-se as palavras ombudsman e ombudsmans, no singular e plural, respectivamente, e para todos os gêneros, formas igualmente adotadas no jornal Folha de S. Paulo. A decisão da Folha pode ser conferida em https://www1.folha.uol.com.br/ombudsman/2018/01/1789462-nome-da-funcao-omumaos-dois-generos.shtml. Mais sobre como a função do ombudsman é chamada em diferentes países pode ser encontrado em Rosas (2015, 2021) e em http://www.niassembly.gov.uk/globalassets/documents/raise/publications/2015/ofmdfm/8115.pdf.

2 Mais informações sobre o programa e seu funcionamento são encontradas em http:// www.iramuteq.org.

3 Tradução nossa. Doravante, todas as citações cuja língua original não é o português terão tradução da autora do artigo.

4 Nerone, J. (2013). The historical roots of the normative model of journalism. Journalism 14 (4), p. 446-458.

5 Golding, P. (1977). Media professionalism in the Third World: The transfer of an ideology. In: Curran, J.; Gurevitch, M.; Woollacott, J. (eds.), Mass Communication and Society. Arnold, p. 291-308.

6 Josephi, B. (2005). Journalism in the global age: Between normative and empirical. Gazette 67 (6), p. 575-590.

7 Fornäs, J. (2013). The Dialectics of Communicative and Immanent Critique in Cultural Studies. Open Access Journal for a Global Sustainable Information Society, 11(2), p. 504-514.

8 Svensson, G. (2015). Att Förstå Mediekritik: Begreppsliga, Empiriska och Teoretiska Studier av Svensk Mediekritik 1998-2013. Acta Universitatis Upsaliensis.

9 Considerou-se como sendo o corpus empírico da pesquisa o volume de todas as colunas analisadas, dos três jornais citados. O Iramuteq, contudo, considera cada análise como um corpus.

Recebido: 31 de Março de 2022; Aceito: 13 de Julho de 2022

Juliana de Amorim Rosas é doutorada em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), comunicóloga na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e pesquisadora associada do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS-UFSC). ID Lattes: 6569235624328814 Morada: Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Trindade, Florianópolis, SC, Brasil. CEP: 88040-970

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