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Media & Jornalismo

Print version ISSN 1645-5681On-line version ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.23 no.43 Lisboa Dec. 2023  Epub Dec 31, 2023

https://doi.org/10.14195/2183-5462_43_7 

Recensões

Recensão: Against white feminism: notes on disruption. WW Norton & Company.

1Instituto de Comunicação da NOVA, Universidade NOVA de Lisboa, Portugal camilalamartinemb@gmail.com

Zakaria, R.. (, 2021. )., Against white feminism: notes on disruption. ., WW Norton & Company, .


A academia tem assistido à intensificação de investigações à luz da interseccionalidade (Cresnshaw, 2017). Seja em vertentes teóricas ou metodológicas, a interseccionalidade tem vindo a consolidar-se como um fundamento nas práticas vinculativas à mudança social. Advinda do movimento negro, a interseccionalidade intenta revelar camadas de opressões que intersectam as diversas representações identitárias, como género, classe e, especialmente, raça. É nesta perspetiva que Zakaria posiciona o pensamento feminista negro e marrom na dianteira do movimento feminista.

Contudo, a crítica em torno da branquitude nos movimentos sociais não é algo novo, sobretudo no cerne do movimento feminista, onde esses questionamentos não partem de mulheres brancas que, na maioria das vezes, pertencem a um nexo normativamente etnocêntrico e ainda eurocêntrico (hooks, 2015). O reconhecimento do privilégio atrelado à cor da pele é um movimento difícil, já que a branquitude se faz invisível somente àqueles que a habitam (Ahmed, 2007).

Nesta senda, Rafia Zakaria, advogada, colunista e investigadora académica da Escola de Liderança Cívica e Global Colin Powell no City College de New York, elabora uma imperiosa reflexão acerca do poder da branquitude no seu livro, Against white feminism: notes on disruption, publicado pela W.W. Norton & Company.

Ao longo de 256 páginas distribuídas por oito capítulos, a escritora paquistanesa convida-nos a refletir sobre a distinção entre ser uma mulher branca feminista e uma feminista branca, sendo esta última caracterizada por aceitar os “benefícios conferidos pela supremacia branca às custas de pessoas de cor, enquanto reivindica o apoio a igualdade dos géneros e a solidariedade entre ‘todas’ as mulheres” (p. 11). É logo na introdução, intitulada “At a Wine Bar, a Group of Feminists”, que Zakaria sublinha o seu lugar de fala (Ribeiro, 2017). Desde a sua infância no Paquistão até a fase adulta nos Estados Unidos, a autora nos exemplifica como, nos moldes da narrativa baseada apenas em género, as mulheres brancas se intitularam universais, desprezando outras vivências e saberes, culminando num apagamento político de mulheres de cor numa “falsa aparência de engajamento” (p. 29).

O primeiro capítulo traça um linear histórico do feminismo a fim de evidenciar a presença exclusiva de mulheres brancas na construção do movimento, numa denúncia às práticas coloniais que inferiorizavam as mulheres do Ocidente e suas culturas. Como refere Zakaria, as sufragistas em Inglaterra não quiseram aliar-se às mulheres colonizadas indianas por não as considerarem iguais de facto, contradizendo o que elas próprias defendiam: o sufrágio universal para as mulheres. Na vereda de Soujourner Truth, as mulheres colonizadas e de cor não seriam também mulheres? Neste sentido de segregação, o segundo capítulo questiona a solidariedade das mulheres brancas e sua ode às mulheres intelectuais brancas como único sujeito do feminismo. Zakaria empreende aqui o que considero ato de bravura ao contestar o conceito de igualdade a partir da universalização da mulher em ícones feministas como Simone de Beauvoir, Betty Friedman e Kate Millet. Sem, contudo, as desmerecer, aponta a falta de espaço epistemológico neste feminismo para compreender de facto as mulheres que absorvem mais camadas de opressão (p. 80), o que é visto por hooks (2015) como uma permissividade à prática do racismo no intuito de que as mulheres brancas sejam as grandes líderes do movimento feminista.

No terceiro capítulo a autora critica a utilização do termo empoderamento como sinónimo de poder. A ideia originária não era meramente a ocupação de postos masculinizados, mas um projeto político coletivo e horizontal, logo não hierarquizado. Zakaria conceitua assim o “feminismo de gotejamento”, que se alimenta de hierarquia (geralmente a nível de classes sociais) e resulta num sistema ditatorial inundado de iniciativas e ações sociais benevolentes, que enfocam o “ethos de salvadora” da mulher branca. As doações e “ajudas” embasadas numa falsa suposição de empoderamento, na verdade, separam as condições da história colonial e toda a exploração, na medida em que culpabilizam, injustamente, a pobreza, etnia e raça (p. 100). Nesta sequência, o quarto capítulo discute a relação entre o feminismo e o combate ao terrorismo, com uma especial atenção ao papel dos media na disseminação e fortalecimento da branquitude, onde as jornalistas brancas se colocavam (e eram vistas) como heroínas, cujos valores de rebeldia, risco e velocidade as faziam verdadeiras justiceiras. Para Zakaria, as feministas brancas neocoloniais são exibicionistas da coragem e compaixão - ainda que não para todas as pessoas, pois, “os tempos podem ter mudado, mas o empenho da branquitude em extrair valor de todos os lugares possíveis - e dominar a narrativa para fazer parecer benevolência - persiste” (p. 141). A tratar sobre a libertação sexual no quinto capítulo, a série americana “Sex and The City” serve de exemplo na construção da mulher “independente”, onde o capitalismo é entoado como um mecanismo para a heterossexualidade compulsória (Rich, 2010). Noutros continentes, a mesma liberdade sexual faz das mulheres “procriadoras” de vários filhos que não conseguem sustentar, evidenciando a exclusão económica que as inferioriza (p. 171). A autora também destaca esta diferença de perceção no sexto capítulo, em relação à violência doméstica, que é “justificada” pela religião ou pela cultura (p. 204).

É no sétimo capítulo que a autora denuncia um sistema racista que se apoia no privilégio branco, numa crítica latente à ideia de meritocracia. Como refere Ahmed (2007), a branquitude é uma orientação social e corporal que seleciona o que será ou não escolhido, portanto, é necessário buscar, antes de mais, uma paridade das narrativas entre as feministas, sem a qual a paridade de género torna-se impossível. Em seu último capítulo, a autora nos aponta pistas, da desconstrução à reconstrução. Ao realçar a relevância da interseccionalidade, Zakaria sugere que o feminismo igualitário só será possível se extirpar a dominância de pautas brancas e assim considerar raça, classe e género; abandonar uma “guerra de narrativas”; e retornar à política. A mudança que é dita como necessária deve ser a transformacional, como Fraser (2007) coloca, uma dissolução de hierarquias e estruturas de forma reconhecida e redistribuída.

“On Fear and Futures” é o título da conclusão da obra que nos evoca um sentimento de esperança. Aqui entoa-se uma crítica à perda da fronteira política do feminismo contemporâneo clamando pela construção de políticas feministas que sejam, de facto, transformadoras, pois “quando tudo é feminista, nada é feminista” (p. 267). Zakaria encerra como um “ponto de partida” à reconstrução desse feminismo que deve ser inclusivo e, sobretudo, interseccional (Crenshaw, 2017).

A semente que Against white feminism: notes on disruption planta é a disrupção necessária para que haja um desmantelamento das estruturas sociais patriarcais e raciais. O livro é uma convocação para pluralidade do movimento feminista. Pensar acerca da branquitude, enquanto uma mulher branca, é desafiador, mas mais desafiadora é a busca pela mudança social.

Conflito de interesses | Conflict of interest

Os autores não têm conflitos de interesses a declarar. The authors have no conflicts of interest to declare.

Referências

Ahmed, S. (2007). A phenomenology of whiteness. Feminist Theory, 8(29), 149-168. https://doi.org/10.1177/1464700107078139 [ Links ]

Crenshaw, K. W. (2017). On intersectionality: Essential writings. The New Press. [ Links ]

Hooks, B. (2015). Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, (16), 193-210. https://doi.org/10.1590/0103-335220151608 [ Links ]

Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento. [ Links ]

Rich, A. (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas-Estudos gays: gêneros e sexualidades, 4(05), 18-44. https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309Links ]

Fraser, N. (2007). Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Revista Estudos Feministas, 15(2), 291-308. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2007000200002 [ Links ]

Recebido: 18 de Julho de 2023; Aceito: 01 de Setembro de 2023

Camila Lamartine é ativista, jornalista e investigadora do Instituto de Comunicação da Nova (ICNOVA). Doutoranda em Ciências da Comunicação com especialização em Estudos Sociais pela Universidade NOVA de Lisboa (UNL) financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). A sua investigação tem sido publicada em diversas revistas como Social Sciences, Ex Aequo e Comunicação e Sociedade, acerca dos feminismos, estudos feministas dos media, branquitude, interseccionalidade, ciberespaço e novos ativismos sociais. Atualmente é membro da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM) e faz parte do corpo editorial da Revista Comunicando. Ciência ID: 351A-22F8-7433 Morada: Universidade NOVA de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Av. de Berna, 26 C1069-061 Lisboa, Portugal

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