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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.23 no.43 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.14195/2183-5462_43_8 

Recensões

Recensão: Os Cínicos Não Servem Para Este Ofício. Conversas sobre o Bom Jornalismo. Relógio D’Água.

1Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Portugal. fabior@utad.pt

Kapuściński, R.; Maria Nadotti, M.. (Orgs.) (, 2008. )., Os Cínicos Não Servem Para Este Ofício. Conversas sobre o Bom Jornalismo. ., Relógio D’Água, .


Uma aula de Jornalismo que se constrói a partir das mais importantes memórias do icónico repórter polaco Ryszard Kapuściński. Assim se poderia resumir a obra Os Cínicos Não Servem Para Este Ofício. Conversas sobre o Bom Jornalismo, em que Kapuściński explica como é que a profissão de jornalista nunca pode desligar-se da História, Fotografia e Literatura. Que escrever sobre um mundo “euro-cêntrico”, de uma sociedade mundial que engole e minimiza tudo o que é particular e local, continua a ser um problema. Uma discussão extensa, dividida em três partes, organizada por Maria Nadotti, tradutora, ensaísta e também jornalista.

Na primeira parte, Kapuscinki conversa precisamente com Maria Nadotti, durante o VI Congresso “Redactor Social: De Raça e Classe. O Jornalismo entre o Desejo de Elite, Envolvimento e Indiferença”, decorrido em 27 de setembro de 1998 na cidade italiana de Apulia. É aqui que tem lugar a verdadeira Aula de Jornalismo deste livro. Uma conversa provocatória, feita de frases fortes e ideias marcantes, que não perderam qualquer sentido de atualidade. Olhando para uma plateia de muitos jovens aspirantes a jornalistas, Kapuściński começou por denunciar as principais dificuldades nos inícios de carreira: “Não podemos encerrar o nosso expediente às quatro da tarde” (p. 27). O horário de trabalho vertiginoso exige, portanto, um estudo constante, o tal “sacrifício” que Kapuściński preconiza como inevitável ao ofício. Maria Nadotti chegou mesmo a perguntar à plateia se estaria disposta a “pagar com a própria saúde” a necessidade de contar uma boa história. O espírito abnegado é fundamental, tal como o talento, um tema porventura controverso. No entanto, Kapuściński especifica a natureza deste requisito: o talento reside, essencialmente, no estudo. De conhecer os acontecimentos e as realidades que fazem parte do puzzle onde o mundo informativo se posiciona. Nesta primeira parte, Kapuściński critica o jornalismo que promove uma cultura do “ego”, ao mesmo tempo em que desafia uma escrita centrada nas pessoas, “nos outros” e na mudança social. O autor apresenta ainda o exemplo dos pobres que são normalmente “silenciosos e normalmente não se revoltam” (p. 32).

Ora, é justamente nesta parte do livro que surge a expressão do cinismo, que dá origem ao título do livro, mas que não é suficientemente explorada pelo autor. Kapuściński considera que, depois de ter convivido com tantos jornalistas em locais tão diversos no mundo, nunca encontrou um único jornalista “cínico”. É uma impossibilidade para o correto exercício da profissão, sugere. “Os jornalistas devem ser céticos, realistas e prudentes” (p. 39), aponta Kapuściński. Profundamente interessado em temas históricos, densos e complexos, o autor acaba por defender que “todos os jornalistas são historiadores” (p. 42). Investigar, pesquisar e descrever são, no entender de Kapuściński, tarefas rotineiras das duas profissões e que os colocam num plano de igualdade.

A finalizar esta parte, Kapuściński lança uma crítica contundente aos meios de comunicação internacionais. Desde os estudos inaugurais sobre o framing (Bateson 1972; Goffman 1974) que se sabe da importância do texto jornalístico em definir a realidade. Kapuściński regressa a este debate, por momentos. Através da omissão, do silenciamento, da padronização de realidades, a imprensa internacional optar por, deliberadamente, não cobrir certos assuntos, sublinha o autor. Não se retrata o mundo. Uma posição que recorda outro trabalho, feito em Portugal (Lopes, 2008), onde se concluía que o país real não passava nas televisões.

Na segunda parte, África está no centro de toda a reflexão. Até porque Kapuściński percorreu uma parte considerável de países africanos com situações políticas e económicas pouco favoráveis. Nadotti define o jornalista polaco como um “Especialista em Terceiro Mundo” (p. 32), por tudo aquilo que viveu e contou, e que no livro surge numa entrevista de Kapuściński ao jornalista e fotógrafo Andrea Semplici. Neste ponto, privilegia-se sobretudo uma reflexão sobre os processos de independência de alguns países africanos e de algumas figuras marcantes neste continente para esses mesmos movimentos de emancipação nacional, longe do domínio efetivo dos colonizadores. Deste modo, não se discute muito sobre jornalismo; tratase de uma análise essencialmente política e histórica, mas que está em plena sintonia com aquilo que o autor defendeu desde o início da obra. O jornalista deve ser capaz de estudar aquilo que o rodeia e mostrar-se interessado em conhecer as figuras que fazem parte da realidade nas suas múltiplas lentes. No fundo, a “curiosidade” fatal de que falava Cebrián (2003).

Kapuściński considera que existem várias Áfricas num único continente, desde o Norte às costas Oriental e Ocidental, não esquecendo a Austral. Todos estes mosaicos diferem entre si, admite o autor, o que, no limite, também produziu efeitos nos fenómenos de guerra civil e independência de vários países. Kapuściński conta como lidou com a situação no Quénia, dos anos 1950, onde os Mau-Mau enfrentaram os kikuius e explicou a “longa e áspera” autodeterminação da Argélia. Kapuściński deixou algumas notas do fascínio que sentiu por certas figuras africanas e que, por vezes, parecem residir num plano de esquecimento coletivo. Hailé Selassié, na Etiópia, e o primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba, são apenas algumas dessas figuras destacadas. Sobre este último, Kapuściński apresenta-o mesmo como “O Che Guevara africano” (p. 53).

O final desta entrevista revela o lamento de Kapuściński perante o fracasso de grande parte dos movimentos independentistas africanos. O autor considera que estes Estados foram “sempre frágeis”, com pouca unidade entre as diferentes comunidades que viviam no mesmo território, e que nunca foram capazes de negar os múltiplos interesses - alguns da época colonial - e que minaram o progresso de muitos destes países. Kapuściński lembrou-se, ainda, que a visita de Bill Clinton, antigo Presidente dos Estados Unidos da América, a diversos países africanos, não restaurou qualquer cooperação profunda com estas nações. O jornalista considera que o périplo de Clinton procurou apenas apelar ao voto dos afro-americanos no Partido Democrata.

A derradeira parte deste livro, designada “O Conto num Dente de Alho”, alarga os tentáculos da discussão sobre os efeitos do jornalismo aos terrenos sociais e das representações culturais. Esta parte resulta de um encontro entre Kapuściński e o escritor e crítico de arte inglês John Berger, no Congresso “Ver, Perceber, Contar: Literatura e Jornalismo no Fim de Um Século”, que decorreu em Milão, em novembro de 1994. A moderação esteve a cargo de Maria Nadotti, que se encarregou de colocar em cima da mesa provocações francamente oportunas sobre jornalismo, numa conversa que já parecia afastar-se desse tema, deslocando-se para a Literatura ou a Fotografia.

Berger e Kapuściński alinharam, neste congresso, no mesmo diapasão: a televisão não se pode assumir, em momento algum, como uma instância moral. Uma afirmação tão tácita quanto marcante que certamente deixaria orgulhoso um dos autores mais emblemáticos da relação pessimista entre a televisão e a sociedade, como Neil Postamn, no icónico livro Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business (1985). É curioso perceber que a defesa de uma televisão moral pertenceu a Hans Magnus Enzensberger, editor de Kapuściński, e do qual o autor polaco discordou frontalmente neste livro. Berger também se juntou a esta posição e sublinhou que a televisão foge dos cidadãos e dos problemas das pessoas. Kapuściński acrescenta que o mundo camponês é um desses exemplos mais flagrantes. A omissão reiterada de certas realidades, segundo o autor deste livro, leva a que estejamos a criar uma classe de milhões de refugiados.

Já num plano mais afastado do jornalismo, Berger e Kapuściński trocaram elogios. “[Kapuściński] é um viajante genial e provavelmente conhece o mundo melhor do que ninguém” (p. 65), descreve Berger, ao mesmo tempo que sinaliza a importância de viajar como forma de observação e testemunho, algo que os ecrãs - outra vez a televisão - apenas permite ler. Kapuściński devolve os elogios ao evidenciar a obra Sobre o Olhar, de Berger, que é, nas palavras do autor, capaz de desafiar a cultura instalada de negligenciar o papel da imagem no nosso quotidiano.

Numa linguagem acessível e prática, muito cara ao jornalismo, este livro desmonta preocupações que o tempo não conseguiu solucionar. Como obra perfeitamente datada, nenhuma reflexão tecnológica aparece ao longo das páginas, o que seria suficiente para desmotivar abordagens mais recentes. No entanto, a velocidade intensa no trabalho do jornalista, a dificuldade em relacionar-se com as chefias e manter uma certa independência face ao poder político, e a impenetrável capacidade de retratar para além do óbvio constituem referências e questões que as décadas apenas tornaram mais imperiosas e descontroladas. Uma aula de Jornalismo perfeitamente sincrónica com a atualidade.

Conflito de interesses | Conflict of interest

O autor não tem conflitos de interesses a declarar. The author has no conflicts of interest to declare.

Financiamento

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

Referências

Cebrián, J. L. (2003). Cartas a un joven periodista. Aguilar. [ Links ]

Bateson, G. (1972). Steps to an ecology of mind. Jason Aronson Inc. [ Links ]

Goffman, E. (1974). Frame analysis: An essay on the organization of experience. Northeastern University Press. [ Links ]

Lopes, F. (2008). A TV dos jornalistas. CECS - Universidade do Minho. [ Links ]

Postam, N. (1985). Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business.Viking Penguin. [ Links ]

Recebido: 18 de Julho de 2023; Aceito: 26 de Outubro de 2023

Fábio Ribeiro. Professor no Departamento de Letras, Artes e Comunicação da UTAD, completou o Doutoramento Europeu em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho depois de um período de investigação no grupo Publiradio da Universidade Autónoma de Barcelona. Investigador no CECS da Universidade do Minho, interessa-se pelo estudo da relação entre públicos e o jornalismo e por comunicação de ciência. Scopus Author ID: 57204005993 Ciência ID: 4E11-BB64-EC69 Morada: UTAD Escola de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Letras, Artes e Comunicação, Quinta de Prados, 5000-801 Vila Real Portugal

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