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Acta Portuguesa de Nutrição

versão On-line ISSN 2183-5985

Acta Port Nutr  no.18 Porto jul. 2019

https://doi.org/10.21011/apn.2019.1806 

ARTIGO ORIGINAL

Comunicação dos perigos alimentares pela imprensa escrita: um estudo de caso para o milénio (2000-2017)

The reporting of food hazards by daily printed media: a case study for the millennium (2000-2017)

Rosa Azevedo1; Ana Sofia Mil-Homens2-4; Luís M Cunha3,4; Ana Pinto de Moura1,3*

1Departamento de Ciências e Tecnologia da Universidade Aberta, Delegação do Porto, Rua do Ameal, n.º 752, 4200-055, Porto, Portugal

2ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, Rua Rodrigo da Fonseca, n.º 73, 1269-274 Lisboa, Portugal

3GreenUPorto - Centro de Investigação em Produção Agroalimentar Sustentável, Campus de Vairão, Edifício Ciências Agrárias,

Rua da Agrária, n.º 747, 4485-646 Vila do Conde, Portugal

4Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenamento do Território da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, Rua do Campo Alegre, 4169-007 Porto, Portugal

Endereço para correspondência

 

RESUMO

Os media assumem um papel crítico na disseminação da informação sobre o risco alimentar, podendo o consumidor instruir-se sobre a atualidade dos diferentes perigos alimentares, recorrendo nomeadamente à leitura da imprensa escrita. A presente investigação pretendeu avaliar o modo como as notícias associadas ao risco alimentar são tratadas por um jornal diário nacional. Para o efeito, consideraram-se os títulos das suas capas, para o período de 2000 a 2017. Recorreu-se à análise de conteúdo, procurando-se identificar categorias comuns às diferentes capas, construindo-se um formulário de recolha de informação. Das 335 capas analisadas, confirmou-se que os perigos alimentares tiveram cobertura nas capas do jornal, representando cerca de 5% das capas noticiadas durante o período em estudo, sendo que o tipo de perigo mais difundido foi o biológico, seguido do perigo nutricional. Individualmente, os perigos alimentares mais abordados foram a obesidade, o vírus da gripe das aves e a BSE. Verificou-se ainda que a BSE assumiu particular importância por ser o perigo alimentar que constituiu um maior número de manchetes. A maioria das capas analisadas sobre perigos alimentares dizia respeito ao território português.

Palavras-chave

Jornal diário, Perceção do risco alimentar, Perigos alimentares

 


 

ABSTRACT

The mass media plays a critical role in the dissemination of information regarding food risk, so that the consumers can learn about the current situation of the food hazards by reading the press. This research aims to evaluate how news related to food risk are handled by a daily newspaper with a national coverage. For this purpose, the titles of the covers were considered for the period from 2000 to 2017. Content analysis was used as a way to identify the same categories from the different covers, a guide was constructed for this effect. From the 335 covers analyzed, it was confirmed that the food hazards were portrayed in the covers of the newspaper, representing about 5% of the covers reported during the study period, and that the most widespread type of hazard was the biological type, followed by the nutritional hazard. Individually, the most commonly reported hazards were obesity, avian flu and BSE. It was also found that BSE was particularly important because it was the hazard that made up the biggest number of headlines. Most of the food risk covers were related to the Portuguese territory.

keywords

Daily newspaper, Food risk perception, Food hazards

 


 

INTRODUÇÃO

Define-se tecnicamente risco alimentar, como sendo uma função da probabilidade de um efeito nocivo para a saúde e da gravidade desse efeito, como consequência de um perigo (1). Deste modo, dois constituintes do risco são identificados: i) a probabilidade de ocorrência de um determinado perigo e ii) a magnitude das consequências dessa mesma ocorrência. No entanto, a ponderação destes mesmos constituintes difere do ponto de vista dos “consumidores” e dos “especialistas”. Os especialistas valorizam mais a probabilidade de ocorrência de um efeito nocivo para a saúde, contrapondo com os consumidores que tendem a ponderar muito mais a severidade das consequências do que a probabilidade de ocorrência de um efeito nocivo para a sua saúde (2). Em causa está o facto das reações do consumidor face ao risco terem em conta as suas características psicológicas e sociais (3). No caso do contexto alimentar, esta situação é reforçada pela complexidade do sistema agroalimentar e pelo cada vez maior distanciamento entre a produção e o consumo alimentar (4). Ora, na presença de uma situação de risco alimentar, a confiança do consumidor face à compra e ao consumo dos alimentos poderá ser posta em causa, contribuindo para a formação de sentimentos de angústia e de insegurança nos consumidores em relação aquilo que comem, podendo afetar a sustentabilidade de toda a cadeia alimentar, reforçando o paradigma de que vivemos numa sociedade de risco (5).

Neste contexto, os media assumem particular importância no acesso à informação relacionada com os perigos alimentares e seus impactes (6, 7), dado que as pessoas dispõem de tempo e conhecimento limitados e desejam ser informadas com rapidez e eficiência, recorrendo aos media para um melhor entendimento dos acontecimentos de risco. Por outro lado, parte desta experiência individual decorre indiretamente pela exposição aos media (8), como é o caso das novas tecnologias usadas no processamento alimentar, desconhecidas maioritariamente pelo consumidor (9).

No entanto, os acontecimentos de risco também competem por espaço mediático, na medida em que nem todos os acontecimentos de risco são dignos de serem notícia (10). A presença de diferentes atores com posições extremadas e dissonantes, bem como de perigos alimentares com repercussões nefastas para a saúde das pessoas, cenários próximos dos acontecimentos que envolvem os perigos alimentares (11), transformam ocorrências de acontecimentos em notícias, uma vez que são causadores de polémica e medo/receio junto das populações (6). Por outro lado, os media, incluindo a imprensa escrita, em função da importância que a notícia assume, recorrem a elementos visuais, nomeadamente manchetes (título principal na capa), cor, e uso de imagens, com vista a destacar a própria notícia.

OBJETIVOS

O presente trabalho pretendeu avaliar de que modo a imprensa escrita diária, com particular influência na região Norte do país, comunicou, para o período, janeiro de 2000 a dezembro de 2017, os perigos alimentares nas suas capas.

METODOLOGIA

Recorreu-se ao Jornal de Notícias (JN) impresso, edição Nacional (Porto), por ser um jornal diário de grande tiragem, com uma tiragem média de 132 278 exemplares, para a década de 2000, e de 88 586 exemplares para a década de 2010 (2010-2017) (12). Entre os quatro diários generalistas (Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público) auditados pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação, em 2017, o JN foi o segundo com mais tiragens (65 014 exemplares), depois do Correio da Manhã (130 064 exemplares), sendo que o JN foi destronado do primeiro lugar, em 2003, quando teve uma tiragem de 142 888 exemplares contra os 144 115 exemplares do Correio da Manhã (12). Por outro lado, trata--se de um jornal com uma presença geográfica de âmbito nacional e conteúdos transversais para toda a população, não obstante a região Norte ser a sua principal área de influência (13). Trata-se de um jornal tradicional de informação generalista, elaborado com uma linguagem popular e dirigido às massas (14), tornando-o, portanto, significativo enquanto fonte de informação para a população em geral. Optou-se ainda pelo JN por uma questão de conveniência de acesso aos dados e recolha de informação.

Como unidade de análise, considerou-se a avaliação dos títulos relacionados com os perigos alimentares presentes nas capas do jornal, por considerar-se que a presença de uma notícia na capa evidencia a relevância que é concedida à própria notícia (15). Recorreu--se à análise de conteúdo quantitativa e descritiva (16), seguindo uma metodologia dedutiva, no sentido de fazer um levantamento das ocorrências, em detrimento da avaliação da associação entre variáveis. Para o efeito, construiu-se, previamente ao estudo de campo, uma grelha de recolha de informação, tendo por base os trabalhos de Kehagia e Chrysochou (17) e de Rowe, Frewer e Sjoberg (18), de modo a identificar categorias comuns às diferentes capas e as suas ocorrências. A grelha contemplou as seguintes categorias: a) Código da notícia; b) Título na notícia; c) Subtítulo da notícia; d) Destaque (presença de “manchete”); e) Recurso (qualquer componente não verbal); f) Cor; g) Natureza do género alimentício; h) Alimento; i) Tipologia do perigo alimentar; j) Perigo alimentar; e k) Território.

A classificação dos perigos alimentares identificados nas capas do JN foi efetuada por triangulação entre os autores de acordo com a seguinte tipologia: biológico, químico, tecnológico, nutricional, físico e fraude alimentar (19, 21). Neste contexto, refira-se que o vírus da gripe das aves (H5N1) foi considerado, tendo em conta as suas consequências negativas no consumo de carne de aves (21).

A pesquisa das capas decorreu, entre 12 de janeiro a 8 de abril de 2017. Consultaram-se manualmente exemplares do JN da edição Porto, para as edições de janeiro de 2000 a agosto de 2002, nas instalações da Direção de Documentação e Informação, do Porto Global Media Group. A partir de setembro de 2002, uma vez que, desde essa data, existe uma base de dados de fotos e textos (todas as edições), consultou-se a base de dados, considerando as seguintes palavras-chave: comida; comer; alimento; alimentação; risco; perigo; tóxico; intoxicação; intoxicado; intoxicada; contaminar; contaminado; contaminada; contaminação; gripe suína; nitrofuranos; brucelose; obesidade; anorexia; bulimia; ASAE; vacas loucas; BSE; gripe das aves; H5N1; E. coli; Listeria; Hantavírus; DECO; água contaminada; botulismo; epidemia; carne; bactéria; vírus; sal em excesso; açúcar em excesso; diabetes; colesterol; alergénio; alérgico; alérgica; OGM; transgénicos; organismos geneticamente modificados; radioatividade; nuclear; pesticidas; toxinas; aditivos alimentares; febre aftosa; Legionela; e Salmonela. As palavras-chave mencionadas foram selecionadas tendo por base o estado da arte da investigação e a grelha de recolha de informação.

Para a análise dos resultados dos títulos presentes nas capas recorreu--se à estatística descritiva, utilizando-se tabelas de frequências e representações gráficas, procurando-se assim uma sistematização dos resultados, através do Microsoft Office Excel®.

RESULTADOS

Consultaram-se 6 575 capas do referido periódico, sendo que se identificaram 310 capas do JN que abordaram a temática em estudo, através de 312 títulos, correspondendo a 4,7% do total de capas publicadas de 2000 a 2017.

Em termos de distribuição das frequências relativas de divulgação das capas, para o período em análise, confirma-se que a cobertura mediática sobre os perigos alimentares foi mais intensa em 2001 e em 2006, representando 8,8% e 8,5% do total anual das capas do JN (Figura 1).

Fazendo uma análise mais desagregada dos dados, verifica-se que os picos de frequência de cobertura mediática, localizados para os anos 2000, 2001, 2003, 2005 e 2006, estão associados à divulgação mensal de perigos específicos, a saber: prião/agente da Encefalopatia Espongiforme Bovina (BSE), em novembro de 2000; febre aftosa, em março de 2001; nitrofuranos, em março de 2003; vírus da gripe aviária A (H5N1), em outubro de 2005 e fevereiro de 2006; utilização de carne de cavalo para consumo humano, em fevereiro de 2013 (Figura 1).

Globalmente, a maioria dos títulos analisados, para o período em estudo, refere-se aos perigos biológicos (36,5%), seguidos dos perigos nutricionais (36,2%), perigos químicos (16,6%), fraude alimentar (6,7%) e perigos tecnológicos (1%). Os perigos físicos não foram referidos durante este período.

Contabilizando os diferentes perigos alimentares presentes nos 312 títulos relacionados com o risco alimentar, identificaram-se 40 perigos alimentares, com uma maior divulgação, a saber: obesidade (14,9%); vírus da gripe das aves (13%); BSE (9,3%); e, consumo de açúcar em excesso (9,3%).

Em relação à origem do alimento, confirma-se que 55,8% da totalidade dos títulos relacionados com os perigos alimentares diziam respeito a alimentos de natureza animal, como a carne de vaca e a carne de aves; 18,9% dos títulos diziam respeito a alimentos de natureza vegetal, tais como o açúcar e rebentos vegetais; 16,3% diziam respeito a alimentos de natureza mineral, como a água; e 0,6% dos títulos diziam respeito a alimentos de natureza fúngica, caso dos cogumelos (Figura 2).

Identificaram-se 67 alimentos diferentes presentes nas capas do JN, ora identificados genericamente (ex.: “carne” e “peixe”) ora identificados de um modo mais específico (ex.: “carne de porco”, “carne de vaca”). A “carne de aves” foi o alimento mais mencionado, estando presente em 45 títulos das capas do JN relacionados com os perigos alimentares, seguido da “carne de vaca” presente em 29 títulos das capas e do “açúcar”, presente em 26 títulos das capas.

Em termos de dispersão geográfica, contabilizaram-se 18 territórios nesta mediatização dos perigos alimentares. Portugal foi o território mais referido, representando 82,1% dos casos, seguido da União Europeia (UE), estando presente em 6,0% dos casos. A França e a Espanha encontraram-se em ex-quo, com 2,1% dos casos, sendo que, em 5,4% dos casos, não foi referido qualquer território diretamente no título. Aquando da crise “do vírus da gripe das aves” e da ocorrência de episódios relacionados com a BSE, existiram 10 títulos presentes nas capas do JN que abordaram dois a três territórios simultaneamente.

Em relação à utilização de elementos gráficos, verifica-se que da totalidade das notícias sobre perigos alimentares, 21,8% (n=68 títulos) utilizaram imagens. Destas, 48,5% dos títulos diziam respeito aos perigos nutricionais, seguidos dos perigos biológicos (26,5%), dos perigos químicos (17,7%) e dos perigos associados à fraude alimentar (8,8%). Não existiram títulos referentes a perigos tecnológicos que utilizassem imagens. Fazendo uma análise semelhante em relação à utilização das cores, verifica-se que da totalidade das notícias sobre perigos alimentares, 43,6% (n=136 títulos) utilizaram cores. Destas, 36% diziam respeito aos perigos biológicos, 36,8% aos perigos nutricionais, 19,9% aos perigos químicos, 6,6% a perigos associados à fraude alimentar. Identificou-se apenas um exemplar de perigo tecnológico que faz recurso à coloração (0,7%). Quanto à presença de manchetes, confirma-se que da totalidade de notícias em que existe informação sobre perigos alimentares, 29,4% (n=92) apareceram em manchetes, sendo que as relacionadas com os perigos biológicos foram as mais proeminentes (representando 39,1% do total das manchetes trabalhadas), seguidas das relacionadas com os perigos nutricionais (34,8%), perigos químicos (16,3%), e perigos associados à fraude alimentar (9,8%). Não foram registadas nenhumas manchetes relativas aos perigos tecnológicos.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Dos resultados do presente estudo, confirma-se a relevância dos perigos alimentares enquanto notícia, divulgados nas capas do JN, para o período 2000-2017, sendo que numa média anual, cerca de 4,9% dos títulos apresentados nas capas diárias do JN relacionaram-se com os perigos alimentares. No entanto, repete-se o padrão avançado anteriormente em relação à cobertura dos perigos alimentares (22), quer dizer, assiste-se a uma cobertura diferenciada dos diferentes perigos alimentares quer ao nível da sua exposição (número de notícias) quer ao nível da sua relevância (notícias de perigos alimentares em manchetes ou recursos a elementos gráficos).

Na realidade, para o período em estudo, a mediatização dos perigos alimentares foi mais intensa para os perigos biológicos, seguidos dos perigos nutricionais, químicos e fraude alimentar, contrapondo com a escassa cobertura noticiosa dos perigos tecnológicos, e a ausência de qualquer título que referisse perigos físicos. Neste contexto, confirma--se que os perigos biológicos, químicos e perigos relacionados com a fraude alimentar estão associados às crises alimentares (23), observando-se a existência de picos de frequência anual de cobertura noticiosa relacionados com perigos alimentares específicos: BSE, em 2000 e 2001; surgimento de contaminação de aves de capoeira com nitrofuranos, em 2001; vírus da gripe das aves, em 2005 e 2006; e produtos preparados com carne de cavalo, em 2013, reforçando o facto da carne de aves e da carne de vaca terem sido os alimentos mais referidos nas capas do JN para o período em estudo.

Em relação ao destaque dado à BSE pelo JN, importa contextualizar que, de outubro de 1998 a outubro de 2004, foi decretado, pela UE, o embargo à exportação de animais vivos e carne a partir de Portugal, tendo, em setembro de 2004, sido proposto pela Comissão Europeia o fim deste embargo (24). Por outro lado, a cobertura da BSE na imprensa escrita foi igualmente observada nos jornais britânicos, gregos e germânicos (25, 27). Esta cobertura ocorreu particularmente após o anúncio feito pelas autoridades britânicas, em março de 1996, de que o aparecimento de casos de encefalopatia espongiforme bovina era transmissível ao homem, anunciando-se uma nova e fatal variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (26). Estes acontecimentos provocaram nos consumidores europeus uma crise de confiança sem precedentes em relação à carne de bovino e aos produtos de origem bovina (28). Em Portugal, o consumo de carne de bovino baixou de 24% para 18%, entre 1990 e 1997 (29), evidenciando o impacte e o interesse das notícias sobre a BSE na opinião pública.

Por outro lado, a UE proibiu a utilização dos nitrofuranos para administração em animais destinados à produção de alimentos, desde 1994, devido ao facto deste grupo de fármacos estar associado a efeitos secundários mutagénicos e oncogénicos quando acumulados no organismo humano (30). No entanto, em Portugal, entre 2003-2004, foram detetados resíduos de nitrofuranos em diversas explorações de aves (30), usados ilegalmente para prevenir, a custos reduzidos e com grande eficácia, doenças nos animais (20). Perante esta situação de ameaça à segurança alimentar, a produção total de animais de capoeira registou uma redução de 12,1%, em 2003, comparativamente a 2002 (31).

Verificou-se ainda uma mediatização da crise “da gripe das aves” na generalidade dos jornais europeus, em particular para o período outubro 2005 abril 2006 (32), dado coincidir com o surgimento de aves selvagens infetadas com o vírus da gripe aviária A (H5N1) na Europa, em particular no espaço da UE (33). Quer dizer, o surgimento destes casos na Europa, consubstanciou a proximidade da ameaça, inicialmente circunscritos ao continente asiático, favorecendo a mediatização do acontecimento, já que o vírus H5N1 é particularmente virulento quer para as aves domésticas quer para os humanos, apesar do risco de infeção humana por este vírus ser muito baixo e da via alimentar ser uma via de transmissão muito pouco provável ou mesmo teórica (34).

Por sua vez, a cobertura mediática da crise “da carne dos cavalos”, decorreu da fraude detetada, em janeiro de 2013, inicialmente na Irlanda e posteriormente experienciada em diferentes países europeus, na comercialização de carne de cavalo como carne de bovino (alimentos congelados como hambúrgueres de vaca e lasanha de bovino), com indicação de uma rotulagem incorreta, levando, portanto, o consumidor ao engano (35), facto que possibilitou o retrocesso do uso da rotulagem alimentar pelos consumidores, contrariando assim a abordagem das entidades ligadas à saúde, nomeadamente pela Organização Mundial da Saúde (36), de se considerar a rotulagem alimentar, em particular a rotulagem nutricional, enquanto elemento que pode contribuir para uma melhor decisão de compra dos produtos alimentares (37-38). Posteriormente foi detetada a comercialização de carne de cavalos tratados com fenilbutazona, um anti-inflamatório utilizado como analgésico no tratamento da dor e da febre em cavalos, mas que não se destina à cadeia alimentar, devido ao facto da sua exposição estar associada à anemia aplástica humana (39). Em Portugal, esta situação levou a que a ASAE emitisse um conjunto de comunicados de imprensa a dar conta das diligências efetuadas de modo a garantir a saúde pública e a segurança alimentar dos consumidores (40).

O interesse da mediatização destes temas pelo JN é reforçado pela inclusão de elementos visuais que destacam as respetivas notícias, em particular para as notícias relacionadas com a crise “do vírus da gripe das aves” e a ocorrência de episódios relacionados com a BSE. Ora, o recurso a estes artefactos diferenciadores pode ser explicado através dos seguintes critérios de seleção noticiosa (41): i) receio/medo que os mesmos ditam (42), em particular pela perceção da falta de controlo por parte das pessoas (3, 11), explorando-se assim as consequências a curto, médio e longo prazo que os perigos comportam para a coletividade, pessoas envolvidas e suas famílias, bem como na vida dos leitores (caso da existência de vítimas mortais no caso da BSE e da gripe das aves); ii) conflito e infração de normas: proibição da utilização dos nitrofuranos e de fenilbutazona na pecuária, não obstante a sua utilização por parte de certos operados destas cadeias alimentares; iii) atualidade do assunto (caso da fraude alimentar, com evidências de infratores para a existência do acontecimento).

Por outro lado, constata-se que os perigos nutricionais foram abordados pelo JN, desde o início do milénio, de uma forma periódica, destacando--se, neste contexto, a referência ao açúcar e ao sal. Na realidade, o consumo excessivo de sal e de gorduras geram medo/ansiedade à população portuguesa (2), tendo em conta as implicações que acarretam para a saúde das pessoas (43), sendo que os media se interessam por conteúdos que são atuais e familiares à audiência (44) e que podem afetar uma elevada extensão de pessoas (45). Na realidade, embora a Organização Mundial da Saúde recomende um consumo diário de sal por pessoa de 5 gramas (43), o consumo médio de sal dos portugueses situa-se nos 10,7 g/dia (46). Por outro lado, estima-se que, em 2016, a prevalência da obesidade (IMC≥30 kg/m2) na população adulta (≥18 anos) em Portugal seja de 23,2%, e de pré-obesidade (25≤IMC<30 kg/m2) de 39,1%, contrapondo com uma prevalência a nível mundial de 13,2% e 25,9%, respetivamente (47). De igual modo, aproximadamente 10,4% das crianças e adolescentes (5-19 anos) portugueses são obesos (IMC>2 desvios-padrão acima da mediana) e 22,0% dos mesmos são pré-obesos (1 desvio-padrão acima da mediana<IMC≤2 desvios-padrão acima da mediana), contrapondo com a prevalência a nível mundial de 6,8% e 11,6%, respetivamente (47). Esta mediatização continuada dos perigos nutricionais, consubstanciada com a inclusão no planeamento gráfico das capas, da utilização de imagem, cor, e manchete, evidencia o destaque dado pelo JN a estas notícias, eventualmente com o intuito de proporcionar ao leitor reflexão sobre a melhor maneira como gerir a saúde no seu quotidiano (48-49).

Por outro lado, de acordo com os resultados do presente estudo, os territórios mais mencionados nos títulos presentes nas capas do JN de 2000 a 2017 diziam essencialmente respeito a Portugal, EU e territórios adjacentes a Portugal. É usual os media destacarem as notícias próximas da sua área de influência, relacionadas com o seu próprio país e países adjacentes (17), tendo em conta que nos valores notícia incluem-se critérios como interesse nacional, acessibilidade à fonte/local, e proximidade (45). O facto dos períodos em que foram reportados mais territórios em simultâneo corresponderem aos períodos de reporte da gripe das aves e da BSE pode estar relacionado com o caso destes perigos terem afetado diferentes países em simultâneo, interferindo globalmente nas cadeias alimentares respetivas.

CONCLUSÕES

Confirma-se a visibilidade dos perigos alimentares no JN, para o período 2000-2017, quer pelo número de notícias produzidas quer por um certo recurso a elementos visuais. Esta cobertura mediática influencia significativamente a perceção dos leitores do JN sobre a relevância destes temas, reforçada pelo facto do JN ser um jornal diário de grande circulação. No entanto, assiste-se a uma diferenciação na mediatização dos perigos alimentares: os perigos biológicos, químicos e fraude alimentar estão relacionados com as crises alimentares, localizadas no tempo, apresentando, deste modo, picos na sua frequência de cobertura mediática. Em contrapartida, os perigos nutricionais, apesar de demonstrarem frequências mensais menos elevadas, foram abordados periodicamente por este jornal para o período em análise.

 

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Endereço para correspondência

Ana Pinto de Moura

Universidade Aberta, Delegação do Porto,

Rua do Ameal, n.º 752,

4200-055, Porto, Portugal

apmoura@uab.pt

Recebido a 23 de outubro de 2018

Aceite a 10 de setembro de 2019

 

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