INTRODUÇÃO
O Parlamento Europeu define desperdício alimentar (DA), como “o conjunto dos produtos alimentares que são eliminados da cadeia agroalimentar por razões económicas ou estéticas ou devido à proximidade do fim do prazo de consumo, mas que estão ainda em estado próprio para consumo humano e que, na ausência de um possível uso alternativo, se destinam a ser eliminados e deitados fora” (1). O DA é também considerado um fenómeno de uma sociedade consumista, já que muitos géneros alimentícios são de custo acessível e de fácil aquisição para a grande maioria de indivíduos nos países desenvolvidos (2).
A Organização Mundial da Saúde manifesta preocupação relativamente à promoção de hábitos alimentares saudáveis, especialmente em idade pediátrica, devido ao reconhecimento de que os hábitos e as escolhas alimentares poderão estar associados à saúde individual (3, 4). A par da promoção da saúde, a sustentabilidade alimentar apresenta-se como uma preocupação acrescida e atual (5, 6). Melhorar a qualidade da alimentação e reduzir o impacto ambiental torna-se uma preocupação global (7), pelo que as empresas prestadoras de serviços de restauração coletiva desempenham um papel fulcral no setor alimentar escolar (8).
Concomitantemente, a capitação (quantidade da medida de uma porção ou dose de um género alimentício usada em alimentação coletiva para a produção de refeições; quantidade de alimento per capita) (9), e a redução dos alimentos desperdiçados, desde a produção ao consumo, mostram-se essenciais para que o sistema alimentar global permaneça seguro (10). Neste sentido, a avaliação do DA tem sido uma medida indireta utilizada em contexto escolar para avaliar quer a satisfação com as refeições escolares, quer o seu contexto. Esta avaliação auxilia a direcionar, assertivamente, as modificações necessárias para uma maior credibilização e aceitação das refeições, conciliando aspetos essenciais à oferta alimentar, à otimização dos processos de gestão do serviço de alimentação, e integrando a refeição e o seu contexto.
OBJETIVOS
Avaliar o DA dos alunos que frequentam duas escolas públicas do distrito de Aveiro, na refeição do almoço, no que diz respeito ao prato, em duas unidades de restauração coletiva (URC) do setor escolar público.
METODOLOGIA
População
Foi avaliado o DA da refeição almoço de todos os alunos que frequentam os refeitórios da Escola A (5.º ao 12.º ano) e da Escola B (pré-escolar ao 9.º ano), com idades compreendidas entre os 3 e 19 anos.
Amostra para a Avaliação do Desperdício Alimentar
A amostra foi obtida por conveniência, e o DA analisado resultou de 2686 refeições servidas (RS), correspondestes a 10 dias de avaliação, 5 dias seguidos em cada escola.
Material
Para a avaliação do DA, utilizaram-se as sobras de produção e os restos dos pratos dos alunos das escolas supramencionadas. A definição destes conceitos está presente na Tabela 1.
Metodologia
Estudo descritivo observacional de desenho transversal.
O DA foi avaliado através do método de pesagem (Tabela 1). A recolha de informação foi efetuada pelo investigador principal, que pesou as sobras de produção, os restos do prato e os recipientes utilizados. Note-se que as cozinheiras serviam o prato de cada aluno, à exceção da componente hortícolas, na qual eram os alunos a colocar a quantidade a consumir. Os procedimentos de quantificação do DA do prato foram os seguintes: Prato não composto, a pesagem total inicial e final realizou-se pesando separadamente os componentes do prato (conduto, guarnição e hortícolas); Prato composto, a pesagem total inicial e final realizou-se agregando todos os alimentos presentes (9, 11-12). Para garantir o cumprimento das boas práticas de higiene e segurança alimentar foi usado o seguinte material: bata, touca e luvas descartáveis; material de escritório; sacos de lixo e balança (marca Simão Vaz e modelo 200 A - balança mecânica industrial analógica com alcance de 150 kg, capacidade mínima de 2,5 kg e precisão de +/- 0,050 kg).
Para determinação da sobra de produção, pesou-se a quantidade total de alimentos produzidos em cada item prato da refeição e, no final da sua distribuição aos alunos, os desperdiçados, sendo estes valores calculados pela diferença entre o valor final e o peso do recipiente vazio. Quando cada aluno terminava a refeição, os componentes que restavam no prato eram colocados em recipientes diferentes, um por cada componente, incluindo ossos, espinhas, cascas e peles, dado que foram inicialmente contabilizados na produção. Foi aplicada a parte edível referente ao “frango assado” e ao “red fish”, de acordo com a tabela da composição dos alimentos portugueses (13). Por fim, procedeu-se ao cálculo das variáveis apresentadas na Tabela 1. Destaca-se o cálculo do número de alunos que poderiam ser alimentados com o DA obtido através das seguintes fórmulas: divisão do peso da sobra total pelo peso dos alimentos consumidos per capita e da divisão do peso do resto total pelo peso dos alimentos consumidos per capita.
O presente estudo decorreu durante 10 dias, 5 dias de recolha seguidos na escola A, seguindo-se 2 dias de intervalo e 5 dias de recolha seguidos na escola B. Este artigo encontra-se incluído num estudo original onde estavam também incluídos na avaliação do DA os itens da refeição sopa e sobremesa. No entanto, para efeitos de submissão, estes itens foram retirados.
Este projeto foi aprovado pela Comissão de Ética da Universidade do Porto (Parecer n.º75/CEUP/2019). Os dados recolhidos foram inseridos e analisados no programa de tratamento de dados estatísticos SPSS® para Microsoft Windows® e no Excel®. A análise descritiva das variáveis foi efetuada a partir da determinação de medidas de tendência central. Para a associação das variáveis, testou-se a normalidade através do teste Shapiro-Wilk, utilizando-se os testes t Student e Mann-Whitney. O nível de significância considerado foi 5% (p<0,05).
RESULTADOS
Distribuição da Amostra
A ementa definida para o item prato foi sempre diferente, consistindo em 5 pratos de pescado e 5 de carne. Foram produzidas e servidas 2686 refeições, das quais 1110 (41%) na URC da Escola A e 1576 (59%) na URC da Escola B (Tabela 1). A média das RS, por dia, foi de 269, com uma média diária de 222 na URC da Escola A e de 315 na URC da Escola B. Das RS na URC da Escola B, 48% são referentes ao pré-escolar e 1.º ciclo.
Desperdício Alimentar do Item da Refeição Prato (conduto, guarnição,hortícolas)
Produziram-se um total de 465 kg de alimentos, dos quais 348 kg (75%) foram consumidos e, dos 117 kg de DA (25%), prevaleceram os restos em detrimento das sobras, 67% e 33% respetivamente (Tabela 1), perfazendo um índice de resto (IR) de 18% e um índice de sobra (IS) de 8%. As RS distribuíram-se por tipo de ementa: 1301 pratos de carne e 1385 de pescado.
Desperdício Alimentar dos Componentes Conduto e Guarnição do Item Prato
A URC da Escola B apresentou uma maior produção de alimentos (243,81 kg vs. 182,79 kg da URC da Escola A) e um IS e IR inferior (5,19% e 16,52% vs. 8,00% e 21,61% da URC da Escola A, respetivamente (Tabela 2). A URC da Escola A produziu maior quantidade de alimentos per capita e apresentou um valor médio mais elevado de peso de resto per capita (PRpc), nomeadamente de 0,17 kg em relação a 0,16 kg da URC da Escola B. Contudo, ambas possuem o mesmo peso médio de sobra per capita (PSpc) (0,01 kg) - Tabela 2.
O IS foi, em média, de 6,89%, exibindo um máximo de 14,74% (“pescada gratinada com alecrim e arroz de ervilhas”) na URC da Escola B e um mínimo de 0,00% (“frango assado com massa” e “pá de porco
IR: Indice do resto
IS: Indice da sobra
PAC: Peso dos alimentos consumidos
PACpc: Peso dos alimentos consumidos per capita
PAD: Peso dos alimentos distribuídos
PAP: Peso dos alimentos produzidos
PAPpc: Peso dos alimentos produzidos per capita
PR: Peso dos restos
PRpc: Peso do resto per capita
PS: Peso das sobras
PSpc: Peso da sobra per capita
estufada com cenouras e esparguete”) na URC da Escola B, como apresentado na Tabela 3. Já a média de IR foi de 19,42%, que resultou num valor médio por refeição de peso de resto (PR) de 7,45 kg. Das ementas analisadas, quatro apresentaram valores de IR superiores à média, nomeadamente: “red fish com salada de batata” (39,12%), “pescada gratinada com alecrim e arroz de ervilhas” (27,48%), “filetes de pescada com arroz e milho” (25,57%) e “massa de carnes à lavrador” (19,98%) - Tabela 3.
Desperdício Alimentar da Componente Hortícolas do Item Prato Verificou-se a oferta de 9 tipos de hortícolas distintos. Em média, por dia, produziram-se 3,80 kg de hortícolas, e distribuíram-se 2,63 kg, perfazendo 1,17 kg de sobras.
Na URC da Escola A foram produzidos 16,45 kg de hortícolas, apresentando um IS inferior (22,80%) e um IR superior (17,32%) em relação à URC da Escola B (21,50 kg, 36,74% e 10,66% respetivamente). Analisando-se os dados per capita, apurou-se que a Escola A produz maior quantidade de hortícolas (0,02 kg vs. 0,01 kg da Escola B) e um valor mais baixo de PSpc (0,00 vs. 0,01 da Escola B). Contudo, ambas possuem o mesmo PRpc (0,00 kg) - Tabela 2. O IS foi, em média, de 29,18%, com um máximo foi 65,56% (“alface, cenoura e couve-roxa”) e um mínimo de 8,33% (“pepino, tomate, ervilha e milho”) na URC da Escola B (Tabela 3). Já os restos, perfizeram um total de 3,65 kg e, em média, cada refeição apresentou-se com 0,37 kg de resto. O IR dos hortícolas foi de, em média, 13,49%, com um máximo de 22,86% (“alface, beterraba e couve-roxa”) na Escola A, e um mínimo de 3,23% (“alface, cenoura e couve-roxa”) na Escola B (Tabela 3).
Número de Alunos que Poderiam Ser Alimentados com o Desperdício Alimentar obtido
Concluiu-se que 300 alunos poderiam ser alimentados com a sobra existente: 143 na Escola A e 157 na Escola B. Dada a quantidade de alimentos consumidos per capita, 604 alunos poderiam ser alimentados com o resto: 300 na Escola A e 304 na Escola B. Assim, poderiam ser alimentados com o desperdício obtido 904 alunos no período de estudo (Tabela 1).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Dada a relevância do DA para a sustentabilidade alimentar e ambiental (14-15), pretende-se contribuir para definir políticas que auxiliem a sua redução (16). O DA gerado neste estudo foi de 25%, estando os restos do prato em maior quantidade (67%), quando comparados com as sobras (33%). No caso particular das sobras, poderão indicar um excesso de produção, quer por ineficiência da gestão da produção de refeições (17), quer por desadequação entre as recomendações alimentares, a capitação definida na legislação (18) e a quantidade consumida pelos alunos por motivos como o apetite, o ambiente do consumo, as características da refeição, entre outras, ou uma conjugação destes fatores.
O IS deste estudo foi de 8% na avaliação do DA global do prato e 6,9% das suas componentes “conduto e guarnição” e 29,2% da sua componente “hortícolas”. Segundo alguns autores, valores de sobra superiores a 3% são hipotéticos indicadores de uma má gestão da URC, sendo considerados inaceitáveis (19). No que se refere à componente do prato “conduto”, verificou-se que quando o prato é composto, o IS mostrava-se mais elevado do que quando são diferenciados.
No que diz respeito aos restos, a literatura refere a sua associação direta com o grau de satisfação dos alunos (20), com a falta de consciencialização dos mesmos para o DA (21), assim como um desajuste entre o consumo real e a capitação exigida contratualmente (18). O IR geral foi de 18%, com um valor médio para o item da refeição prato, de 19,4% para os componentes “conduto e guarnição” e de 13,5% para o componente “hortícolas”. No âmbito do DA em contexto escolar, não existem valores de referência nacionais para os restos do prato, tendo-se feito uso dos limites aceitáveis decretados pelo Conselho Federal de Nutricionistas Brasileiros, que menciona valores de desperdício alimentar de restos do prato inferiores a 10% (22). Assim, todos os valores de IR encontrados foram superiores ao recomendado. Resultados idênticos, quer para as sobras, quer para os restos, foram encontrados na literatura (23-24). Note-se que os hortícolas foram a componente que apresentou maior IS e menor IR, o que indica que os alunos não o colocam tanto no prato, mas, quando o fazem, consomem o que colocam.
A URC da Escola A é a que manifesta maior quantidade de produção, sobras e restos (DA). Entre outros, tal pode ser fundamentado pelo empratamento das refeições em função de cada faixa etária como fator influenciador, pelo que a formação dos colaboradores deverá ser considerada. Para além disso, o facto de 48% das refeições da Escola B serem das valências até ao 1.º ciclo e, portanto, terem o acompanhamento por parte das educadoras no momento da refeição, pode contribuir para um menor DA (25). Um ambiente alimentar escolar saudável facilita o acesso a escolhas saudáveis e deve estar articulado com a criação de programas comunitários, envolvendo a URC, aliados a uma contínua educação alimentar de forma a promover a literacia alimentar e a reduzir o DA (26- 28). Ademais, o estabelecimento de horários mais flexíveis para as refeições escolares também deveria ser considerado. Acresce o facto de, em idade pediátrica, a socialização com os colegas ser determinante para a intenção de finalizar a refeição rapidamente. Neste contexto, o acompanhamento das refeições por parte dos colaboradores da escola, é essencial para diminuir o DA, principalmente o IR (26).
Os resultados deste estudo apoiam os efeitos benéficos de análises holísticas e aprofundadas em intervenções para reduzir o DA, por forma a melhorar o consumo alimentar e promover uma adequada gestão e, consequentemente, levar a uma maior sustentabilidade do sistema de produção de refeições e à transição para uma economia circular dos refeitórios escolares.
No decurso do presente trabalho foi possível percecionar como principal limitação o facto das componentes “guarnição e conduto” terem sido quantificados de forma agregada, não permitindo distinguir o peso separado de cada elemento. Como pontos fortes é de realçar o facto da recolha de informação ter sido sempre realizada pelo investigador principal assim como a utilização de balança igual, o que facilitou a real comparação do peso dos alimentos nos resultados entre as URC. Foi também possível manter o normal funcionamento das URC.
CONCLUSÕES
O DA do prato observado neste estudo foi de 25% para o item da refeição prato, estando os restos do prato em maior quantidade, em relação às sobras de produção (67% vs. 33%). Na avaliação do DA global do prato, o IS foi de 8% e o IR de 18%, estando estes valores acima dos limites máximos recomendados. O IS é maior para a componente “hortícolas” (29,2%) e o IR é maior para as componentes “conduto e guarnição” (19,4%).