INTRODUÇÃO E OBJETIVOS
A acne vulgar é uma patologia cutânea que se caracteriza pelo desenvolvimento recorrente ou crónico de comedões, pápulas inflamatórias, pústulas ou nódulos tipicamente localizados em áreas de pele com maior densidade de folículos sebáceos como por exemplo a face, a parte superior do tórax e o dorso) (1, 2).
Esta é uma doença muito comum, que afeta maioritariamente adolescentes e jovens adultos (1, 2). Um estudo realizado em Portugal concluiu que a prevalência era de 82,1% nos adolescentes observados (1). Além disso, a acne apresenta um forte impacto psicossocial, podendo levar a diminuição de autoestima, ansiedade, rejeição social e até ideação suicida (1, 2).
A patogénese da acne parece resultar de uma interação complexa de fatores do hospedeiro (nomeadamente a estimulação androgénica das glândulas sebáceas, disbiose do microbioma do folículo pilossebáceo e reações inflamatórias/ imunes) que pode ser influenciada pela genética e possivelmente pela alimentação (1).
Efetivamente, o papel da alimentação na acne não é claro. Por um lado, existem vários mitos nutricionais/alimentares difundidos na sociedade sem fundamento científico sólido. Por outro lado, o contraste entre a prevalência da acne nas sociedades ocidentais industrializadas comparativamente à das sociedades menos desenvolvidas, sugere que a alimentação pode ser um fator ambiental a considerar (1). Nos últimos anos, tem sido crescente a investigação na comunidade científica sobre a potencial associação do consumo de laticínios e o desenvolvimento de acne.
Simultaneamente, não é raro confrontarmo-nos em consultas de nutrição com crenças enraizadas e dúvidas sobre o papel de certos alimentos na acne, que importam discutir e esclarecer.
Neste sentido, considerou-se pertinente rever a evidência disponível sobre a relação entre o consumo de produtos alimentares lácteos e o aparecimento ou agravamento de lesões de acne.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa de Recomendações nacionais e internacionais, Meta análises (MA), Revisões Sistemáticas (RS) e estudos originais nas bases de dados National Institute for Health and Care Excellence (NICE) Guidelines Finder, National Guideline Clearinghouse, Canadian Medical Association Practice Guidelines InfoBase, Cochrane, Database of Abstracts of Reviews of Effectiveness (DARE), Bandolier, British Medical Journal Clinical Evidence, Evidence Based Medicine online e PUBMED, publicados entre 28 de Fevereiro de 2010 e 14 de Junho de 2021. Utilizaram-se os termos MeSH “Dairy Products” ou “Milk” ou “Cheese” ou “Yogurt” e “Acne Vulgaris" e “Humans”.
Foram incluidos estudos em português, inglês, francês ou espanhol, realizados em crianças e/ou adultos, que avaliassem a influência do consumo laticínios no aparecimento ou agravamento de lesões de acne. Foram utilizados como critérios de exclusão: estudos dirigidos a grávidas ou cuja intervenção primária fosse o uso de suplementos derivados do leite. Foram também excluídos artigos duplicados, artigos de opinião, artigos de revisão clássica de tema, artigos discordantes do objetivo da revisão e estudos incluídos em RS ou MA selecionadas (uma vez que considerá-los separadamente levaria a uma hipervalorização dos resultados desses estudos).
A seleção dos artigos para revisão foi feita em duplicado pelo primeiro e terceiro autores que, em caso de dúvida, discutiriam a inclusão/exclusão do artigo com o segundo autor. A taxa de concordância entre os autores na seleção dos artigos foi de 100%. Todos os autores realizaram a leitura integral e avaliaram a qualidade e nível de evidência (NE) dos artigos selecionados. Foi utilizada a Strenght of Recommendation Taxonomy (SORT) da American Academy of Family Physicians para estratificar o NE dos estudos e a força de recomendação (FR).
RESULTADOS
Obtiveram-se 36 artigos, dos quais sete cumpriram os critérios de inclusão: uma recomendação, duas RS com MA e três estudos caso-controlo (CC). Os restantes estudos foram excluídos por não responderem à pergunta colocada, por não cumprirem os critérios de inclusão, por serem artigos repetidos ou por estarem incluídos nas RS, conforme especificado na Figura 1. A Tabela 1 resume as características dos estudos selecionados para revisão e os seus resultados.
A recomendação de Zaenglein et al., 2016, avaliou a evidência científica existente acerca do tratamento da acne em adolescentes e adultos. Procurou também esclarecer qual o papel da dieta nesta patologia. Não foi realizado nenhum ensaio clínico aleatorizado e controlado que avaliasse o papel do consumo de laticínios na acne, mas vários estudos observacionais sugeriam que determinados laticínios, em particular leite magro, podia agravar acne. Deste modo, os autores concluíram que apesar da evidência disponível à data não permitir recomendar mudanças dietéticas específicas no tratamento da acne, existe evidência limitada que alguns laticínios, particularmente o leite magro, podem influenciar a acne (FR B).
A RS com MA de Juhl et al. (NE 2), 2018, teve como objetivo principal estimar a associação de acne em crianças, adolescentes e jovens adultos que consumissem produtos lácteos. Além disso, procuraram explorar a associação de acne com a ingestão de vários tipos de laticínios (leite, iogurte, queijo), teor de gordura do leite (gordo, meio-gordo, magro) e várias quantidades e frequências de ingestão (ex.: número de vezes por dia ou por semana). Os autores analisaram 14 estudos observacionais (cinco de corte transversal, cinco caso-controlo, três longitudinais e um retrospetivo), totalizando uma amostra de 78529 indivíduos (23046 com acne e 55483 controlos) com idades compreendidas entre os 7 e 30 anos.
Tabela 1: Continuação

CC: Estudo caso-controlo
EO: Estudos Observacionais
FR: Força de recomendação
MA: Metanálise
NE: Nível de Evidência
OR: Odds ratio
RS: Revisão sistemática
Em seis estudos, acne foi autorreportada num questionário enquanto em oito estudos foi um diagnóstico confirmado por médico. Concluíram que o consumo de leite e iogurte estava associado a um odds ratio (OR) superior para acne enquanto que o consumo de queijo estava associado a um OR borderline, comparativamente com o não consumo destes produtos lácteos. A estratificação por frequência de ingestão revelou que um consumo igual ou superior a 1 copo por dia estava associado a um OR superior para acne, comparando com um consumo inferior a 1 copo por semana. Pelo contrário, um consumo intermédio (de 2 a 6 copos por semana) não foi associado um OR superior quando comparado ao consumo de 1 copo por semana. A análise estratificada do teor de gordura dos laticínios demonstrou que, comparando com as estimativas gerais, produtos lácteos gordos, como o leite gordo, tinham OR menores enquanto o leite magro tinha um OR superior. Contudo, foi detetada heterogeneidade e vieses dos estudos e um possível viés de publicação na categoria “qualquer tipo de leite”. Os autores da RS em questão procuraram analisar e explicar a heterogeneidade encontrada e atribuem-na à variedade de laticínios e características dos estudos incluídos.
A RS com MA Dai et al (NE 2), 2018, teve como objetivo principal examinar a associação entre consumo de leite e o risco de acne. Foi também realizada uma subanálise para a gravidade da acne, tipos de leite e níveis de ingestão. Os autores analisaram 13 estudos observacionais (quatro estudos coorte e cinco estudos caso-controlo e quatro de corte transversal), perfazendo um total de 71819 indivíduos com idades compreendidas entre os 9 e os 60 anos. Quanto ao método de diagnóstico da acne, nove dos 13 estudos foram avaliados através da observação da pele, enquanto quatro estudos foram validados por autorreporte. Foi demonstrada uma associação entre o consumo de leite e o desenvolvimento de acne. A subanálise dos tipos de leite revelou uma associação mais forte nos consumidores de leite com baixo teor em gordura (comparativamente aos consumidores de leite gordo e meio gordo). Em relação aos níveis de ingestão, a subanálise revelou que o OR foi superior para consumos mais elevados de leite, comparativamente com consumos médios. No geral, não pareceu existir um viés de publicação, porém, os autores não excluem esta possibilidade na análise por subgrupos. Além disso, referem não existir grande heterogeneidade nos artigos incluídos. No entanto, dois dos artigos não foram considerados de alta qualidade.
O estudo CC Suppiah et al. (NE 2), 2018, teve como objetivo principal avaliar a associação entre a acne vulgaris e a ingestão dietética em Malaios. O estudo incluiu 114 participantes (57 doentes com acne vulgaris e 57 controlos) com idade igual ou superior a 14 anos. Os autores concluíram que o consumo de leite foi significativamente superior nos doentes com acne comparativamente aos controlos. A incidência de acne foi duas vezes superior para os doentes com ingestão de dois ou mais copos de leite por dia. Pelo contrário, não reportaram associação entre consumo de iogurte e acne.
O estudo observacional transversal Penso et al 2020 (NE 2) tinha como objetivo identificar associações entre o comportamento alimentar e o desenvolvimento de acne em adultos. Foi realizado um auto- questionário a 24452 participantes, sobre a presença ou ausência de acne no passado e no presente, assim como questões sobre os seus padrões alimentares. Para análise dos dados as variáveis foram ajustadas a potenciais confundidores como a idade, sexo, atividade física, estado fumador, nível educacional, consumo energético diário, número de registos dietéticos concluídos e sintomas depressivos. Verificou-se uma associação positiva entre o consumo de leite e a presença acne (OR ajustado, 1,12; 95% CI, 1,00-1,25; p= 0,04).
O estudo CC de Kara et al 2020 (NE 2) tinha como objetivo avaliar a influência do padrão alimentar no desenvolvimento de acne. Foram avaliados 106 participantes (53 com acne e 53 controlo), com idades entre os 13 e os 44 anos. Cada participante foi avaliado por um dermatologista que classificou a acne de acordo com uma escala reconhecida. O padrão alimentar foi avaliado por um diário alimentar de 3 dias. Os participantes foram questionados especificamente sobre a frequência média diária de consumo de leite, iogurte e queijo. Verificou-se que o consumo de queijo foi superior no grupo com acne (1434,05 ± 989,52 g) comparando ao grupo controlo (1039,24 ± 669,04 g) (p<0,05). Não existiram diferenças com significado estatístico para o consumo de leite, iogurte, gelado ou kefir (p >0,05). O estudo CC Dreno et al 2020 (NE 2) tinha como objetivo identificar os fatores mais envolvidos no desenvolvimento de acne. Analisaram 6679 participantes com idades entre os 15 e os 39 anos (2826 com acne confirmado por um profissional de saúde e 3853 sem acne, no grupo controlo). Realizaram um questionário online que incluia questões sobre o seu estado de acne e padrões alimentares. Concluiu-se que o grupo com acne consumia mais produtos lácteos numa base diária (48,2%) comparando ao grupo controlo (38,8%) (p<0,001).
ANÁLISE CRÍTICA
O papel da alimentação na acne é uma preocupação frequente e que gera dúvidas na população (10). Nos últimos anos têm surgido estudos que apontam para a existência de uma relação entre o consumo de laticínios e o desenvolvimento de acne.
Analisando os resultados de forma global, os três artigos que estudaram o consumo de laticínios (sem discriminação) mostraram uma associação com desenvolvimento de acne (Recomendação, RS+MA e um estudo CC). Cinco dos seis artigos que avaliaram o consumo de leite de forma individualizada mostraram uma associação entre o consumo de leite e a presença de acne (Recomendação, duas RS+MA, estudo CC e estudo observacional), sendo que apenas um estudo CC não encontrou associação. Dos quatro artigos que avaliaram o consumo de iogurte de forma isolada, uma RS+MA encontrou uma associação com desenvolvimento de acne (enquanto que a recomendação e dois estudos CC não encontraram associação). A evidência foi contraditória no caso do queijo.
Assim, de acordo com esta revisão, parece que o consumo de leite, especialmente magro associa-se ao desenvolvimento de acne. Pelo contrário, a evidência existente é inconsistente quanto ao papel dos outros laticínios.
Os artigos encontrados estudaram populações de vários continentes (Americano, Europeu, Asiático e Africano), permitindo inferir que os dados encontrados se aplicam a populações com características sociodemográficas distintas entre si.
Tem sido proposto que a associação leite-acne se possa atribuir à presença de componentes hormonais naturais ou de outras molé- culas bioativas no leite. Outra hipótese aponta para que o aumento dos níveis de insulina como fator de crescimento (IGF), secundários à ingestão de laticínios, possam ser a causa desta relação (2). Alguns autores teorizam que a proteína do soro de leite tenha um papel na fisiopatologia da acne (4). Nessa sequência, uma explicação possível para a associação mais significativa com o leite magro pode prender-se com o facto da quantidade total de leite ingerida poder ser maior no caso do leite magro, comparativamente ao leite gordo, o que pode ser justificado pelo facto do leite magro, devido ao seu menor teor de gordura, provocar uma menor saciedade, levando a uma maior ingestão total de proteína do leite (4).
Apesar dos resultados dos estudos analisados serem orientados para o doente e consistentes no caso do leite, os estudos existentes são ainda de moderada qualidade para que se possa tomar uma decisão com elevado grau de confiança. O número reduzido de artigos encontrados e o facto de os estudos serem globalmente heterogéneos, nomeadamente no que se refere ao desenho e à qualidade dos mesmos, constituiu uma das principais limitações desta revisão, dificultando a toma de decisões inequívocas. O facto dos estudos analisados terem procurado explicar a heterogeneidade encontrada é um aspeto favorável. Além disso, importa salientar que, uma vez que os artigos analisados se baseiam em estudos observacionais, não é possível inferir que existe uma causalidade laticínios-acne ou que a evicção do leite levaria a uma melhoria das lesões de acne ou preveniria o seu aparecimento. Para essa finalidade, seriam necessários ensaios clínicos randomizados e e duplo-cegos, muitas vezes difíceis de realizar no âmbito das Ciências da Nutrição. Esta revisão evidencia a importância e necessidade de continuar a desenvolver investigação nesta área. Futuramente, seria útil a realização de estudos que analisassem separadamente os diferentes tipos de laticínios, teores de gordura e com melhor quantificação das quantidades ingeridas. Desta forma, seria possível clarificar o papel dos outros laticínios que não o leite no desenvolvimento da acne, analisar melhor a relação dose-resposta e tomar decisões com base em evidência devidamente fundamentada.
O papel dos profissionais de saúde na abordagem da acne passa pela redução de eventuais fatores de risco modificáveis. Por um lado, não é claro que a evicção isolada de leite da dieta represente riscos nutricionais significativos. Por outro, a FR não é forte para as recomendações efetuadas devido à qualidade e heterogeneidade dos estudos incluídos.
Transpondo os resultados desta revisão para a prática clínica, os autores consideram que, perante questões dos doentes em consulta, e seguindo os princípios do método clínico centrado no doente, estes devem ser envolvidos na prestação de cuidados, pelo que devem ser elucidados da evidência científica disponível e das suas limitações, para que possa ser tomada uma decisão informada e individualizada (11-12).
CONCLUSÕES
De acordo com a evidência atual disponível, parece existir uma associação entre o consumo de alguns laticínios, especialmente o leite, e desenvolvimento de acne. Essa relação parece ser mais evidente para o leite magro e para maiores frequências e quantidades de leite (FR B). Porém, os estudos são controversos relativamente a outros produtos lácteos (FR B). No futuro, seria importante a realização de mais estudos de boa qualidade, homogéneos e com amostras relevantes para que se possam fazer recomendações devidamente fundamentadas.