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Revista Onconews

Print version ISSN 1646-7868On-line version ISSN 2183-6914

Revista Onconews  no.42 Porto June 2021  Epub June 15, 2021

https://doi.org/10.31877/on.2021.42.04 

Artigo Teórico

O papel da formação profissional contínua no processo de humanização do ambiente hospitalar.

The role of continuing professional training in the process of humanization of the hospital environment.

Rosa Proença1  , Doutoranda em Ciências da Educação

Henrique Vaz2  , Professor Auxiliar

Sofia Pais3  , Professora Auxiliar

1 Doutoranda em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal. rm.proenca@hotmail.com; up201609896@edu.fpce.up.pt

2 Professor Auxiliar Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal. henrique@fpce.up.pt

3 Professora Auxiliar Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal. sofiapais@fpce.up.pt


Resumo

Este artigo traz para a discussão o papel que a formação profissional contínua pode ter na humanização do ambiente hospitalar. Numa época em que (também) as instituições de saúde se norteiam por indicadores de produtividade e padrões de qualidade, com as novas tecnologias a ganhar espaço e domínio, a necessidade de se humanizar os serviços de saúde tem sido amplamente discutida e mesmo reclamada, com a própria tutela a reconhecer que há um importante trabalho a desenvolver nesse sentido. Neste paradigma, e tendo em conta os princípios basilares da formação profissional contínua, é legítimo questionar o papel que ela pode ter enquanto processo de humanização num contexto diferenciado como é o hospital.

Os dados encontrados neste estudo realizado num hospital apontam, precisamente, para a necessidade de a formação contínua dos hospitais atender mais ao seu lado interativo e reflexivo, condições que a aproxima dos princípios da humanização.

Palavras-chave: Formação Contínua; Hospital; Humanização; Trabalho

Abstract

This article brings to the discussion the role that continuous professional training can have in the humanization of the hospital. At a time when (also) health institutions are being based on productivity indicators and quality standards, with new technologies gaining space and dominance, the need to humanize health services has been widely discussed and even claimed, with the rulers themselves to recognize that there is important work to be done in this sense. In this paradigm, and considering the basic principles of continuing professional training, it is legitimate to question the role that it can have as a process of humanization in a differentiated context such as hospital.

The data found in this study conducted in a hospital point precisely to the need for the continuous training of hospitals focusing more on its interactive and reflective side, conditions that bring it closer to the principles of humanization.

Keywords: Continuing Training; Hospital; Humanization; Work

Introdução

O título deste artigo remete imediatamente para o campo da formação contínua e o papel que ela pode ter na promoção da humanização nas instituições de cuidados de saúde e de um modo em particular no contexto hospitalar. Contudo, antes de debatermos o papel da formação e a sua vinculação à humanização, interessa primeiramente refletir e trazer para a discussão o conceito humanização em saúde e as últimas orientações do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para a humanização dos hospitais portugueses.

Humanização do ambiente hospitalar: um desafio à formação e à praxis

No campo da saúde, a humanização tem assumido centralidade nos debates atuais sobre a necessidade de as instituições de saúde apostarem em estratégias de intervenção humanizada, dirigidas não só aos utentes mas também aos profissionais de saúde (Braz & Cavalcante 2017; Souza & Maurício, 2018; Waldow & Borges, 2011). Falar de humanização nos serviços de saúde remete para a preservação da dignidade e do respeito pelos valores humanos no contexto mais essencial como é o da prestação de cuidados de saúde. Neste contexto, o conceito de humanização ganha outra amplitude ao integrar os princípios da universalidade, da integralidade e da equidade no acesso à saúde e aos cuidados assistenciais (Medeiros & Batista, 2016). Estes princípios abrangem aspetos sociais, éticos, morais e circunstanciais dos intervenientes, traduzidos no acesso atempado a cuidados com qualidade, no respeito pelas diferenças e pelas preferências, na empatia e no tratamento justo e respeitoso (Deslandes, 2004, Rios, 2009).

O entendimento de humanização no campo da saúde abrange ainda os deveres, mas também o direito dos profissionais de saúde a condições de trabalho igualmente dignas, justas e valorativas (Hennington, 2008; Souza & Maurício, 2018).

Por se tratar de um processo altamente complexo e dinâmico, Souza e Maurício (2018, p. 500) defendem que “como política, a humanização na saúde orienta práticas assistenciais e de formação, que clamam o envolvimento de todos os sujeitos”. Nesse prisma, o SNS lançou em 2019 um programa dedicado à humanização dos hospitais que assenta no compromisso por parte destas instituições em tomarem medidas que promovam a humanização do ambiente hospitalar. No programa, constam medidas transversais a toda a estrutura hospitalar, em que se incluem os espaços físicos e a qualidade, mas com um enfoque muito particular nas atitudes e comportamentos enquanto manifestação máxima dos valores humanos e de respeito pela dignidade da pessoa. Quarenta e nove hospitais e unidades de saúde assinaram este programa em forma de compromisso, onde constam orientações de atuação e prazos de execução. Não iremos neste artigo debruçar-nos sobre os termos desse programa, mas sim tentar perceber o lugar que a formação profissional contínua pode ter neste processo de humanização do ambiente hospitalar. Embora este trabalho se tenha inspirado no desafio lançado aos hospitais, esse foi apenas o ponto de partida para refletir a formação em um hospital dos quarenta e nove que assinaram esse programa sob essa perspetiva de humanização.

O desafio lançando aos hospitais implica que estes tenham capacidade de enfrentar e responder a problemas complexos de ordem social, organizacional e política. É sabido que os hospitais representam um importante papel no sistema de saúde português, e a sua gestão tem de atender, também, às questões orçamentais que conflituam muitas vezes com a necessidade de respostas sociais e assistenciais, nomeadamente a nível da humanização (Gonçalves, 2008). Nestas condições, a formação profissional contínua dos hospitais pode afigurar-se como um dispositivo no qual se materializam estas políticas de humanização, o qual, dada a natureza daquela, estará fortemente orientado para as questões de ordem social, moral e ética. Será este, também, um desafio para os atuais modelos de formação e uma oportunidade para esta se (re)configurar na aproximação às suas dimensões humana, cultural e social. Reconhecendo a necessidade de instigar à reflexão sobre o potencial da formação contínua na humanização dos serviços de saúde, o objetivo deste trabalho é trazer para a discussão a trajetória dos atuais modelos de formação de um contexto tão diferenciado como é o hospital.

Assim, pretende-se aqui perceber até que ponto a formação contínua do hospital atende ao desafio lançado pelo SNS para a humanização do ambiente hospitalar, ou se esta necessita primeiramente de se reorientar para a sua dimensão mais humana e social, em primeira instância o foco da humanização. Por outras palavras, pretende-se perceber se a formação está preparada para assumir o seu papel nesse desafio. Nesse intuito, procurou-se compreender, a partir de um conjunto de comentários tecidos pelos trabalhadores e trabalhadoras do hospital onde decorreu este estudo, em que medida o teor dos mesmos pode acentuar práticas formativas institucionais nas quais as dimensões do processo de humanização estejam evidenciadas, quer seja pela sua presença ou pela sua ausência.

A formação profissional contínua no alcance de indicadores legais, normativos e competitivos

Assiste-se à importância crescente que a formação contínua tem vindo a assumir, enquanto promotora de conhecimentos práticos e processuais orientados para a atividade hospitalar e para o exercício profissional dos que nele trabalham. Não obstante, parece prevalecer uma transformação do sentido para a formação no que diz respeito aos conhecimentos e saberes que ela prioriza num contexto altamente diferenciado e com demandas tão distintas quanto ao objeto e métodos de trabalho, tendo em conta que de uma forma direta ou indireta toda a atividade hospitalar se centra na prestação de cuidados, e em última instância na responsabilidade pela vida de outrem. Ao mesmo tempo, a organização do trabalho do hospital atende a uma dualidade de objetivos, sendo que se o primeiro se inscreve na ordem do cuidar, fica, de certo modo, condicionado pelo segundo, que atenta à sua sustentabilidade financeira (Gonçalves, 2008; Nunes, 2016). Como refere Gonçalves (2008), o hospital está sujeito às exigências e imposições orçamentais e à lógica de “eficiência” e “produção” que regulam os atuais modelos de gestão hospitalar.

Estes fundamentos enformam uma questão que se prende com a intenção do desafio do SNS para a humanização dos hospitais, e se aquele, de alguma forma, não poderá ser entendido como um indicador de que a formação deve problematizar a dimensão tecnicista e procedimental que tem vindo a privilegiar e procurar constituir-se mais num processo reflexivo, de educação e humanização (Braz & Cavalcante, 2017; Correia, 2010; Picado & Lopes, 2010).

É notável a dimensão que a formação de âmbito legal e normativo assume no plano de formação dos hospitais, por forma a dar cumprimento a um conjunto de normas e critérios impostos pelas Entidades reguladoras e certificadoras, nacionais e internacionais, em áreas consideradas estratégicas, relacionadas com a qualidade, a segurança e a saúde. Como assinala Rodrigues (2016), um capítulo significativo dos planos de formação atende a critérios de obrigatoriedade legal. Pinho (2012) aprofunda estas questões da qualidade e de certificação a que as instituições de saúde têm de responder e afirma que, “para conseguirem a acreditação, as organizações têm de demonstrar uma conformidade aceitável com todas as normas obrigatórias e opcionais e têm de atingir um resultado numérico mínimo nas mesmas” (Pinho, 2012, p.54). Grande parte das obrigatoriedades e conformidades que a autora refere fundamentam-se nas Normas ISO e num conjunto de outras normas definidas pelo Caspe Healthcare Knowledge Systems (CHKS), pelas quais a maioria dos hospitais são avaliados. A estes requisitos mais normativos, acrescem outros de ordem legal definidos pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), assim como “recomendações” do Ministério da Saúde, a quem os hospitais respondem diretamente. No seu conjunto, estes requisitos fundamentam uma série de formações consideradas obrigatórias e mesmo prioritárias já que a certificação das instituições, neste caso dos hospitais, tem esse aspeto em consideração.

A frequência destes cursos de caráter obrigatório é muitas vezes referida como um obstáculo à disponibilidade dos trabalhadores para realizarem outro tipo formação de âmbito mais educativo e reflexivo, que oriente para os valores éticos e morais. Como lembra Catão (2011), os hospitais foram criados para dar assistência física e espiritual, e será nesta dimensão mais centrada na “pessoa”, na qual se reflete a humanização, que a formação pode alcançar uma ação importante.

Por outro lado, as transformações ocorridas na organização hospitalar vieram afetar a conceção do trabalho e a forma como os trabalhadores se revêm nele. No entendimento de Cecílio e Feuerwerker (2007), a “mecanização” do hospital levou à reorganização do trabalho hospitalar e ao reposicionamento dos seus profissionais, tendo como primeira implicação a menor interação dos profissionais entre si e com o doente. Porventura, esta amplificação tecnológica contribuiu para afastar o hospital do seu pressuposto de entidade humanizada. Nesta conjuntura, e mediante as constantes inovações no campo de saúde, os planos de formação dos hospitais foram (re)orientados para a promoção e consolidação de saberes e práticas mais tecnicistas. Portanto, as crescentes e diferentes exigências com que o hospital atualmente se confronta têm efeitos não só na organização do trabalho hospitalar que, como já foi exposto, cada vez mais se orienta para indicadores de qualidade e eficiência (Gonçalves 2008), como na estruturação da sua formação contínua. Com efeito, a formação tende a acompanhar a mesma trajetória já que, como defende Rodrigues (2016), o seu foco se orienta cada vez mais para melhorar o desempenho dos trabalhadores numa lógica de qualidade e competitividade, subvalorizando o seu potencial de educação e de promoção de valores basilares da humanização.

Esta nova realidade impõe uma notável assimetria entre trabalho enquanto processo de humanização, e o trabalho enquanto meio de “produção”, onde a primeira noção tem vindo a perder espaço para a segunda, o que, de acordo com Nora, Zoboli & Vieira (2015), induz nos profissionais de saúde um estado de “sofrimento moral”.

A mesma assimetria parece replicada na formação, já que, como refere Correia (2010), a formação outrora desejada e reclamada pelos trabalhadores afigura-se agora como uma imposição perante a necessidade de responder a requisitos legais, normativos e competitivos os quais, como foi referido, determinam uma parte significativa da formação contínua dos hospitais.

A humanização e o trabalho hospitalar

Apesar de este estudo assumir como tema central o papel da formação contínua na humanização do ambiente hospitalar, não pode desconsiderar que sendo a humanização um conceito intrínseco à ação humana, ele tem implícito um referencial subjetivo que se reflete na educação e na formação, mas também (se não mais) no trabalho. Deste modo, a humanização do ambiente hospitalar não pode ser compreendida à margem das novas perspetivas do trabalho em saúde (Braz & Calvacante, 2017).

Com efeito, a organização do trabalho hospitalar assenta cada vez mais numa perspetiva tecnicista o que o distancia da perspetiva humanista que está na sua génese (Cecílio & Feuerwerker, 2007; Pusch, 2010). Por outro lado, Carapinheiro (1993) destaca a assimetria das relações profissionais existentes no hospital, fortemente caraterizadas por hierarquias que, na prática, se traduzem nos diferentes níveis de autonomia e de poder. Para Silva, Monteiro e Pinto, (2016), essas desigualdades no reconhecimento e nos poderes dos diferentes grupos profissionais constitui-se no primeiro obstáculo à humanização das equipas, o que, por sua vez, se reflete na humanização dos cuidados de saúde. Neste contexto, é de há muito reconhecida a falta de recursos, nomeadamente humanos nos serviços de saúde, o que terá efeitos incontornáveis nas respostas destas instituições às questões éticas, morais e sociais, e, por conseguinte, à humanização do seu ambiente. É preciso ter igualmente em consideração que os profissionais de saúde estão sujeitos a vários tipos de pressão relacionados com a responsabilidade, a sobrecarga de trabalho, o excesso de procedimentos burocráticos e a falta de reconhecimento e valorização profissional (Silva, Monteiro & Pinto, 2016). Estas condições terão certamente efeitos, quer ao nível da humanização do trabalho que estes profissionais desenvolvem, quer no significado que reconhecem à formação que lhes é proposta.

É por isso muito provável que a atual organização do trabalho hospitalar, pelos motivos já expostos, se constitua no maior obstáculo à humanização do seu ambiente, já que exerce uma “influência causal sobre os indivíduos” (Caetano, 2011), isto é, exerce influência na forma como os seus profissionais se posicionam face ao seu trabalho. Assim, como afirmam Backes, Filho e Lunardi (2006), a humanização dos cuidados hospitalares depende em grande parte das condições materiais e humanas que os profissionais de saúde têm ao dispor. Acrescentam estes autores que, mais do que de uma orientação ou um compromisso, a humanização do ambiente hospitalar começa pelo atendimento às necessidades dos profissionais de saúde e pela valorização destes profissionais por parte da gestão. No mesmo sentido, Pusch (2010) defende que cabe primeiramente ao hospital providenciar as condições que promovam a humanização, a começar pelo “cuidar” dos seus profissionais, criar sistemas de comunicação eficazes e políticas institucionais que promovam a coesão. Este cuidado dirigido aos profissionais é entendido por Waldow e Borges (2011) como sendo o primeiro passo para a humanização dos serviços de saúde.

Todavia, a maior ou menor presença destas condições no trabalho não demite a formação da responsabilidade de procurar constituir-se num processo mais interativo, dinâmico e participado, aproximando-se da visão da formação enquanto processo de educação e humanização (Correia, 2010; Picado & Lopes, 2010).

Metodologia

Este estudo, de natureza exploratória e descritiva, faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre os princípios, as práticas e os efeitos da formação contínua em contexto hospitalar. Foi desenvolvido num hospital e consistiu na análise de conteúdo aos comentários que os/as trabalhadores/as fizeram à formação que ali realizaram nos anos 2017, 2018 e 2019. Estes comentários estão previstos nos questionários de satisfação da formação que a instituição aplica a todos/as os/as formandos/as para avaliar a formação que realizam. O questionário é anónimo e respondido on-line através de uma aplicação informática. O campo destinado a comentários/observações é aberto e de preenchimento facultativo. Esse caráter facultativo justifica o facto de, em 12305 inquéritos de satisfação preenchidos neste período temporal, apenas 531 terem comentários adicionais. Da análise aos referidos comentários foram criados dois eixos categoriais, um para os comentários que destacavam a formação pela positiva, outro para os que observavam sobre aspetos a melhorar. No total, a análise resultou em 26 categorias temáticas tendo em consideração os diferentes aspetos mencionados pelos/as trabalhadores/as. Dado o anonimato dos comentários, eles foram numerados e elencados aos cursos a que se referiam, os quais, por razões éticas, não são identificados. Contudo, para aprofundar a compreensão e contextualizar a informação obtida nesta pesquisa, é feita uma referência genérica aos cursos, cujos comentários foram mobilizados para este artigo.

Os quadros 1 e 2, apresentados a seguir, representam os dois eixos categoriais e respetivas categorias.

Quadro 1 Eixo temático: Aspetos a melhorar 

Quadro 2 Eixo Temático: Aspetos positivos 

Resultados

Conforme representado no quadro 2, a categoria “utilidade da formação” destacou-se relativamente a todas as restantes ao merecer 107 comentários, o que corresponde a 20% do total dos comentários dos dois eixos categoriais. Aqui, foram registados todos os comentários onde os/as trabalhadores/as referiam que a formação foi útil e as temáticas abordadas interessantes. Sobre a utilidade, existe apenas um comentário no quadro 1 que se integra no eixo categorial “aspetos a melhorar”. Também no quadro 1, situa-se a segunda categoria com maior número de registos, que foi a “duração da formação” com 85 comentários, correspondendo a 16% do total. Nesta categoria, foram elencados os comentários com referência ao tempo ou duração dos cursos. No seu conjunto, estas duas categorias concentram 192 registos, equivalendo a 36% dos comentários. As categorias mais próximas destes registos foram a “componente prática”, com 42 comentários, os “conteúdos” com 40, e o “desempenho do formador” com 38. Nas restantes categorias verifica-se uma distribuição muito abaixo destes números. As expressividades das duas categorias mais comentadas justificaram que esta análise se concentrasse nos comentários sobre a utilidade e a duração da formação.

Análise dos resultados

A análise mais contextualizada aos resultados pretende ajudar a vislumbrar o sentido conceptual que eles podem adquirir neste estudo.

Os comentários aqui transcritos dizem respeito a cursos classificados pelo hospital como sendo de desenvolvimento e valorização pessoal. A opção de mobilizar estes comentários deve-se ao facto de os cursos a que se circunscrevem se aproximarem mais das questões da humanização que este artigo reflete.

Utilidade

A primeira informação a extrair da análise é que, dos 108 comentários da categoria utilidade da formação, 107 consideram que a formação que realizaram foi útil.

Formação de grande utilidade, mas com necessidade de ser feita em mais horas, muito pouco tempo para aprender algo que poderia ser uma ferramenta de grande utilidade para o dia a dia (formação em gestão de stress).

A formação foi oportuna e útil. Devem existir mais formações sobre esta temática, com este formador (formação em comunicação e liderança).

Formação muito útil. Formadores excelentes (formação em Burnout).

Soberba esta formação/conferência. O formador falou em questões que nos dizem respeito a todos. A assistência mostrou muito interesse e foi até pedido que se realizasse uma segunda formação para abordar outros temas que ficaram pendentes (formação em inteligência espiritual).

Ainda dentro da categoria utilidade, 68 comentários eram referentes a formações não obrigatórias, enquanto 38 eram referentes a formação de carater obrigatório.

No sentido inverso, apenas um comentário considerava que a formação não teve qualquer utilidade.

Duração da formação

Os 85 comentários da categoria “duração da formação” pertencem todas ao eixo categorial “aspetos a melhorar”, onde 82 consideraram que a formação deveria ter sido mais longa.

Atendendo ao interesse das temáticas abordadas, considero que seria pertinente que a formação tivesse mais horas (formação sobre motivação).

Formação maravilhosa, mas muito curtinha, merecia mais horas (formação sobre coaching).

Ainda relativamente a esta categoria, constatou-se que 72 comentários são referentes a formação não obrigatória. Os restantes 13 comentários eram referentes a formação obrigatória.

Do total dos comentários desta categoria, apenas 3 consideraram a duração da formação excessiva. Estes 3 comentários eram referentes a cursos obrigatórios.

Discussão dos resultados

Os dados aqui apresentados não esgotam as possibilidades de análise, contudo, identificam um conjunto de questões que podem mobilizar a formação para um exercício dialógico e reflexivo. Com efeito, estas considerações permitem desenvolver uma noção de que a formação pode incorporar nos seus modelos ações que permitam maior interação entre os profissionais, e que estas ações tenham o tempo necessário para a reflexão e apropriação dos conceitos e princípios que abordam.

Estes assuntos merecem mais tempo para discussão e reflexão (Formação sobre assédio).

Os discursos dos participantes deste estudo legitimam a dedução de que a formação deve posicionar-se para além da abordagem expositiva, e procurar trazer os formandos literalmente para o contexto formativo (Picado & Lopes, 2010).

Deveria ser uma formação com maior carga horária para permitir o desenvolvimento mais aprofundado de temáticas relacionadas com as relações interpessoais, comunicação, nomeadamente através de atividades práticas (formação em gestão emocional).

Penso que seria útil complementar a formação com mais tempo de discussão de casos reais (formação em gestão de conflitos).

Salienta-se o facto de haver necessidade de se aumentar esse tempo e espaço para a reflexão e partilha, dado que foi um dos aspetos mais reivindicados pelos/as trabalhadores /as do hospital.

Esta formação necessita de mais tempo para se conseguir aprofundar melhor o tema e dar espaço à partilha de experiências de todos os, participantes” (formação em gestão emocional).

Como diz Pinho (2012), é necessário que o exercício profissional seja também um espaço de socialização onde os profissionais de saúde possam partilhar as suas experiências e as suas dificuldades, que leve à reflexão sobre a dimensão humana e social do seu trabalho.

Repetir para quem não teve oportunidade de frequentar. Voltar a convidar o formador para aprofundar o tema e abordar a questão da eutanásia (formação sobre humanização).

Conclusão

Neste trabalho, damos conta dos desafios que se colocam à formação contínua dos hospitais, sem, contudo, assumir (a) resposta para a interrogação inicial que questionava o seu potencial transformador na humanização do ambiente hospitalar. Não obstante o reconhecimento desse potencial, a perpetuação da questão prende-se com a possibilidade de a formação estar porventura condicionada por requisitos normativos e modelos tecnicistas que comprometam, assim, o seu lado mais humanizador. Por outro lado, a atividade formativa não é alheia à conceção e à organização do trabalho hospitalar cujas prioridades estão definidas e orientadas para a atividade assistencial, e, por isso, em grande parte determinado por demandas nem sempre previsíveis, tanto quanto imprevisíveis são por vezes as necessidades dos doentes (Graça 2000). A estes condicionantes são ainda de acrescentar as já discutidas dificuldades e constrangimentos a que os profissionais de saúde estão sujeitos. Consideramos, por isso, que a formação pode ter o forte potencial de humanização que anuncia, ao promover o pensamento crítico e reflexivo, ao inspirar o compromisso ético e profissional (Canário, 2013; Correia, 2010; Deslandes, 2004) mas para que esse potencial se torne tangível terá de se debater com os diferentes constrangimentos que fomos abordando e, nesse sentido, de rever as suas prioridades e as suas abordagens.

Como constatamos, humanizar o ambiente hospitalar assume-se como um processo complexo e abrangente, onde concorrem condições organizacionais e disposições pessoais (Medeiros & Batista, 2016). Será nesta última dimensão, mais orientada para a reflexão crítica e para a autorreflexão dos profissionais de saúde, que a formação contínua do hospital oncológico pode ter um papel determinante, mas para isso tem de tomar um conjunto de iniciativas, desde logo privilegiar a efetiva participação dos formandos e promover as interações e partilhas, conforme observaram os participantes deste estudo.

Gostaria da formação durante mais tempo para se colocar mais caso práticos e discussão de ideias (formação em gestão emocional).

Sem poder escapar totalmente aos requisitos legais e normativos que condicionam a sua formatação, a formação do hospital deve, contudo, atentar a outras contribuições que sustentem uma orientação epistemológica mais abrangente enquanto exercício permanente de reflexividade (Canário, 2013).

Cabe, assim, resgatar o significado que podem assumir as falas dos profissionais do hospital onde se realizou este estudo, que reconhecem a utilidade da formação, mas que ao mesmo tempo destacam a necessidade de ela ser mais alargada de modo a permitir maior participação e mais tempo para as questões da humanização.

Realizar mais formações nesta área. Com um volume de trabalho tão elevado e recursos reduzidos, a humanização fica um pouco esquecida. (formação sobre humanização).

Estas considerações apontam para a necessidade de a formação do hospital se aproximar mais do seu referencial de humanização e assumir-se como geradora de práticas sociais. De outro modo, como defendem Medeiros e Batista (2016), corre o risco de perder o seu “potencial transformador”, e nessa perspetiva a humanização que anuncia pode não passar de um construto semântico. Contudo, esse não deve ser um exercício solitário na medida em que a própria organização do trabalho hospitalar tem de construir uma visão global sobre a relação entre a formação e o trabalho, uma vez que a humanização ultrapassa as fronteiras de cada uma destas dimensões.

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Recebido: 03 de Dezembro de 2020; Aceito: 28 de Março de 2021

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