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Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online

versão impressa ISSN 2183-8453

RPSO vol.11  Gondomar jun. 2021  Epub 07-Jan-2022

https://doi.org/10.31252/rpso.06.02.2021 

Artigo de Opinião

A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO ESSENCIAL NO BRASIL: PANDEMIA E SAÚDE DO TRABALHADOR

PREACARIZATION OF ESSENTIAL WORK IN BRAZIL: PANDEMIC AND WORKER HEALTH

1Doutor em Ciências Sociais, Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, Passos, Minas Gerais, Brasil. Morada para correspondência dos leitores: Avenida Juca Stockler, 1130 - Bairro Belo Horizonte, Passos - Minas Gerais, 37900-106. E-mail: frederico.firmiano@uemg.br

2Enfermeiro do Trabalho, Doutor em Ciências, Professor na Universidade do Estado de Minas Gerais, Passos, Minas Gerais, Brasil. Residente em Minas Gerais, Brasil. E-mail: sergiovalverdemarques@hotmail.com

3Economista, Doutora em Economia, Professora da Universidade Federal de Alfenas, Varginha, Minas Gerais, Brasil. Residente em Minas Gerais, Brasil. E-mail: anamarciarodrigues@gmail.com


Desde que foi declarada como emergência de Saúde Pública de importância internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) originou uma crise multidimensional. Em abril de 2020, o Fundo Monetário Internacional (FMI) afirmou que o Produto Interno Bruto (PIB) global sofreria uma queda de 3% durante o ano- contra uma previsão, até então, de variação positiva de 3,3%1, o que significa um impacto de grandes proporções económicas e sociais.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por seu turno, projetou um aumento de quase 9 milhões de trabalhadores em situação de pobreza em todo o mundo, até o final do ano de 2020, em razão de uma perda global do rendimento do trabalho, que pode variar entre US$ 860 milhões e 3,44 bilhões, dependendo do país e das medidas de contenção da crise. Quadro ainda mais grave é enfrentado pelos trabalhadores informais, que somam 1,6 bilhão em todo o mundo e que, considerando apenas o mês de abril, perderam cerca de 60% dos ganhos, sendo a África e a América Latina as regiões mais afetadas2.

Articulado às grandes fragilidades dos sistemas de proteção social e de saúde em todo mundo - fortemente impactados por políticas neoliberais nos últimos 40 anos - esta situação coloca em risco as condições já precarizadas de trabalho e rendimentos, com sérias implicações negativas para a saúde do conjunto da classe trabalhadora, o que afeta as condições de vida e subsistência. No mundo, já são mais 96 milhões de casos confirmados da COVID-19, com mais de 2 milhões de mortes - números que crescem exponencialmente. No Brasil, a situação tem sido dramática, com mais de 8,6 milhões casos e mais de 200 mil mortes. Com isso, este país passou a ocupar a segunda posição entre os com maior número de infectados pela COVID-19, podendo se tornar o novo epicentro da doença no mundo3,4.

Perante esta situação, a população tem enfrentado a suspensão ou desaceleração das atividades económicas diárias, devido ao objetivo de reduzir as interações entre as pessoas e, consequentemente, a possibilidade de novas infeções5. A OMS preconizou o distanciamento e o isolamento social como principal medida de combate à disseminação global da doença. No entanto, nem todos os indivíduos podem desfrutar desses meios de prevenção, pois muitos precisaram continuar as suas atividades laborais, podendo adoecer e contaminar outros trabalhadores6.

Entre as tímidas medidas adotadas no Brasil, em 20 de março de 2020 foi publicado o Decreto nº 10.282, que definiu os serviços públicos e as atividades consideradas essenciais durante a pandemia7. Além disso, destaca-se a Lei nº 13.982 de 2 de abril de 2020 que estabelece um auxílio emergencial aos trabalhadores informais por meio de transferência de rendimento, cujo valor dificilmente garantiria o sustento das famílias8. Posteriormente, em face ao crescimento exponencial do novo coronavírus, foi publicado um novo decreto (nº 10.329, de 28 de abril de 2020)9, que inclui maior flexibilização das condições de trabalho, estendendo o número de atividades essenciais e minimizando ainda mais as medidas de isolamento social recomendadas pela OMS e pela comunidade científica. Deste modo, as condições de trabalho sob a atual pandemia, parecem intensificar a precarização estrutural e a superexploração do trabalho já persistente no Brasil. Na contramão de outros países que ampliaram as medidas de proteção social aos trabalhadores, no Brasil, as ações os expõem e aumentam a precarização e a exploração sobre o trabalho.

Diante do exposto, percebe-se a necessidade de promover um ensaio teórico para analisar, refletir e discutir as condições de trabalho impostas pela pandemia da COVID-19 a esses trabalhadores. Com isso, neste estudo de carmáter ensaístico, objetivou-se refletir e discutir sobre as questões essenciais do trabalho, assim como as condições laborais e de saúde impostas aos trabalhadores considerados essenciais a meio a pandemia do novo coronavírus no Brasil.

Para se alcançar o objetivo do estudo, foram elaboradas seções norteadoras, para dar apoio à reflexão, como: “Do essencial (precário) do trabalho no Brasil”; “O (precário) trabalho essencial na crise da pandemia”; e “A pandemia e a saúde do trabalhador no Brasil”.

DO ESSENCIAL (PRECÁRIO) DO TRABALHO NO BRASIL

A universalização de direitos sociais e do trabalho chegam ao Brasil quase simultaneamente às políticas neoliberais e às amplas medidas de reestruturação produtiva do capital. Assim, enquanto no plano formal, trabalho decente e saúde se constituem em direitos constitucionais, nas suas manifestações concretas, os direitos do trabalho passaram a sofrer profunda erosão, redundando na ampliação das condições de precariedade. Dito de outro modo, se for verdade que a classe trabalhadora logrou conquistas que se cristalizaram na Constituição Federal de 1988, o ingresso do país na mundialização do capital, na nova divisão internacional do trabalho, tornou movediço o terreno do exercício dos direitos10,11. Desta forma, o estatuto da força de trabalho no Brasil tem sido marcado por diversas formas de degradação e precarização social, em larga medida, decorrentes da posição do país (subalterna e dependente) na estrutura global do capital, ao longo de todo o seu desenvolvimento histórico12.

Inúmeras pesquisas e relatórios de entidades de defesa do trabalho vêm revelando sistematicamente a persistência das formas mais aviltantes da superexploração do trabalho, inclusive na sua configuração mais radical - o trabalho análogo à escravidão, atingindo a diversos setores da economia e a todos os momentos da produção13. A partir dos anos 1990, no entanto, com a reestruturação produtiva do capital, ao lado da adoção de políticas de liberalização do capital, ocorreu grande ampliação dos processos de “flexibilização” da produção, das modificações nos padrões organizacionais dos processos de trabalho, com o incremento tecnológico, a informatização e a consequente intensificação das formas de subcontratação, terceirização e precarização da força de trabalho14,15.

As transformações instituídas pela adoção de políticas neoliberais ao longo dos anos 1990 provocaram uma desestruturação do mercado de trabalho brasileiro, com repercussão nos mais diversos segmentos. A força de trabalho foi duramente afetada pelo desemprego em massa, associado à destruição de postos de trabalho. Estes fatores são retratos da grave crise do emprego no Brasil, gerada pelo processo de reestruturação produtiva16.

O discurso que se firmou neste período como forma de reversão do cenário de desemprego foi o da opção pela flexibilização das relações que trabalho, que já o eram no Brasil17. Assim, tal atitude não resultou em reversão do cenário, penalizando ainda mais a classe trabalhadora, cujas ocupações são predominantemente marcadas por baixos salários, subemprego e informalidade da mão de obra18.

De acordo com Pochmann19, progressivamente, houve uma modificação bastante importante no padrão de ocupação da população economicamente ativa (PEA) e no mercado de trabalho brasileiro, sobretudo, dos anos de 1980 aos dias atuais. Esta transformação está conectada ao novo padrão de especialização produtiva baseado em commodities (produtos que funcionam como matéria-prima)20 e aos fenómenos da desindustrialização e reprimarização da pauta de exportações, que emerge junto com a integração brasileira aos circuitos internacionais da acumulação de capital financeiro21.

Assim, se em 1980 a participação do setor terciário no total da PEA era de menos de 40%, em 2018 passou para 62,7% do total. No mesmo período, os setores primário e secundário experimentaram declínio, respetivamente, de 73,4% e 36,2% de participação no total da PEA. Também entre 1980 e 2018, o número de desempregados foi multiplicado por 10, elevando a taxa de desocupação de 3% para 12% da PEA19.

Em 2018, o país contava com 44,5 milhões de trabalhadores em ocupações precárias (contra 19,4 milhões, em 1980). No que diz respeito ao trabalho assalariado informal, no mesmo ano, eram 18,5 milhões de trabalhadores nesta condição, ou 19,9% do total da PEA ocupada. Estes trabalhadores, se somados aos trabalhadores por conta própria - quase 24 milhões - e aos trabalhadores sem remuneração - pouco mais de 2,1 milhões - totalizam 44,5 milhões de trabalhadores19.

Mais recentemente, o discurso da flexibilização das relações de trabalho voltou a compor a agenda de políticas no Brasil. A reforma trabalhista e as medidas provisórias que a aprofundam, articulada à “nova previdência”, que entrou em vigor em 13 de novembro de 2019, apenas vieram ratificar a condição estruturalmente precária do trabalho no Brasil. A pesquisa de Filgueiras e colaboradores22, acerca dos impactos económicos, sociais e jurídicos de reformas trabalhistas recentes em países da periferia do sistema do capital, como o Brasil, e em países do centro, como a Alemanha, mostra, a despeito de suas particularidades, que ocorre uma tendência: (a) agravamento da mercadorização da força de trabalho; (b) redução da proteção dos direitos do trabalho; (c) piora das condições de compra e venda da força de trabalho, entre outras.

A precarização social do trabalho no Brasil, hoje, possui um caráter abrangente e generalizado, atingindo a todas as regiões, das mais desenvolvidas às menos desenvolvidas, do ponto de vista das forças produtivas; em todos os setores da economia, inclusive os mais dinâmicos e modernos; dos trabalhadores mais qualificados aos menos qualificados. Trata-se, assim, de uma nova precarização social do trabalho “... que instabiliza e cria uma permanente insegurança e volatividade no trabalho, fragiliza os vínculos e impõe perdas dos mais variados tipos (direitos, emprego, saúde e vida) para todos que vivem do trabalho”13.

A pandemia da COVID-19, ao afetar os mais diversos setores da economia, afeta diretamente o mercado de trabalho, bem como as condições de emprego e o rendimento dos trabalhadores. Há uma estreita ligação entre o desempenho económico e o funcionamento do mercado de trabalho, de modo que este último acompanha o nível de atividade económica. É por este motivo que a pandemia coloca em xeque o sistema de bem-estar social proporcionado pela Constituição de 1988, já que ele vem sendo atacado pela imposição das políticas neoliberais que geram o desmantelamento do sistema de proteção social, especialmente, com os constantes ataques aos direitos conquistados pelos trabalhadores.

Assim, as condições laborais ora impostas pela pandemia da COVID-19, apenas vem ratificar, fazendo recrudescer, as mais diversas situações de precarização/degradação social do trabalho, a informalidade, o desemprego e as condições de saúde do trabalhador. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o primeiro trimestre móvel de 2020 registrou cerca de 12,8 milhões de trabalhadores desocupados (pessoas que não estão trabalhando, mas continuam em busca de emprego), representando 12,23% da PEA - dados da população expandida através da amostra. Os chamados desalentados (pessoas que não estão trabalhando, mas que desistiram de procurar emprego) chegaram a um número próximo de 4,8 milhões, enquanto a informalidade foi de 38,8% do total da população ocupada. Além disso, o total de trabalhadores em situação de subocupação (pessoas que trabalham menos de 40 horas semanais, mas que gostariam ter mais) chegou a 6,4 milhões23.

Esses números demonstram a situação caótica do mercado de trabalho nacional. A taxa de desocupação de 12,23% não reflete a situação dos indivíduos que deixaram de procurar emprego diante do cenário de pandemia, uma vez que estes indivíduos deixam de fazer parte da PEA. Assim, é necessário observar o número de trabalhadores em situação de desalento, que quando somados aos desocupados chegam a mais de 17,6 milhões de pessoas. Trata-se, portanto, de um alto número de indivíduos com comprometimento do seu rendimento, situação que se agrava ao adicionar os trabalhadores subocupados, mesmo sem especificar a qualidade das demais ocupações.

O (PRECÁRIO) TRABALHO ESSENCIAL NA CRISE DA PANDEMIA

A 6 de fevereiro de 2020, o governo federal aprovou a Lei nº 13.9797, que dispõe sobre medidas de enfrentamento daquilo que, à época, ainda era considerado pela OMS como “emergência de saúde pública de importância internacional”, em decorrência do novo coronavírus. O Decreto nº 10.282, de 20 de março, regulamentaria a referida lei, definindo os serviços públicos e as atividades essenciais, tais como assistência e proteção à população, serviços de transportes (com restrições), serviços essenciais de abastecimento (como supermercados, farmácias, entre outros), atividades de segurança (pública e privada), entre outras7. Depois de pouco mais de um mês, quando a expansão do novo coronavírus já havia alcançado quase 74 mil pessoas, entre as quais, 5,1 mil mortas, um novo decreto ampliaria sobremaneira os chamados “serviços essenciais”, abarcando um número ainda maior de trabalhadores. Com o novo decreto (nº 10.329, de 29 de abril de 2020)9, passaram a ser consideradas atividades “essenciais” serviços de comercialização, de audiovisual, desenvolvimento de produtos, start-ups, comércio de alimentação, repouso, higiene, manutenção e assistência automotiva, conveniência, agências bancárias e serviços financeiros, engenharia e suprimentos, entre outras do ramo industrial e do comércio.

Esta medida, somada ao chamado discurso “negacionista” assumido pelo governo federal - não raro contradizendo políticas do próprio Ministério da Saúde - passou a representar um grande risco para a saúde dos trabalhadores realmente essenciais. Este fato, eleva a possibilidade de contaminação da população, especialmente da classe trabalhadora, pelo novo coronavírus.

Foram ampliadas, assim, fundamentalmente, as atividades do setor terciário que, no Brasil, seguindo tendência mundial, concentra a maior parcela da classe trabalhadora. Para se ter ideia, o setor terciário, em 2018, ocupou 62,7% do total da PEA do país, abarcando quase 66 milhões indivíduos19.

De acordo com Pena e Gomez24, existem algumas características importantes, próprias do setor de serviços, que merecem ser destacadas, a exemplo da simultaneidade do processo de “produção” e “consumo”, envolvendo a co-presença de trabalhadores e consumidores junto ao ambiente de trabalho. Em um contexto de pandemia, como no caso do novo coronavírus, esta característica se torna ainda mais marcante, particularmente, nos serviços de saúde - cujos trabalhadores ainda convivem com situações existenciais extremas, como a possibilidade iminente da morte, entre outras que podem produzir diversos traumas emocionais.

Quanto às recomendações de isolamento/distanciamento social como forma de enfrentamento e contenção da pandemia do coronavírus em todo o mundo, desde um ponto de vista económico, mais propriamente do capital, o “trabalho e as atividades essenciais” devem ser considerados aquelas que possibilitam a realização do valor. Há que se considerar, como Marx, a disjunção existente das necessidades humanas e a reprodução do valor como traço bastante marcante ou característico do sistema do capital - característica esta que não se modifica em nenhuma circunstância histórica sob o sistema social vigente, nem mesmo em momentos de crise. Até porque, como lembra Mészáros, o significado de crise, na sociedade do capital, remete tão somente aos obstáculos, superáveis ou não, para a viabilidade do capital e de seu objetivo último, o lucro25.

O capital somente é capaz de estabelecer uma racionalidade parcial, ou seja, não pode levar em conta as consequências de seu intrínseco impulso permanente pela persecução do lucro, devendo, ainda, contar com o amparo legal do Estado para tanto. Ademais, preso a um círculo vicioso de curto prazo, que corresponde a necessidade rápida de valorização do valor, sua orientação permanente é sempre em direção à acumulação/valorização, não podendo preocupar-se com o futuro, ainda que suas ações imediatas, possam comprometê-lo25.

Assim, as restrições para a sua expansão precisam ser relativizadas permanentemente, mesmo que de modo bastante irresponsável - como a “flexibilização” das medidas de contenção da atual pandemia do novo coronavírus em nome da “economia”. Nessa direção, argumenta o filósofo húngaro, “não pode haver futuro num sentido significativo da expressão, pois o ‘futuro’ admissível já chegou, na forma dos parâmetros

existentes da ordem estabelecida bem antes de ser levada a questões sobre ‘o que deve ser feito’”25. Existem diversas formas de incentivar o dinamismo da economia. A primeira delas pode se dar pelo lado da oferta. Neste caso, a produção é estimulada e mais capital é produzido por meio do trabalho. Subentende-se que a oferta criará a sua própria procura e ignora-se a existência de desemprego e insuficiência de rendimento para consumir os bens e serviços oriundos desta produção, conforme disseminado por Say26. De outra maneira, poderia ocorrer pelo lado da demanda. Ao contrário do pensamento anterior, dentro desta perspectiva, se houver redução dos gastos públicos, assim como dos trabalhadores e demais agentes na economia, isto resultará em uma diminuição da demanda agregada, que gera diminuição do emprego e rendimento. Esta é a via proposta, por exemplo, pelo economista e defensor do capitalismo John Maynard Keynes, que preconiza a mão visível do Estado, por meio de políticas económicas que estimulem o consumo e o investimento, já que é isso que impulsiona a oferta e não o contrário27,28. Tal política, por meio da ação pública, pode garantir o nível de emprego e salário dos trabalhadores e os protegeria dos riscos de adoecimento que são obrigados a enfrentar diante do trabalho essencial no cenário que se forma.

Nota-se que, as políticas de estímulo à oferta em meio a pandemia tendem a pormenorizar o incentivo ao aumento da demanda agregada28, fator que compromete o crescimento do PIB. Isto torna evidente a retomada e continuidade do discurso presente nos anos 1990, que objetivava a flexibilização das relações de trabalho como justificativa para ampliação do desempenho económico e, por consequência, do emprego e salário. O problema é que o efeito da flexibilização tende a ser o oposto.

O quadro de referência para a definição do “trabalho essencial” só pode estabelecer os termos de sua capacidade de assegurar, ou não, as condições de viabilidade da reprodução social do capital. É desta forma que um grande contingente de trabalhadores entra e sai da categoria “essencial”, a depender do modo como o capital encontra, ou não, margem para a criação de valor.

Frente ao exposto, surge a dúvida sobre as principais características do verdadeiro trabalho essencial, assim como se o trabalhador tem condições de alcançar o essencial do seu trabalho - dúvida que parece ganhar mais evidência diante da pandemia do novo coronavírus. Com isto, acredita-se ser difícil o trabalhador executar suas atividades laborais face a tantas condições de vulnerabilidade que lhe são impostas pela precarização e pela flexibilização contínua das condições de trabalho.

A PANDEMIA E A SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL

Na relação trabalho e capital revela-se a superexploração do trabalho pelo capital. Os empregados são subordinados ao capital e essenciais para a sua reprodução. O emprego é fundamental para a subsistência física do indivíduo, já que é por meio dele que eles obtêm o seu salário.

Quando se trata de saúde, a oferta da mão de obra pode promover a realização pessoal, o reconhecimento, além de conceder dignidade ao ser humano. Paralelamente, ele pode causar sofrimento, insatisfação, desequilíbrios físico e mental, além de dor e morte. Neste ponto, torna-se incompatível e agressor para a vida e dignidade do indivíduo, por não possuir condições adequadas para a sua realização29,30. Estes fatores podem ser vivenciados nos dias atuais, com a pandemia do novo coronavírus.

A saúde do trabalhador envolve um conjunto complexo de fatores e determinantes, como condições adequadas de alimentação, moradia, educação, transporte, lazer e acesso aos bens e serviços essenciais. Além disso, é direito de todo o trabalhador a garantia de execução de suas atividades em um ambiente saudável, que não gere doença ou morte31. No entanto, tais condições nem sempre estão presentes na vida dos funcionários, se agravando particularmente entre aqueles que continuaram suas atividades laborais durante a pandemia.

Lacaz32 já dizia que, todas as profissões podem sofrer alterações nas condições de saúde e nas relações de trabalho, que podem acarretar doenças ao trabalhador, inclusive mentais. Isto está bem representado atualmente, com as condições de trabalho que são impostas aos funcionários essenciais no enfrentamento do novo coronavírus.

Com a pandemia, a sobrecarga e a precária condição de trabalho tornaram-se evidentes em muitos postos de trabalho, principalmente daqueles considerados essenciais, como é o caso dos trabalhadores da área da saúde, em que pese a definição do “essencial”. Os modelos de enfrentamento poderiam reduzir a exposição do trabalhador. No entanto, as medidas adotadas no Brasil expõem ainda mais os trabalhadores essenciais aos riscos da doença.

Segundo estudo do Laboratório do Futuro, do Instituto Alberto Luiz Coimbra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), são cerca de 2,6 milhões de profissionais da área da saúde sob risco de infeção (acima de 50%) pelo novo coronavírus. Trabalhadores do setor terciário, como vendedores varejistas (venda de produtos em pequenas quantidades), operadores de caixas e outros atendimentos ao público, que integram cerca de 5 milhões de empregados, apresentam 53% de risco de contágio pela COVID-1933.

De fato, a forma de contágio da doença coloca muitas pessoas sob o risco de contaminação. De acordo com a imunidade, algumas pessoas podem desenvolver os sintomas da doença e transmiti-la. Enquanto isso, outras apenas são hospedeiras do vírus e, apesar de não apresentarem sintomas, podem incubá-lo entre 7 e 14 dias e transmiti-lo. Esta é a situação que mais coloca em risco os trabalhadores, principalmente aqueles essenciais, que são fundamentais para a manutenção da vida5,34.

Em geral, os trabalhadores se deparam com diversos problemas neste momento de crise, além do risco de contaminação e morte. Enfrentam a possibilidade de cortes salariais, do desemprego e, por consequência, de perderem sua fonte de subsistência.

Desta maneira, passam a lidar diariamente com aflições, medos, insegurança e outros problemas psicossociais, o que amplia o leque de doenças ocupacionais que podem enfrentar. Há mais de uma década, Gomez e Lacaz já consideravam o trabalho precário “... uma expressão extrema, e até calamitosa, do sentimento geral de insegurança e de mal-estar...”35. Os autores evidenciavam repercussões psicossociais e psicopatológicas decorrentes de situações de subcontratação do emprego, não raro, apresentando-se como degradação da saúde mental, que podem se agravar ainda mais, quando o trabalhador está exposto a um risco eminente, tal como acontece com trabalhadores essenciais frente a pandemia do novo coronavírus.

Muitos países ainda não apresentam uma estrutura adequada para o enfrentamento do novo coronavírus, como é o caso do Brasil. A exemplo disso, cita-se as condições de trabalho dos profissionais da saúde, que atuam em situações infra-humanas. Muitos profissionais não têm acesso adequado aos Equipamentos de Proteção Individual (EPI), apesar de serem itens obrigatórios ao exercício quotidiano da profissão. Nem sempre existem camas hospitalares suficientes para todos os pacientes e grande parte dos trabalhadores não estão preparados para enfrentar a situação36. Assim, os trabalhadores essenciais, são colocados em uma posição de vulnerabilidade, tornando-se hospedeiros e/ou vetores da transmissão do novo coronavírus37.

No caso particular dos profissionais da saúde há, ainda, outro aspecto a ser considerado, que é o medo de disseminar o vírus entre os seus familiares. Esse fato pode levar essas pessoas ao isolamento da sua própria família, à mudança de rotina e restrição de sua rede de apoio social5. Desta forma, o trabalhador que é essencial ao combate da doença, fica ainda mais vulnerável ao adoecimento mental provocado pelas condições de trabalho impostas pela pandemia.

Esses apontamentos revelam a importância de se manter os cuidados recomendados pela OMS, como o isolamento e distanciamento social, para a prevenção ao novo coronavírus. Isto, no entanto, deve necessariamente vir acompanhado de medidas de proteção da mão de obra e do rendimento desses indivíduos. No caso dos trabalhadores substantivamente essenciais, como são os profissionais da saúde, o seu adoecimento pode representar um risco de colapso do sistema de saúde pública no enfretamento da COVID-19, devido à insuficiência de profissionais para atuar nas instituições de saúde.

Esse fato aponta para uma aparente contradição entre saúde e trabalho versus pandemia. Estes são direitos garantidos pela Constituição de 1988. Em seu artigo 196, a Constituição assegura o direito universal e igualitário à saúde38. Ao sistema de saúde, entre outras atribuições, cabe contribuir para a proteção do meio ambiente, o que inclui o ambiente laboral. Deste modo, a segurança e a saúde da mão de obra, que são assegurados pela Constituição, são frequentemente desrespeitados.

Desta forma, o avanço do novo coronavírus no Brasil torna evidente a fragilidade e a desarticulação do Estado. A ampliação dos serviços essenciais e da circulação de pessoas induz à contaminação de trabalhadores e cria um problema socioeconómico e epidemiológico, que pode comprometer o andamento das atividades económicas - principal intuito da expansão destas atividades. Aumentar o leque de serviços essenciais como justificativa para o bom desempenho da economia gera um problema de ordem sistémica.

À medida que provocam o adoecimento da classe trabalhadora, estas ações prejudicam a própria reprodução do capital.

Ao comprometer a mão de obra, estas políticas tendem a inviabilizar a própria manutenção da oferta de bens e serviços, bem como o consumo, fator que limita o crescimento da economia e o nível de emprego. Isto provoca um aumento da proporção de doentes e afeta diretamente o trabalho essencial dos trabalhadores.

Deste modo, o adoecimento dos trabalhadores prejudica o fornecimento de bens e serviços que são, de fato, essenciais, tais como, saúde e alimentação. No que se refere aos profissionais da saúde, por exemplo, o adoecimento de indivíduos desta categoria, inviabiliza, até mesmo, o enfrentamento da doença. Isto porque a contaminação acentuada destes trabalhadores compromete a assistência à saúde. Assim, as ações desarticuladas prejudicam o sistema de saúde e a manutenção do emprego e do rendimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do cenário de pandemia provocado pelo novo coronavírus, emergiu-se o dilema economia versus saúde. Motivado por este pensamento, no Brasil foram publicados dois decretos que definiram serviços e atividades essenciais a serem executadas, mesmo diante do cenário calamitoso. O decreto mais recente, nº 10.329, de 29 de abril de 2020, ampliou o número de atividades essenciais, o que colocou um maior número de pessoas em situação de vulnerabilidade ao adoecimento.

Assim sendo, as condições de trabalho na pandemia, agem no sentido de intensificar a precarização das atividades laborais no Brasil. A opção pela flexibilização, coloca em risco a vida do trabalhador, que diante da situação se vê obrigado a decidir entre o risco de desemprego e o risco iminente de morte.

É preciso esclarecer que se trata de uma opção de política. Há outras vias que poderiam ser adotadas de modo a minimizar os riscos à mão de obra e à saúde. A exemplo disso, tem-se a via de estímulo à manutenção da demanda através do crescimento dos gastos públicos, capaz de propiciar crescimento económico. Essa via tem sido pouco visitada no cenário nacional.

Em contrapartida, segue-se com ampliação das medidas que vulnerabilizam os trabalhadores. Estas medidas comprometem o enfrentamento da doença, uma vez que podem inviabilizar o próprio funcionamento do sistema de saúde, o fornecimento de serviços, de fato, essenciais e, até mesmo, a saída da crise socioeconómica que se instaura.

Deste modo, o que se pode sugerir, é que os empregadores sigam as recomendações da Organização Internacional do Trabalho e da Organização Mundial de Saúde. Essas recomendações visam o controle e a redução da exposição de trabalhadores em suas atividades laborais ao novo coronavírus. Este controle se dá por meio do uso de máscaras, distanciamento entre as pessoas no local de trabalho, controle da aglomeração de pessoas no ambiente, redução da jornada de trabalho com garantia salarial, entre outras alternativas.

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Recebido: 15 de Janeiro de 2021; Aceito: 22 de Janeiro de 2021; Publicado: 06 de Fevereiro de 2021

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