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Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online

versão impressa ISSN 2183-8453

RPSO vol.11  Gondomar jun. 2021  Epub 07-Jan-2022

https://doi.org/10.31252/rpso.02.01.2021 

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ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO PARA ACIDENTES COM OBJETOS CORTOPERFURANTES EM CENTRO CIRÚRGICO DE UM INSTITUTO ESPECIALIZADO EM ONCOLOGIA

INTERVENTION STRATEGIES FOR SHARPS INJURIES IN THE OPERATING ROOM OF AN INSTITUTE SPECIALIZING IN ONCOLOGY

1Mestre em Saúde Pública com foco em Vigilância em Saúde do Trabalhador pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz); Fonoaudiólogo Especialista em Audiologia pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia. Atua na Divisão de Ensino Lato Sensu e Técnico do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Endereço para correspondência dos leitores: Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 1085, apto 1106, Copacabana- Rio de Janeiro, Brasil. CEP 22060-001. E-mail: quixael2@hotmail.com

2Médica-sanitarista; Doutora e Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade de Campinas; Especialista em Medicina do Trabalho. Docente e pesquisadora do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana/ Escola Nacional de Saúde Pública/ Fundação Oswaldo Cruz (CESTEH/ENSP/Fiocruz) e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública (PPGSP/ENSP/Fiocruz). Rio de Janeiro, Brasil. CEP 22060-001. E-mail: elidahennington@gmail.com


RESUMO

Introdução:

As exposições ocupacionais a objetos cortoperfurantes potencialmente contaminados por agentes infecciosos podem transmitir vários tipos de patógenos e provocar doenças. Esses eventos implicam na necessidade de investigação dos fatores que predispõem à sua ocorrência e as formas de intervenção.

Objetivo:

O estudo teve por objetivo desenvolver um plano de intervenção para contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de notificação, prevenção e acompanhamento de casos de acidentes com objetos cortoperfurantes com foco nos médicos residentes inseridos no centro cirúrgico do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva.

Metodologia:

Para elaborar o plano de atuação foi proposta como medida principal a análise do processo e das condições de trabalho com as equipas de saúde no centro cirúrgico, local de maior ocorrência de acidentes, visando identificar os fatores e situações que favorecem estes eventos. Utilizou-se um método misto que incluiu reuniões com gestores do Instituto; revisão do protocolo institucional de acidentes de trabalho com material biológico; visitas ao centro cirúrgico; discussão com equipa de trabalho e reunião com os médicos residentes e restante staff.

Resultados e Conclusão:

As ações propostas possibilitaram um panorama acerca da problemática que envolve os acidentes, reunindo elementos relevantes que foram discutidos com a equipa médica e que favoreceram a elaboração de propostas para o Plano de intervenção.

Palavras-chave: acidentes com cortoperfurantes; trabalhador da saúde; vigilância em saúde do trabalhador; saúde do trabalhador, saúde ocupacional

ABSTRACT

Introduction:

Occupational exposures to sharp material, potentially contaminated by infectious agents, can transmit various types of pathogens and cause illnesses. These events imply the need to investigate the factors that predisposes the occurrence and the forms of intervention.

Objective:

The study aimed to develop an intervention plan to contribute to the notification, prevention and monitoring system improvement for cases of sharps accidents focusing on resident doctors working in the operating room from the José Alencar Gomes da Silva National Cancer Institute.

Methodology:

To elaborate the action plan it was proposed as the main measure the analysis of the process and working conditions with health teams in the operating room, the place with the highest occurrence of accidents, aiming to identify the factors and situations that favor these injuries. A mixed method was used which included meetings with managers of the Institute; accidents at work with biological material institutional protocol review; visits to the operating room; discussion with a work team and meeting with resident doctors and staff.

Results and conclusion:

These actions provided an overview of the problem surrounding these accidents, brought together relevant elements that were discussed with the medical team and favored the preparation of proposals for the Intervention Plan.

Keywords: accidents with sharp material; health worker; health surveillance of the worker; worker's health, occupational health

INTRODUÇÃO

Os trabalhadores da saúde, em virtude de sua prática profissional, estão frequentemente expostos a acidentes de trabalho (AT) envolvendo objetos cortoperfurantes. O ambiente de trabalho hospitalar tem sido considerado favorável à ocorrência destes acidentes devido à elevada frequência de procedimentos invasivos realizados.

O acidente ocasionado por objeto cortoperfurante é definido como evento que causa escoriação ou ferida pela penetração do mesmo. O National Surveillance System for Health Care Workers (NaSH), nos EUA, indica que seis materiais são responsáveis por aproximadamente 80% de todos os acidentes. São eles: seringas descartáveis, agulhas hipodérmicas, agulhas de sutura, lâminas de bisturi, estiletes de cateteres intravenosos e agulhas para colheita de sangue1.

A exposição a agentes infecciosos por meio destes materiais potencialmente contaminados é capaz de transmitir diversos tipos de agentes patogênicos. Os mais relevantes são os vírus da hepatite B e C e da Imunodeficiência Humana2.

Calcula-se que, para uma população estimada de 35 milhões de trabalhadores da saúde de todo o mundo, ocorram anualmente cerca de três milhões de acidentes com objetos cortoperfurantes2. No Brasil, apesar de estudos identificarem alta prevalência de acidentes de trabalho causados a este nível3-7, ainda não existe uma quantificação rigorosa do número de trabalhadores acidentados. O Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN - registra acidentes de trabalho com exposição a material biológico e o campo relativo à informação sobre a “circunstância da ocorrência” deste tipo de acidente ainda é pouco preenchido.

Recomenda-se a notificação do acidente com objeto cortoperfurante, assegurando ao trabalhador assistência integral, compreendida desde o atendimento médico que envolve a análise do acidente e medidas de prevenção e profilaxia, entre outras estabelecidas pelas instituições8. Contudo, diversos estudos apontam para o facto de que mais de 50% dos trabalhadores da saúde que se acidentam não notificam a ocorrência1, o que dificulta a quantificação da prevalência e adoção das medidas preventivas.

Assim, um estudo preliminar sobre as exposições ocupacionais a material biológico e cortoperfurante potencialmente contaminado, realizado no período entre janeiro a dezembro de 2017 no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), identificou os médicos residentes como a categoria profissional mais acometida pelos eventos e o centro cirúrgico como o setor em que ocorre a maior parte desses acidentes.

Em atenção a esta conjuntura, a pesquisa teve por objetivo desenvolver um Plano de Intervenção, para contribuir no aperfeiçoamento do sistema de notificação, prevenção e acompanhamento de casos de acidentes com objetos cortoperfurantes, com foco nos médicos residentes que atuam no centro cirúrgico da Unidade Assistencial- HC 1 do INCA.

O PERCURSO METODOLÓGICO

Tratou-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa, desenvolvido entre novembro de 2018 e fevereiro 2019 no centro cirúrgico da unidade assistencial- HC1 do INCA. O Instituto é especializado no controle do cancro no Brasil, é constituído por quatro unidades assistenciais (HC1 a HC4) localizadas no Município do Rio de Janeiro, em endereços diferentes e composto por uma força de trabalho de aproximadamente 3.600 trabalhadores.

Identificado o problema- número significativo de AT com objetos cortoperfurantes entre médicos residentes do setor cirúrgico do HC1 - foram propostas as seguintes ações: visitas técnicas ao centro cirúrgico para identificar elementos referentes aos fatores causais, situações que favorecem os acidentes e, posteriormente, reunião com os médicos residentes, para discutir os elementos relativos à ocorrência dos eventos identificados durante as visitas e propor a construção conjunta de um plano de intervenção.

Foram realizadas três visitas técnicas ao centro cirúrgico. Esta ação foi precedida de articulação com gestores e profissionais de setores-chave indispensáveis para o estudo. Deste modo, foram convidados alguns profissionais atuantes na Divisão de Saúde do Trabalhador - DISAT (Médica do Trabalho, Engenheiro de Segurança do Trabalho e Técnico de Segurança do Trabalho), informando-lhes o motivo da visita, a relevância da participação interdisciplinar no estudo, assim como a averiguação da disponibilidade e concordância destes em contribuir voluntariamente para a realização da pesquisa com seus conhecimentos técnicos específicos.

Dando continuidade ao processo de articulação com gestores e profissionais de setores-chave, na Coordenação de Ensino (COENS), um profissional ligado a Coordenação de Residência Médica (COREME) foi consultado para obter orientação quanto a logística para reunir os médicos residentes.

Nas visitas, houve oportunidade para abordar o assunto com as chefias e funcionários, tendo sido observados vários procedimentos onde poderão ocorrer acidentes com objetos cortoperfurantes e foi discutido com a equipa de trabalho quais as medidas que se poderiam implementar para atenuar o problema.

O critério de inclusão abrangeu profissionais da equipa de médicos residentes do Programa de Residência Médica em Oncologia Cirúrgica- Área de Concentração: abdomen/pélvica- que, de forma voluntária, se interessaram e se dispuseram a participar da pesquisa e contribuir com a construção do Plano de Intervenção.

A pesquisa obedeceu aos preceitos éticos, conforme a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que trata de pesquisa envolvendo seres humanos. O estudo foi aprovado através dos Pareceres Consubstanciados nº 2.771.058/14/07/2018 e nº 2.873.753/04/09/2018, dos Comitês de Ética e Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e do INCA, respetivamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Visita ao centro cirúrgico

O centro cirúrgico do HC1, dispõe de equipamentos de alta tecnologia, tanto para os serviços diagnóstico e cirúrgico como para a anestesia dos pacientes. Realiza, inclusive, cirurgia robótica de alta complexidade. O serviço funciona vinte e quatro horas por dia. As cirurgias são programadas de forma eletiva, de segunda a sexta feira (nos fins de semana somente em casos de emergência), disponibilizando maior fluxo de procedimentos no turno diurno. Em média, realizam-se, vinte cirurgias diárias. Entretanto, ocasionalmente esse número varia, chegando-se a realizar cerca de trinta, que demandam maior atuação e manejo entre as equipas.

As equipas atuantes neste serviço são multiprofissionais e possuem regime de trabalhado diferenciados. A equipa de médicos residentes atua em regime de sessenta horas semanais, incluindo vinte e quatro horas de urgência.

Os dados levantados nas visitas técnicas foram apresentados e analisados a partir dos seguintes tópicos: levantamento das condições ambientais; levantamento das condições organizacionais e do processo de trabalho; observação do uso de equipamento de proteção individual (EPI); perceções dos trabalhadores acerca das condições de trabalho e práticas que favorecem o acidente e discussão a respeito do registro do acidente e da trajetória do acidentado.

Levantamento das condições ambientais

Sobre as condições ambientais foram analisados os fatores relacionados com a organização da área física, segurança, iluminação, ruído e temperatura. O levantamento apontou que estes fatores estão em consonância com as especificações da resolução da diretoria colegiada RDC nº. 63 de 2011 e nº. 50 de 2002, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde9,10, compatível com o desenvolvimento das atividades executadas no setor.

Entretanto, sobre a refrigeração, os trabalhadores relataram que há alguns meses a temperatura esteve em um nível muito baixo, que provocou desconforto e influiu no desempenho das atividades. Essa situação gerou muitas queixas por um grupo de trabalhadores, inclusive correlacionando-a com alguns problemas de saúde. O fato foi levado aos responsáveis pelo controle da refrigeração, que adequaram a um nível considerado de conforto no período do estudo.

Um estudo realizado por Canedo (2009) no HC2, identificou a temperatura ambiente do centro cirúrgico como o maior incómodo relatado pelos trabalhadores. Segundo a autora, as alterações de temperatura podem provocar acidentes na medida em que interferem com o bem-estar dos profissionais11.

O ambiente hospitalar requer ventilação com adequada renovação de ar para que sejam minimizadas as emissões que podem gerar problemas à saúde dos pacientes e trabalhadores12; áreas críticas, como o centro cirúrgico devem ser climatizadas conforme preconizado pela RDC nº. 50 de 200210.

Levantamento das condições organizacionais e do processo de trabalho

Quanto às condições organizacionais observou-se que os dados levantados estão em consonância com os requisitos de boas práticas preconizadas pela RDC nº. 63 de 2011 para os serviços de saúde9. Em termos de recursos humanos, sobre a equipa de enfermagem “a maioria dos trabalhadores são do sexo feminino e mães”. Esta informação foi acrescida com a ênfase no absenteísmo, que é elevado.

Considerando o exposto, o diálogo com as questões de género é fundamental para analisar o trabalho em saúde, sem desconsiderar a vinculação entre o trabalho profissional e doméstico, tendo em vista que as jornadas de trabalho longas e desgastantes das mulheres no ambiente profissional não as desobrigam das tarefas domésticas, mesmo as que trabalham no período noturno. A abordagem neutra em termos de género nas políticas públicas contribui para a invisibilidade dos riscos do trabalho feminino que, em geral, são subestimados e negligenciados, tanto nos projetos investigativos, quanto nas formas de prevenção14.

Quanto ao absenteísmo, este evento é um importante indicador de avaliação da saúde dos trabalhadores e das condições em que o trabalho é realizado, como também da política de recursos humanos e do serviço de atenção à saúde do trabalhador da instituição. Ressalta-se que o impacto do trabalho sobre os profissionais de saúde leva a uma sobrecarga mental e física que, aliada à precaridade das condições de trabalho e aos baixos salários, pode desencadear ausências não justificadas ou justificadas por licença médicas15.

Estudos revelam que trabalhadores que atuam em áreas mais complexas, como centros cirúrgicos, apresentam os maiores índices de absenteísmo, tendo em vistas as especificidades dos processos de trabalho, a necessidade destes trabalhadores acompanharem o avanço técnico e científico, com incremento de novas tecnologias e consequente aumento da complexidade para o cuidado prestado, aumentando os riscos de danos à saúde e afastamentos dos trabalhadores15.

As informações relevantes sobre o processo de trabalho abrangeram os aspetos relacionados ao espaço físico das salas cirúrgicas, ao ritmo de trabalho e à equipa dimensionada para o procedimento.

Em geral, as salas possuem muitos instrumentos tecnológicos, principalmente a sala para cirurgia robótica, o que torna o espaço disponível para a circulação pequeno, inviabilizando a locomoção segura dos trabalhadores durante a execução dos procedimentos. Certos tipos de cirurgia envolvem, além dos aparelhos já existentes na sala, a inclusão de outras tecnologias, manuseio de instrumentos que chegam a pesar vinte quilogramas e o envolvimento de um número maior de recursos humanos tecnicamente especializados, de difícil substituição, considerando o absenteísmo. Muitas vezes, o ato cirúrgico implica à equipa de cirurgiões, a permanência na sala por mais de dez horas. Estes aspectos inerentes ao processo de trabalho no centro cirúrgico são preocupantes, uma vez que, segundo o relato dos trabalhadores, “favorecem o risco de acidentes” e, ao mesmo tempo, é um desafio para as ações de vigilância da saúde dos trabalhadores e intervenção nos fatores causais e de riscos para os acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.

Observação do uso de EPI

A informação e a formação centrada em aspetos técnicos não são suficientes para reduzir a ocorrência dos acidentes. Um estudo epidemiológico desenvolvido no Brasil mostrou que grande parte dos acidentes se deve à inobservância das precauções preconizadas, concluindo que a simples informação não é suficiente para modificar o quadro existente16. Outro estudo, realizado com trabalhadores de um centro cirúrgico de uma instituição americana, apontou que 51,4% dos participantes sofreram acidentes com objetos cortoperfurantes durante o desempenho de suas funções. Destas ocorrências, o uso dos EPIs foi negligenciado por 14,1% dos acidentados17.

Apesar dos grandes avanços na prevenção de infeções hospitalares, a adesão aos EPIs continua sendo um importante desafio entre os trabalhadores da saúde. A baixa adesão está relacionada a aspectos comportamentais, tais como o desconforto durante o uso e a dificuldade para realizar determinados procedimentos17. Os trabalhadores alegam que os EPIs, como por exemplo, as luvas atrapalham na eficácia do trabalho (seja pela inadequação do tamanho, seja pela alergia à látex)11. As luvas, entretanto, dão proteção óbvia para o risco biologico mas quase nenhuma proteção em relação aos objetos cortoperfurantes.

Para garantir a prevenção da exposição ocupacional a material biológico, as precauções-padrão recomendam que profissionais de saúde considerem todos os pacientes potencialmente contaminados quando houver possibilidade de contato com sangue e outras secreções. As principais recomendações incluem: uso de EPI sempre que houver possibilidade de contato com secreções orgânicas, manipulação cuidadosa e descarte adequado de objetos cortoperfurantes18.

Nas visitas técnicas deste estudo foi observado que todos os trabalhadores faziam uso de EPIs durante a execução de suas atividades.

Percepções dos trabalhadores acerca das condições de trabalho e práticas que favorecem o acidente

Conhecer as percepções dos trabalhadores (acerca das condições de trabalho e práticas que favorecem o acidente) é necessário para explorar as questões apontadas no estudo, quanto à relevância que os trabalhadores acidentados atribuem às condições e práticas de trabalho.

Mesmo com o emprego de tecnologias avançadas para o estudo dos ambientes e condições de trabalho, é essencial considerar o relato dos trabalhadores, tanto individual quanto coletivo. Muitas vezes, somente os trabalhadores são capazes de descrever as reais condições e circunstâncias em que executam suas atividades laborativas, bem como os imprevistos que ocorrem no cotidiano e explicar os possíveis danos19.

(...) “Ouvir o trabalhador falando de seu trabalho, de suas impressões e sentimentos em relação ao trabalho, de como seu corpo reage no trabalho e fora dele, é de fundamental importância para a identificação das relações saúde-trabalho-doença” 19.

Os fatores causais e as situações que favorecem os acidentes segundo a perceção dos trabalhadores e que estão relacionadas as condições e práticas de trabalho são: descarte inadequado do material, efetuar suturas, recolher material na mesa cirúrgica, cansaço, fadiga, falta de atenção, pressa, passagem incorreta do material durante o procedimento, movimento inesperado de outro profissional que esteja a auxiliar e agulha de anestesia desprotegida na mesa cirúrgica.

Falta de atenção, pressa e mau uso do material potencialmente infectante foram as situações que favoreceram as ocorrências de AT com objetos cortoperfurantes identificadas no estudo realizado por Santana et al. (2018). As autoras fizeram correlação com outros estudos, nos quais foi observado que a sobrecarga de trabalho é um forte gerador de estresse no ambiente cirúrgico, que prejudica a adequada realização das atividades, exigindo maior rapidez e muitas vezes, sem o cuidado necessário; que extensas jornadas de trabalho aumentam o déficit de atenção e risco de AT e que a manipulação incorreta de materiais contaminados aumenta o risco de acidente20.

Discussão a respeito do registro do acidente e da trajetória do acidentado

Nesta discussão foi observado que alguns trabalhadores não têm conhecimento da existência do protocolo de acidente com material biológico instituído pelo INCA. Para eles este é um dos motivos que favorece a falta de notificação dos acidentes. Esse dado alerta para a importância da temática, reforçando a necessidade de estratégias que possibilitem melhor divulgação do protocolo de forma continuada e à medida que for atualizado, considerando, principalmente o atendimento imediato do trabalhador acidentado.

Ressalta-se a importância de que todos os trabalhadores, especialmente aqueles que fazem o atendimento ao trabalhador acidentado com exposição ocupacional a material biológico e cortoperfurante potencialmente infectante, sejam capacitados quanto ao protocolo do Instituto, incluindo o preenchimento correto dos formulários, fluxos a serem seguidos e o local para onde os trabalhadores devem ser encaminhados. O envolvimento de gestores e setores responsáveis pelo desenvolvimento de educação continuada ou permanente é imprescindível nessa ação.

Um estudo realizado no centro cirúrgico do HC2 identificou vários motivos relacionados à não notificação dos acidentes pelos trabalhadores. Entre os motivos, os trabalhadores relataram que não notificaram porque não tinham informação de que todo tipo de acidentes deve ser notificado e por considerarem uma burocracia excessiva11.

A burocracia excessiva relatada, refere-se à inadequação do horário dos médicos da Saúde do Trabalhador em relação a jornada de trabalho dos profissionais. Para ser atendido pelo médico da Saúde do Trabalhador é necessário agendamento, o que nem sempre é compatível com o horário do trabalhador; além do mais, atualmente este serviço (Saúde do Trabalhador) fica situado no centro da cidade do Rio de Janeiro, inviabilizando o acesso do funcionário que se acidenta11.

Reunião com os médicos residentes para a construção do Plano de Intervenção

Após o pesquisador expor o motivo que norteou o estudo e a proposta da elaboração conjunta de um plano de intervenção, foram discutidos enfaticamente: os elementos referentes aos fatores causais e situações que favorecem a ocorrência dos acidentes identificados durante as visitas técnicas realizadas no centro cirúrgico; o horário que ocorreu a maioria dos acidentes; o registro do acidente e trajetória do acidentado e sobre o Protocolo para AT com Material Biológico e Cortoperfurante (atualizado e aprimorado pelo autor em conjunto com uma médica da DISAT na fase inicial do estudo).

Em relação às perceções dos trabalhadores acerca das condições de trabalho e práticas que favorecem o acidente foi enfatizado que, embora o uso de objetos cortoperfurantes seja inerente às atividades exercidas no centro cirúrgico, a literatura aponta algumas estratégias de controle nas práticas de trabalho que podem prevenir os acidentes e proteger os trabalhadores. Nesta premissa, alguns exemplos foram apresentados com base tanto na literatura como nas observações quotidianas dos profissionais participantes.

O horário que concentrou a maioria dos acidentes- entre as 13 e 19 horas- despertou interesse e discussão. Diante da conjuntura do trabalho no centro cirúrgico, bem como da complexidade das cirurgias oncológicas (muitas vezes com duração bastante prolongada), a questão do horário em que ocorrem os acidentes pode ser um elemento extremamente significante à adoção de medidas de prevenção de acidentes. O período constatado no estudo de maior ocorrência dos agravos pode estar relacionado ao momento em que os trabalhadores poderiam estar a sentir-se mais exaustos, em função do procedimento cirúrgico e, consequentemente, mais propensos a sofrerem acidentes. Essa questão merece maior aprofundamento futuramente.

Sobre o registo do acidente e trajetória do acidentado e o Protocolo para Acidente de Trabalho com Material Biológico e Cortoperfurante, a discussão levou em conta o fato dos médicos (staff e residentes) serem os profissionais que também atuam como plantonistas do serviço de pronto atendimento (SPA) e, eventualmente, serão aqueles que irão atender o trabalhador vítima de AT, logo, fez-se necessário sensibilizá-los sobre essa circunstância, reforçando o atendimento integral e imediato ao trabalhador, conforme preconizado pelo protocolo de AT do instituto. Nesta oportunidade este documento (cópia impressa) foi apresentado, sinalizando que ainda estava em construção, caso algum participante quisesse sugerir alguma modificação.

Após o exposto iniciou-se o momento de discussão e sugestão de ações estratégicas para o plano de intervenção. O grupo sugeriu três ações principais: formar um grupo multiprofissional e intersetorial para discussão dos acidentes e determinação de prioridades; contextualizar e orientar os médicos residentes acerca dos acidentes com objetos cortoperfurantes no centro cirúrgico e conhecer experiências positivas de outras instituições.

Sobre a formação do grupo sugeriu-se a inclusão, de no mínimo, representantes dos setores da COENS, comissão de controle de infecção hospitalar (CCIH), DISAT e Coordenação de Gestão de Pessoas (COGEP). Quanto a contextualização e orientação acerca do tema aos residentes, foi sugerido que essa estratégia ocorra no início da residência em aula expositiva ou treinamento, abarcando a todos os residentes. Sobre conhecer a experiência positiva de outras instituições, foi sugerido que esta ação só se inicie após a formação da equipa multiprofissional e intersetorial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos resultados encontrados no estudo, apesar dos acidentes de trabalho com objetos cortoperfurantes serem frequentes e inerentes a prática dos trabalhadores da saúde, especialmente dos que atuam no centro cirúrgico, o real diagnóstico sobre a ocorrência destes eventos, bem como as estratégias de prevenção e acompanhamento dos casos, ainda é um desafio por vários motivos.

O estudo possibilitou observar o quanto é necessário melhorar o sistema de informação de AT, pois dados de qualidade são um passo importante para subsidiar qualquer intervenção. Demonstrou também que existem inúmeros fatores causais e situações que favorecem a ocorrência dos acidentes e outros que dificultam o acompanhamento dos casos. Reafirmou que uma das melhores ferramentas para melhorar o processo da vigilância em saúde do trabalhador é a escuta e a participação dos trabalhadores em todas as fases de operação. E, finalmente, que ações e práticas educativas e espaços de discussão sobre as questões do trabalho devem ser criados e desenvolvidos de forma rotineira nos serviços de saúde. A participação dos trabalhadores é fundamental, pois somente eles são capazes de descrever as reais condições e circunstâncias em que executam suas atividades, permitindo contribuir coletivamente para o desenvolvimento de melhoria dos processos de trabalho.

O plano terá início com apresentação dos resultados da análise das diversas etapas do estudo (revisão do Protocolo de AT e do sistema de informação, reunião com gestores de alguns serviços, visitas ao centro cirúrgico e discussão com equipas de trabalho, reunião com os médicos residentes e staff) para discussão com grupo ampliado, envolvendo não só os trabalhadores e a DISAT, mas também representantes da Comissão de Controle de Infeção Hospitalar (CCIH), COREME, COENS e COGEP. Ficou clara a necessidade não só de sensibilizar os trabalhadores para a importância da necessidade de notificação, de prevenção e de controle dos acidentes com objetos cortoperfurantes, como também do desenvolvimento de atividades de formação e de educação permanente que contemplem este tema no âmbito da instituição.

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Recebido: 09 de Dezembro de 2020; Aceito: 19 de Dezembro de 2020; Publicado: 02 de Janeiro de 2021

CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declaram não ter nenhum conflito de interesse.

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