INTRODUÇÃO
Em 1910, o vencedor do Prémio Nobel Robert Koch profetizou que “Um dia a humanidade terá que lutar contra a poluição sonora, assim como contra a cólera e a peste.” Este postulado seria confirmado anos mais tarde com a publicação de diversos artigos que destacam os efeitos negativos auditivos e extra-auditivos provocados pelo ruído. A exposição ao ruído foi classificada como o segundo poluente ambiental mais importante na Europa, a seguir à poluição do ar (1). Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que, nos países da Europa Ocidental, cerca de um milhão de anos de vida saudável são perdidos em cada ano devido ao ruído ambiental (2). O ruído de várias fontes está representado na Figura 1.
Quando a exposição ao ruído é crónica e excede determinados níveis, então os efeitos negativos começam a surgir. Vários estudos demonstraram a relação do ruído com distúrbios de sono, doenças cardiovasculares e doenças endócrinas (3-5). Desta forma, é imperativo tomar medidas que melhorem a acústica dos edifícios assim como minimizar o ruído de fontes desnecessárias.
Pretendeu-se com esta revisão caracterizar os diversos efeitos extra-auditivos do ruído bem como identificar medidas preventivas.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi realizada uma Scoping Review entre os meses de janeiro e março de 2021 através de uma pesquisa nas base de dados PUBMED e MEDLINE. A questão de investigação considerada foi: O que está descrito na literatura relativamente aos efeitos extra-auditivos do ruído? Como critérios de inclusão, foram selecionados estudos publicados sem limite de tempo até à data de pesquisa, com qualquer desenho metodológico (preferindo revisões), que abordassem dados que respondessem à questão de investigação. Como critérios de exclusão, tudo o que não respondesse à questão, ou duplicados. As palavras-chave selecionadas incluíam
‘noise’, ‘sleep disturbance’, ‘cardiovascular diseases’, ‘metabolic diseases’, ‘cancer’, e ‘hospital noise’. Após análise dos artigos selecionados, agregou-se bibliografia por eles citada, caso respondesse à pergunta de investigação, bem como pesquisa livre (motores de busca generalistas) que possa não ter surgido na pesquisa inicial. A estratégia utilizada para a escolha dos artigos encontra-se resumida no Fluxograma 1.
EFEITOS EXTRA-AUDITIVOS
Perturbação do sono
A privação/fragmentação do sono é um dos efeitos extra-auditivos associados ao ruído (4). O sono é um processo complexo e muito ativo, incorporando vários mecanismos fisiológicos vitais, como a biossíntese de proteínas, excreção de hormonas e consolidação de memória. Um sono tranquilo é essencial para estar alerta durante o dia, proporcionando qualidade de vida (6). As mudanças da arquitetura do sono induzidas pelo ruído modificam as várias fases do mesmo, induzindo despertares noturnos frequentes. Está comprovado que a restrição de sono tem alterações a nível endócrino, metabólico e imunitário, sendo fator de risco para diversas patologias. Resultados de estudos epidemiológicos indicam que a exposição noturna ao ruído durante o sono poderá ser mais relevante a longo prazo, como nas doenças cardiovasculares, versus exposição diurna (7), condicionando um aumento da pressão arterial durante o dia (8). Existe também evidência de que o sono de curta duração (menos que seis horas por noite), está associado com diabetes mellitus, hipertensão arterial, obesidade, diminuição da resposta imunitária, défice de atenção, humor deprimido e aumento da mortalidade (9-12). A privação de duas horas de sono durante oito dias causa disfunção endotelial em indivíduos saudáveis, comparável à disfunção observada em trabalhadores com turnos de 24h (13). Num modelo animal, foi demonstrado que após exposição a vinte semanas de privação de sono desenvolveram-se disfunção endotelial e hipertensão arterial (14). Os despertares noturnos afetam também o ritmo circadiano, relacionado com as reações redox (15), tendo impacto na reparação vascular e regeneração (16). A privação de sono torna-se ainda mais relevante uma vez que a reparação vascular se realiza durante o sono (17).
Doenças cardiovasculares
A exposição prolongada ao ruído ambiental afeta o sistema cardiovascular, estando relacionada com várias doenças como hipertensão, doença cardíaca isquémica e acidente vascular cerebral (AVC) (18). O ruído crónico pode provocar um desequilíbrio na homeostasia do organismo, afetando os sistemas metabólico e cardiovascular, causando alteração do ritmo cardíaco e libertação de hormonas de stress, incluindo catecolaminas e glucocorticóides (ver Figura 2).
Vários estudos epidemiológicos mostraram que em grupos expostos ao ruído existe uma prevalência superior e aumento da incidência de doenças cardiovasculares e mortalidade (19, 20). Os investigadores conseguiram estabelecer que existe uma relação entre o risco de enfarte agudo do miocárdio (entre 7% e 17%) e o aumento do ruído em 10dB (decibéis). De acordo com um estudo do Reino Unido, níveis de ruído superiores ou iguais a 55dB durante o dia são responsáveis por um aumento adicional de 542 doentes com enfarte relacionado com hipertensão e 788 doentes com AVC, resultando em despesas adicionais de aproximadamente £1 bilião por ano (21). Num estudo dos Estados Unidos da América (EUA), os resultados revelaram que uma redução do ruído de 5dB poderia reduzir a prevalência da hipertensão arterial em 1.4% e a doença coronária em 1.8%, além de proporcionar um benefício económico estimado em 3.9 biliões de dólares (22). Como já mencionado anteriormente, vários trabalhos mostraram que a exposição ao ruído noturno pode ser mais relevante a nível cardiovascular do que a exposição diurna. Um dos maiores estudos que relaciona a hipertensão com a exposição ao ruído de aeroportos é o estudo HYENA (Hypertension and Exposure to Noise near Airports), que contou com cerca de 5000 participantes de seis países Europeus (Reino Unido, Holanda, Alemanha, Suécia, Itália e Grécia) e este revelou um aumento significativo da pressão arterial relacionado com o aumento do ruído noturno (7). Contudo, não foi encontrada nenhuma associação significativa com o ruído diurno. Um estudo Suíço corrobora estes dados, demonstrando que a exposição ao ruído ferroviário exerce efeitos adversos na pressão arterial, especialmente se noturno (23).
Doenças metabólicas
Alguns estudos recentes mostraram que a exposição ao ruído pode conduzir a obesidade e a aumento do risco de diabetes mellitus tipo 2 (25,26). Os possíveis mecanismos incluem o stress emocional induzido pelo ruído e a perturbação de sono, que pode condicionar distúrbios na regulação do apetite e glicose, níveis diminuídos de insulina e redução da sensibilidade a esta última (27,28). A secreção hormonal está dependente da ocorrência de fases do sono específicas (29). O sono divide-se em duas fases, o sono REM (Rapid Eye Movement) e o sono não-REM (NREM). O consumo de glicose cerebral é maior enquanto estamos acordados e no sono REM, alcançando o seu menor nível nas etapas profundas do sono NREM. Consequentemente, mudanças na organização temporal do sono poderão resultar em alterações metabólicas que conduzem a um maior aumento de peso e ao risco de obesidade (30). Em 2013, um estudo Dinamarquês abordou a relação entre o ruído do tráfego rodoviário e o risco de diabetes, demonstrando que um aumento do ruído de 10dB a longo prazo está associado a um aumento do risco de diabetes de 11% (31). Estes resultados foram confirmados recentemente com um estudo Suíço que demonstrou um aumento da incidência da diabetes com a exposição ao ruído proveniente do tráfego rodoviário e aéreo (32). Os resultados deste estudo foram mais pronunciados nos participantes que referiram uma qualidade de sono inferior ou que dormiam com a janela aberta. O stress oxidativo é também um fator crítico na patogénese da diabetes mellitus e existe evidência crescente de que também desempenha uma função importante na relação entre ruído e diabetes (33). O síndrome metabólico, a obesidade e a diabetes estão relacionados com disfunção endotelial e aumento do stress oxidativo, demonstrando que os efeitos do ruído também podem desencadear problemas a nível vascular, condicionando doenças cardíacas (34).
Cancro
Existem poucos estudos que relacionam a exposição ao ruído com o aumento da incidência de cancro. Contudo, existe evidência recente de que a exposição crónica ao ruído conduz potencialmente ao stress oxidativo, podendo aumentar o risco de cancro (35). Os doentes oncológicos relatam frequentemente perturbações do sono (36) e um estudo que avaliou o papel do sono antes e durante a quimioterapia de doentes com cancro colorretal demonstrou que as perturbações de sono estão associadas com a progressão da doença bem como pior prognóstico (37). Além disso, a interrupção do sono pode alterar o ritmo circadiano e resultar na supressão da melatonina, a qual possui propriedades anticancerígenas (38-40), ou seja, reduz a taxa de crescimento de tumores (41) e bloqueia a invasão celular e metastização (42). Um estudo recente encontrou uma associação com significado borderline entre a exposição ao ruído rodoviário e o cancro colorretal (43). Também foi demonstrada uma associação significativa entre a exposição ao ruído rodoviário e ferroviário e o aumento do risco de cancro de mama (recetor de estrogénio negativo) (44). Estes resultados foram parcialmente corroborados por outro estudo que revelou existir um aumento do risco de cancro da mama e o ruído de aeronaves, apesar de não ter demonstrado associação com a exposição ao ruído rodoviário e ferroviário (45). Relativamente ao cancro da próstata não foi demonstrada nenhuma associação com a exposição ao ruído (46).
Ruído hospitalar
Uma extensa meta-análise demonstrou que desde 1960 o ruído hospitalar aumentou cerca de 10dB (47). Atualmente é cerca de 15-20dB superior aos níveis recomendados pela OMS (46). Desta forma, é um perigo crescente para a recuperação dos doentes e para o desempenho dos profissionais de saúde. O ruído pode condicionar um agravamento do estado de saúde dos indivíduos internados, devido ao aumento do stress cardiovascular, recuperação mais prolongada, aumento da dosagem dos medicamentos para alívio da dor e aumento da taxa de readmissão hospitalar (48), ainda que tais parâmetros não sejam da esfera de análise e atuação da Saúde Ocupacional. Os recém-nascidos, doentes crónicos e doentes idosos estão expostos a um risco superior face aos efeitos do ruído. Num estudo desenvolvido nos EUA, os doentes identificaram o ruído noturno dentro e à volta dos quartos como sendo o fator relacionado com a qualidade dos cuidados que mais necessidade de ser melhorado (49). Desta forma, a perturbação do sono é a queixa mais comum dos doentes relacionada com o ruído hospitalar (50). Especialmente em unidades de cuidados intensivos, existem ruídos irregulares provenientes de dispositivos médicos (51). Existe também evidência crescente de que o ruído tem efeitos negativos no desempenho dos profissionais de saúde, particularmente nos Enfermeiros, condicionando burnout, diminuição do bem-estar, fadiga, irritação e cefaleias de tensão (52,53). O ruído afeta, também, a perceção do discurso, podendo assim conduzir a equívocos que podem resultar em erros médicos (52). A eliminação ou a redução do ruído excessivo é uma obrigação legal muito importante para empregadores e trabalhadores, pois quanto mais seguro e saudável for o ambiente de trabalho menores serão as probabilidades de acidentes de trabalho, de absentismo elevado e de diminuição de rendimento do trabalho (54). Vários estudos mostram uma associação evidente entre o ruído ocupacional e a sinistralidade (55-57). De forma a evitar as inúmeras consequências negativas face à exposição do ruído, a melhoria da acústica em ambiente hospitalar tornou-se numa prioridade transdisciplinar (58,59).
DISCUSSÃO/ CONCLUSÃO
Em suma, vários estudos mostram de forma inequívoca que a exposição ao ruído afeta a saúde pública. O ruído ambiental condiciona várias patologias e ao longo dos anos tem vindo a aumentar, sendo urgente tomar medidas para travar as suas consequências a longo prazo. Os seus efeitos extra-auditivos são diversos, sérios e muito prevalentes devido à exposição generalizada. Os níveis máximos de ruído devem ser minimizados (idealmente na origem) e regulamentados de forma a diminuir os acidentes de trabalho. A Medicina do Trabalho pode aplicar várias medidas, nomeadamente a identificação de fontes importantes de ruído e respetiva sinalização visual de alerta; implementação de métodos de trabalho que permitam diminuir a intensidade e duração da exposição sonora, ajustando horários de trabalho e respetivos períodos de descanso, caso necessário; programação de atividades de manutenção dos locais de trabalho e de todos os equipamentos a estes associados; formação dos trabalhadores de forma a garantir a correta e segura utilização dos equipamentos e da proteção auricular individual, sempre que indicada. A periodicidade de vigilância médica deve ser garantida em função do nível de exposição de cada trabalhador ao ruído no local de trabalho e é igualmente essencial na avaliação da capacidade auditiva dos trabalhadores. As campanhas educacionais podem contribuir para sensibilizar os trabalhadores, promovendo comportamentos conscientes e eliminando ruídos desnecessários. A melhoria dos edifícios a nível acústico é também uma medida importante a ser implementada, numa primeira fase de construção ao nível da arquitetura dos edifícios e posteriormente ao nível da escolha de materiais amortecedores de ruído.