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Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online

versão impressa ISSN 2183-8453

RPSO vol.11  Gondomar jun. 2021  Epub 07-Jan-2022

https://doi.org/10.31252/rpso.10.04.2021 

Revisão Bibliográfica

MODIFICAÇÃO/MANIPULAÇÃO CORPORAL: EM QUE CONSISTE? FARÁ SENTIDO SER ANALISADA PELA SAÚDE OCUPACIONAL?

BODY MODIFICATION/MANIPULATION: WHAT IS IT? DOES MAKE SENSE TO BE ANALYZED BY OCCUPATIONAL HEALTH?

1Licenciada em Medicina; Especialista em Medicina Geral e Familiar; Mestre em Ciências do Desporto; Especialista em Medicina do Trabalho e Doutoranda em Segurança e Saúde Ocupacionais, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Presentemente a exercer nas empresas Medimarco, Higiformed e Medilavoro; Diretora Clínica da empresa Quercia; Diretora da Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. Endereços para correspondência: Rua Agostinho Fernando Oliveira Guedes, 42, 4420-009 Gondomar. E-mail: s_monica_santos@hotmail.com


RESUMO

Introdução/enquadramento/objetivos:

Entre as técnicas de Modificação/Manipulação Corporal a Tatuagem é a melhor aceite pela sociedade, seguida pelo Body Piercing; contudo, existem muitas outras menos prevalentes e/ou consideradas mais radicais, mas com procura progressivamente aumentada ao longo das últimas décadas, existindo um número razoável de indivíduos que as proporcionam, sendo remunerados por tal, ainda que sem o estatuto formal de “profissão”. Contudo, na generalidade dos procedimentos existem fatores de risco/riscos consideráveis para o “Body Modifier”. Pretendeu-se com esta revisão resumir o que de mais pertinente se publicou sobre o tema.

Metodologia:

Trata-se de uma Revisão Bibliográfica, iniciada através de uma pesquisa realizada em fevereiro de 2021, na base RCAAP.

Conteúdo:

Para além da Tatuagem e do Body Piercing, podem aqui ser englobados os implantes intra e subdermais (por debaixo da pele e/ou a trespassar a mesma), modelação de algumas dimensões por constrição (cintos, faixas) e/ou expansão de outras áreas (narinas, lábios, lóbulos auriculares), escarificação, queimadura (branding), bifurcação da língua, suspensão corporal, bodyplay e ear pointing.

Discussão e Conclusões:

Parte destas técnicas, pela reação que obtêm da maioria da sociedade e pela necessidade de conhecimentos técnicos e condições nas infraestruturas existentes, por vezes, apenas em alguns profissionais/instituições de saúde, subentende-se que parte dos atos não são considerados legais e, neste momento, não está atribuído o estatuto de profissão a quem se dedica a este setor, implicando tal dificuldades no desenvolvimento de procedimentos seguros/recomendações e formação adequada a quem os executa. Contudo, os “Body Modifiers” são remunerados pelas suas atividades, critério esse relevante na perspetiva do código do trabalho para definir um vínculo laboral.

Os adeptos têm vindo progressivamente a aumentar e, secundariamente, também o número de indivíduos que a ela se dedicam. À generalidade destes procedimentos estão associados fatores de risco “laborais” relevantes e seria pertinente analisar cada uma das modalidades aqui inseridas, elaborando normas de Boas Práticas relativas a quais os procedimentos que se poderiam oferecer ao cliente e quais deveriam ser proibidos, quais as condições mínimas de assepsia e equipamentos no estabelecimento, quais as melhores técnicas a utilizar e quais as habilitações necessárias para exercer. Seria pertinente criarem-se associações que conseguissem fazer evoluir o setor, de preferência com capacidade fiscalizadora e corretora. Para além disso, também seria interessante perceber qual o panorama nacional (ou seja, número de clientes, quais as modificações efetuadas, número de indivíduos que se dedicam ao setor, local de trabalho- tipo de estabelecimento e zona do país, exclusividade profissional ou não, habilitações, anos de experiência, perceção relativa aos riscos laborais, acidentes e eventuais doenças profissionais).

Palavras-chave: modificação/manipulação corporal; tatuagem; body piercing; escarificação; suspensão corporal; saúde ocupacional e medicina do trabalho

ABSTRACT

Introduction/background/objectives:

Among the Body Modification/Manipulation techniques, Tattoo is the best accepted by society, followed by Body Piercing; however, there are many other techniques that are less frequent and considered more radical, but which have been progressively increasing in prevalence over the past few decades, with a reasonable number of individuals providing them, being paid for it, even without the formal status of “profession”. However, in most procedures there are considerable risk factors for the “Body Modifier”. The purpose of this review was to summarize what most pertinent was writing about the topic.

Methodology:

It is a Bibliographic Review, initiated through a research carried out in February 2021, basis on RCAAP.

Contents:

In addition to tattooing and piercing, intra and subdermal implants, modeling of some body dimensions by constriction (belts, bands) and/or expansion of other areas (like lips or ear lobes), scarification, burn (branding), tongue bifurcation, body suspension, bodyplay and ear pointing are other examples.

Discussion and Conclusions:

For most of these techniques, due to the reaction they get from the majority of society and the need for technical knowledge and conditions in the existing infrastructure, found sometimes only in some health professionals/institutions, it is understood why part of the acts are not now considered legal and, at this time, the occupation is not given the status of profession, which implies more difficulties in the development of safe procedures/recommendations and adequate training for those who perform them. However, “Body Modifiers” are paid for their activities, a relevant criterion from the perspective of the labor code to define an employment relationship.

The persons that have body modifications have been progressively increasing and also the number of individuals who dedicate themselves to it. Most of these procedures are associated with relevant “occupational” risk and it would be pertinent to analyze each of the modalities inserted here, elaborating Good Practice recommendations regarding which procedures could be offered to the client and which could be prohibited, what are the minimum conditions of asepsis and equipment in the establishment, which are the best techniques to use and what qualifications are necessary to exercise. It would be pertinent to create associations that could evolve the sector, preferably with inspection and correction capacity. In addition, it would also be interesting to understand the national panorama (that is, the number of clients, the modifications made, the number of individuals dedicated to the sector, the type of establishment and area of ​​the country, professional exclusivity or not, qualifications, years of experience, perception of occupational risk, accidents and possible occupational diseases).

Keywords: body modification/manipulation; tattooing; body piercing; scarification; body suspension; occupational health and occupational medicine

INTRODUÇÃO

Ao pesquisar o setor da Tatuagem em contexto Sociológico e de Saúde Ocupacional, a autora adquiriu mais conhecimentos sobre outras técnicas de Modificação/Manipulação Corporal (MC). Entre estas, a Tatuagem é a melhor aceite pela sociedade, seguida pelo Body Piercing; contudo, existem muitas outras menos prevalentes e/ou consideradas mais radicais, mas com procura progressivamente aumentada ao longo das últimas décadas, existindo um número razoável de indivíduos que as proporcionam, sendo remunerados, ainda que sem o estatuto formal de “profissão”. Contudo, na generalidade dos procedimentos existem fatores de risco/riscos consideráveis para o “Body Modifier”. Pretendeu-se com esta revisão resumir o que de mais pertinente se publicou sobre o tema e fazer refletir sobre como e por onde se deverá prosseguir no futuro.

METODOLOGIA

Em função da metodologia PICo, foram considerados:

  • -P (population): indivíduos que executam técnicas de MC em terceiros, em troca de remuneração.

  • -I (interest): reunir conhecimentos relevantes sobre a MC e os seus riscos

  • -C (context): riscos ocupacionais dos “Body Modifiers” portugueses.

Assim, a pergunta protocolar será: O que é a Modificação/Manipulação Corporal e quais os riscos associados para quem a executa?

Foi realizada uma pesquisa em fevereiro de 2021 na base de dados RCAAP”.

No quadro 1 podem ser consultadas as palavras-chave utilizadas nas bases de dados.

Quadro 1 Pesquisa efetuada 

CONTEÚDO

Definição de Marcação ou Modificação Corporal (MC)

O conceito de MC inclui alterações produzidas deliberadamente no organismo, secundárias a diversos métodos, ou seja, desde situações mais frequentes e divulgadas na sociedade, como usar agentes químicos (por exemplo os anabolizantes (1) no body building (2) (3)) ou o exercício em geral (3), implantes capilares (2), cirurgias plásticas clássicas (4) (5) (1) , dietas vulgares (4) (5)/anorexia (3), enxertos (1) ou praticar travestismo (4). Outras MC consideradas mais extremas têm menos adeptos e são mais raras.

Contudo, de certa forma, na opinião de alguns autores, já se está a modificar o corpo ao cortar o cabelo/unhas, usar brincos ou maquilhagem (5).

O setor das MC tornou-se um negócio lucrativo, que inclui não só a prática direta, mas também o fabrico dos piercings e outros materiais necessários, feiras/convenções e páginas de internet (6).

Contextualização Sociológica

O corpo funciona como tela em branco, onde se registam elementos capazes de atribuir individualidade e singularidade (1).

As MCs podem pretender procurar a identidade; por vezes, com enfase na erotização (através sobretudo da perceção da dor (6)), com ou sem dimensão masoquista, ainda que consideradas por alguns como automutilações. Podem também permitir a inserção num grupo, chamar a atenção (7) e/ou ser consideradas uma construção social, representativa eventualmente de algum desconforto perante a sociedade (8).

As principais motivações para fazer MC são o valor estético e artístico; registar momentos importantes no corpo; aumentar a autoconfiança e autoestima; sentir-se completo e autêntico; mostrar quem é e conhecer outros com posturas semelhantes- pertencer a uma subcultura; chocar e demonstrar oposição à sociedade; diversão; dominar o corpo, a sua vida e os seus direitos; obter mais prazer sexual; sentir-se vivo e conseguir diferenciar-se (6).

Um corpo com marcas torna-se um corpo expandido, que regista as experiências vividas (9). Aliás, muitas das experiências desenvolvidas pelos indivíduos que praticam modificações corporais são divulgadas na internet (3).

AS MC podem ser mais prevalentes devido à diminuição do número de rituais que simbolizavam passagens significativas da vida. O objetivo poderá ser também quebrar normas e padrões, à procura da satisfação e diminuição da ansiedade (10).

Nos últimos anos a MC quer assumir o estatuto de Arte e, a quem a ela se dedica, o patamar de artista (4). O objetivo não é necessariamente chocar, mas ser admirado por aqueles com o mesmo sentido estético (2). Regra geral, quanto mais tempo, esforço, disciplina, paciência e resistência uma MC exigir, mais bela e apreciada será. É percecionada como modificação espiritual e não física (6).

Algumas marcas podem ser percecionadas como sensuais e associadas à juventude, com valor não só artístico, mas também autobiográfico (recordação, identidade, diferença); encaradas como projeto definitivo e orientado para o futuro (11). Elas gravam e lembram algo; narrando parte de uma vida, na sua subjetividade. Reflete um projeto irreversível, em construção, que expressa e mantém um simbolismo de unidade e continuidade da identidade (12). Justamente essa irreversibilidade, por sua vez, pode proporcionar o estatuto de algo sacrificial (11). Usar a pele como tela pode representar simbolicamente a sua vida, permite sentirem-se coerentes. As MC podem representar as transformações sucessivas do indivíduo e a sua identidade, proporcionado um efeito ansiolítico e de conforto perante as adversidades da vida; de certa forma pode constituir uma máscara de proteção (13).

As primeiras marcas corporais também podem coincidir com eventos de rutura de identidade (11) (12). Cada marca do corpo pode surgir após uma crise e posterior reconfiguração, comemorando a sobrevivência a esse evento e confirmando a estabilidade geral da identidade, valores e estilo de vida. Presentemente a instabilidade é mais intensa a nível de vínculo laboral/carreira e relacionamentos afetivos, pelo que a continuidade da identidade pode ficar mais ameaçada. Pode ser agradável ter algo que nunca se alterará, por mais que se envelheça. O corpo é um bem verdadeiramente seu, sempre disponível e com o qual consideram que podem sempre contar, sobretudo se jovem e com poucos bens materiais (12).

Ao dominar o corpo, os jovens podem sentir que controlam a sua vida, resistindo às limitações que o futuro poderá trazer, ameaçando a sua identidade ou estilo de vida. Alguns, acreditando que o futuro será muito negativo e incerto, projetam no corpo esses sentimentos e inserem-se em fenómenos de microculturas, às quais se adaptam facilmente e se sentem à vontade para experimentar, explorar, descobrir, partilhar, celebrar e legitimar; geralmente em rutura com a cultura dominante. A MC pode demonstrar essa contestação política e/ou ideológica bem como vontade de mudar o mundo. De certa forma, é um imaginário coletivo, assente na singularidade e autenticidade, com contornos individualizados. Ou seja, marcar o corpo adquire um patamar ético, dado se representar metaforicamente a forma de ver o mundo. Pode também constituir uma reivindicação de não apoio às convenções estéticas e éticas dominantes na sociedade onde se insere (11).

Poderá constituir um ato de rebeldia perante as diversas figuras de autoridade (pais, professores, empregadores). A oposição demonstrada pelos progenitores à MC pode atribuir a conotação de emancipação, autoridade e controlo (11).

A discriminação pode ser sentida na dimensão de acesso ao mercado de trabalho, sendo por vezes necessário esconder as marcas corporais, para não serem considerados mais preguiçosos ou incompetentes. Por vezes, alguns até escolhem deliberadamente zonas do corpo mais discretas (ou seja, evitam do pescoço para cima e do cotovelo para baixo) (11). Ainda que estes indivíduos possam sentir o desconforto do preconceito e discriminação, o prazer de usufruir do direito de ser diferente é geralmente mais valorizado (4). Mudar o corpo poderá ser uma conquista de poder sobre si (11).

A fase da adolescência pode constituir uma etapa crítica de reconfiguração e rotura de identidade, destacando-se a procura de um sentido para a existência pessoal e social. Aliás, alguns desses rituais de passagem podem ir ocorrendo de forma relativamente dessincronizada no tempo e/ou espaço, perdendo algum simbolismo. No passado, em algumas sociedades, a entrada na vida adulta correspondia à realização da Tatuagem, ou seja, se o jovem aguentasse esse ato, então também deveria conseguir enfrentar os dilemas dos adultos (12).

A MC pode adquirir uma aura de originalidade e arte, fazendo a distinção da homogeneidade dos outros e chamando a atenção para si, através da violação dos princípios dominantes (13).

O facto de o processo ser doloroso pode proporcionar orgulho a quem o praticou, simbolizando tal coragem e força, tal como nas civilizações mais primitivas. Aliás, alguns até consideram que, se não doesse, não teria o mesmo valor. De certa forma testa-se a capacidade de lidar com desafios e adversidade, provando autonomia, emancipação, autenticidade e sinceridade (13).

Ela constitui assim uma prova física (pela dor no momento e posteriormente) e moral (ser capaz de provar a si mesmo e aos outros que tem capacidade para superar a situação, com coragem e resistência). A dor é vivida e percecionada de forma muito diferente entre indivíduos, sendo tal justificado por questões fisiológicas e emocionais; trata-se de um sofrimento, propositado e autónomo, que prova a determinação, força de carater e capacidade para lidar com as adversidades em geral (11).

O indivíduo, ao alterar o corpo muda a existência e a perceção que tem de si e os outros (11).

Tipos de Marcação Corporal

Exemplos de MC praticadas presentemente são os Implantes (2) (3) (5) intra e subdermais (por debaixo da pele e/ ou a trespassar a mesma) (4), Tatuagem (2) (4) (5), modelação de algumas dimensões por Constrição (cintos, faixas) (4) e/ou Expansão de outras áreas (narinas, lábios, lóbulos auriculares) (4)- através de Alargadores (1) (2) (5), Escarificação (2) (3) (4)- cutting (2) (5), queimadura (Branding) (2) (3) (5), Piercings (1) (2) (4) (5) (nariz, sobrancelha, lóbulos auriculares, língua, mamilo, umbigo, áreas genitais) (4), Bifurcação da Língua (2) (4) (5), Suspensão Corporal (2) (3) (4) (5), Body Play, Ear Pointing (5) e até Amputações (4) (5) de membros (2).

Os jogos corporais (Body Play), em específico, segundo alguns autores, podem ser divididos nas seguintes categorias (ainda que sejam mencionadas algumas MC referidas anteriormente de forma individualizada): contorção, ou seja, distender e curvar ossos, alongar, enfaixar os pés; constrição, ou seja, usar estruturas muito apertadas que permitem fazer compressão (cintos, ligaduras, roupas, espartilhos, cordas); privação (sono, alimentos, movimentos, sensorial); usar objetos metálicos muito pesados; queimadura (através do sol, eletricidade, vapor, banho ou Branding); penetração (Piercing, Flagelação, Tatuagem, Agentes Químicos) e Suspensão (por ganchos, constrição ou vários piercings) (6).

Alguns autores consideram que uma vez que a Tatuagem e os Piercings são melhor aceites na sociedade, estes deveriam ser tratados de forma distinta das restantes técnicas de MC. Outros propõem uma divisão entre técnicas suaves e extremas (4).

Em algumas situações a MC perdura como um estado de adição, de cujo consumo se obtém um efeito ansiolítico (14). No ano de 2002 foi fundada a Igreja da MC, com o intuito de dar alguma proteção legal aos praticantes (6), segundo a opinião de alguns autores.

As técnicas mais prevalentes são a Tatuagem e o Piercing; a terceira mais frequente, segundo alguns investigadores, talvez seja o uso de objetos “alargadores” (2). Contudo, a nível de publicação de dados em documentos científicos, a Tatuagem está muito mais desenvolvida que as restantes, como se reflete neste artigo.

História e Evolução gerais da Marcação Corporal

Ao analisar a história da humanidade percebe-se que o corpo foi adornado, mutilado e/ou manipulado em diversas culturas (4). Algumas MC apresentam uma tradição milenar em diversas tribos, geralmente associadas a rituais de passagem (2), nomeadamente a Tatuagem e a Escarificação (5), mas não só.

A Body Art surgiu na década de 60 e aqui exibia-se o corpo humano sem pudor e, por vezes, originando até alguma repulsa da parte do público. Na década seguinte esta subdividiu-se em várias linhas, nomeadamente o conceito de Body Modification, em conjunto com o movimento Punk, baseado na revolta perante algumas caraterísticas da sociedade (4).

Nessa época, surgiu também o movimento “Modern Primitives”, nos EUA, com Fakir Musafar. Aqui valorizam-se os aspetos ritualísticos, a superação da dor e a espiritualidade; por vezes conjugada com alguma erotização dos atos. Nesta vertente eram considerados sobretudo as actividades inseridas no Body Play, atrás mencionado (4).

Desde aí, a MC tem apresentado um crescimento a nível de adeptos, sobretudo em zonas mais urbanas (2).

Tatuagem

Trata-se de uma das MC melhor aceites e mais prevalentes; pode ser definida como a micropigmentação da pele através de agulhas (3).

-O Tatuador

Alguns indivíduos transformam-se em profissionais da Tatuagem, em parte pela proximidade como consumidor prévio (15) (16), por vezes simbolizando tal originalidade, rebeldia, inconformismo, emancipação, controlo absoluto e incondicional do corpo, resistência, descontentamento, afirmação, divergência, dissidência e/ou escapatória à massificação dos estilos de vida prevalentes e/ou figuras de autoridade (pais, professores e/ou empregadores) (15).

Para além disso, o corpo muito tatuado do Tatuador poderá funcionar como catálogo, condição essa geralmente muito apreciada no meio, indo de encontro às expetativas do cliente, aumentando a confiança e projeção de competência profissional (16).

Parte dos Tatuadores tentam orientar economicamente a sua vida através dos seus gostos/preferências e estilo de vida, mantendo uma razoável autonomia, trabalhando por conta própria, fora dos empregos mais tradicionais anteriores (às vezes em empresas de alguma dimensão hierárquica, com muitos colegas e várias chefias). Há algumas décadas a decisão de ser Tatuador não costumava surgir precocemente (como noutras profissões clássicas); por vezes, a hipótese surgia para resolver uma sucessão de trabalhos precários e instáveis ou até fases de desemprego, com insastifação a nível de tarefas ou remuneração; às vezes a Tatuagem é iniciada como “biscate” para ter algum dinheiro de bolso e depois passa a ocupação a tempo inteiro. Os indivíduos que conseguiram transformar a sua paixão pela Tatuagem em Profissão, geralmente executam o seu trabalho com criatividade, brio, prazer e singularidade. Alguns valorizam mais o prazer que a atividade profissional proporciona, versus a rentabilidade económica (ainda que a considerem lucrativa) (16).

A logística que é necessário adquirir para começar a tatuar não é complexa. Os amadores geralmente valorizam mais o lucro do que a saúde e segurança dos seus clientes, pelo que podem ter más condições de higiene e equipamentos não totalmente funcionais (16).

Há a preocupação da parte dos Tatuadores em construir uma imagem de assepsia relativa ao estúdio (equipamentos e procedimentos); por vezes, até utilizando ou recomendando procedimentos médicos, potenciando a legitimação social da atividade e resultados estéticos associados. O cenário medicalizado é reforçado pela utilização de agulhas e luvas descartáveis, máscaras cirúrgicas e até batas brancas e marquesas para o cliente, mesmo antes da fase COVID, em alguns casos; estratégias essas que potenciam a ideia de redução do risco (16) (17). Dado os Tatuadores lidarem com sangue, é possível a transmissão de doenças para o cliente e/ou Tatuador. O estúdio deve, por isso, refletir as normas básicas de assepsia (17). A Tatuagem implica risco biológico para ambos. A reputação do estúdio e dos Tatuadores depende da capacidade para minimizar o risco (16).

O desafio do Tatuador é atingir um estilo pessoal divulgado e reconhecido, sobretudo a nível internacional, constituindo-se uma reputação e singularidade no estilo (16).

Na relação com o cliente há a negociação, colaboração, compromisso e oferta de criatividade e técnica, bem como de enquadramento nas Tatuagens previamente realizadas; por vezes as sugestões do cliente criam uma coautoria. Há assim fusão de projetos corporal, de estilo de vida geral e profissional, surgindo continuidade entre o passado, presente e o futuro (16). Os Tatuadores com melhor reputação não são escolhidos pelo cliente, mas sim o inverso (18).

Quando existe formação artística inicial, esta geralmente passa por escolas/universidades associadas a Belas-Artes ou Design (11) (16) (19), não se limitando o Tatuador a replicar, mas também a elaborar os seus próprios desenhos (11); encontrando nesta profissão uma forma de se exprimir graficamente de forma original, autónoma e original (16). Por vezes, estes até não são grandes fãs da Tatuagem em si, para além da dimensão artística (18) (19). Por sua vez, alguns Tatuadores mais antigos nem sequer sabem desenhar, mas apenas conseguem transpor o desenho pré-elaborado para a pele e tatuar (19). O Tatuador-artista está progressivamente a substituir o Tatuador artesão (18) (19).

-Evolução do setor ao longo dos séculos e de como a Tatuagem foi sendo percecionada (em contexto internacional)

No passado a Tatuagem servia para classificar indivíduos e grupos, eventualmente associada a valores, visões do mundo, rituais de passagem e formas de controlo sobre os elementos. Ou seja, a marca corporal poderia localizar e orientar socialmente o indivíduo (11).

No ocidente, até cerca do século XVIII, ela era condenada pela religião (cristã, judaica e islâmica) e considerada um crime moral e à integridade física. Excecionalmente poderia ser aceite em caso de autoflagelação em função de uma entidade divina, ainda que tivesse de ser previamente autorizada pela igreja Católica. Algumas Tatuagens exibiam símbolos religiosos, como o crucifixo. Nas épocas medieval e renascentista as marcas corporais poderiam ser associadas a atitudes pagãs, mágicos, astrónomos, físicos, artistas e/ou feiticeiros, por vezes, servindo como amuleto (11).

As Tatuagens eram razoavelmente frequentes em alguns povos, como os Celtas e os Vikings- daí que, ainda hoje, este fenómeno seja mais prevalente no norte versus sul da Europa, apesar que a religião protestante versus católica também possa ter algum peso (11).

Em algumas civilizações/épocas a Tatuagem servia para identificar a posse (em contexto de escravatura) ou crime cometido (11).

Inicialmente ela foi associada aos profissionais das viagens marítimas e, posteriormente, aos elementos com que estes se relacionavam (11) (13). Por um lado, a estigmatização manteve-se, já não com cariz religioso, mas em função do nível socioeconómico-cultural de quem tinha Tatuagens nessa altura e indicando pertença a determinado grupo (11).

Para alguns o corpo tatuado remetia para a dimensão primitiva/nativa, selvagem, exótica e/ou pagã. Ou seja, alguém sujeito a menos regras comportamentais, mais impulsivo e emotivo, direcionado para a satisfação mais imediata dos desejos e necessidades básicas, sem constrições sociais ou etiqueta (11).

O capitão James Cook é visto como um dos maiores divulgadores da Tatuagem na Europa, devido às viagens marítimas realizadas para povos nativos com o hábito de marcarem o corpo (quer Tatuagem, quer por técnicas que antecederam o Body Piercing). Aliás o termo em inglês (tattoo) poderá ter tido origem no som produzido pela introdução do pigmento na pele, através de dois objetos metálicos a bater um no outro; ainda que exista, simultaneamente, evidência de Tatuagens prévias a este contato (11).

Dado parte dos indivíduos tatuados em determinado local e época serem marinheiros, estivadores, prostitutas, presos e membros de gangs, a Tatuagem foi durante algum tempo associada à marginalidade. Nesta altura, as Tatuagens do sexo feminino eram ainda mais escassas e restritas aos contextos atrás mencionados. Contudo, mesmo nesta altura, a Tatuagem também existiu em alguns indivíduos de classes sociais muito elevadas, na Europa e América do Norte, significando riqueza e excentricidade (11).

A partir de dada altura, ela passou a simbolizar rebeldia juvenil, capaz de deixar os progenitores em situação de pânico moral, não só pelo conservadorismo instituído, mas também pela associação ao comportamento desviante/criminoso/psicopatológico (11).

Após a segunda Guerra Mundial, ela passou a ser mais prevalente e eventualmente apropriada em contextos culturais específicos. Contudo, apesar do aumento do recrutamento social desta marca corporal, a sua utilização ainda não é totalmente pacífica a nível social, mantendo-se alguns simbolismos antigos (como autodestruição, patologia psíquica, marginalidade, desvio, contestação); apesar de existirem figuras públicas com marcas corporais e de ser mais banal a sua presença em escolas, praias e locais de vida noturna; indicando proximidade ao mundo da música, cinema, moda ou desporto (11).

A invenção da máquina de tatuar elétrica permitiu obter desenhos com mais qualidade; para além disso, a criação de acessórios descartáveis e maior eficácia dos métodos de esterilização, difundiu a Tatuagem para públicos anteriormente menos recetivos. Perdendo-se um pouco a dimensão da marginalidade, manteve-se, ainda assim, alguma excentricidade, originalidade e transgressão consentida ou diferença tolerada, adquirindo, por vezes, um valor artístico (11).

O corpo icónico divulgado pelos Media musicais, por exemplo, influencia de forma significativa a marcação corporal dos jovens, ou seja, estes não só demonstram a sua admiração e dedicação a esses ídolos como, de certa forma, se fundem um pouco com eles. Para além disso, indivíduos mais próximos em contexto residencial (família, vizinhos), escolar ou lúdico (vida noturna) também conseguem influenciar, dado o desejo de partilhar a mesma experiência (11).

A desvalorização das etapas anteriormente simbolizadoras como início da vida adulta (maioridade, iniciação sexual, juramento de bandeira, bênção das fitas, início da vida laboral, primeira casa, casamento, filiação) pode criar uma lacuna que poderá ser preenchida pela Tatuagem. Se o jovem aguentar o processo, então deverá estar pronto para resolver os problemas da vida adulta (11).

Os primeiros estabelecimentos onde se proporcionaram serviços de Tatuagem ficavam em ruas problemáticas, por vezes perto de zonas de prostituição e/ou frequentadas por elementos associados à vida boémia e membros de gangs/máfias (13) (18). A “profissão” era geralmente aprendida na prisão ou no meio militar (18).

Contudo, mais recentemente, ela aproxima-se do mundo do Design Corporal, passando o Tatuador a deixar de ser visto como um malandro, mas como um profissional do estilo emergente nas sociedades urbanas, atraindo por isso clientes diferentes, constituindo por vezes uma carreira apetecível por indivíduos até com formação académica no setor das Artes, tornam-se uma opção laboral independente, criativa e rentável, eventualmente conjugando a sua identidade social e pessoal (18).

Ela ainda não foi totalmente aceite pela sociedade, sobretudo as formas mais radicais (como tatuar a face). Para além disso, corpos massivamente tatuados ainda são geralmente considerados bizarros e anormais (13). Contudo, a progressiva visualização e familiarização da Tatuagem, potenciam a tolerância, sobretudo quando são em dimensão/número moderado (15).

-Evolução do setor nas últimas décadas e da forma como a Tatuagem foi sendo percecionada (em Portugal)

A partir do final do século XX os Tatuadores passaram a trabalhar em espaços especialmente dedicados a este efeito (estúdios), com um ambiente com algumas caraterísticas clínicas e asséticas, fornecido de instrumentos com aspeto cirúrgico (sobretudo na sala de Tatuagem, por vezes muito contrastante da sala de espera, por exemplo) e de algum modo credenciados. Foram criadas posteriormente associações onde os Tatuadores partilham dificuldades e experiências, desenvolvendo eventos como Convenções e Concursos, por vezes, até a nível internacional (11).

Em 2005 a DECO fez a primeira avaliação em Portugal relativa às condições de funcionamento dos estabelecimentos do setor e informações prestadas aos clientes. Posteriormente um Partido propôs na Assembleia da República um projeto lei para regulamentar este tipo de atividade, no sentido de proteger a Saúde Pública. Acredita-se que tal poderá ter ocorrido devido justamente à utilização destes serviços pela classe média e elevada, e eventualmente por se ter atingido de forma mais significativa o público feminino (11).

Um estudo estimou que em Portugal, em 2000, 4% dos jovens tinham pelo menos uma Tatuagem e 1% mais do que uma; 31% dos que nunca tinha sido tatuado não descartava essa possibilidade no futuro, ainda que 64% tenha afirmado que nunca faria uma Tatuagem e 91% que nunca fariam várias. Logo, apesar da crescente visibilidade e interesse, a aceitação em massa ainda não é consensual; aliás, uma parte sente-se simultaneamente atraída e repelida, pelo que não põe de parte fazer, ainda que, de momento, não o tenha feito (11). Noutro estudo, em 2002, menos de 0,5% dos jovens entrevistados, entre os 15 e os 29 anos, apresentavam pelo menos uma Tatuagem ou Piercing (13).

No início da década de 90, em Lisboa, existiam apenas dois (11) (16) ou três (18) (19) estúdios de Tatuagem; dez a quinze anos depois passaram a ser várias dezenas e distribuídos por várias zonas do país (11) (16). O facto de, por vezes, funcionarem inseridos em salões de beleza/estética permitiu atingir outro público que não apreciava o cenário de clandestinidade de alguns estúdios originais (11).

Na década de 90 a interação profissional era quase nula, até porque, por vezes, existia algum secretismo à volta do setor. Para além disso, achava-se que as técnicas pessoais deviam ser mantidas em segredo, por questões de competitividade económica, até porque os clientes não eram muito abundantes; gerindo cuidadosamente a transmissão de conhecimentos aos aprendizes, uma vez que poderiam estar a ajudar a desenvolver a futura concorrência. Geralmente era necessário partilhar a clientela com estes ajudantes, sendo-lhes atribuídos com maior frequência os clientes esporádicos e/ou com desenhos mais simples. A internacionalização do setor muito contribuiu para potenciar a motivação de transmitir as suas técnicas, de forma a atingir notoriedade, quer entre colegas, quer fora desse círculo (18).

Em 2007 foram contabilizados no nosso país 30 estúdios e 50 Tatuadores; por sua vez, em 2010, os números atrás mencionados passaram para 52 e 77, respetivamente (18) (19).

A localização dos estúdios melhorou e o setor conseguiu evoluir no sentido da profissionalização (versus mera ocupação), sendo encarado pelo executante (às vezes) como qualquer outra profissão e não propriamente um estilo de vida/paixão. Contudo, esta mudança também cativou indivíduos desempregados e/ou não especializados, pelo que os Tatuadores já experientes começam a exigir a criação, fiscalização e cumprimentos de algumas normas e definição das competências mínimas, de forma a eliminar a concorrência desleal (materiais e equipamentos mais baratos ou até improvisados), sem biossegurança e com tarifários mais económicos e, às vezes, também sem experiência técnica adequada. Qualquer um pode comprar uma máquina de tatuar e intitular-se profissional desse setor (18).

Em 2010 foi criada a Associação Cultural de Tatuadores & Body Art que, embora sem as capacidades legais de associação profissional ou sindicato, tentou fazer evoluir o setor (18).

A procura é mais intensa agora e mais diversificada a nível social, o que também possibilitou o aumento do número de Tatuadores (19).

-Interação entre internet/redes sociais e Convenções de Tatuagem e a sociedade

Sem internet, a pouca divulgação ocorria através de revistas de Tatuagem, que eram dispendiosas; aliás os profissionais dessa altura não tinham grande vontade de partilhar. Agora, com as redes sociais, Guest-spots (convite para ir a outro estúdio) e as Convenções, trocam-se informações, desenhos e até Tatuagens finalizadas. O fluxo de informação passa a ser constante e constroem-se reputações, de forma a cada profissional provar a sua originalidade e talento, num formato muito agravável para todos (18).

Nas Convenções de Tatuadores os profissionais mostram o seu trabalho, para avaliação informal dos frequentadores desses eventos e/ou júris oficiais (11). Não só Tatuadores portugueses passaram a frequentar Convenções estrangeiras, como profissionais de outros países começaram a ser convidados para vir a eventos nacionais, potenciando relações profissionais e pessoais, até aí invulgares; sendo a adesão a este fenómeno mais fácil nos mais jovens, uma vez que os Tatuadores com mais idade às vezes ainda preferem isolar-se dos colegas, não valorizando conhecer o que se faz internacionalmente ou tentando evoluir com essa aprendizagem (18).

Em alguns países existem ou existiram programas televisivos, estilo Reality Shows, nos quais se divulga de forma atraente a vida e trabalho de alguns Tatuadores, atribuindo sucesso e glamour, afastando as conotações depreciativas do passado (18) (19) e difundindo a ideia de que se trata de uma profissão criativa, cosmopolita, independente e bem remunerada (19); sendo quase vistos, às vezes, como estrelas de rock sem banda. Estas alterações de imagem do mundo da Tatuagem também permitiram obter um maior número de clientes (18).

As Convenções nacionais e internacionais são assim locais de partilha, afirmação e legitimação; tal como revistas da área ou redes sociais (16).

Nota: a autora já desenvolveu uma extensa pesquisa relativa à contextualização sociológica desta MC, bem como das questões mais relevantes de Saúde Ocupacional a ela associadas, descrita em alguns artigos já publicados, nomeadamente:

  • ➢ Tatuadores: principais Fatores de Risco e Riscos Laborais, Doenças Profissionais associadas e Medidas de Proteção recomendadas. Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. 2020, volume 10, 1-58. DOI: 10.31252/RPSO.22.08.2020

  • ➢ Avaliação de Riscos no Setor da Tatuagem: podem utilizar-se os Métodos MARAT, William Fine e MIAR? Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. 2020, volume 10, 1-64. DOI: 10.31252/RPSO.01.08.2020

  • ➢ Avaliação Ergonómica das tarefas executadas no Setor da Tatuagem: podem usar-se os Métodos OWAS e REBA? Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. 2020, volume 10, 1-14. DOI: 10. 31252/RPSO.08.08.2020

  • ➢ Acidente de Trabalho com eventual contato com sangue em Tatuadores: podemos fazer uma analogia com os protocolos existentes para os Profissionais de Saúde? Revista Portuguesa de Saúde Ocupacional online. 2020, volume 10, 1-8. DOI: 10.31252/RPSO.15.08.2020.

Body Piercing

Trata-se de uma das MC melhor aceites e mais prevalentes; pode ser definida como o ato de furar a pele com uma agulha para inserir um objeto metálico (3). A colocação inicialmente era definitiva; agora eles são removíveis e, por isso, talvez mais prevalentes, eventualmente inseridos numa moda (4). A remoção definitiva pode permitir que o corpo consiga reverter o procedimento (2). Aliás alguns não consideram que a colocação destes objetos seja MC, justamente porque é possível retirar e colocar quando se quer. Por sua vez, com Piercings intradermais, tal já não ocorre (20).

Esta MC, na sociedade ocidental, surgiu em 1970, tendo dois polos de desenvolvimento: S. Francisco (EUA) e em Inglaterra; por vezes com alguma associação a indivíduos homossexuais excêntricos (primeiro caso) e ao movimento Punk (no segundo, juntamente com a Tatuagem) (3) (4).

São usados como forma de embelezar o corpo, realçando atributos e atribuindo originalidade ao indivíduo; de certa forma, constituem uma assinatura que se pode fazer na pele e/ou forma de adquirir uma nova pele (21).

Podem ser estéticos (apenas decorativos) ou funcionais (quando, de alguma forma, potenciam, por exemplo, o prazer sexual por interferência direta no ato) (4).

Os primeiros passos desta MC, em alguns países, foram dados em estúdios de Tatuagem (4).

Ao longo dos anos este setor tem se aproximado da medicina, para vender mais segurança aos seus clientes e para que a área fique mais profissionalizada. Aumentam as exigências, a fiscalização e a legitimidade do setor, tal como na Tatuagem (4).

Por exemplo, no Brasil, existe legislação específica para a colocação de Piercings, nomeadamente: lavar as mãos e punhos com água e sabão/detergente, escovando entre os dedos e por debaixo das unhas e depois utilizar uma solução de álcool iodado a 2% ou etílico a 70%; usar luvas descartáveis e para uma única utilização; limpar a pele do cliente com água potável e sabão/detergente e depois álcool iodado a 2% ou etílico a 70% por, pelo menos, três minutos; os instrumentos deverão estar esterilizados; o equipamento da depilação deverá ser descartável e de uso único e os objetos introduzidos também devem estar esterilizados (4). Contudo, em caso de choque anafilático ou outras complicações, nenhum profissional tem condições equivalentes a um hospital para atenuar os danos (6).

As técnicas implicam que a pele esteja assética, de forma a não introduzir microrganismos. A roupa utilizada tem de estar esterilizada, tal como luvas, máscara e touca (4).

Escarificação

A escarificação consiste em cortar ou queimar a pele (Branding), de forma à cicatriz que se origina tenha um determinado desenho/padrão; trata-se de uma técnica usada desde há muitos séculos em algumas tribos, como ritual de passagem; elas atribuem um estatuto social novo, mudando a imagem para si e para os outros (22). Em África adicionam-se por vezes terra, óleos ou fragmentos de bambu, para provocar cicatrizes mais volumosas (queloides) (4). Contudo, o termo pode misturar dois fenómenos distintos.

-Cutting

Presentemente, quase toda a bibliografia que se publica associada ao termo “Escarificação” refere-se a um processo de automutilação (22) (23) ou cutting (1) (23), mais frequente na adolescência (21) (22) (24) e no sexo feminino (21) (71 a 79%) (21) (24), uma vez que, geralmente, estas demonstram com mais facilidade a fragilidade, enquanto os homens preferem habitualmente demonstrar força e agressividade (21). A teatralidade da situação precisa de ser validada pelos outros (23). Neste contexto específico, estas marcas não pretendem tornar o corpo mais estético (24), nem são necessariamente exibidas na sociedade ou entre pares (22).

São obtidas através de um objeto afiado a perfurar superficialmente a pele (22), de modo a originar hemorragia (1) e cicatriz (1) (22) (24); uma vez que sofrer poderá ser melhor do que não sentir nada (22) ou porque o ato de provocar dor física pode levar a que se sinta menos outros sofrimentos emocionais (1) (21); pode funcionar como um mecanismo ansiolítico (22) e relaxante (21), perante pensamentos e sentimentos angustiantes (22). Poderá ser uma tentativa de expulsar/exteriorizar algo de errado e mau que existe dentro do organismo; uma forma de aceitar melhor a dor e de assumir a autonomia de fazer o que quer do seu corpo. Contudo, o objetivo não é propriamente disfrutar da dor, mas ter a sensação de controlo numa dor que se está a provocar e que não é originária pelos outros, explorando os seus próprios limites. Simbolicamente, controlando esse processo, atenuam a impotência que sentem perante o que origina o seu sofrimento mais relevante. Pode acontecer que se pretenda também chamar a atenção (21) (pelo escândalo e choque que causa (1)) e/ ou suscitar compaixão e amor. Ela é geralmente efetuada numa zona do corpo que o próprio consiga visualizar diretamente o sangue; ou seja, não costuma ser feita na face, por exemplo (21). As zonas mais usadas são o antebraço e a coxa (1). Nesta versão de Escarificação não há nenhum “profissional” envolvido; é o próprio indivíduo que a efetua.

Suspensão Corporal

Consiste em elevar o corpo através de ganchos (5) (6) e, ainda que as alterações não sejam permanentes, é considerada uma MC (5). Ela era praticada por algumas etnias indianas e tribos indígenas norte-americanas (5) (6).

Na década de 60 um milionário norte-americano (Doug Malloy), adepto de MC, reuniu todos os praticantes que conseguiu encontrar, tentando divulgar as técnicas e os materiais mais adequados, baseando-se no estudo das culturas atrás mencionadas; o mais famoso deste grupo foi justamente Fakir Musafar (6); este muito contribuiu para a divulgação no ocidente, praticando-a com o objetivo sobretudo de atingir outros estados de consciência (5). Este era licenciado em Inglês e teve atividades profissionais tão diversas quanto instrutor de explosivos em contexto militar, mágico, ventríloquo, professor de dança, diretor/produtor de programas televisivos e marketing. Para divulgar as suas atividades na MC criou uma revista e um curso de carater profissional na área (único) (6), movimento este designado por “Modern Primitives” (5) (6); fazendo distinção clara entre quem tinha estas atividades por questões estéticas ou para se inserir numa moda ou se tal ocorria secundário a uma necessidade interna. A dor intensa proporcionaria a possibilidade de separar a mente do corpo, sendo possível deixar de sentir a dor e ficar a observar o corpo; contribuindo para o crescimento do indivíduo (aos níveis intelectual, emocional e espiritual). Não é a pessoa que está suspensa, mas apenas o seu corpo (6).

Contudo, hoje ela tem de ser analisada com uma perspetiva diferente da que existiu no passado, ou seja, com enfase numa atuação esteticamente vistosa. Por vezes, querem apenas fazer a Suspensão para fotografar e/ou gravar (6).

Ela pode servir para libertar as “más energias” e relaxar, através da superação da dor (4). Geralmente os praticantes desvalorizam as algias e concentram-se mais na adrenalina ou na tranquilidade/estado meditativo que poderá se associar (5).

Este procedimento pode conseguir misturar a sensação de ser puxado (pulling) com o queimor/dor, ainda que, a partir de certo momento, os indivíduos refiram apenas sentir relaxamento e paz. Contudo, também existem relatos de pessoas que consideraram o processo monótono e dececionante. Apreciadores de yoga e meditação conseguirão atingir com maior probabilidade esta dimensão espiritual (6).

As motivações para a realizar podem ser descobrir-se, desafiar crenças, atingir um patamar espiritual superior, fazer um ritual de passagem, sentir-se livre, obter prazer, inserir-se num grupo, sentir adrenalina/endorfinas, lidar adequadamente com o medo, controlar o corpo, explorar o que não se conhece, provar que consegue atingir metas (a si a aos outros) ou até ganhar dinheiro (feiras e/ou shows) (5).

Suspendente é o que fica suspenso e suspensor é o que é responsável pelo processo. Existem vários estilos de suspensão, em função do número de pontos de apoio, local do corpo utilizado, espessura e tipo de ganchos, bem como se o indivíduo se pode ou não mexer durante o processo. As posições mais simples são o "suicide" (quatro ganchos na região superior do dorso, possibilitando que fique na vertical) e a "superman" (duas linhas com quatro ou cinco ganchos nas costas e pernas, ficando com a região abdominal virada para o chão). Quantos mais ganchos se usarem, geralmente mais dor existe na inserção; contudo, fica mais facilitada a elevação. Na posição de "coma" a região dorsal fica mais próxima do chão que a abdominal; na "falker" os ganchos inserem-se no joelho, com a cabeça para baixo; na posição de Lotús ou sentado (com ganchos nas costas e membros inferiores) ou em posição de crucifixo (com ganchos nas costas e membros superiores). Com criatividade são possíveis muitas outras posições e até suspender uns indivíduos noutros. Quanto ao local, poderá ser na natureza (numa árvore) ou até em pontes (6) ou outras construções.

A nível de competências técnicas, é necessário saber distribuir a pressão entre os ganchos de forma uniforme. O Profissional terá de controlar a dimensão mecânica, física e médica; bem como a vertente emocional do suspendente (para tal deverá entrevistar previamente o indivíduo, de modo a conhecer as motivações, expetativas e medos); também deverá conhecer antecedentes médicos relevantes (6). A pele, roupa, luvas, máscara e touca deverão estar esterilizadas, de forma a não introduzir microrganismos (4).

Implantes

A inserção de objetos sob a pele também pode ser vista da mesma forma; ou seja, como uma forma de comunicar (21). Podem ser silicone, aço cirúrgico, osso ou outros; podem ficar no espaço subcutâneo (originando um relevo) ou então funcionam como suporte de um objeto colocado a este nível e visível acima da pele (4).

Caraterísticas dos indivíduos que executam a Marcação Corporal

O profissional que executa deve ter bons conhecimentos de anatomofisiologia e biossegurança (4), cirurgia estética e anestesia (6). Contudo, alguns profissionais destas áreas consideram que a sua atividade tem também uma faceta terapêutica/espiritual (4).

A competência do profissional que trabalhe nesta área pode ser avaliada (pelo cliente) em função do número e qualidade de MC que apresente (5).

Saúde Ocupacional aplicada aos Modificadores Corporais

Excetuando o setor específico da Tatuagem (em que se encontra alguma escassa bibliografia), os artigos selecionados apenas mencionam sumariamente (para as restantes técnicas de MC) o risco biológico, associado ao HIV e Hepatites B e C (4). Não foram encontrados dados concretos acerca de Medidas de Proteção Coletiva/Individual; bem como eventuais Doenças “Profissionais” e Acidentes de “Trabalho”.

DISCUSSÃO

Conjugando a leitura dos documentos encontrados com pesquisa em motores de busca global, relativa a vídeos sobre todas as MC aqui mencionadas, elaborou-se o quadro 2, no qual se pretendeu registar de forma sucinta as Medidas de Proteção Coletiva/Individual que se poderão propor; bem como eventuais Doenças e Acidentes associados.

Quadro 2: Medidas de Proteção Coletiva (MPC)/Individual (MPI) que se poderão propor; bem como eventuais Doenças “Profissionais” (DP) e Acidentes de “Trabalho” (AT). 

Para além disso, parte das MC, pela reação que obtêm da maioria da sociedade e pela necessidade de conhecimentos técnicos e condições na infraestrutura existentes, por vezes, apenas em alguns profissionais/instituições de saúde, subentende-se que parte dos atos não são agora considerados legais e, neste momento, não está atribuído o estatuto de profissão a quem se dedica a este setor, implicando tal dificuldades no desenvolvimentos de procedimentos seguros/recomendações e formação adequada a quem os executa de forma remunerada.

CONCLUSÃO

A MC não detém o reconhecimento ou caraterísticas da generalidade das profissões mas, sem qualquer dúvida, existe oferta e procura e os “Body Modifiers” são remunerados pelas suas atividades, critério esse considerado na perspetiva do código do trabalho para definir um vínculo laboral.

Os adeptos da MC têm vindo progressivamente a aumentar e, secundariamente, também o número de indivíduos que a ela se dedicam de forma remunerada. À generalidade destes procedimentos estão associados fatores de riscos relevantes e seria pertinente analisar cada uma das modalidades aqui inseridas, elaborando normas de Boas Práticas relativas aos serviços que se poderiam oferecer ao cliente e quais poderiam ser proibidos, quais as condições mínimas de assepsia e equipamentos no estabelecimento, quais as melhores técnicas a utilizar e quais as habilitações necessárias para exercer. Seria pertinente serem criadas associações que conseguissem fazer evoluir o setor, de preferência com capacidade fiscalizadora e corretora. Para além disso, também seria interessante perceber qual o panorama nacional (ou seja, número de clientes, quais as MC efetuadas, número de profissionais, local de trabalho- tipo de estabelecimento e zona do país, exclusividade profissional ou não, habilitações, anos de experiência, perceção relativa aos riscos laborais, acidentes e eventuais doenças relacionadas).

AGRADECIMENTOS

Nada a declarar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS

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Recebido: 03 de Abril de 2021; Aceito: 14 de Abril de 2021

CONFLITOS DE INTERESSE, QUESTÕES ÉTICAS E/OU LEGAIS

Nada a declarar.

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