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Revista Internacional CONSINTER de Direito - Publicação Oficial do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação

versão impressa ISSN 2183-6396versão On-line ISSN 2183-9522

Revista Internacional CONSINTER de Direito  no.9 Vila Nova de Gaia dez. 2019  Epub 18-Dez-2019

https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00009.03 

Artigos Originais

CONDIÇÃO JURÍDICA DA MULHER NA ANTIGA MESOPOTÂMIA: CÓDIGOS DE UR-NAMMU E HAMMURABI

THE LEGAL STATUS OF WOMAN IN ANCIENT MESOPOTAMIA: CODES OF UR-NAMMU AND HAMMURABI


Resumo

O presente ensaio consiste na reflexão de natureza teórico-metodológica e historiográfica sobre a condição jurídica da mulher na Antiga Mesopotâmia, especialmente durante o período de transição da III Dinastia de Ur (2112-2004 a.C.) à ascensão do Império paleobabilônico (1792-1595 a.C.). Para tanto, a análise privilegia a investigação comparada dos compêndios de leis de Ur-Nammu (2112-2095 a.C.) e de Hammurabi (1792-1750 a.C.). A hipótese aqui proposta é a de que as similaridades e diferenças entre esses documentos régios no tocante à condição jurídica da mulher podem ser adequadamente explicitadas à luz de suas relações com a cosmovisão mesopotâmica e as transformações históricas que marcaram as formas de transmissão de bens no seio da estrutura familiar.

Palavras-chave: Condição jurídica da mulher; Coleções de Leis de Ur-Nammu e Hammurabi; Estrutura familiar; Formas de transmissão de bens

Abstract

The present essay consists of a theoretical-methodological and historiographical reflection on the legal status of women in Ancient Mesopotamia, especially during the period of transition from the Third Dynasty of Ur to the rise of the Paleobianic Empire. Therefore, the analysis focuses on comparative research of compendia of Ur-Nammu and Hammurabi laws. The hypothesis proposed here is that the similarities and differences between these royal documents regarding the legal status of women can be adequately explained in light of their relations with the Mesopotamian worldview and the historical transformations that marked the transmission of goods within the family structure.

Keywords: Legal status of women; Collections of laws of Ur-Nammu and Hammurabi; Family structure; Forms of transmission of goods

1 INTRODUÇÃO

As coleções do direito cuneiforme fornecem uma documentação excepcional sobre a condição jurídica das mulheres na Antiga Mesopotâmia. É possível até mesmo entrever nessas fontes aspectos essenciais que compuseram o quadro mais amplo da vida das mulheres em sociedade. Sabe-se, por exemplo, que sua situação não foi homogênea, variando em função das épocas, dos lugares e dos diferentes estatutos jurídico e social que a envolveram (LION; MICHEL, 2005, p. 3). A condição que lhes era destinada no quadro familiar subordinava-se amplamente ao costume e ao direito (SANTOS, 2001, p. 45).

Em contrapartida, essa mesma abundância de ingredientes das coleções do direito que nos permitem reconstituir a vida cotidiana das mulheres contrasta amplamente com a mais absoluta ausência de remissões a seu estatuto enquanto tal. Isso porque que as referências à sua condição foram sempre tecidas exclusivamente em função de atividades específicas que desempenhou. Apesar de sua identidade ser claramente discernível, as representações da mulher nas sociedades mesopotâmicas nunca a figuram como uma entidade autônoma em si mesma que merecesse qualquer reflexão teórica. Dito de outro modo, seus contornos identitários, com sua específica posição na tessitura da sociedade, foram sempre delineados por atributos de natureza relacional. Surpreendente num primeiro momento, uma constatação dessa natureza, contudo, decorreria das similitudes e convergências que constituem o pano de fundo da visão de mundo dos mesopotâmicos3.

Por conseguinte, a percepção do arcabouço jurídico enquanto manifestação específica da cosmovisão mesopotâmica pode constituir uma via analítica interessante no esclarecimento da situação da mulher. Situaremos, pois, o lugar de sua condição jurídica em relação ao cerne de uma moldura simbólica.

2 DAS SENTENÇAS RÉGIAS COMO EXPRESSÕES JURÍDICAS DO SAGRADO

Norman Cohn destaca que um Estado mesopotâmico “era a suprema expressão na terra da ordem estabelecida pelos deuses e a tarefa do rei era garantir que, em seus domínios, essa ordem fosse mantida4 (1996, p. 60). Nesse sentido, tudo o que havia sido criado e ordenado pelos deuses, o céu e a terra, a natureza e a sociedade, continuava sob a supervisão deles. A concepção mesopotâmica associava-se, aqui, às cosmovisões típicas do antigo Oriente Próximo. De acordo com elas o cosmos, no sentido de uma ordem compreensiva e onipotente, era algo inquestionável. Tal como no Egito, ainda que se imaginasse o mundo ordenado como sendo, em essência, imutável, as concepções de mundo do Oriente Próximo revelavam também em seu âmago uma consciência da instabilidade dessa ordem. Sobre as suas mais diversas instâncias a atuação de forças caóticas tornava a vida bastante insegura. O funcionamento regular e efetivo desse grande protetor, o Estado, e sua personificação por excelência, o rei, pertencia “à mesma ordem abrangente que incluía os movimentos do sol, da lua, das estrelas e a sucessão das estações” (Ibidem, p. 16).

Sob todos os aspectos o bem-estar do reino dependia do soberano, quer se tratasse do rei de uma cidade-Estado suméria ou do governante de um império assírio ou babilônico. Especialmente a partir da transição do terceiro para o segundo milênio a.C., a monarquia permanente tornou-se a forma de governo mais comum entre os Estados mesopotâmicos, “fossem eles grandes ou pequenos, sumérios ou acádios” (COHN, 1996, p. 59). Uma aura sobrenatural, até então sempre atribuída às divindades, passou a circundar o rei, que se tornou, por sua vez, uma figura majestosa a despertar temor e reverência entre seus súditos. Acreditava-se, assim, que os reis mesopotâmicos, embora raramente divinizados, eram escolhidos pelos deuses5.

Desse modo, embora existisse independentemente de qualquer rei, a realeza era originária do céu6.

A presença no trono de um rei devoto era vista como garantia de que o ciclo das estações prosseguiria sem tropeços, de que as safras seriam regulares e abundantes, e de que as gerações se sucederiam sem interrupção. Mas sempre eram os deuses que prescreviam os deveres do rei e lhe concediam seus poderes. (...) Tal como no Egito, o rei também chamava a si mesmo de ‘pastor’: cuidava do povo em nome dos deuses, os verdadeiros senhores. (Ibidem, p. 61)

Convém ressaltar, pois, que o primeiro dever do pastor real era fazer com que a justiça prevalecesse na terra. Não haveria nada mais inapropriado, portanto, do que considerar a cultura jurídica mesopotâmica como uma instância completamente autônoma em relação à esfera do sobrenatural. O mesmo podemos afirmar a respeito tanto de outros âmbitos do saber, tais como a medicina e a astronomia, quanto de quaisquer aspectos do tecido social. A sacralização da justiça

ia muito além de colocá-la sob os auspícios dos deuses, particularmente, de Shamash: tratava-se de considerar que o estabelecimento das normas de convivência em sociedade só podia ocorrer como uma tradução do ordenamento cósmico estabelecido pelas instâncias divinas. Assim, ao invés de sacralização da justiça, talvez fosse mais exato falar em expressão jurídica do sagrado7. (REDE, 2006, p. 167s)

O respeito profundo pelas leis nunca era devido às leis em si mesmas. Para os mesopotâmicos, a lei era uma criação genuinamente divina, algo que se revelava ao rei pelos deuses, e que só poderia ser promulgada pelo rei em nome deles. Como se depreende de prólogos e epílogos das compilações jurídicas, era fundamental a associação dos monarcas governantes, a Utu/Shamah, respectivamente em suas versões suméria e acádia, deus solar e, enquanto tal, juiz e protetor do direito.

Prólogo do Código de Ur-Nammu Então fez Ur-Nammu o altíssimo guerreiro, Rei de Ur, Rei da Suméria e da Acádia, pelo poder de Nanna, Senhor da cidade, e de acordo com a verdadeira palavra de Utu, estabeleceu equidade na terra; ele baniu a maldição, a violência e a fome (...). Epílogo do Código de Hammurabi Eu (sou) Hammurabi, o pastor, chamado por Enlil, aquele que acumula opulência e prosperidade, (...) Por ordem de Shamash, o grande juiz do céu e da terra, possa minha justiça manifestar-se no país. (...) Eu sou Hammurabi, o rei da justiça, a quem Shamash deu a verdade.

Escolhido pelos deuses como seu representante maior perante os mortais, o rei era também o provedor dos templos. Cabia a ele, por exemplo, determinar a quantidade de oferendas religiosas feitas diariamente ao templo e as taxas mensais que lhe eram devidas (CU, 16). Para assegurar as oferendas, o rei deveria zelar para que cada templo tivesse o suficiente, em terras e rendas. Esperava-se que o cumprimento consciencioso de seus inúmeros deveres religiosos seria recompensado com concessão pelos deuses de fertilidade à terra. Da boa disposição dos deuses dependia a prosperidade do reino. Na verdade, um templo mesopotâmico era uma réplica de um templo celeste, uma contrapartida terrena da moradia sublime dos deuses. Como tal constituía o “vínculo entre o céu e a terra, uma afirmação do relacionamento duradouro entre as atividades terrenas e o mundo dos deuses” (COHN, op. cit., p. 58). A reconstrução de um templo arruinado de um deus, a seu próprio pedido, traduzia-se na maior glória para o rei, porquanto, ao fazer isso, reafirmava-se na terra a ordem estabelecida no céu.

Depreende-se do exposto que as noções de “equidade” e “justiça”, enunciadas nos excertos jurídicos acima mencionados, abrangeriam muito mais do que a compreensão moderna denominaria de “justiça social”. Na mentalidade mesopotâmica, mesmo quando intervinha em situações mais mundanas da vida social, a ação do monarca era concebida como garantia da ordem cósmica. Sua eficácia e legitimidade fundamentavam-se no entendimento de que as leis régias traduziam juridicamente a vontade dos deuses (REDE, 2009, p. 141). A função de legislador constituía parte inerente das atribuições que foram delegadas ao rei pelos deuses como seu representante na terra. Assim, ao estabelecer “a equidade na terra” e banir “a maldição, a violência e a fome”, o rei estava preocupado em evitar ou reprimir a turbulência social e a instabilidade política. Tais ações, por sua vez, eram justas fundamentalmente por equivalerem, no plano social, à garantia do bom curso da natureza e do universo. Tratava-se de manter e restaurar a ordem cósmica pelo combate a todas as manifestações das forças do caos. Esse mesmo propósito era assinalado noutra passagem do prólogo do Código de Ur-Nammu:

Nesse tempo (eu), Ur-Namma,

guerreiro poderoso,

rei de Ur, rei de Sumer e Akkad,

com a força do deus Nanna, meu senhor,

por meio da (ordem jus)ta do (deus Utu(?))

estabeleci (a justi)ça (?) (no(?))” (CU, p. 104-13)

E, no epílogo do Código de Hammurabi, encontramos uma exaltação equivalente: “Hammurabi é o senhor, que é como um pai carnal para os povos, ele preocupou-se intensamente com a palavra de Marduk em cima e em baixo, e assim assegurou para sempre a felicidade do povo e obteve justiça no país” (C. H., XLVIII, p. 20-40).

A tessitura simbólica em que se insere a imagem do “rei da justiça” é melhor focalizada quando se leva em conta, em nível mais abstrato, o princípio fundamental que encerram as noções acádias de kittum e mîsharum, traduzidas, por sua vez, como “retidão”, “correção”, “verdade” e também “justiça”. Essas noções designavam um princípio ao qual sumérios e semitas atribuíam grande importância, e que era bastante similar à Maat egípcia8. Frequentemente, o deus-sol era designado de “senhor de kittum e mîsharum, e ambas as noções foram às vezes retratadas mediante suas personificações na figura de deuses que acompanhavam Shamash, a exemplo do que ocorria com o deus-sol egípcio Rá quando ladeado pela deusa Ma’at e o deus Thoth9.

Em outra perspectiva, a significação conjuntiva que emerge desse par de termos traz consigo, respectivamente, duplo desdobramento: 1) em nível mais abstrato, kittum, termo derivado de uma raiz que significa “ser/tornar estável” indicaria o atributo mais geral do soberano, qual seja, o de combater as forças do caos em todas as suas manifestações. Sendo assim, a responsabilidade pela ordem social por parte do governante corporifica, na terra, a tarefa suprema de Utu/Shamash, o representante muito eficaz de An e Enlil como governantes do mundo: a manutenção contínua da ordem cósmica; 2) em nível mais concreto, a noção de mîsharim, que pode ser também traduzida por “justiça”, implicaria ação mais dirigida por parte do soberano. Seria justamente esse vocábulo a se encontrar na origem de um epíteto real muito comum: shar mîsharum, “rei da justiça” (REDE, 2009, p. 137). A circularidade do símbolo aqui se completa: o “rei da justiça”, por sua interferência ativa na vida social, equipara-se a Shamash, “o grande juiz do céu e da terra, aquele que conduz com justiça as criaturas de vida” (Código de Hammurabi, L, p. 11).

3 COMPILAÇÕES JURÍDICAS E ESTADO CENTRALIZADO

Aos moldes da datação egípcia, a tentativa de se designar de período intermediário os agitados séculos que se seguiram à queda do império de Ur III e que precederam a unificação da Babilônia sob o cetro de Hamurabi traz consigo o risco de um equívoco essencial. A distorção latente - um erro sutil, mas não menos essencial - se dá mais pelo que não é dito, e toma corpo pela interferência de uma analogia inadvertida. Trata-se de equiparar os impérios de Ur e Babilônia à vastidão e à longevidade dos Estados faraônicos (GLASNER, 2019, p. 253). Ao contrário da história da civilização egípcia, caracterizada pela prevalência temporal de um estado altamente unificado e centralizado, entremeado pela alternância ocasional de períodos intermediários, a configuração política dos Estados mesopotâmicos foi predominantemente ditada pela forma da cidade-estado. A fragmentação política nunca foi sentida como um “mal necessário”, à semelhança do que ocorria com outras regiões como o Egito. Estendida a um vasto território, a unidade política existiu por vezes, mas raramente de forma duradoura. Não caracteriza, portanto, um dado fundamental da civilização mesopotâmica. Ao longo de sua história, os impérios regionais ou multirregionais, com seus distintos graus de centralização, constituíram experiências excepcionais, calcadas, além disso, sobre diferentes arranjos étnicos10.

A despeito da efemeridade, não foi menos significativo o impacto histórico dos Estados mesopotâmicos quando de suas estruturações imperiais. Particularmente dignos de menção por si só, dois casos se tornam ainda mais notáveis quando se leva em conta, sobretudo, a formação da cultura jurídica no Antigo Oriente Próximo. Referimo-nos, aqui, à Terceira Dinastia de Ur (2112-2004 a.C.), sob o reinado de Ur-Nammu (2112-2095 a.C.), e ao Império Paleobabilônico (1792-1595 a.C.), durante o governo de Hammurabi (c. 1792-1750 a.C.). Com efeito, nesses períodos vieram à luz os dois mais célebres compêndios legais em escrita cuneiforme. Essa notoriedade se explica pelo fato de o Código de Ur-Nammu ter sido a primeira promulgação de sentenças de que se tem conhecimento. A estruturação de seu conteúdo inaugurou uma tradição mantida pelas coleções subsequentes (tais como o Código de Lipit-Ishtar de Isin e o código (promulgado por um rei desconhecido) de Eshnunna), e, por fim, ampliada pelo Código de Hamurabi, o mais famoso e orgânico compêndio de leis da Antiga Mesopotâmia. Outrossim, os dois conjuntos em questão, entre outros, foram tidos por muitos estudiosos como expressões cabais dos impulsos unificadores de seus governantes e de suas compulsões por regular, através da administração da justiça, o máximo possível das facetas da vida. À guisa de exemplo, seria significativo que a atuação jurídica do governante pudesse se sobrepor, pelo menos em certos casos, sobre as tradições locais. Haveria, portanto, uma conexão de fundo entre ambas as compilações assentada sobre os seguintes critérios: notoriedade histórica e expressão de fortes tendências unificadoras da tradição jurídica. Essa base comum, contudo, não deve encobrir as peculiaridades irredutíveis de cada um dos casos.

Publicado em 1952 pelo célebre sumerólogo Samuel N. Kramer, o Código de Ur-Nammu constituiu um elemento não secundário na obra de organização do Estado. Embora disponhamos de poucos fragmentos textuais, sabemos que esta coleção do direito cuneiforme versava sobre sentenças que abrangiam assuntos que conceberíamos modernamente tanto civis quanto penais. Apesar de derivar sua formação dos editos de reformas precedentes, tais como as reformas éticas e sociais de Urukagina (c. 2350 a.C.)11, foi muito além deles, pois apresentou um novo delineamento. Antes de simplesmente sanar problemas surgidos com o tempo, apresentou uma forma mais sistemática e estável de administrar a justiça e estabelecer em bases sólidas a ordem social. Para que tenhamos uma ideia do que se está aqui a afirmar, resumidamente Ur-Nammu estabeleceu a medida padrão do sila (capacidade), da mina e dos siclos (pesos), regulamentou o tráfego comercial nas margens dos rios e padronizou a indenização a ser feita em caso de homicídios, delitos sexuais, e diferentes tipos de danos (LIVERANI, p. 234)12. Esse evidente ímpeto por uniformizar embasou uma tendência fortemente consagrada pela historiografia segundo a qual os reis de Ur, para governar o império, teriam criado uma enorme máquina burocrática, pesada, minuciosa e de infinitas ramificações13. Nessa perspectiva, a época do ressurgimento sumério14 teria sido marcada como a do estatismo mais avançado, e, por intermédio dessa administração, a influência do palácio tornar-se-ia onipresente (GLASSNER, op. cit., p. 246-250; JOSÉ, op. cit., p. 10).

Fundamentalmente, a concepção de sociedade da Baixa Mesopotâmia sob a égide do Estado de Ur III, para além dos membros da burocracia e do aparelho político e administrativo, apresentava uma estrutura bipartida de homens livres e escravos. Num extremo da escala social despontou uma casta de funcionários e de mercadores enriquecidos que souberam tirar partido de suas situações no processo administrativo e econômico. Vê-se também o desenvolvimento de empresas privadas, toleradas pelo Estado e beneficiadas às vezes por empréstimos proporcionados pelos templos. De outra parte, os textos jurídicos atestam o aumento de uma camada social desfavorecida, cujos membros são designados pelo qualificativo de mashen em sumério, mushkhenum em acádio. Obrigados a vender a sua força de trabalho, dispunham de uma liberdade reduzida, e sabe-se que palácio os empregou nas suas oficinas e armazéns. (As leis de Eshnunna e o Código de Hammurabi dividiram a sociedade paleobabilônica nos três grupos sociais de awîlum, mushkhenum e wardu (escravos).) Há duas espécies de escravos, de acordo com suas origens. Uns, designados ir ou geme, são aqueles domésticos de ambos os sexos, reduzidos à escravidão pela condenação dos tribunais ou que se encontram na necessidade de vender seus serviços diante de dificuldades econômicas; usufruem de personalidade jurídica e podem possuir bens. Os outros, namra, são prisioneiros de guerra, empregados nas fábricas do Estado. Não possuem qualquer estatuto e, por vezes, são incorporados pelo rei às suas guarnições militares (GLASNER, op. cit., p. 250s; GARELI, 1982, p. 105ss). Outros documentos de Ur III referem-se também a homens livres onerados por dívidas que vendiam a suas esposas ou seus filhos como escravos para quitar, por seus trabalhos essas dívidas (BOUZON, 1998, p. 102s). A estrela de Hammurabi não revogou o costume vigente, mas o limitou a três anos. No quarto ano, à esposa, ao filho ou à filha que trabalharam na casa do credor ou do comprador, vendidos pelo awîlum (homem livre) endividado, deveria ser concedida a liberdade (§ 117)15.

Ora, diante deste quadro social crescentemente conturbado, o código de leis de Ur-Nammu testemunha um forte sentimento de justiça social por parte do legislador, uma tendência que seria incrementada mais tarde por Hammurabi na famosa estela que coroa a coleção de antiguidades do Museu do Louvre. Com efeito, seus princípios inauguraram uma longa tradição jurídica na antiga Mesopotâmia levada a cabo pelos códigos legais que o sucederam, qual seja, a de debelar toda uma série de abusos que resultavam das pressões econômicas e das tendências à fragmentação:

O órfão não o entreguei ao rico;

a viúva não o entreguei aos poderosos

o homem (que só possui) 1 gin (=8,3 gr.)

não o entreguei ao homem (que possui) 1 mana (= 500 gr.);

o homem que

só possui 1 ovelha

não entreguei ao homem (que possui) 1 boi (162-8)16.

Esses atos descreviam, portanto, sempre uma intervenção do governante na sociedade e na economia do reino, o único instrumento que poderia prover as necessidades dos órfãos e das viúvas e a libertação dos que estavam submetidos à escravidão por necessidades econômicas. A sensibilidade social e jurídica do rei manifesta, contudo, um traço inegável. “A repetição contínua dessas providências demonstra a debilidade intrínseca de sua eficácia”, ou seja, “o poder não conhece instrumentos capazes de incidir nas causas da disfunção econômica, e só consegue incidir nas consequências. Assim, as causas permanecem ativas e não são eliminadas”, mas pelo menos o recurso frequente cancela as consequências mais nocivas (LIVERANI, op. cit., p. 286s). Mesmo que toda a atividade legislativa real derivada do princípio do “rei da justiça” esteja intimamente associada à preservação do status quo da elite palaciana, é também “um fator de coesão social, que garante a superação de crises e evita o rompimento do tecido social” (REDE, 2009, p. 139).

4 A CONDIÇÃO JURÍDICA DA MULHER

A essa altura, a condição jurídica da mulher só pode ser entrevista pelas regulamentações acerca dos delitos sexuais, da partilha de bens e da transmissão das heranças no âmbito da família. Podemos analisar, primeiramente, a condição jurídica da mulher no tocante a este quadro compósito a partir das prescrições legais sobre o adultério. Tal questão nos possibilita vislumbrar que o casamento e a unidade doméstica da família constituem uma das bases mais consagradas da organização social. Com suas 282 sentenças referentes à família, à escravidão e ao direito profissional, comercial e administrativo, que inclusive estabelece padrões de preço de mercadorias e salário de mercenários, vale lembrar que a maior seção do Código de Hammurabi trata justamente do direito de família, versando sobre noivado, casamento e divórcio, adultério e incesto, filhos, adoção e heranças (KRIWACZEK, 2018, p. 228). Assim, vemos no Código de Ur-Nammu que “ se um homem seguia a esposa dum gurus 17por iniciativa dela (e) se deitava no seu regaço, a essa mulher dava-se a morte (e) ao homem punha-se em liberdade” (§ 7). Em contrapartida, o Código de Hammurabi prevê em seu § 129: “ se a esposa de um awîlum foi surpreendida dormindo com um outro homem, eles o amarrarão e os lançarão n’água. Se o esposo deixa viver sua esposa, o rei, também, deixará viver seu servo ”. A despeito desta cláusula condicionar a comutação da pena a que é sentenciada a esposa unicamente ao perdão do marido, do que decorre o mesmo por determinação real para o homem que incorreu no delito de adultério, a isonomia penal para os infratores no Código de Hammurabi contrasta visivelmente com condenação exclusiva da mulher adúltera18.

Tal assimetria jurídica entre o homem e a mulher para o caso das sentenças de Ur-Nammu impõe considerar um impasse sobre o qual muito se discutiu na historiografia do direito mesopotâmico e que pode ser resumido nos seguintes termos. Os juízos de Hammurabi no tocante à condição jurídica da mulher afigurar-se-iam justos e sensatos ao leitor moderno quando, sobretudo, vistos relativamente às prescrições de Ur-Nammu. Essas disposições denotariam, portanto, que mulher gozou de uma posição relativamente privilegiada no período babilônico antigo, e mesmo os castigos mais severos seriam apenas simbólicos (JOSÉ, op. cit., p. 25)19. Paul Kriwaczek evoca particularmente duas prescrições de Hammurabi para fundamentar, pelo menos em parte, os termos que embasaram esse juízo:

Se um awîlum decidiu abandonar uma šugîtum, que lhe gerou filhos, ou uma nadîtum, que o fez obter filhos, devolverão a essa mulher o seu dote e dar-lhe-ão a metade do campo, do pomar e dos bens móveis e ela educará os seus filhos. Depois que tiver educado os seus filhos, de tudo que foi dado a seus filhos, dar-lhe-ão parte correspondente à de um herdeiro e o marido de seu coração poderá esposá-la (§ 137).

Se uma mulher tomou aversão a seu esposo e disse-lhe: ‘Tu não terás relações comigo’, seu caso será examinado em seu distrito. Se ela se guarda e não tem falta e o seu marido é um saidor e a despreza muito, essa mulher não tem culpa, e tomará seu dote e irá para a casa de seu pai (§ 142).

Vista relativamente ao Código de Ur-Nammu, a ênfase maior de Hammurabi em sentenças protetivas para a mulher tornar-se-ia ainda mais digna de nota, segundo tais posicionamentos, diante de um outro contraste de fundo entre ambas as compilações. Referimo-nos aqui ao fato de o Código de Ur-Nammu ter adotado, como dar-se-ia mais tarde com as leis de Eshnunna (§ 42; 53-48), um sistema de composição legal em relação às lesões corporais em grande parte distinto do de Hammurabi. No primeiro caso, o autor da infração deveria ressarcir a sua vítima, ou os parentes desta, com uma indenização pecuniária fixada pelo juiz. Ora, a aplicação do princípio de compensação pecuniária para as lesões corporais já era amplamente conhecida ao longo do terceiro e do segundo milênios a.C. Já na estela de Hammurabi, juntamente com as leis assírias e as leis bíblicas, o princípio adotado é conhecido como Lei de Talião, segundo o qual é imposto ao agressor o mesmo tipo de agressão que ele causou à vítima ou é punido o órgão agressor. Deve-se considerar, contudo, que no compêndio de Hammurabi o princípio de talião é aplicado somente se a vítima for um homem livre (awîlum). As agressões a um mushkenum ou escravo são submetidas ao princípio da compensação pecuniária (BOUZON, 1998, p. 103s). Importa aqui destacar que não poucos estudiosos conceberam a introdução do princípio de talião na vida jurídica da Baixa Mesopotâmia como indicativo de um retrocesso na praxe dos tribunais babilônicos. Assim, o Código de Ur-Nammu apresentaria contornos mais humanitários e avançados, mas, vale lembrar, tão somente no que diz respeito às prescrições penais para crimes de lesão corporal20.

Não nos cabe aqui, obviamente, estabelecer distinções de grau valorativo entre as coleções de jurisprudência em questão, uma possibilidade interpretativa por demais espinhosa que, a nosso ver, mais contribuiria para deixar muitas interrogações essenciais sem resposta, se é que as consideraria. Faz-se necessário, outrossim, compreender as peculiaridades irredutíveis que subjazem aos dois conjuntos legais em seus próprios termos históricos. Nesse sentido, a problemática fundamental a ser considerada poderia ser formulada nos seguintes termos:

(1) se aceitarmos a hipótese de que as prescrições de sentenças de Hammurabi no tocante à condição jurídica da mulher foram mais amplas, precisas e protetivas em relação às de Ur-Nammu;

(2) e se concebermos o percurso dessa mudança como a expressão jurídica de transformações históricas tanto em aspectos da cosmovisão mesopotâmica quanto de sua estrutura social;

(3) qual quadro explicativo emergirá no sentido de identificar e emoldurar os aspectos em jogo nesse processo evolutivo?!

5 O MATRIMÔNIO NO VIÉS FEMININO

Talvez possamos entrever mais facilmente essas transformações pela evolução da natureza dos contratos relativos ao matrimônio. Trata-se também do quadro que mais realça a condição jurídica da mulher nas sociedades neossuméria e paleobabilônica.

O matrimônio mesopotâmico fundamentava-se no princípio da monogamia e do patriarcado. Mas, segundo circunstâncias determinadas, a regra era temperada pela finalidade de assegurar aos homens sua descendência. No Código de Hammurabi, por exemplo, o homem poder-se-ia casar com outra mulher se sua esposa fosse acometida por uma febre contagiosa ou uma moléstia crônica (§ 148). Ele não poderia repudiar a esposa acometida pela doença, mas à mulher estava assegurado o direito de não morar na casa de seu marido, que, neste caso, restituir-lhe-ia integralmente o dote que ela trouxe da casa de seu pai e irá embora (§ 149). Outras circunstâncias previstas giram em torno da negligência da esposa, “ que mora na casa do awîlum, decide sair, apropria-se secretamente de bens, dilapida a sua casa e despreza o seu marido ” (§ 141). Neste caso, o marido poderia repudiá-la, comprovada a acusação, e seria livre do dever de lhe restituir qualquer indenização de separação, nem mesmo para a sua viagem. Se o marido não a repudiasse, não só disporia do direito de esposar outra mulher, como poderia reduzir a primeira esposa à condição de escrava. Por outro lado, se o awîlum tomou uma esposa, mas ela não gerou filhos, e decidiu casar-se novamente com outra mulher, poderá introduzi-la em sua casa, mas deverá observar o interdito de igualá-la à condição de esposa principal (§ 148)21. Enfim, a legislação de Hammurabi insiste na necessidade de se respeitar a presença e os direitos da esposa principal, e prevê, nesse sentido, que a escrava dada por ela ao marido que tenha lhe gerado filhos fosse contada com as escravas por tentar se tenta igualar à superioridade da nadîtum (isto é, a primeira mulher) (§ 146).

Contudo, desses dispositivos jamais se poderá concluir que as sentenças de Hammurabi atenuariam em essência a assimetria jurídica entre homens e mulheres que se atribuiu ao código de leis de Ur-Nammu. Já tivemos a oportunidade de assinalar acima dois casos no Código de Hammurabi em que a mulher poderia obter o divórcio sem culpa, quais sejam, os de aversão e abandono por parte do marido. Outra situação muito específica diz respeito à mulher que se encontra sozinha, eventualmente com filhos sob sua responsabilidade, uma vez que o marido desapareceu, por exemplo, por causa da guerra, tendo sido feito prisioneiro. A mulher, neste caso, não poderia ser considerada viúva, mas se “em sua casa não há o que comer”, a “esposa poderá entrar na casa de um outro”, e não terá culpa (§ 134)22. De acordo com o § 135, se a mulher se encontrasse na mesma situação de abandono, sem que tivesse o que comer, e “entrou na casa de outro homem e gerou filhos”, no caso de retorno do marido ela deveria voltar à sua primeira casa, de modo que os filhos gerados seguiriam seu pai. O último caso a ser reportado se refere ao awîlum que “abandonou a sua cidade e fugiu”. Se sua “ esposa entrou na casa de um outro, se esse awîlum voltou e quis retomar sua esposa, a esposa do fugitivo não retornará a seu esposo, porque ele desprezou a sua cidade e fugiu ” (§ 136). Mas são casos excepcionais, e, na prática, a dissolução do matrimônio podia somente ser requerida pelo esposo23. Alguns exemplos de outra natureza, precisamente sobre o delito de incesto, serão suficientes para demonstrar a abissal assimetria a que nos referimos. É o que se pode verificar na situação em que “ um awîlum teve relações sexuais com sua filha ”. Recairá como pena sobre ele o exílio (§ 154). Em contrapartida, o § 157 prevê a relação incestuosa do filho com sua mãe, após a morte de seu pai, com a cremação de ambos.

6 A MULHER E A SUCESSÃO PATRIMONIAL

Mas é na regulamentação referente a transferência de bens entre as famílias envolvidas no casamento que se pode encontrar uma hipótese explicativa para as diferenças entre as compilações de sentenças de Ur-Nammu e de Hammurabi. Como já foi advertido, infelizmente são poucos os testemunhos textuais que conservam a coleção jurídica de Ur-Nammu. Não dispomos, portanto, de informações sobre a questão em curso, o que nos leva a considerar a célebre assertiva de um não menos renomado cientista, o norte-americano Carl Sagan (1934-1996), de acordo com a qual “a ausência de evidência não significa a evidência de ausência”. É aqui que nos deparamos com uma lacuna fundamental. Só podemos inferir aspectos da legislação sobre a família no período neossumério a partir de fontes complementares que são, portanto, externas ao texto jurídico. À luz desta constatação, a tarefa de elucidar essas distinções só poderá ser enunciada sob o caráter de uma hipótese de trabalho.

Sabemos que a constituição da família na Baixa Mesopotâmia durante a transição entre os III e II milênios é cuidadosamente regulamentada. “Para que haja casamento, é preciso um contrato, pois por ele se provará a legitimidade dos filhos quando da herança” (CONTENEAU, 1979, p. 359). A escolha do marido não competia à jovem, mas a seu pai ou, ainda, a seu irmão mais velho, em caso de ausência do pai24. O casamento era precedido por um dote (sheriktum no Código Hammurabi) oferecido pelos pais da mulher ao noivo, símbolo do antigo preço de compra25. O homem, por sua vez, entregava à família da esposa um contradom (terhatum, em babilônico) de um montante inferior ao do dote e era entregue antes deste. O terhatum era a soma que prefigurava uma indenização compensatória pela mão de obra feminina (RAMOS, Op. cit., p. 49, nota 11). Se rompesse o contrato de matrimônio, era punido com a perda de todo o direito a que lhe fosse devolvido o terhatum. Se pelo contrário, era o pai da noiva quem não cumpria o contrato, era obrigado a devolver o dobro do terhatum que recebera26. O fundamental, contudo, é que, em teoria, o dote é propriedade da mulher, e se destina a ser transmitido posteriormente a seus filhos. Não constitui, portanto, um verdadeiro fundo do casal27. “Consequentemente, o dote jamais é transferido ao grupo do marido, nem ao próprio marido, mesmo se, durante o casamento, ele tivesse a gestão dos bens que o compunham” (REDE, 2006b, p. 158). A seu modo, portanto, a mulher exerceria um papel fundamental na transmissão do patrimônio. “Desde que ela gerasse um herdeiro, os bens originários do dote ser-lhe-iam transmitidos, impedindo o retorno aos seus pais ou o deslocamento lateral para os seus irmãos” (Ibidem, p. 157). Não se tratava, portanto, de consolidar a visão agnática ou patrilinear da transmissão dos bens no interior da família. Marcelo Rede enfatiza que o direito de primogenitura permitia “ao filho mais velho amealhar a maior parte do patrimônio paternal e continuar a gerenciar a economia doméstica”, sobretudo se levarmos em conta que do dote se excluía a posse da terra. Mas a transmissão seletiva dos bens às mulheres seriam, acima de tudo, “parte de perpetuação do grupo doméstico que, assim, procuraria fazer frente à dispersão originada nas práticas de sucessão fundadas na parentela” (p. 162). Os grupos domésticos procuravam assegurar a unidade indissolúvel entre a família e o patrimônio. A supremacia inconteste do patriarcado nas sociedades da Baixa Mesopotâmia não significava necessariamente a adoção exclusiva de formas patrilineares de transmissão dos bens. Seria muito mais adequado, aqui, considerar os direitos sucessórios sob o prisma de um sistema de parentela bilateral em que a patrilinearidade coabitava com a matrilinearidade e outras formas.

Marcelo Rede insiste que haveria uma precedência tanto lógica quanto cronológica do sistema bilateral em relação às tentativas régias de sistematização jurídica desta matéria. Como havíamos dito antes, não é possível inferir do documento jurídico de Ur-Nammu determinações similares às de Hammurabi. No entanto, de acordo com Rede, pode-se inferir essa precedência da própria noção de que o direito constitui um campo de resolução de conflitos, e particularmente no caso mesopotâmico as leis tendiam a confirmar o que a jurisprudência impunha. De outra parte, a precedência cronológica seria atestada pela presença inconteste da estrutura de parentesco bilateral e do sistema de devolução divergente, que envolvia de forma distinta a herança e o dote, na Baixa Mesopotâmia antes mesmo da chegada dos babilônios. Essa estrutura permaneceria mesmo após a conquista, pois ambos remetiam à organização de parentesco dos agrupamentos humanos nos inícios do II milênio a.C.

7 CONCLUSÃO

Munidos dessas reflexões, podemos traçar uma hipótese explicativa para o problema anteriormente formulado, qual seja, o da ingerência maior por parte do corpus de sentenças de Hammurabi frente ao de Ur-Nammu no tocante à condição jurídica da mulher em sua relação com o problema da unidade doméstica e da transmissão de bens. A evolução das relações familiares e sociais passou por certas transformações aceleradas durante a passagem do mundo neossumério para o paleobabilônico, principalmente devido à chegada de novos povos amorreus28. As leis de Hammurabi, nesse sentido, refletiriam o choque de um meio social sem precedentes. De acordo com Mario Liverani (Op. cit., p. 281), tal quadro poderia ser explicado pela presença de outros costumes e outras relações sociais, bastante arraigadas no princípio gentílico, menos afeitas à estrutura palaciano-templária, característica do ambiente original da Baixa Mesopotâmia. Este fator tendeu a multiplicar fenômenos ligados a uma evolução interna do sistema socioeconômico que resultaram da interação entre os setores familiar e palaciano, os quais subsistiriam estreitamente ligados e com frequentes trocas mesmo após a ascensão do Império Paleobabilônico. Antes disso, nos tempos sumério-acádios, “ as disputas podiam ser resolvidas mediante o recurso a sum sistema de valores coletivamente aceito, no qual os laços de família preponderavam e a reparação justa era mais desejável que a vingança ” (KRIWACZEK, op. cit., p. 229s) A esfera familiar ampliou-se, em comparação com o período neossumério, em parte por razões de natureza extraeconômica, “ligada à chegada dos amorreus, ao deslocamento do centro de gravidade mesopotâmico para o norte e à intensificação da entrega de lotes a novas categorias de dependentes públicos, sobretudo militares” (LIVERANI, op. cit., p. 282)29. Os parâmetros anteriores de organização doméstica foram confrontados pelo uso maciço de tropas de origem não palaciana, e também tribal, e que não foram recompensadas com os mecanismos tradicionais de remuneração da corveia. Como se não bastasse, as repetidas conquistas de cidades por parte de Estados hegemônicos levaram à expropriação de terras dos templos e à sua distribuição entre novas classes de combatentes. A antiga família ampliada e indivisa entrou em crise, e foi “substituída por uma família nuclear cada vez mais autônoma, que sempre foi a célula básica na condução das terras” e que então se tornou também a das relações de propriedade (Op. cit., p. 283s). Obviamente, a conjunção de um quatro tão complexo levou a um aumento vertiginoso dos conflitos. Assim, os preceitos judiciais de Hammurabi refletiam e procuravam limitar o potencial de discórdia e violência, e suas diferenças com os compêndios legais anteriores atestam que as regras do jogo haviam mudado (KRIAWCZEK, op. cit., p. 230). Quando o palácio precisou normatizar as práticas de transmissão de bens, diante da ameaça crescente de turbulências sociais, as referências partiam precisamente da jurisprudência em torno do modelo familiar preexistente. A assimetria jurídica de que desfrutavam ambos os cônjuges no que se refere, por exemplo, ao divórcio remontaria à jurisprudência familiar suméria, regida por leis e costumes muito firmes. Assim, a solidariedade doméstica em crise se afirmava, em meio a conflitos que tendiam a deteriorá-la, através do estreitamento de laços entre a família e a propriedade.

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Recebido: 30 de Junho de 2019; Aceito: 19 de Julho de 2019

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