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Revista Internacional CONSINTER de Direito - Publicação Oficial do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação

versão impressa ISSN 2183-6396versão On-line ISSN 2183-9522

Revista Internacional CONSINTER de Direito  no.10 Vila Nova de Gaia jun. 2020  Epub 30-Jun-2020

https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00010.05 

Artigos Originais

ESTADO, JURISDIÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DIREITO ÀVIDA DO EMBRIÃO EXCEDENTÁRIO

STATE, JURISDICTION AND FUNDAMENTAL RIGHTS: THE RIGHT TO THE SURPLUS EMBRYO

Andreza Cristina Baggio1
http://orcid.org/0000-0001-9574-6494

Camila Gil Marquez Bresolin2
http://orcid.org/0000-0003-1005-6764


Resumo

A evolução tecnológica permite hoje a reprodução humana medicamente assistida. Todavia, a utilização de tais técnicas, especialmente a fertilização in vitro suscita questionamentos morais, éticos e jurídicos que merecem estudo. Tendo por base pesquisa bibliográfica, este artigo busca apresentar um panorama desse debate. Inicia-se o estudo com a abordagem a respeito da fertilização in vitro, e com a constatação de que, de tal técnica, podem resultar os chamados embriões excedentários. Apresentam-se algumas considerações acerca do que se considera o início da vida e o enquadramento legal do embrião excedentário, para, em seguida, reconhecer a titularidade destes no que diz respeito a direitos fundamentais. A partir da constatação de que existe uma proteção constitucional aos embriões excedentários, traz-se à baila questões polêmicas como a preservação destes em laboratório e a quem cabe o poder de escolha manutenção de seu direito a vida. Demonstra-se, por fim, que, embora o Estado Brasileiro atue em certa medida na tutela dos direitos fundamentais dos embriões excedentários, seja por meio de legislação, seja pelo exercício da atividade jurisdicional, essa tutela ainda não é suficiente para dar tratamento às questões éticas e morais que o tema desperta.

Palavras-chave: Estado e Jurisdição; Direitos Fundamentais; Embrião Excedentário

Abstract

Technological evolution today allows human reproduction to be medically assisted. However, the use of such techniques, especially in vitro fertilization raises moral, ethical and legal questions that merit study. Based on bibliographical research, this article seeks to present an overview of this debate. The study begins with the approach regarding in vitro fertilization, and with the realization that, from such technique, the so-called surplus embryos can result. Some considerations about what is considered to be the beginning of life and the legal framework of the surplus embryo are presented and then recognized as regards fundamental rights. Based on the fact that there is a constitutional protection to surplus embryos, controversial issues are raised such as the preservation of these in the laboratory and who has the power to choose maintenance of their right to life. Finally, it is shown that, although the Brazilian State acts to a certain extent in the protection of the fundamental rights of surplus embryos, whether through legislation or through the exercise of jurisdictional activity, this tutelage is not yet sufficient to give treatment to the issues ethical and moral issues that the theme arouses.

Keywords: State and Jurisdiction; Fundamental Rights; Surplus Embryo

INTRODUÇÃO

A vida é um direito fundamental, e sua proteção é garantida na Declaração Universal dos Direitos do Homem3. Todos os seres humanos merecem respeito à sua integridade, à sua dignidade, ao seu bem-estar. Da mesma forma, homens e mulheres possuem sonhos, dentre eles a realização de seu projeto parental, o que, por conta dos avanços na área biotecnológica, hoje é possível a muitos casais graças às técnicas de reprodução humana medicamente assistidas.

Mas em que pese o seu benefício em favor de muitos casais, as técnicas de reprodução humana medicamente assistidas geram questionamentos éticos, morais, e consequentemente jurídicos, que não podem ser desconsiderados pela sociedade. Existem diversas técnicas de procriação assistida, e este trabalho analisa a chamada fertilização in vitro, e os dilemas que levam à necessidade de se compreender qual é o enquadramento legal do embrião. Se considerado sujeito de direitos, o embrião merece receber proteção do Estado, e, no tocante à fertilização in vitro, resta saber que espécie de tutela legal merece o embrião excedentário.

Este artigo, portanto, faz uma análise a respeito da fertilização in vitro, e um breve estudo sobre as controvérsias apresentadas pela ciência médica quanto ao momento em que o embrião pode ser considerado vida humana. A proteção legal ao embrião, bem como o seu enquadramento dentro do ordenamento jurídico pátrio também é outra análise aqui proposta, a qual culmina evidentemente com os aspectos constitucionais dessa proteção.

Serão abordadas também algumas questões polêmicas a respeito da proteção à vida e dignidade do embrião, como a sua preservação em laboratório, as experiências com células-tronco e a atuação do Estado Brasileiro a respeito do tema.

1 TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDAS E A FERTILIZAÇÃO IN VITRO

Ao jurista que se depara com a necessidade de enfrentar o tema aqui apresentado, inicialmente parece impossível a tarefa de descrever e definir a importância das técnicas de reprodução assistida. Fácil é, entretanto, lançar mão de juízos de valor comuns a qualquer ser humano, e observar a importância da geração de um novo ser, bem como, quão árduos são os caminhos aos quais se submetem aqueles que, impossibilitados de propiciar a fecundação de forma natural do filho tão esperado, entregam nas mãos dos médicos, a satisfação de seu projeto parental.

Tais técnicas, apresentam-se hoje como a esperança última de pessoas cuja fecundação de forma natural, seja por problemas de esterilidade da mulher, seja por problemas de esterilidade do homem, ou de ambos, dificilmente será obtida. Porém, enquanto as técnicas de reprodução assistida, por um lado, trazem a solução à maioria dos problemas de esterilidade observados pela medicina, geram questionamentos éticos, morais, e principalmente jurídicos, que devem ser apreciados. Tem-se por reprodução medicamente assistida, a fecundação realizada através da intervenção de médicos, a qual pode ser tanto intra, quanto extracorpórea. Na lição de Meirelles4:

Fatores de ordem biológica, médica ou psíquica podem impedir a união de células germinativas masculina e feminina, determinando, por vezes, a esterilidade, e por outras, a incapacidade para procriar. Visando corrigir tais anomalias, a Medicina passou a desenvolver alguns métodos tendentes a atenuar ou até corrigir os problemas relativos à reprodução. Daí porque costuma-se denominar o uso de tais meios, genericamente, de fecundação artificial, denominação essa inexata, na opinião de Piero Bailo (Oliveira, 1984, p. 578), uma vez que artificiais são as maneiras de se obter a fecundação, e não está em si.

Cabe mencionar, dentre as chamadas técnicas de reprodução medicamente assistida, a inseminação artificial, ou seja, aquela realizada através da introdução do esperma na cavidade uterina5, ou a fertilização in vitro, ou seja, a fecundação obtida fora do corpo da mulher. A inseminação artificial, tanto pode ser homóloga, quando realizada com a utilização do sêmen do marido ou companheiro da paciente, ou heteróloga, aquela para a qual se utiliza o sêmen de um terceiro doador.

No entanto, para análise do tema proposto neste trabalho, ganha importância o estudo da chamada fertilização extracorpórea, mais especificamente, a fertilização in vitro, posto ser a partir dela que são obtidos os embriões de laboratório, os quais, uma vez não utilizados quando da inseminação, são crioconservados, sendo estes os denominados pelo atual Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.597, inc. IV, de embriões excedentários6.

A partir do final da década de 1970, com o nascimento de Louise Joy Brown, em 05.07.1978, na Inglaterra, considerada o primeiro “bebê de proveta” do mundo, a fertilização extracorpórea passou a fazer parte efetiva das técnicas de reprodução humana assistida. Segundo doutrina de Barbosa7, “ entende-se por fertilização in vitro ou transferência de embriões a técnica mediante a qual se reúnem em uma proveta os gametas masculino e feminino, em meio artificial adequado, propiciando a fecundação e formação do ovo, o qual, já iniciada a reprodução celular, será implantado no útero de uma mulher .” Para a realização da FIV (fertilização in vitro), a mulher é estimulada através de hormônios a produzir a maior quantidade de óvulos maduros possível, no mesmo ciclo menstrual. Tal estimulação é necessária porque, embora tal técnica já esteja efetivamente dominada pelos especialistas, o sucesso da implantação do embrião no útero materno não é garantido.

Normalmente, a mulher chega a produzir de cinco a seis óvulos, os quais são coletados em momento anterior à sua liberação natural, e submetidos à inseminação8. Assim, para permitir várias tentativas de fecundação sem ter de retirar a cada vez óvulos da mulher, instaurou-se a prática médica de fertilizar simultaneamente vários óvulos, obtendo-se vários embriões. A orientação internacional tem sido no sentido de se limitar o número de óvulos fertilizados, visto que os embriões excedentes serão congelados e utilizados em pesquisas laboratoriais ou simplesmente destruídos9.

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 2.168, de 2017, recomenda que o número de embriões a serem implantados na receptora não seja superior à quatro10. Colhidos de 5 a 6 óvulos, normalmente todos eles serão fecundados11, mas não obstante tal fecundação, e seguindo-se, no Brasil, o que dispõe a referida Resolução, no máximo quatro embriões serão transferidos para o útero da paciente.

Destarte surgem questões de fundamental importância sobre o tema, a saber, o destino que é dado aos embriões não transferidos para a receptora, e se existem fundamentos éticos, morais, religiosos ou jurídicos que legitimem o armazenamento de tais embriões. Outro ponto que vale trazer ao debate, é o fato de que o risco de gravidez múltipla através da técnica de fertilização in vitro é considerável, gravidez essa que poderá trazer riscos à vida tanto das futuras mães, como dos bebês, havendo ainda risco de aborto, parto precoce e outras complicações no desenvolvimento do novo ser em formação12. E para evitar tais complicações, na maioria das vezes são realizados verdadeiros abortos, chamados pelos médicos de redução embrionária, que nada mais é do que a interrupção abrupta da gestação de um ou alguns dos embriões.

Não se pode olvidar, porém, que, após a fecundação, o embrião é um ser humano em desenvolvimento, cujo direito à vida é tutelado pela Constituição Federal, assim como o direito à dignidade humana. Portanto, situações como o armazenamento de embriões, o simples “descarte13 daqueles que não foram transferidos para a receptora, a redução embrionária e a obtenção de células tronco para fins terapêuticos, o que gera a destruição do embrião, são atentados à vida humana, vida essa ainda incipiente, mas que merece proteção e amparo jurídico.

1.1 Dados da reprodução humana assistida no Brasil.

No Brasil, os dados sobre a reprodução humana assistida são bastante impressionantes. O primeiro caso de fertilização in vitro (FIV) da América Latina é brasileiro, e ocorreu em 1984, com o nascimento de Anna Paula Caldeira14.

Desde 2008, através da Resolução 29, da Diretoria Colegiada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamenta e orienta a elaboração dos relatórios feitos pelo Sistema Nacional de Produção de Embriões. O 11º Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões é o mais atualizado, e nele se percebe um aumento significativo da busca pelas técnicas de procriação assistida, nos últimos anos.

Mesmo sabendo que algumas clínicas brasileiras não reportam os seus dados para a composição do referido Relatório15, constatou-se um aumento dos ciclos realizados no Brasil. De 2011 a 2016, o número mais que dobrou, chegando a 36.307 procedimentos, em 2017. De acordo com os dados apresentados no 11º Relatório do SisEmbrio, no ano de 2017, dos 78.216 embriões congelados, mais da metade estão na Região Sudeste do país. E desde o advento da Lei da Biossegurança (Lei 11.105/2005), foram doados 1.363 embriões para a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil.

Os números são realmente expressivos. A partir da análise do ano de 201716, constata-se que foram transferidos 68.891 embriões e 65.689 foram descartados. Ou seja, a produção de embriões excedentários fez com que, praticamente o mesmo número de embriões utilizados para a geração de gestações bem-sucedidas fosse descartado. Tal fato, portanto, merece análise e investigação, especialmente para que se possa avaliar o papel e a atuação do Estado na tutela dos direitos fundamentais dos embriões excedentários.

2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA VIDA HUMANA

Segundo Barboza17, aponta-se, de início, um problema terminológico, na utilização indiscriminada do vocábulo “embrião”. De acordo com a Biologia, antes da implantação, o óvulo fecundado chama-se “zigoto”. O embrião é a entidade em desenvolvimento a partir da implantação no útero, até oito semanas após a fecundação; a partir da nona semana começa a ser denominado feto, tendo essa designação até nascer. Portanto, há quem mencione que, a rigor até os primeiros quatorze dias após a fertilização, temos o zigoto, denominado na legislação espanhola “pré-embrião”, designação que causa controvérsia por induzir a uma diminuição da condição humana da entidade em desenvolvimento18.

Algumas teorias apontam que o início da vida humana ocorre apenas com a nidação, e que o embrião fecundado em laboratório dificilmente sobreviverá caso não seja implantado no útero da mulher, razão pela qual, não reconhecem a existência de vida humana no caso dos embriões congelados em laboratório. Cifuentes19, apresenta de forma simples o processo de formação do ser humano, observando a existência das seguintes fases:

a) fusão do ovócito com o espermatozoide, criando-se uma célula diploide, dotada de capacidade de subdividir-se reiteradamente; b) início da subdivisão celular (de 4-4 em 30 horas. 8 em 60 horas); c) aparecimento da mórula e depois da blástula; d) nidação ou fixação por meio de enzimas e diminutos prolongamentos tentaculares no útero; e) atividade contráctil (15 a 25 dias); f) começo do sistema nervoso (30 dias); g) córtex cerebral (aos três meses).

De acordo com o Relatório Warnock20, seria possível dispor do embrião humano para fins experimentais até o 14º dia depois da concepção, o que deixa entender que até esta data não se reconheceria o caráter humano do embrião, visto que até este período, o embrião estaria subordinado à vida do adulto. Tal período de 14 dias fora proposto pela primeira vez em 1979, pela Ethics Advisory Board (DHEW), nos Estados Unidos, que o justificou pelo fato de que no 14º dia ocorreria o final da implantação do embrião no útero. O 14º dia seria também o limite além do qual não seria mais possível haver fenômenos de divisão gemelar ou de hibridação21.

Porém, como observa Meirelles22, “essa teoria apresenta-se difícil de ser mantida após a comprovação de que é possível não somente gerar vida humana na proveta, mas também mantê-la.” Correto é o entendimento de Moore e Persaud23, que assim observam:

... o termo embrião refere-se ao ser humano durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento. O período embrionário vai até o fim da oitava semana, quando já tiveram início todas as principais estruturas. Somente o coração e a circulação estão funcionando. O tamanho do embrião é expresso como o comprimento CRL (crown-rumplength, cefalocaudal) medido do ápice do crânio até as nádegas.

E continuam, mencionados autores:

O desenvolvimento humano começa com fertilização, o processo durante o qual um gameta masculino, ou espermatozoide se une com um gameta feminino, ou ovócito, para formar uma única célula denominada zigoto. Esta célula, altamente especializada, totipotente, marca o início de cada um de nós como um indivíduo único. O zigoto, visível a olho nu como uma pequenina mancha, contém cromossomas e genes (unidades de informação genética) provenientes da mãe e do pai. Este organismo unicelular, o zigoto, divide-se muitas vezes e transforma-se através da divisão, migração, crescimento e diferenciação celular.

Portanto, desde a união entre os gametas sexuais feminino e masculino, já existem um novo ser. No momento da fertilização, ou seja, da penetração do espermatozoide no óvulo, os dois gametas formam uma nova entidade biológica, o zigoto, que carrega em si um novo projeto-programa individualizado, uma nova vida individual24. Sgreccia25, citando Serra, explicita de forma clara com se dá o início da nova vida:

É uma observação comum a de que o primeiro evento na formação de um indivíduo humano é a fusão de duas células altamente especializadas, o oócito e o espermatozoide, por meio do processo da fertilização. Um processo altamente complexo no qual duas células extraordinárias e tecnologicamente programadas, que constituem dois sistemas independentes, mas ordenados um para o outro, integram, dando origem a um no sistema. A uma primeira fase de encontro - favorecida por receptores característicos da espécie presentes na zona pelúcida que circunda o oócito, por proteínas ligantes presentes na membrana externa dos espermatozoides e por enzimas proteolíticas e glicolíticas liberadas por partículas estruturadas presentes na cabeça dos espermatozoides, chamados acrossomos - segue-se a penetração da cabeça de um espermatozoide no citoplasma do oócito.

Mal isso aconteceu e já tem início uma cadeia de atividades que incida com evidência que não são mais os dois sistemas que estão agindo independentemente um do outro, mas que se constituiu um “novo sistema”, que começa a operar como uma “unidade”, chamada precisamente de zigoto ou embrião unicelular.

O documento denominado “Identidade e Estatuto do Embrião”, do Centro de Bioética da Universidade Católica de. S. Cuore, citado por Sgreccia26 esclarece que durante o processo de fertilização, tão logo o óvulo e o espermatozoide interagem, imediatamente se inicia um novo sistema, com duas características principais, ou seja, a de ser um novo sistema, e não a simples soma de dois subsistemas, e a de possuir um novo genoma, que contém e conservam em sua memória um desenho-projeto bem definido, com a informação essencial e permanente para a realização de forma gradual e autônoma desse novo projeto.

No mesmo sentido, Callioli27 concorda que, “no momento da fecundação, as duas células reprodutoras convertem-se em uma única célula: o zigoto ou ovo. O zigoto é uma vida humana, ninguém discute o seu caráter de ser vivo, independentemente do meio que o rodeia e com a potencialidade necessária para dar lugar a um ser humano adulto”.

Adota-se, portanto, a tese de que o embrião é um ser vivo que não pode ser desconsiderado pelo ordenamento jurídico e merece o reconhecimento de sua dignidade e de seu direito à vida.

3 O ENQUADRAMENTO JURÍDICO DO EMBRIÃO EXCEDENTÁRIO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

A questão da natureza jurídica do embrião humano, deve ser examinada não só à luz dos conceitos assentados na doutrina para a personalidade, pessoa, capacidade, mas principalmente sob a regência dos princípios que estruturam o ordenamento jurídico brasileiro. Registre-se que não se cuida na hipótese de mera investigação, para fins de classificação teórica. Muito ao contrário, o vazio jurídico tem ensejado a coisificação do embrião humano, permitindo a sua utilização para experimentação em laboratórios e até para fins industriais e cosméticos28.

O Código Civil trouxe, em seu art. 1.597, inc. IV, a expressão embrião excedentário, considerando serem havidos na constância do casamento, os filhos resultantes de fertilização in vitro, cujos embriões tenham permanecido em laboratório por algum tempo. Porém, o Código Civil de 2002 não deixa clara qual é a proteção jurídica do embrião, da salvaguarda de seus direitos, enfim, de seu enquadramento dentro do sistema legal vigente. Como já se expôs acima, desde a fecundação já existe vida humana e, portanto, o embrião é indubitavelmente um ser humano.

Por outro lado, a legislação reconhece como pessoas naturais os nascidos, bem como põe à salvo os direitos dos nascituros, que são aqueles que estão em vias de nascer com vida, e também assegura vantagens à chamada prole eventual, que são aqueles ainda nem mesmo concebidos. Como observa Barboza, citando Sousa29

O direito sempre conferiu proteção jurídica ao nascituro, embora não haja consenso quanto à sua natureza jurídica, alinhando-se várias teses, desde as que consideram tratar-se de direitos sem sujeito até as que entendem que há no caso só mero estado de vinculação, passando pela retroacção da personalidade ao momento da constituição do direito e, finalmente, pelas que sustentam haver lugar entre a concepção e o nascimento a uma personalidade parcial, reduzida, fraccionária.

O Código Civil, dentro de sua concepção clássica, buscou manter a preocupação com a noção de pessoa como o ser capaz de adquirir bens e obrigações. Para a noção clássica do Direito Civil, a ideia de ser humano, de sujeito de direitos, está diretamente relacionada à capacidade de constituir família, gerar riquezas, e ser titular de direito de propriedade. Neste ínterim, dispõe o Código Civil sobre a pessoa natural, ou seja, aquela já nascida, mas também buscou o Código Civil, ao tutelar direitos do ser ainda por nascer, vincular tal tutela à possibilidade de proteger o seu patrimônio, os bens que viria a herdar, as riquezas que viria a possuir, através da proteção ao nascituro e à prole eventual.

De acordo com o art. 1º do Código Civil, toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na ordem civil, sendo que o art. 2º deixa a dúvida sobre a proteção da personalidade humana, se tem início com o nascimento com vida, ou desde a concepção, quando a lei põe a salvo os direitos do nascituro. É o nascimento com vida, que, segundo a doutrina pátria dominante, confere ao ser humano personalidade jurídica, e, nas palavras de Diniz30sendo a pessoa natural sujeito das relações jurídicas e a personalidade a possibilidade de ser sujeito, ou seja, uma aptidão a ele reconhecida, toda pessoa é dotada de personalidade.”

Note-se, portanto, que no que toca ao embrião excedentário mantido em laboratório, pelas razões expostas pelos adeptos desta corrente, não é possível considerá-lo como pessoa natural, não lhe conferindo o ordenamento, personalidade jurídica, porque ainda não nascido, porém, também não pode ser considerado nascituro ou prole eventual. O art. 2º do Código Civil Brasileiro, dispõe que a lei põe a salvo os direitos do nascituro, sendo que a doutrina diverge quanto à natureza jurídica do nascituro. Lorenzetti31 bem traduz a preocupação do ordenamento jurídico32 com a figura do nascituro, quando manifesta que:

Antes do nascimento existem algumas disposições relativas às capacidades dos nascituros, pensando fundamentalmente naquilo que farão quando nasçam (cf. art. 63 et seq., CC), daí que ninguém tenha se ocupado muito sobre o tipo de ente que existe para o Direito antes do nascimento de uma pessoa. Atualmente surge uma série de problemas que envolvem a pessoa antes de nascer, durante esse período, e sem que seja relevante o nascimento com vida. A intervenção genética é o grande tema que ocupa o mundo jurídico neste período pré-nascimento, e obriga a definir o status jurídico do nasciturus.

O assunto é polêmico, e Meirelles33 observa a existência de três correntes a respeito da natureza jurídica do nascituro. A primeira delas é a chamada doutrina natalista, segundo a qual, como a personalidade começa com o nascimento com vida, o nascituro não é pessoa, embora receba proteção legal. Outra corrente é a da personalidade condicional, segundo a qual o nascituro teria personalidade desde a sua concepção, desde que nasça com vida. Uma terceira corrente, é aquela que afirma a personalidade desde a concepção, sendo então chamada de corrente concepcionista. Com relação aos direitos do nascituro, porém, correta é a terceira corrente acima mencionada, pois como afirma Vianna34, “não há dúvida: o feto concebido é sujeito de direitos, vale dizer, não se pode negar ao nascituro a condição de sujeito de direitos, de pessoa natural”.

Note-se, porém, que o nascituro é o embrião introduzido no útero da receptora, ou seja, é o ser humano já em desenvolvimento, e, portanto, toda e qualquer discussão a respeito da natureza do nascituro, não contribui para elucidar a posição do embrião excedentário perante o ordenamento jurídico. O embrião excedentário, por não ter sido transferido para o útero, não pode ser considerado nascituro.

O embrião excedentário, ao contrário do que se possa pensar, também não pode ser considerado prole eventual. Tem-se por prole eventual, o ser humano ainda não concebido, aquele que pode ser chamado de ser humano futuro. Ora, o embrião excedentário, ainda que não transferido para o útero da receptora, ou materno, já está concebido, posto que, conforme já exposto em momento anterior, a concepção ocorre com a união entre os gametas masculino e feminino.

Para tentar adequar a situação do embrião à legislação em vigor, a doutrina busca caracterizar o embrião como titular de direitos subordinados à uma condição, assim como o nascituro. De acordo com o art. 2º35 do Código Civil Brasileiro, somente será sujeito de direito quem nascer com vida. Tal condição seria suspensiva (implantação no útero), ou resolutiva (não implantação), ou ainda dúplice, ou seja, suspensiva (nidação) e resolutiva (nascimento sem vida).

A crítica que se faz é que, aceitando esta teoria e subordinando a aquisição de direitos pelo embrião pré-implantatório à condição representada por sua transferência ao útero seguida de nidação, passa a depender de outrem a titularidade do direito à vida. Entende-se que o posicionamento de Meirelles36 é o que de maneira certeira trata da questão:

(...) seguindo-se a orientação tradicional, ao se outorgar personalidade jurídica ao embrião in vitro, estar-se-ia pretendendo caracterizá-lo como sujeito de direito, apto a se posicionar nas diferentes relações jurídicas, adquirindo direitos ou contraindo obrigações. Sendo assim, em um raciocínio inicial, tal qual o nascituro, seria o embrião pré-implantatório titular de direitos subordinados à condição. E tal condição seria suspensiva (implantação no útero) ou resolutiva (não implantação), dependendo de o posicionamento adotado frente à subjetividade do novo ser (...) demais disso, ao se subordinar a aquisição de direitos pelo embrião pré-implantatório à condição representada pela sua transferência ao útero seguida de nidação, seja sob caráter suspensivo seja resolutivo, estar-se-ia reduzindo a referida titularidade à vontade de outrem.

Assim, conclui-se que os embriões concebidos e mantidos em laboratório são totalmente estranhos ao modelo clássico do Código Civil, já que: a) não são pessoas, pois inexiste neste caso o nascimento com vida; b) não são nascituros, ou pessoas a nascer; c) e também não é possível classificá-los como prole eventual, posto tratarem-se de seres já concebidos. Em que pese, porém, o vazio normativo que se observa no Código Civil em relação à figura do embrião, é certo que sua proteção é garantida por todas as normas éticas, jurídicas e morais vigentes, que garante a proteção do direito à vida.

4 O ESTADO E A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO EMBRIÃO EXCEDENTÁRIO NO BRASIL

O juízo de existência e de valor do ser humano e de sua necessária proteção não se limita ao estatuto jurídico da pessoa37. Como bem observa Ferraz38

A regra já vetusta entre nós, por isso que consagrada no Código Civil de proteção ao concebido (concepção é a fecundação do óvulo pelo espermatozoide) e ao nascituro não pode ter significação apenas processual ou sucessória, à vista dos princípios constitucionais de dignidade da personalidade humana, do seu desenvolvimento. Sem contar que o direito à vida é também garantia constitucional expressa (caput do art. 5º). Convém também lembrar que ninguém será submetido à tratamento desumano, cruel ou degradante (art. 5º, inc. III).

A Constituição Federal da República Brasileira de 1998, em seu art. 5º39, caput, garante o direito à vida, dispondo que todos são iguais perante a lei. A vida humana como valor constitucional, portanto é um bem tutelado pelo Estado, e sua garantia é o princípio fundamental e razão da própria existência do Estado de Direito. Tanto é assim, que a mesma Carta Constitucional, em seu art. 1º, declara que a República Federativa do Brasil, constitui-se em Estado Democrático de Direito, e tem por fundamento, a dignidade da pessoa humana40.

Citado artigo traduz a recepção dentro do Direito Brasileiro do Pacto de São José da Costa Rica. Mencionado pacto, ratificado pelo Congresso Nacional através do Decreto 678, de 06.11.1992, dispõe em seu art. 3º, que “Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade”. Em seguida, no inc. I, do art. 4º, dispõe que “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Mas não só o direito à vida, representado pelo direito à saúde nos termos do art. 19641 do texto constitucional, pela proteção ao idoso, à criança, ao meio ambiente seguro, dentre outros princípios constitucionais42, pode ser invocado quando se fala em proteção ao embrião excedentário. Também a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º da Carta Constitucional, merece relevo. E a Lei Maior certamente não poderia deixar de trazer em seu texto a preocupação com a questão dos direitos humanos fundamentais, proclamados pela já citada Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a partir da qual os clamores pela igualdade e respeito à dignidade da vida ganharam noção de efetividade. Como bem observa Piovesan43:

“Considerando que toda Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe dá unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular”.

Lembre-se, por oportuno, do Tribunal de Nuremberg, o qual deu origem ao Código de Nuremberg, é de suma importância para a implementação da preocupação com os direitos da pessoa humana, que deixou de ser vista como um mero objeto de utilidade do Estado, mas como portador de interesses próprios44. Buscando um conceito sobre dignidade humana, salienta Azevedo45 que “a expressão dignidade humana, tomada em si, é um conceito jurídico. E continua observando que “no caso da dignidade humana, o conceito, além de normativo, é axiológico, porque a dignidade humana é valor - a dignidade é a expressão do valor da pessoa humana. Todo valor é a projeção de um bem para alguém; no caso, a pessoa humana é o bem e a dignidade o seu valor, isto é, a sua projeção”.

O que informa a semelhança entre os seres nascidos e os embriões concebidos e mantidos em laboratório é a sua natureza comum e o que representam axiologicamente, e não a maior ou menor possibilidade de sua adequação à categoria abstrata da personalidade jurídica. Significa dizer que a proteção constitucional do direito à vida e à dignidade da pessoa humana, são comuns tanto aos seres nascidos, como aos embriões mantidos em laboratório, visto que ambos inegavelmente possuem vida.

Neste sentido, Meirelles46, citando Varela, observa que “a tutela da lei se estende a toda a expressão corpórea e dinâmica da vida humana, abrangendo por conseguinte não só a criança já nascida, mas todo o feto ou embrião onde palpita já o sopro autônomo da vida.”. Assim, com relação à situação do embrião, três linhas de pensamento se formaram: a) a que admite que a origem de toda pessoa humana e o termo inicial do necessário amparo encontra-se na concepção; b) a que reconhece diferenciada proteção, conforme as fases do desenvolvimento do novo ser que se forma (somente a partir do 6º dia após a concepção; ou depois da nidação do zigoto ao útero; ou 14 dias após a concepção, quando tem início a formação do sistema nervoso central; ou após o 18º dia, com a formação da placa neural, ou após a configuração dos órgãos, etc.); c) a que identifica no embrião uma pessoa humana potencial, com autonomia a lhe assegurar estatuto próprio. Porém, é forçoso reconhecer que, em verdade, qualquer ato atentatório em face de em embrião atinge o homem considerado em sua dignidade, já que, um dia, todos nós fomos embriões.

Assim, a proteção ao embrião excedentário emerge da Constituição Federal, que consagra a pessoa humana como referencial basilar do sistema jurídico, garantindo como fundamental o direito à vida e à dignidade sendo considerados os embriões como pertencentes à mesma natureza das pessoas nascidas, pela via da similitude, perfeitamente aplicável a eles o direito fundamental relativo à dignidade humana e a proteção ao direito à vida. Jesus47 lembra que a vida humana, seja ela independente ou não, é e sempre será objeto da tutela estatal, não importando para o Direito, as condições permanentes, transitórias ou mesmo momentâneas da pessoa para que tenha a proteção da norma penal. Basta que tenha a condição de ser humano, para que se tenha direito à proteção do Estado, proteção que, no caso aqui discutido, deverá ser analisada não somente do ponto de vista do direito penal, mas da proteção jurídica em si mesma considerada. Como bem observa BARBOZA48:

No momento, parece que o mais razoável, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, seja conferir ao embrião humano uma “tutela particular”, desvinculada dos conceitos existentes, mas que impeça, de modo eficaz, sua instrumentalização, dando-lhe, enfim, proteção jurídica condizente, se não com a condição de indivíduo pertencente à espécie humana, com o respeito devido a um ser que não pode ser coisificado”

No mesmo sentido, Adorno49, lembra que “o termo pessoa é empregado para designar os seres que possuem uma dignidade intrínseca.” Dizer pessoa, portanto, equivale a dizer “um ser que merece um tratamento enquanto fim em si”, a “pessoa” é o oposto de “coisa”, realçando a diferença gritante entre ambos. E salienta ainda o autor acima mencionado, com propriedade que “para além do debate interminável acerca do estatuto ontológico do embrião humano, a ética e o direito determinam, não o que é o embrião, mas como devemos tratá-lo. E se para isso se inspiram em um critério razoável, devem concluir que resulta necessário respeitá-lo como pessoa50. Portanto, conclusão obrigatória do raciocínio aqui apresentado, é a de que negar a natureza humana ao embrião, e o seu direito à vida e à dignidade, é anuir com a sua “coisificação”, autorizando então a realização de experiências as mais variadas com esse ser humano, simplesmente por ausência de definição legal explícita à sua condição.

Além dos dispositivos e princípios constitucionais já mencionados, a proteção do embrião excedentário também se fundamenta, no aspecto infraconstitucional, na Lei 8.974/199551 que dispõe sobre a limitação no uso das técnicas de engenharia genética, e a Resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, já referida, relativa às normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Assim, após feitas as considerações supra, insta ainda observar que a proteção dos embriões mantidos em laboratório é um interesse difuso, já que, protegendo-se ao embrião excedentário, protege-se toda a espécie humana em si mesma considerada. Seguindo o entendimento de Meirelles52:

A indivisibilidade objetiva que caracteriza os interesses difusos também está presente na questão relativa aos embriões humanos. Assim, a lesão à vida e à dignidade embrionária atinge todos os seres humanos vivos; também o emprego das técnicas de maneira a colocar em risco o patrimônio genético do país e, por assim dizer, o meio ambiente. Ao revés, os cuidados com a utilização das técnicas e as pesquisas voltadas à qualidade de vida sadia trazem a satisfação individual a humanidade. De maneira que, ao se proteger um embrião in vitro, estar-se-á protegendo vida e dignidade comuns a todos os seres humanos.

Toda e qualquer prática, portanto, que de alguma forma fira o direito à vida do embrião excedentário, sendo este entendido então como ser humano, é atentatória à toda a espécie humana.

5 QUESTÕES POLÊMICAS ENVOLVENDO A TUTELA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO EMBRIÃO EXCEDENTÁRIO E A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Como exposto acima o embrião é sujeito de direitos, e, portanto, deve receber a tutela estatal de seus direitos fundamentais. Resta, portanto, trazer à discussão algumas críticas a respeito de situações de atentado à vida do embrião excedentário que fatalmente podem resultar da prática indiscriminada de fertilização in vitro, sem que se tenha em mente a proteção ao direito à vida do embrião. Conforme já se expôs acima, o embrião excedentário é aquele que, resultante da fertilização extracorpórea in vitro, acaba não sendo implantado no útero da mulher.

No Brasil, a Resolução 2.168, do Conselho Regional de Medicina, datada de 10.11.2017, prevê dentre os seus princípios, especificamente no item V53, a Criopreservação de Gametas ou pré-embriões, determinando inclusive que os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade por escrito, quanto ao destino a ser dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejem doá-los.

Segundo Persaud & Moore54, “ embriões e blastocistos resultantes de fertilização in vitro podem ser preservados por longos períodos se congelados com um crio protetor (p. ex., glicerol). Hoje em dia é prática comum a transferência de embriões de quatro a oito células e de blastocistos para o útero depois de descongelados ”. Preocupam, entretanto, em relação à criopreservação, as seguintes situações: poderão os embriões permanecer congelados eternamente? E ainda, a Resolução do Conselho Federal de Medicina acima dispõe que os cônjuges ou companheiros poderão dispor sobre doação dos embriões ou o seu destino. Como transferir a outrem a titularidade sobre o direito à vida dos embriões?

Enquanto exista o interesse do casal na posterior implantação do embrião no útero da mulher, não resultam maiores questionamentos a respeito de mencionada preservação em laboratório. Mas, e a partir do momento em que não exista mais o interesse do casal em dar continuidade ao mencionado projeto de parentalidade, quais as soluções possíveis para a questão?

Em relação ao primeiro questionamento, cumpre esclarecer que o já citado Relatório Warnock, dispõe que o prazo máximo de armazenamento dos embriões seria de 5 anos. Após este prazo, os mesmos poderiam ser simplesmente “descartados”. No Brasil, porém, por determinação da Resolução 2.168, item V, é neste sentido, mencionando o prazo de 3 anos. Referida Resolução, transfere aos cônjuges ou companheiros o direito ao destino que será dado aos embriões mantidos em laboratório, bem como quando fala em doação de embriões, acaba por conferir à esses seres humanos, o caráter de objetos, de coisas, que podem ser disponibilizados por outrem a qualquer momento, conferindo-lhe o caráter de bem, enfim, de algo que possa ser objeto de doação55.

Ora, para que alguém possa doar algo, é preciso que seja titular de direitos de uso, gozo e fruição sobre tal bem, ou seja, é preciso que seja titular do direito de propriedade. Em relação ao embrião excedentário, entretanto, Ferraz56 lembra que “é evidente que inexiste um direito de propriedade do embrião, eis que este já é vida humana, assim, o casal doador não pode decidir sobre a sua eliminação, nem mesmo dos sobrantes à implantação uterina.”

Outra solução para a questão, seria a apresentada por Meirelles57 ao aduzir, entendimento plausível seria o de possibilitar a adoção de tais embriões, como já acontece em diversos países, visto que, assim, “ao tempo em que afasta o caráter de coisa daquele que seria objeto de negócio translativo gratuito, a possibilidade de adotar embriões aproxima-os das pessoas nascidas, outorgando àqueles tal qual a essas a proteção que deriva do procedimento adotivo”, cabendo então analisar, como faz a autora citada, a aceitabilidade ética de se adotar um bebê em fase embrionária.

Portanto, parece-nos que a melhor solução para evitar a necessidade de conservação do embrião em laboratório, é limitar-se de alguma forma o número de óvulos a serem fecundados, evitando-se assim a obtenção de embriões em quantidade superior aos que serão implantados no útero da mulher, e por consequência, a necessidade de armazenamento de seres vivos em fase embrionária em laboratório, sem que se saiba qual o destino que a eles será dado.

Ao lado da criopreservação, outra questão tormentosa atinente à vida embrionária, e resultante da técnica de fertilização in vitro, diz respeito à utilização das células-tronco para fins terapêuticos, técnica conhecida como clonagem terapêutica. A clonagem terapêutica, segundo Zatz58, muitas vezes confundida com terapia celular, é a transferência de núcleos de uma célula para um óvulo sem núcleo. Ocorre que, para a realização de tal técnica, são utilizadas células de embriões humanos, os quais, evidentemente, são destruídos após a realização da clonagem.

As células-tronco podem ser embrionárias (formadas no interior do embrião nos primeiros cinco dias após a fertilização do óvulo) ou adultas (encontradas em tecidos maduros, tanto no corpo de crianças quanto de adultos). A diferença entre elas está na capacidade de se transformar em outros tipos de células. Enquanto as embrionárias transformam-se em praticamente qualquer célula do corpo (por isso são as mais promissoras para pesquisas), as adultas são mais especializadas e dão origem a tipos específicos de células59.

No estágio inicial, as células do embrião ainda não “decidiram” se vão virar célula de sangue, pele, músculo e etc. As células-tronco embrionárias podem ser induzidas a se transformar em células sanguíneas, musculares, hepáticas, de pele, células secretoras de insulina e até em neurônios. Os pesquisadores geralmente obtêm células-tronco embrionárias de embriões descartados em clínicas de fertilidade (embriões que não são implantados num útero e nem destruídos)60. Justificam os cientistas e pesquisadores, a clonagem terapêutica, no fato de que a mesma poderá representar a cura para muitas doenças de difícil tratamento, e quem sabe até, a última esperança de vida para muitos. Resta-nos apenas questionar a validade ética e moral de tais ideias, tendo em vista a verdadeira ofensa à vida humana em desenvolvimento, no caso, do embrião, praticada quando da realização de mencionada técnica.

Novamente então, cabe lembrar que a Resolução 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina traz limitações às intervenções sobre os seres embrionários para fins de diagnose ou tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, assim como para impedir sua transmissão.

Há apenas que restar claro, que a realização de mencionada técnica fere e integridade física do embrião, e não só o seu direito à vida. E, por extensão, é possível, no entendimento de Ferraz61, lembrar que nestes tipos de técnicas, há que se perquirir se estão sendo respeitados o direito de participar e beneficiar-se dos progressos científicos, nos termos do art. 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem62, o direito de não ser submetido, sem livre consentimento, a experiências médicas ou científicas, segundo o art. 7º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos63, o direito de respeito à dignidade e à liberdade na investigação científica, assim como toda a sorte de tutelas endereçadas à criança, no caso específico do Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente64.

Importante, por fim, apontar o equívoco legislativo cometido pelo Código Civil, em relação ao embrião excedentário, no que toca ao art. 1597, inc. IV65, deste diploma. Neste sentido, traz-se a crítica de Meirelles66, que aponta que o uso da expressão embriões excedentários pelo legislador, no artigo supracitado, gera pelo menos duas ordens de problemas:

Em primeiro lugar, o fato de se presumir concebidos na constância do casamento os filhos havidos, a qualquer tempo, ainda que embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, importa restrição à própria liberdade individual dos titulares dos gametas que deram origem aos embriões, porquanto, ainda que casados sejam, impor-se o vínculo parental a qualquer deles é afetar-lhe diretamente a liberdade individual.

Em segundo lugar, à parte a questão da parentalidade, a previsão legislativa expressa de embriões ditos excedentários, abra a possibilidade para que, a qualquer tempo, sejam transferidos ao organismo feminino para completarem o seu desenvolvimento, segundo o maior ou menor interesse daqueles que deram início a um projeto parental que, talvez, nem exista mais. Tal possibilidade faz reduzir o ser humano em início de desenvolvimento a mero objeto de desejo bioindustrial.

Da forma como dispôs o legislador civil, é possível que o embrião criopreservado, reste dependente dos interesses alheios para a sua implantação em um útero, e, portanto, para o pleno exercício de seu direito à vida. Aliás, em análise do teor ainda do art. 1.79867 do Código Civil, note-se que os embriões excedentários, estão, inclusive, legitimados à sucessão, já que são considerados pela lei como concebidos na constância do casamento, gerando a ficção legal de que já eram concebidos no momento da sucessão.

Outro ponto que merece análise diz respeito à Lei Brasileira de Biossegurança, Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) que autoriza, em seu art. a utilização de células-tronco excedentárias para fins de pesquisa e terapia. Segundo referido artigo, os embriões produzidos in vitro não utilizados para a implantação no útero da mulher podem, de acordo com a Resolução 2.168/20107 do Conselho Federal de Medicina, ser doados para outro casal com problemas de fertilização, ser congelados, ou usados para terapia genética.

Tal artigo, entretanto, foi objeto de questionamento na ADIn 3510/600, em que se discutiu a constitucionalidade do art. 5º, da Lei 11.105/2005 que prevê a utilização de células-tronco embrionárias originárias de embriões excedentes das técnicas de reprodução assistida. Note-se que a referida ADIn teve por objeto de discussão a possibilidade de pesquisas com células-tronco embrionárias. Vale dizer que não houve consenso no atinente à possibilidade de descarte de embriões excedentes já que, segundo o Ministro Carlos Britto, “De se registrar que a presente ação direta não impugna o descarte puro e simples de embriões não aproveitados 'no respectivo procedimento'. A impugnação é quanto ao emprego de células em pesquisa científica e terapia humana”.

Fato é que o STF posicionou-se pela constitucionalidade da Lei de Biossegurança, segundo explica Silva68,

na ADIn em apreço, o Supremo entendeu pela aplicabilidade da Lei de Biossegurança, exatamente por garantir princípios constitucionais como a proteção constitucional do direito a uma vida digna e à saúde, direitos fundamentais a autonomia da vontade, ao planejamento familiar e à maternidade, liberdade de expressão científica. Assim, continua a vigorar no ordenamento jurídico a lei em baila, pois ela é constitucional.

A autora também observa que o Min. Gilmar Mendes, na decisão da ADIn em questão, enfatizou que “a questão não está em saber, como e de que forma a vida humana tem início ou fim, mas como o Estado deve atuar na proteção desse organismo pré-natal diante das novas tecnologias, cujos resultados o próprio homem não pode prever69.

Dito isso, a Lei de Biossegurança é regulamentada, ainda, pelo Decreto 5.591/05, que, entretanto, nada dispõe acerca do descarte de embriões. Resoluções dos anos de 2010 e 2013 do Conselho Federal de Medicina tentaram tratar da questão, mas enfrentaram duras críticas, especialmente porque não podem pretender regulamentar assunto de competência exclusiva de legislação federal. Argumento possível diz respeito à possibilidade de permitir aos genitores optarem pelo descarte dos embriões, mas ainda assim a questão é polêmica, e qualquer tentativa de regulamentação esbarra em questões de ordem ética e moral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto a ciência busca justificar os avanços tecnobiológicos, e a medicina vê no embrião de laboratório a possibilidade de cura para muitas doenças, o jurista, ainda inexperiente às lides da tecnologia, observa tais avanços, e busca soluções para evitar os abusos. Não se pode permitir que, em nome do progresso da ciência, vidas humanas desprotegidas, sejam sacrificadas em prol de benefícios que sequer é possível saber se efetivamente existem.

Muito mais do que o apelo jurídico, a ética e a moralidade devem prevalecer em situações como as expostas neste trabalho. As técnicas de reprodução assistida, à evidência, representam avanços consideráveis para a medicina, e para toda a humanidade. Mas a criação da vida jamais deve justificar o abuso, o desrespeito à dignidade de toda a humanidade.

É preciso que o homem encontre o equilíbrio entre a tecnologia e o amor, entre a tecnologia e o significado verdadeiro da vida. Enquanto o homem não encontrar a verdadeira medida entre o valor vida como algo intrínseco a cada ser, nenhuma técnica, por mais necessária e evoluída que venha a se tornar, justificará o sacrifício de vidas humanas em desenvolvimento.

Como foi possível observar ao longo deste trabalho, verificou-se que a vida humana tem início desde a união dos gametas masculino e feminino, e que, portanto, ainda que várias teorias tentem explicar a natureza jurídica do embrião não implantado no útero de uma receptora, o certo é que os são seres humanos, mesmo porque, todo ser humano, um dia, já foi um embrião.

Qualquer ato atentatório à vida e dignidade do embrião, atenta contra toda a humanidade, já que o embrião é um ser humano, assim considerado pela via de similitude. Técnicas como a clonagem terapêutica, a doação, adoção, venda, enfim, a coisificação do embrião, são um atentado à dignidade de todos nós, enquanto seres humanos. Os avanços tecnológicos são inevitáveis, mas jamais deverão destruir o senso de humanidade inerente a cada um de nós.

Resta então ao Direito, acompanhar de perto os avanços da tecnologia, impedindo os abusos, e conciliando os princípios éticos, com os interesses protegidos pela Constituição Federal.

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Recebido: 30 de Abril de 2019; Aceito: 15 de Julho de 2019

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