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Revista Internacional CONSINTER de Direito - Publicação Oficial do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação

versão impressa ISSN 2183-6396versão On-line ISSN 2183-9522

Revista Internacional CONSINTER de Direito  no.10 Vila Nova de Gaia jun. 2020  Epub 30-Jun-2020

https://doi.org/10.19135/revista.consinter.00010.19 

Artigos Originais

A TRANSPARÊNCIA COMO PARADIGMA DA NOVA GOVERNANCE PÚBLICA

THE TRANSPARENCY AS THE PARADIGM OF THE NEW PUBLIC GOVERNANCE


Resumo

A transparência assume-se como uma condição imprescindível à governance pública inerente ao próprio Estado de Direito Democrático, funcionando como um instrumento garantístico a favor dos direitos do administrado e da sociedade como um todo.

O escrutínio sobre a atividade do setor público contribui decisivamente para a atenuação da opacidade e para a “boa administração” através de uma adequada gestão do erário público mormente por virtude de mecanismos de “accountability”. A exigência da transparência faz-se sentir com maior acuidade no âmbito da contratação pública, porquanto a fraude e a corrupção são fenômenos que normalmente surgem associados a este “modo de atuar administrativo” devido às avultadas quantias envolvidas nos contratos públicos.

As diversas vertentes de exercício da regulação por parte do “Tribunal de Contas” sobre a contratação pública e o alcance deste controlo externo serão igualmente abordados neste estudo. Por último, procedemos à reflexão sobre a ética e a transparência defendendo a consagração desta como princípio geral da atividade administrativa no Código do Procedimento Administrativo.

Palavras-chave: Transparência; Imparcialidade; Governance pública; Contratação pública; Acesso a documentos administrativos; Administração eletrónica; Dever de informação; Tribunal de Contas.

Abstract Transparency is an indispensable condition for the activity of the public sector, in any State of Democratic Law, affirming itself as a true guarantee instrument in favor of the rights of the citizen and of society as a whole.

The scrutiny of the activity of the public authorities contributes decisively to the “good administration” and to the proper management of the public funds, mainly by virtue of “accountability” mechanisms. The requirement of transparency is felt more acutely in the public procurement sector, since fraud and corruption are often associated with this administrative activity because of the large sums involved in public procurement.

The various aspects of the “Court of Auditors” regulation on public procurement and the scope of this external control will also be addressed in this study.

Finally, we will make our critical remarks about the ethics and transparency, defending its consecration as a general principle of administrative activity in the Code of Administrative Procedure.

Keywords: Transparency; Impartiality; Public governance; Public procurement; Access to administrative documents; Electronic administration; Legal obligation of information; Court of Auditors.

NOTA PRÉVIA

É corolário lógico de um Estado de Direito Democrático o direito dos cidadãos exigirem a “prestação de contas” aos detentores de poderes públicos pela administração do “Bem Público”. Verificamos, no entanto, que não é suficiente a mera consagração deste direito de cariz profundamente democrático nos diversos diplomas legais.

A efetivação do direito de exigir do Estado a “transparência” sobre a sua atuação, mais especificamente a obtenção de resultados práticos inerentes ao mesmo (v.g. “boa administração”), apenas será possível através de um acervo de mecanismos concretizadores, de cariz preventivo e repressivo. Deverá ser favorecida a possibilidade dos administrados recorrerem às vias legais, graciosas e contenciosas, para o exercício cabal da sua cidadania.

Existe uma relação intrínseca entre a democracia, a transparência, a ética e o exercício do direito de exigir a prestação de contas aos titulares de órgãos públicos. Esta foi, aliás, uma conquista da Revolução Francesa.

A democracia da governance pública depende da utilização dinâmica do leque de direitos disponibilizados ao cidadão, primeiramente nas próprias Constituições dos Estados.

Para o efeito, é essencial a inculcação de uma consciencialização cívica do cidadão sobre este direito, conducente ao seu exercício efectivo, sob pena de as Constituições dos Estados constituírem “letra morta” e estática, sem significado e relevância para a realidade para que foram pensadas.

Ora, para que o cidadão possa exercitar os seus direitos cívicos, contribuindo, construtiva e ativamente, para uma sociedade mais exigente, mais justa e com maior desenvolvimento económico e social, numa lógica de igualdade e “boa administração” em que o “Bem Comum” é a verdadeira missão almejada pelo servidor público, tem que existir transparência.

Por esta ordem de razões, no presente artigo debruçar-nos-emos sobre a transparência na governance pública. Mais especificamente, abordaremos a relevância da transparência na a contratação pública por se tratar de uma modalidade da atividade administrativa, no âmbito da qual é comum surgir a opacidade ligada a fenómenos de fraude e corrupção.

1 A TRANSPARÊNCIA COMO PARADIGMA DA NOVA GOVERNANCE PÚBLICA

A transparência tem que se assumir necessariamente como um valor indissociável do “poder público” servindo de “bússola axiológica” da atuação administrativa. Não podemos olvidar o fato de a Administração Pública existir para servir o interesse público e não para salvaguarda dos interesses privados dos agentes, funcionários e titulares dos órgãos que a integram.

Outro aspecto que merece ser salientado prende-se com a utilização dos “dinheiros públicos”. Ora, o recurso aos fundos financeiros que a todos os contribuintes pertence, exige uma atuação responsável e estribada pelos princípios de boa administração, imparcialidade e legalidade e, sobretudo, consentânea com o valor da transparência. É fácil compreender que quanto maior a transparência, melhor será a gestão dos dinheiros públicos.

Um funcionário que saiba que qualquer “erro grosseiro” na gestão e alocação de recursos financeiros é objeto de escrutínio público, tenderá naturalmente a adotar uma conduta mais prudente e responsável com o zelo e diligência exigíveis a quem ocupe um cargo público.

O cabal conhecimento sobre a origem, o uso e o destino dado aos dinheiros públicos pelos decisores e agentes públicos desempenharia significativamente para a introdução de uma cultura de transparência e de confiança do contribuinte no seu governante. Por seu turno, os mecanismos de “accountability” pública (v.g. responsabilização financeira, disciplinar, política e, em caso de crime, responsabilização penal) desempenhará certamente um papel determinante tendente à “boa administração”.

É interessante verificar que o legislador português, na revisão que procedeu ao Código do Procedimento Administrativo (CPA), através do DL n.º 4/2015, de 7 de janeiro, não aproveitou a oportunidade para consagrar o princípio da transparência.

É menos compreensível este “esquecimento” quando pensamos no reforço que foi implementado aos valores de boa-fé, colaboração, imparcialidade, igualdade, justiça e de razoabilidade no tratamento dado ao administrado na sua relação com a Administração Pública, a qual, em muitas situações da vida quotidiana, tende a ocupar uma posição de ius imperium sobre aquele.

A omissão da transparência como princípio geral da atividade administrativa gera perplexidade. Assim é, porque quanto mais transparente for a Administração Pública, mais salvaguardados estarão aqueles valores supramencionados.

O efetivo conhecimento do administrado sobre a atuação administrativa em todas as suas fases e sobre o porquê das opções tomadas contribuem para o incremento da confiança do cidadão sobre a isenção administrativa.

A compreensão das motivações da governança pública inerentes às medidas adotadas, e aos interesses públicos escolhidos para prossecução (saber porquê “aqueles” interesses e não “outros”), a par do acesso à fundamentação são instrumentos essenciais ao escrutínio público e à transparência sobre o modo de agir, modo de organização e sobre o “edifício complexo”, a que se reconduz a “Administração Pública”.

A transparência possibilita uma sadia “contestação” por parte do administrado/cidadão e da sociedade como um todo, a qual poderá sindicará a atuação adotada por parte do decisor público, contribuindo decisivamente para uma verdadeira cultura de “boa administração”.

É por isso determinante a introdução de procedimentos transparentes no desenrolar da conduta do agente público, ab initio, a partir do momento em que toma uma decisão até ao momento em que a implementa. Esta decisão terá de ser motivada e fundamentada, junto do administrado, sob pena da sua omissão ser, ela própria, fundamento de ilegalidade administrativa.

A Administração Pública tem de fornecer um fluxo contínuo de informação em todas as suas formas de atuar, ou seja, nos regulamentos, atos administrativos e na celebração de contratos públicos. Por conseguinte, o dever de prestar esclarecimentos (princípio da administração aberta), ainda que não solicitados pelo administrado, terá de ser enaltecido.

2 EIXOS PARA UMA GESTÃO TRANSPARENTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. FINALIDADES

Assistimos a uma nova compreensão da realidade administrativa, na qual o administrado não é mais súdito como o era na época absolutista ou, mero usuário ou utente, com um estatuto e papel estáticos. Pelo contrário, o administrado é hoje encarado como um parceiro da Administração Pública na missão de concretização do “Bem Comum”, devendo por isso ser colocado a par do desenrolar da atividade administrativa e continuamente “auscultado” no decurso da mesma.

A “participação do administrado” é o primeiro eixo.

A participação do administrado revela-se essencial na tarefa de tornar mais transparente e legítima a atuação dos poderes públicos. Na verdade, a gestão democrática e participativa no exercício da Administração Pública é um traço estruturante de uma reforma administrativa que se preocupa com a inclusão dos cidadãos na construção do Estado de Direito.

A relação de colaboração entre a Administração e o administrado, a inclusão do administrado e a comunicação constituem o segundo eixo.

Na verdade, outro aspecto importante que merece ser salientado, na senda da transparência do setor público consiste na ampliação dos canais de comunicação e de colaboração na relação administrado-Administração. Por outra banda, a dotação dos serviços públicos de uma organização procedimental estribada pela legalidade, boa-fé, imparcialidade e participação ativa e permanente do administrado reveste-se da maior pertinência nesta matéria.

Colocamos, pois, uma especial ênfase no valor da inclusão do administrado2 na governança pública, na “construção” da missão de “interesse público” a qual, de resto, vai de encontro aos ensejos constitucionais.

A Constituição da República Portuguesa contempla no seu art. 2.º, in fine, a implementação da “democracia participativa” e no seu art. 9.º, al. c), assume que é tarefa fundamental do Estado “defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais”, o que implica necessariamente a intervenção ativa do cidadão na sociedade e no Estado.

Sendo a Constituição, a lei fundamental o padrão conformador de conduta jurídica e social de todas as entidades públicas, entidades privadas e cidadãos, revela-se obrigatório o cumprimento integral e pleno dos respectivos ditames e preceitos.

A Administração Eletrônica e as novas tecnologias de informação são o terceiro eixo.

Atualmente existe uma nova realidade social, de informação e de conhecimento fundado no saber e desenvolvimento, tecnológicos. Neste contexto, as novas tecnologias de informação desempenham um papel fulcral na organização e atividade administrativas.

O “e-government” (governo eletrônico) constitui um verdadeiro pilar na demanda por um modelo de governança transparente, através da partilha de dados e de divulgação de informação sobre a atuação dos poderes públicos, facilitando o já mencionado escrutínio público e sindicância legal.

Por este motivo, as novas tecnologias de informação deverão ser encaradas pelos Estados como uma política pública de transparência e de empoderamento do cidadão, mais consciente e esclarecido sobre as medidas políticas, legislativas e econômicas do seu país.

Em Portugal, o caminho tem sido traçado paulatinamente com o recurso a meios tecnológicos (v.g. “Balcão Único Eletrônico”) com o foco no “administrado”, mais propriamente, na eficiência, celeridade e proximidade da Administração Pública ao administrado e aos seus problemas, sem revelar tanto a preocupação com a transparência procedimental. Vide infra melhor desenvolvido no ponto 2.1.

O “atuar pelo procedimento” consubstancia-se no quarto eixo.

A obrigatoriedade das entidades públicas terem de obedecer, no exercício da sua atividade, à procedimentalização de atos legalmente estipulada, funciona como um mecanismo habilitante para o controlo rigoroso sobre se o bloco normativo é ou não respeitado.

A supervisão e a fiscalização sobre a atuação pública são o quinto eixo.

De igual modo, revelam-se essenciais à gestão democrática e transparente da Administração Pública, as entidades de supervisão e de fiscalização. Existe uma miríade de entidades administrativas independentes que exercem funções de regulação econômica, financeira e social, designadamente o Banco de Portugal, Entidade Reguladora da Saúde, Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, Comissão Nacional de Proteção de Dados, Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, Provedor de Justiça, entre outras.

Em relação à contratação pública, enaltecemos a relevância do controlo externo levado a cabo pelo órgão jurisdicional “Tribunal de Contas”, cujas funções serão desenvolvidas mais adiante neste trabalho. Vide infra melhor desenvolvido no ponto 4.

Os mecanismos de “prestação de contas” (“accountability”) são o sexto eixo.

Importa, outrossim, trazer à colação o mecanismo de “accountability” (responsabilização) traduzida na “prestação de contas”, quantitativa e qualitativa, da entidade pública junto do cidadão pelos desvios à “boa administração”.

A “accountability” concretiza-se também na vertente da fundamentação das opções públicas adotadas pela entidade pública e não somente numa vertente punitiva ou ressarcitória. Trata-se, no fundo, de conceder uma explicação cabal das motivações subjacentes àquela concreta decisão e/ou escolha e daquele interesse público que, in casu, se pretendia satisfazer.

O acordo firmado entre a Administração Pública e o administrado é o sétimo eixo.

Existe um eixo indispensável à transparência no setor público, que se reconduz ao “consenso” alcançado entre a Administração Pública e o administrado.

A cooperação entre estes dois intervenientes integra a “revolução coperniciana” operada no Direito Administrativo, na dupla perspectiva de realidade e ciência jurídica.

Esta mutação jus-administrativa consubstancia-se na transição do modelo centralizado no “ato administrativo” entendido como a “decisão material do ente administrativo sobre uma situação individual e concreta”, muitas vezes, dotada de auctoritas e com carácter unilateral, imposta inexoravelmente sobre o particular, para o modelo de “acordo de vontades”.

Assistimos, pois, a uma evolução alcançada pela introdução de uma lógica de democracia formal e material, em que a legitimidade conformadora das relações jurídico-administrativas é uma “legitimidade bicéfala” (da Administração e do administrado) na tomada de decisões e na concretização do interesse público.

Esta alteração de paradigma do panorama administrativo dever-se-á certamente ao humanismo hodierno, característico do “pós duas guerras mundiais”, do qual brotou a necessidade da atuação administrativa corresponder às expectativas e anseios do administrado, ao invés da clássica imposição da “vontade administrativa”.

Observamos, hoje, que uma decisão da Administração Pública que surja distanciada em absoluto dos interesses do administrado, “individualmente considerado”, influi decisivamente na forma como o próprio “coletivo” perspectiva essa determinada conduta.

Portanto, a percepção do administrado-indivíduo exerce uma influência direta sobre a percepção da coletividade sobre a governance pública.

A solidariedade entre os membros da comunidade pelos problemas do “outro” faz-se sentir com especial acuidade, sobretudo nas regiões do interior do país mais isoladas do que os centros urbanos localizados no litoral.

A cultura cívica do administrado evoluiu, não se limitando a exercer o seu direito de voto. Na verdade, o “administrado-munícipe” tem maior consciência do seu poder e exige ter maior grau de conhecimento sobre as decisões políticas, exercendo uma significativa pressão social sobre o decisor, funcionando inclusive como “força de bloqueio” à atuação administrativa do poder local.

Verificamos este fato, sobretudo no que se prende com as decisões que envolvem o “fecho” de escolas primárias e de centros de saúde. As contestações sociais mais agudas são aquelas relativamente às más condições nos serviços públicos de saúde ou de abastecimento de águas, assim como, face a problemas no saneamento básico.

Neste contexto, merece destaque a mobilização das comunidades locais pela defesa e promoção do meio ambiente e qualidade de vida, pela reabilitação urbanística, pelo respeito das linhas arquitectônicas dos centros históricos e pela promoção da saúde pública (“direitos difusos”).

O acesso à informação por parte do administrado e a divulgação desta pela Administração Pública constitui o oitavo eixo.

Este despertar cívico da coletividade, mais dinâmica e mais reivindicativa apenas é possível por virtude do crescente nível de conhecimento e divulgação de informação sobre a “vida autárquica”, a qual afeta, de modo direto e imediato, os seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Quanto maior a transparência no acesso à informação e na divulgação desta, por parte dos poderes públicos, mais e melhor serviço público será proporcionado à comunidade.

Este eixo será melhor desenvolvido infra, nos pontos 2.2. e 2.2.1.

O dever de fundamentação é o nono eixo. Vide infra o ponto 2.3.

2.1. Transparência e a Administração Eletrónica

A transparência não surge consagrada no CPA como um princípio geral da atividade administrativa, contrariamente ao que sucede com os princípios da legalidade e da imparcialidade, expressamente consagrados nos arts. 3.º e 9.º, do CPA. Contudo, é exigível a transparência como condição prévia3, para que a legalidade e a imparcialidade sejam plenamente respeitadas pela Administração Pública, dando cumprimento aos preceitos constitucionais norteadores da organização e atividade administrativas (arts. 266, 267 e 268, da CRP).

Não poderão ser cumpridos os valores e os princípios da justiça e da boa-fé (n. 2, art. 266. da CRP articulado com os arts. 8.º e 10.º, do CPA), nem sequer serão observados os princípios da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos e o princípio da boa administração (n. 1, do art. 266., da CRP em conjugação com o arts. 4.º e 5.º, do CPA) se aq transparência não for a bússola da atuação administrativa4.

Encontramos, outrossim, aflorações da “transparência” como exigência, quando é exigida à Administração Pública a colaboração com o administrado, dando-lhe as necessárias informações e esclarecimentos sobre o andamento do seu processo, sendo ainda responsável por essas mesmas informações (art. 11.º, do CPA). Ou, quando determinados processos não lhes digam respeito, existe igualmente o direito de todos os cidadãos a aceder a arquivos e registos administrativos (n.º1, art. 17.º), ressalvados os casos de sigilo impostos por lei (n.º 2, art. 17.º, do CPA).

Por conseguinte, a ideia de conduta administrativa transparente, surge no CPA, a propósito da denominada “administração aberta” enquanto acesso livre a documentos, registros e processos por parte do administrado.

O direito à colaboração e à informação conheceram uma substancial consolidação com a introdução dos meios telemáticos como instrumento na atuação da Administração Pública, graças à desburocratização e ao modo expedito, os quais caracterizam os meios eletrônicos.

A transparência encontra-se reforçada com uma atuação administrativa eletrônica5, com especial impacto no dever de fundamentação das decisões tomadas pela Administração Pública (atos administrativos).

A fundamentação das decisões decorre diretamente da Constituição da República Portuguesa e da lei, tendo por missão, de acordo com Vieira de Andrade, “o alargamento da publicidade administrativa, sobretudo na dimensão informativa e participativa (…), mas ainda numa dimensão de transparência (…)”6.

Trata-se, portanto, de uma relação umbilical e circular, aquela que une a transparência e o dever de fundamentação, com ganhos para a proteção dos direitos e interesses dos particulares e da própria prossecução do interesse público.

Uma decisão que se revista de transparência, por virtude da fundamentação e do uso dos meios telemáticos, ao dispor do conhecimento de toda a comunidade de administrados, vem concretizar a missão de “Boa Administração”, uma vez que a Administração Pública tem de se esforçar verdadeiramente por encontrar a melhor solução na perspetiva do “Bem-estar” da coletividade e tem de se estribar dentro dos limites da legalidade.

O escrutínio público sobre a governança administrativa aumenta significativamente, pois é mais facilitado pelos meios eletrônicos. Por exemplo, a existência de plataformas eletrônicas7 onde são dadas a conhecer informações sobre a abertura, o andamento e o resultado dos concursos públicos de uma dada entidade pública, permite maior sindicância sobre essa atuação pública, sendo eliminados ou, pelo menos, atenuados comportamentos marcados pela opacidade e parcialidade.

Sufragamos, em pleno, a posição preconizada por António Francisco de Sousa, segundo o qual

ao impedir ou dificultar substancialmente atuações parciais, a transparência previne situações de violação do princípio da imparcialidade.

A falta de transparência equivale a um manto que oculta a atuação administrativa e que levanta suspeita de falta imparcialidade. Se não há transparência, não há “aparência de imparcialidade”, mas suspeita de parcialidade8.

Os meios telemáticos consubstanciam uma ferramenta ao serviço da “imparcialidade” e da “boa administração” representando, da perspetiva do administrado, um mecanismo de salvaguarda dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

A “Administração Pública Eletrónica”, na medida em que contribui para uma maior transparência é, por isso, mais garantística: “visa assegurar que a atuação da Administração não ocorre em termos imprevisíveis para os particulares e que estes a possam controlar, acionando os meios de tutela administrativa e contenciosa que se afigurem necessários à defesa das suas posições jurídicas subjetivas, e democrático (legitimação e participação)9.

Pelo exposto, é indubitável o contributo do advento da “Administração Eletrónica” para a transparência administrativa.

2.2 A transparência e a nova “LADA”: breves notas

Consideramos como elemento essencial da nossa reflexão sobre a transparência da Administração Pública, a análise do “Regime de Acesso à Informação Administrativa e Ambiental e Reutilização dos Documentos Administrativos (nova “LADA”).”10 Esta legislação é especial e vem concretizar o princípio geral da atividade administrativa (princípio da administração aberta previsto no art. 17.º, do CPA).

Interessa particularmente fazer menção ao fato de o âmbito de aplicação subjetivo daquele regime legal de acesso a documentos administrativos e o âmbito de entidade adjudicante previsto no CCP, incluir muitas entidades privadas (art. 4º, n.1, al. g), al. i), articulado com o art. 3º, n. 2, do CCP). Tal significa que também estas pessoas coletivas encontram-se vinculadas ao escrutínio público sobre os seus documentos, nos mesmos termos que as entidades públicas, independentemente da sua natureza jurídica ser privada.

Nos termos do art. 3.º, n. 1, da LADA:

É documento administrativo qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo que esteja na posse ou seja detido em nome dos órgãos e entidades referidas no artigo seguinte, seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material, neles se incluindo, designadamente aqueles relativos a:

I. Procedimentos de emissão de atos, regulamentos administrativos;

II. Procedimentos de contratação Pública, incluindo os contratos celebrados;

III. Gestão orçamental e financeira dos órgãos e entidades;

IV. Gestão de recursos humanos, nomeadamente os dos procedimentos de recrutamento, avaliação, exercício do poder disciplinar e quaisquer modificações das respetivas relações jurídicas

No entanto, é curioso observar que não são havidos como “documentos administrativos” os documentos oriundos do “Conselho de Ministros” ou da “Reunião de Secretários de Estado” (art. 3.º, n.º2, al. b)), suscitando-se a questão sobre a transparência ao nível da cúpula hierárquica do próprio Governo, órgão superior da pessoa coletiva pública “Estado”, o qual deveria dar o exemplo.

A razão para excluir da noção de “documento administrativo”, os documentos referentes às reuniões daqueles órgãos colegiais, poderá ser, porventura, a inserção dos mesmos na noção de “segredos de Estado”, mas a verdade é que o legislador não faz essa ressalva, limitando-se a exclui-los.

2.2.1. Intimação judicial para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões

Esta providência cautelar, de carácter urgente, tem-se revelado muito eficaz na demanda pela transparência devido à sua amplitude de abrangência, bem como, à tramitação célere e resolução expedita. A este propósito, Vieira de Andrade salienta que:

(…) é agora expressamente configurado como uma ação principal e um processo urgente, passando a ser, em princípio, o meio adequado para obter a satisfação de todas as pretensões informativas, quer esteja em causa o direito à informação procedimental ou o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos (art. 104.º), incluindo o acesso aos ficheiros públicos de dados pessoais. (…)

Perante um alcance tão vasto, nem sempre se verificará em concreto a tradicional razão de ser da urgência no uso deste meio processual, podendo estar em causa a obtenção de informações em situações perfeitamente normais, não dependentes de prazo - o fundamento desta amplitude abstracta do processo urgente residirá porventura na acentuação do valor da transparência11, no pressuposto de estar em causa uma prestação material meramente informativa, fácil de decidir e que a Administração estará em condições de satisfazer em prazo curto (o que, contudo, nem sempre sucederá)12.

Esta intimação encontra-se prevista nos arts. 104.º a 108.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e possui legitimidade ativa para a requerer, qualquer cidadão a quem “não seja dada integral satisfação a pedidos formulados no exercício do direito à informação procedimental ou do direito de acesso a arquivos e registos administrativos” (n.º1, 104.º, do CPTA).

No que respeita à sua tramitação, deverá requerida no prazo de 20 dias a contar do decurso do prazo legalmente estabelecido para a entidade satisfazer o pedido que lhe foi dirigido, do indeferimento do pedido ou da satisfação parcial do pedido [art. 105.º, n.º2, al. a), al. b) e al. c), do CPTA].

Após a receção do pedido de intimação, a secretaria do tribunal cita a entidade demandada e os contrainteressados para responder no prazo de 10 dias. Após a apresentação da resposta ou do decurso daquele prazo, o juiz profere a decisão no prazo de 5 dias (art. 107.º, n.º 1 e n.º2, do CPTA).

Em caso de provimento da intimação, o juiz concede à entidade administrativa um prazo para o cumprimento da sentença, ou seja, um prazo para facultar as informações e documentos solicitados pelo interessado, sendo que não poderá ultrapassar os 10 dias.

Poderá ainda ser aplicada uma sanção pecuniária compulsória pelo incumprimento, à razão diária de não acatamento, sendo ainda possível este gerar responsabilidade civil, disciplinar e criminal (art. 108.º, n.º1 e n.º2, do CPTA).

2.3. O dever de fundamentação como concretização do valor da transparência

Tal como já referido anteriormente, existe uma relação indissociável entre a fundamentação e a transparência administrativa13.

Na verdade, a existência de fundamentação clara, congruente, objetiva e taxativa consiste, de igual modo, num direito fundamental dos administrados para a defesa dos seus direitos, na medida em que, nas palavras de Osvaldo Gomes, nos “permite determinar o verdadeiro alcance da decisão, através da reconstituição do pensamento do seu autor14.

Na verdade, é a fundamentação do ato administrativo ou, lato sensu, de certa conduta administrativa (v.g. da dispensa de audiência prévia) que possibilita perscrutar a intenção, as verdadeiras motivações do órgão administrativo ao atuar e ao decidir naquele exato sentido e não noutro qualquer, reduzindo-se a possibilidade de arbítrio.

A fundamentação da decisão revela a ponderação da entidade pública, sabendo se esta trilhou o caminho da prossecução do superior interesse público ou não, impelindo-a, desse modo, a cumprir os desideratos da boa administração, da imparcialidade e igualdade.

É perante a fundamentação que poderá ser averiguada a (i)legalidade da conduta administrativa, depreendendo-se deste fato, o caráter essencial desta formalidade para a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos do interessado, desde logo, no momento de impugnar contenciosamente o ato15.

Este Autor refere que “as decisões administrativas, quando devidamente fundamentadas, resultarão para os administrados não como produto da intuição dos seus autores, mas como resultado de “um juízo lógico de ponderação”, facilitando assim as relações entre os sujeitos da relação administrativa16. Por seu turno, de acordo com os ensinamentos de Marcello Caetano, a fundamentação desempenha na decisão administrativa idêntica função que na sentença, sendo imprescindível a revelação dos motivos determinantes e não quaisquer outros motivos da vontade do decisor administrativo. Importam somente as razões de direito e de fato que possuem a aptidão e poder para influenciar a vontade do órgão administrativo decisor, conduzindo-o àquele resultado para o interesse público17.

A fundamentação carece de obedecer a certos requisitos para que seja considerada validamente prestada, desde logo, deverá ser exata ou verdadeira e congruente ou coerente, porquanto as razões invocadas devem surgir como premissas lógicas para a tomada daquela concreta decisão.

A clareza e a objetividade da exposição do acervo dos motivos e das motivações do órgão decisor são essenciais à fundamentação administrativa.

O conteúdo da fundamentação tem de ser objetivamente apreensível ao cidadão “médio”, possuidor de razoáveis conhecimentos e de um “normal” grau de literacia e entendimento. Um teor confuso, lacônico, genérico e obscuro equivalerá, para os devidos efeitos legais, de impugnação graciosa e contenciosa, à falta de fundamentação.

O princípio da fundamentação da decisão aparece, pois, indissociável do princípio da boa administração, porque traz consigo os imperativos da objetividade e da transparência.

A transparência da governance pública é o cerne da “boa administração” e assume-se como a melhor garantia dos administrados, pois funciona numa lógica preventiva e é parte integrante e indissociável da imparcialidade.

2.4. A estreita relação entre transparência e imparcialidade

As garantias de imparcialidade são um imprescindível mecanismo de proteção do particular perante a Administração Pública, no âmbito do procedimento administrativo conducente à emissão de regulamento, à prática de ato ou à celebração de contrato público.

Existem duas grandes tipologias de “garantias de imparcialidade”, previstas no Código do Procedimento Administrativo. Por um lado, os “impedimentos” (art. 69.º, do CPA) que recaem sobre os “titulares de órgãos administrativos, agentes e quaisquer outras entidades independentemente da sua natureza, que se encontrem no exercício de poderes públicos”. Portanto, também os entes privados que atuam ao abrigo de poderes materialmente administrativos, em vez e por conta do Estado se encontram abrangidos por estas exigências de imparcialidade.

O mesmo vale para a “escusa” e a “suspeição” (art. 73.º, do CPA), as quais, tal como os “impedimentos” reconduzem-se, no essencial, a situações de “conflitos de interesses”.

O regime jurídico instituído nos arts. 69.º e 73.º, do CPA assenta na obrigatoriedade de Administração Pública atuar com lealdade e boa-fé com os particulares, consubstanciando um sistema garantístico para estes. A imparcialidade e a separação de interesses familiares e privados por parte de quem decide, permitem uma atuação administrativa objetiva e comprometida exclusivamente com a prossecução do interesse público, forjando a melhor solução para a coletividade.

Quer no âmbito dos “impedimentos”, quer no caso das “escusas” e “suspeições” estão em causa relações familiares que aqueles titulares têm com quem intervém como interessado num procedimento administrativo.

A existência de uma relação familiar inviabilizaria certamente o valor da imparcialidade, erigido a princípio estruturante do modo de ser e da atividade da Administração Pública.

Mas existem outras situações que colocam o “decisor público” na posição em que tem a obrigação de “pedir dispensa” da intervenção no procedimento, em ato ou em contrato da Administração Pública (n.º1, art. 73.º, do CPA).

Caso o impedimento recaia sobre o próprio presidente, a decisão ou declaração no sentido de existência ou inexistência de impedimento e consequente “afastamento” do procedimento, caberá ao órgão colegial, sem a presença do presidente18.

Da perspetiva garantística do particular, é de suma relevância o disposto no n.º 4, do art. 76.º, do CPA por estipular que, nos casos em que não haja sido declarada a “suspeição” ou simplesmente não tenha havido decisão sobre a mesma, ainda assim, possa ser invocada a anulabilidade do ato ou contrato.

O pressuposto legal constante da previsão da norma é o de que resulte do “conjunto das circunstâncias do caso concreto, razoabilidade de dúvida séria sobre a imparcialidade da atuação do órgão, revelada na direção do procedimento, na prática de atos preparatórios relevantes para o sentido da decisão ou na própria tomada da decisão”.

A dificuldade que o particular interessado poderá encontrar será ao nível probatório. A demonstração cabal do pressuposto da “razoabilidade de dúvida séria sobre a imparcialidade da atuação do órgão” poderá ser revestir-se de significativa complexidade.

Ter a perceção da falta de imparcialidade, o sentir que as “regras do jogo” estão manietadas por interesses privados ou por outros interesses “alheios” à ratio essendi do procedimento não equivale a ter prova dessa parcialidade.

A prova da imparcialidade invocada pelo particular encontrar-se-á mais facilitada, nos casos em que a Administração Pública clamorosamente se desvie dos princípios elementares de atuação.

Mas são inúmeras as situações de “zona cinzenta”, de não estrito respeito pela imparcialidade, por deveres de objetividade e de boa administração, perante os quais será diabólica a respectiva produção de prova pelo interessado, com vista à anulação do ato ou contrato. Fica, assim, enfraquecida a posição jurídico-subjetiva do particular…

3. A TRANSPARÊNCIA NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA

A transparência enquanto princípio estruturante da contratação pública encontra-se expressamente consagrada19 no Código dos Contratos Públicos (CCP) por força da influência do Direito da União Europeia.

São determinantes para a celebração de contratos públicos não apenas em Portugal, mas em todos os Estados-membros, os princípios da igualdade e da não discriminação em razão da nacionalidade, porquanto associados às liberdades comunitárias (liberdade de circulação de mercadorias, liberdade de circulação de pessoas, liberdade de prestação de serviços e de estabelecimento), desempenhando, por isso, um papel fulcral para a implementação da livre e leal concorrência no mercado único europeu.

É do nosso entendimento que a obrigatoriedade de transparência manifesta-se de diversas formas, designadamente, através do:

  1. Dever de “anúncio de pré-informação” previsto no art. 34.º, do CCP, inserido no Capítulo II “preparação do procedimento” e pertencente ao Título I “Fase de formação do contrato”;

  2. Dever da entidade adjudicante fundamentar a decisão de contratar (art. 36.º, n.º1, do CCP), assim como, a decisão de escolha do procedimento de formação dos contratos (art. 38.º, do CCP);

  3. Dever de publicitar o anúncio da decisão em contratar, em Diário da República, sítio institucional da entidade, jornais de grande circulação e também no Jornal Oficial da União Europeia nos casos previstos nos arts. 19.º, 20.º e 21.º, do CCP;

  4. Dever de publicitar o anúncio da adjudicação no Jornal Oficial da União Europeia (art. 78.º, do CCP);

  5. No concurso público, o caderno de encargos (arts. 42.º, 130.º e 131.º, do CCP) e demais peças do procedimento (art. 40.º, do CCP) têm de ser formulados de forma clara, precisa e inequívoca, sendo objeto de publicação para que todos os candidatos, concorrentes e adjudicatários, assim como, o cidadão em geral, tenha deles pleno conhecimento;

  6. A celebração de quaisquer contratos na sequência de consulta prévia ou ajuste direto deve ser publicitada, pela entidade adjudicante, no portal dos contratos públicos e esta publicitação é condição de eficácia do respetivo contrato, independentemente da sua redução ou não a escrito (art. 127.º, n.º1 e n.º3, do CCP)

Por outro lado, de acordo com o art. 1.º-A, n.º3 e n.º4, do CCP, a exigência de transparência aparece igualmente densificada principalmente através de dois modos.

Primeiro. Através da remissão para as “garantias de imparcialidade” previstas no CPA (arts. 69.º e seg.) e por via da obrigação de imparcialidade imposta às entidades adjudicantes, nestes termos:

Sem prejuízo da aplicação das garantias de imparcialidade previstas no Código do Procedimento Administrativo, as entidades adjudicantes devem adotar as medidas adequadas para impedir, identificar e resolver eficazmente os conflitos de interesses que surjam na condução dos procedimentos de formação de contratos públicos, de modo a evitar qualquer distorção da concorrência e garantir a igualdade de tratamento dos operadores económicos (n.º3, do art. 1.º - A, do CCP).

Segundo. Pela construção do conceito de “conflito de interesse”:

(…) qualquer situação em que o dirigente ou o trabalhador de uma entidade adjudicante ou de um prestador de serviços que age em nome da entidade adjudicante, que participe na preparação e na condução do procedimento de formação de contrato público ou que possa influenciar os resultados do mesmo, tem direta ou indiretamente um interesse financeiro, económico ou outro interesse pessoal suscetível de comprometer a sua imparcialidade e independência no contexto do referido procedimento (n.º4, do art. 1.º-A, do CCP).

Em matéria de contratação pública, reveste-se de suma relevância o princípio da transparência, enquanto condição imprescindível à vinculação das entidades públicas e dos próprios decisores políticos à tomada da melhor opção para o interesse público, numa dupla vertente.

Numa primeira vertente, o princípio da transparência aparece como condição para os valores de objetividade e de imparcialidade. Deverá ser a prossecução do interesse público a força-motriz da atuação pública. É a satisfação das necessidades coletivas, o fundamento para a decisão em contratar. Por conseguinte, uma atuação pública que vise a prossecução de interesses privados constitui uma ilegalidade (na modalidade mais grave, a nulidade) e porventura crime (v.g. corrupção e fraude).

Numa segunda vertente, enquanto corolário lógico da própria “eficiência” como a bússola orientadora de toda a atuação das entidades públicas. Para tanto, há que impor o respeito pela contenção orçamental, atendendo ao nível de oneração para o contribuinte (restrição das despesas públicas) e atento o alcance dos princípios de responsabilidade e de solidariedade, intergeracionais.

As entidades públicas deverão ter por foco principal o bem-estar económico-financeiro do contribuinte presente e futuro, devendo ter a preocupação de o onerar o menos possível com a decisão de contratar.

A decisão de celebrar determinado contrato público, os seus termos e objetivos, assim como a respectiva tramitação, terão de ser devidamente publicitados na página oficial da entidade pública, de modo a possibilitar o acesso dessas informações aos cidadãos, aos candidatos e aos concorrentes (“interessados”), designdamente para efeitos “impugnatórios”.

O dever de fundamentação de todas decisões das entidades adjudicantes, inclusive aquela em torno da escolha do parceiro privado que irá levar por diante a execução contratual é um aspecto essencial à transparência e à imparcialidade da governança pública.

A opacidade contribui para o surgimento de irregularidades e de ilegalidades, em detrimento da prossecução da melhor opção para o interesse público.

Os princípios da imparcialidade, da transparência e da publicidade funcionam, pois, como mecanismos de salvaguarda dos interesses de todos aqueles que com as entidades públicas se relacionam:

associada à publicidade está a “obrigação” de transparência, que as entidades adjudicantes devem respeitar e que, sublinhe-se, constitui uma garantia preventiva e uma condição indispensável para o exercício dos direitos de defesa dos operadores económicos interessados na celebração de um contrato20.

Por imperativo do princípio da legalidade administrativa, tem de ser assegurada a publicidade21 de toda a tramitação conducente à decisão de contratar com privados e com outras entidades públicas.

A falta de transparência serve de fundamento à obrigação de ressarcir o privado, porquanto consubstancia-se numa prática ilícita, não consentânea com a legalidade. Ora, a prática de atos ilegais ou à omissão ilegal por parte da entidade adjudicante no momento da formação do contrato ou no momento da própria celebração deste, desencadeia os institutos da responsabilidade pré-contratual ou responsabilidade contratual, respectivamente.

O particular lesado em questão pode ser um mero candidato ou concorrente, cujos direitos e interesses legalmente protegidos são violados por virtude do cometimento de ilegalidades pela entidade adjudicante.

4. O CONTROLO EXTERNO DO TRIBUNAL DE CONTAS

A intervenção do Tribunal de Contas representa uma exigência característica do Estado de Direito Democrático, dando uma resposta cabal aos contribuintes relativamente a matérias como a transparência e a responsabilização pública dos fundos públicos22.

Compete ao Tribunal de Contas, tendo como mote principal o preceito constitucional ínsito no art. 216º, o desempenho das seguintes funções: a) função consultiva dotada de um caráter técnico e político, na medida em que tem de se pronunciar, mediante parecer, acerca da Conta Geral do Estado; b) função de fiscalização preventiva, porquanto tem o direito-dever de se pronunciar sobre a legalidade administrativa, assim como, sobre a correção e adequação financeira das despesas públicas que o Estado pretende realizar; c) função jurisdicional, na medida em que elabora verdadeiros “julgamentos” sobre as contas públicas, no fim de cada ano23, pelo que podemos concluir que a atuação do Tribunal de Contas revela, pela sua própria natureza, uma imensa complexidade.

Na sua missão de guardião das contas públicas, o Tribunal de Contas exerce fiscalização sobre toda a miríade infindável de entidades públicas, sejam elas pertencentes ao poder central (administração direta), ao poder local ou autárquico ou, ainda, sobre o poder regional (administração autónoma). Também os institutos públicos, as empresas públicas municipais, entidades públicas empresariais e outras pertencentes ao setor público empresarial, se encontram sob o escrutínio do Tribunal de Contas24.

Portugal encontra-se vinculado a um sistema de controlo financeiro, entendido numa dupla vertente: (a) controlo interno, respeitante às ações de fiscalização realizadas por organismos e entidades inseridos, orgânica e funcionalmente na estrutura do próprio Estado; (b) controlo externo, graças à intervenção de instâncias independentes em três aspectos fundamentais, ou seja, a um nível político, jurisdicional e técnico, com vista ao respeito pelos critérios de boa gestão financeira dos recursos públicos.

A fiscalização, quer legal, quer financeira realizada por este órgão de controlo tem de abranger todo o “arco contratual”, antecedente e contemporâneo do próprio momento da celebração do contrato25.

No decurso do apuramento da ocorrência de infrações financeiras e respectiva responsabilização a ser imputada ao Estado ou ente público contratante, estes vão ser obrigados a “demonstrar o porquê da má previsão”, assim como, o “porquê da má execução”, a qual se afastou significativamente do que foi inicialmente previsto, sendo o Ministério Público chamado a realizar as devidas diligências complementares, após a elaboração dos relatórios de auditoria do Tribunal de Contas.

Outro fator prévio a ter em especial consideração é determinar se estes esquemas de financiamento se encontram juridicamente legitimados ou previstos no Orçamento de Estado26.

Para melhor desempenhar a sua missão de fiscalização, o Tribunal de Contas deverá exercitar uma atuação de controlo rigoroso ao longo de toda a parceria, mormente sobre as etapas do ciclo de vida daquela, como nomeadamente, o planeamento (decisões, estudos e avaliações), a contratação (avaliação e adjudicação), o acompanhamento ou a execução física e financeira do contrato.

Este Tribunal intervém igualmente no regime jurídico e financeiro vigente mediante as suas recomendações, contribuindo para criar soluções que o tornam mais operacional, ágil, economicamente mais vantajoso e transparente.

Existem várias modalidades de fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas, designadamente a fiscalização prévia, sucessiva e concomitante.

No que se refere à fiscalização prévia, esta terá lugar se se verificarem cumulativamente os seguintes pressupostos: (a) existência de despesa ou de encargo para o parceiro público, não preenchendo este requisito a concessão no âmbito da qual a remuneração do concessionário resulte somente dos preços que os utentes pagam pelos serviços que ele presta ou bens que providencia; (b) que o tipo contratual se encontre contemplado na Lei do Tribunal de Contas, sobretudo contratos de obras públicas e de aquisição de bens e de serviços. Dever-se-á, no entanto, incluir as “empreitadas” e as “concessões de obras públicas”, conquanto que se encontre preenchido o primeiro requisito.

A fiscalização sucessiva (ou controlo sucessivo) recai sobre a gestão financeira que a execução do contrato público envolve.

Perante projetos e contratos de longa duração, deverá exercer o adequado controlo financeiro, numa lógica prospectiva, vocacionada para o futuro, analisando as possíveis implicações financeiras para o Estado e para o contribuinte.

Por seu turno, a fiscalização concomitante consubstancia-se num mecanismo de controlo exercido desde o momento inicial ou embrionário do “projeto de parceria público-privada” até ao seu termo. O TC possui competência para a “qualquer momento” proceder a auditorias de qualquer espécie ou natureza a certos atos, procedimentos ou aspectos de gestão financeira.

A Constituição da República Portuguesa impõe ao poder político a respectiva responsabilidade, pelo exercício das suas funções, por ações ou omissões cometidas (arts. 22.º, 117.º, 271.º). Estes são preceitos que têm por missão responsabilizar o Estado e demais entidades públicas, assim como, os titulares dos órgãos e agentes da Administração Pública (“A CRP incumbiu, por isso, o Tribunal de Contas, enquanto órgão judicial especializado, das funções de superintender os diferentes órgãos de controlo públicos, de superiormente controlar através de iniciativas por si decididas a gestão e uso dos dinheiros públicos e, finalmente, de, com exclusividade, efetivar a responsabilidade financeira”27).

A todos os intervenientes deverá ser assacada a devida responsabilidade “na exacta medida do estatuto que detêm, das funções que lhes estão cometidas e dos atos que, relacionados com elas, voluntariamente praticam ou se abstêm de praticar”28.

Nesta senda, têm de ser criados mecanismos de accountability a diversos níveis: disciplinar, administrativa, financeira, penal, contra-ordenacional, civil e, evidentemente, política, aplicáveis independentemente da natureza da entidade em causa, quem gerir ou recorrer aos dinheiros públicos, assim como, quem autorizar ou pagar sejam quais forem os compromissos em causa, por conta do erário público, pode ser objeto de responsabilidade financeira, respondendo perante o Tribunal de Contas29.

As principais consequências para os responsáveis de gasto abusivo de dinheiros públicos, com forte pendor pedagógico e de “prevenção geral”, por virtude do cometimento de infrações financeiras são as seguintes: a) multas, as quais podem ser aplicadas pelos juízes em processo, tornando mais céleres as decisões; b) enquanto sanção máxima, poderá ser aplicada ao infractor a obrigação de repor o dinheiro desperdiçado, às suas próprias custas, ou seja, do seu próprio bolso30.

No âmbito da contratação pública, as entidades públicas terão de fazer bom uso dos dinheiros públicos31, submetendo-se ao escrutínio público, sob pena de responsabilização política, financeira e, nos casos mais graves, criminal.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por um lado, o imperativo da imparcialidade e, por outro lado, a obrigatoriedade da objetividade da atuação administrativa constituem dois eixos da governança pública conforme o Estado de Direito Democrático. Ambos são alcançados por virtude da transparência, a qual equivale a “perceptibilidade” e “visibilidade”. Estes valores e princípios articulados harmoniosamente, entre si, contribuem para uma sociedade mais salutar, com maior confiança do administrado na “sua” Administração Pública e nos seus governantes.

É do nosso entendimento, que as exigências em torno da transparência deveriam ser implementadas em todos os patamares e níveis de ação da Administração Pública: a) sujeitos administrativos; b) organização administrativa; c) atividade administrativa (regulamentos, atos administrativos e contratos). Apenas deste modo, a legítima confiança do cidadão-administrado na isenção e imparcialidade administrativas seria adequadamente alicerçada (art. 9.º, do CPA).

Nesta senda, Carlos Pimenta, economista, para quem a “transparência é a irmã gémea da racionalidade”, a melhor forma de a perspectivar é sob as seguintes vertentes: política, administrativa, fiscal e informática. Por sua vez, Ana Flávia Messa acrescenta ainda a vertente da verdade técnica32 da atuação administrativa.

Esta transparência sob a veste de verdade técnica seria alcançada por meio de procedimentos, atos e mecanismos constantemente em renovação e atualização, pautada por uma lógica de democratização, inclusão e participação do administrado. Motivo pelo qual, deveríamos proceder à combinação e, quiçá à fusão, entre o axioma da transparência e o princípio da boa administração.

Para este Ilustre economista, transparência implica informação. Ora, existem aspectos mínimos à plena informação essencial para a efetivação dos mecanismos de “accountability”: a) algo disponível para ser observado; b) método para a observação; c) observador33.

Acresce que a “transparência” não é e nem deverá ser conotada com a “política antifraude”.

Não é aceitável esta confusão de termos, pois o campo de utilidade do valor da transparência é o da prevenção da fraude, independentemente da existência de qualquer política dependente a “humores” e a “susceptibilidades em voga de um determinado panorama político” (expressões nossas).

Carlos Pimenta aconselha ainda à revisão concetual de muitos termos utilizados de forma a possibilitar a compreensão e um maior envolvimento da sociedade civil, mais esclarecida.

Em jeito de conclusão, nada há mais de sagrado que a confiança depositada pelo cidadão no Estado, resultante do “pacto social” firmado no momento do voto. Portanto, os poderes públicos têm o dever máximo de fazer uma boa utilização do dinheiro do contribuinte, o qual, muitas vezes, com significativo sacrifício pessoal, paga os seus impostos.

Importa o sentido de ética. As leis mudam e sujeitam-se aos ventos de mudança política, às voláteis circunstâncias e mutações sociais e culturais, próprios de qualquer sociedade.

O sentido de ética, essa, é imutável e deverá ser o farol axiológico conformador da conduta e do exercício dos poderes públicos.

O consenso (“contrato social”) entre o poder público e o cidadão apenas poderá subsistir se este sentir “ética” por parte daquele. Quanto maior a ética da atuação pública, maior o nível de adesão do cidadão às decisões e medidas políticas, legislativas e administrativas adotadas.

Existe, deste modo, uma clara conexão entre a ética alcançada pela introdução de transparência na governance pública e a paz social granjeada pela aceitação da mesma por parte do cidadão.

Por esta ordem de razões, consideramos que através de uma cultura de transparência e de gestão pública participativa será possível alcançar o “Bem comum”, de modo mais eficiente e célere.

O setor público somente logrará desenvolver a “boa administração” se forem introduzidos meios e mecanismos mais transparentes de decidir, de atuar e de comunicar com o administrado.

Por conseguinte, defendemos que a transparência é um princípio que deveria ser consagrado no Código do Procedimento Administrativo porquanto:

  1. É um precioso instrumento garantístico de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do administrado;

  2. É meio de concretização do interesse público em si mesmo considerado;

  3. É fator legitimador do decisor público;

  4. É fator legitimador da atuação pública, sendo pressuposto de validade e de legalidade da mesma;

  5. É condição indispensável de concretização da própria Constituição da República Portuguesa (princípio do Estado de Direito Democrático previsto no art. 2.º).

Em suma, a Administração Pública deverá ser, em termos de transparência, uma “casa de vidro34, mas infelizmente ainda está longe de o ser…

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Recebido: 22 de Julho de 2019; Aceito: 14 de Janeiro de 2020

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