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Convergências - Revista de Investigação e Ensino das Artes

versão impressa ISSN 2184-0180versão On-line ISSN 1646-9054

Revista Convergências vol.14 no.27 Castelo Branco maio 2021  Epub 31-Maio-2021

https://doi.org/10.53681/c1514225187514391s.27.74 

Review Papers

O Vermischter Geschmack na obra de Telemann

The Vermischter Geschmack in Telemann

Débora Bessa Severiano1 
http://orcid.org/0000-0002-3121-9510

1 Associação de Educação Física e Desportiva de Torres Vedras, Escola de Música Luís António Maldonado Rodrigues, Escola de Música da Sociedade Filarmónica Ermegeirense, Torres Vedras, Portugal


Resumo

No final do século XVII e início do século XVIII encontramos o desenvolvimento particular de um estilo germânico a que se chamou o Vermischte Geschmack, que traduziremos como Gosto Misto Germânico. Neste artigo procuramos identificar brevemente as origens desta tendência estética germânica e caracterizar o conceito destacando as suas maiores influências - germânica contrapontística, francesa e italiana. Para tal, apresenta-se igualmente um excerto de uma obra do compositor que reúne, no nosso entender, estas várias influências numa escrita ao gosto misto germânico - Georg Philipp Telemann. Como metodologia utilizou-se a pesquisa bibliográfica e documental bem como a análise musical descritiva de exemplos da época a que se alude.

Palavras-chave: Telemann; Vermischter Geschmack; Gosto misto germânico; Barroco tardio

Abstract

In the late 17th and beginning of the 18th century found the development of a particular german style which has been called Vermischter Geschmack. In this article we try to briefly identify the origins of this german aesthetic and characterize the concept highlighting its predominant influences - french and italian music, and german counterpoint. To further illustrate this proposal, we present an extract from a piece from the composer whose work, in our understanding, gather all this influences in a true german mixed taste - Georg Philipp Telemann. Our methodology consisted in bibliographical and documental research as well as the descriptive musical analysis of examples of the late baroque.

Keywords: Telemann; Vermischter Geschmack; German mixed taste; Late baroque

1. Enquadramento histórico do Vermischter Geschmack

Na transição do século XVII para o século XVIII, a que se chama comumente o barroco tardio (Buelow, 1993), assistimos a um período da história da música germânica repleto de mudanças, misturas, de velhos costumes renovados, de importações de estilos nacionais e de outras formas musicais europeias (Buelow, 1993; 2004; Schulenberg, 2008; Zohn, 2008).

As carreiras dos músicos estavam diretamente ligadas aos grandes centros europeus, e se até então os músicos/compositores e os estilos musicais tinham como origem o norte da Europa e depois migravam para o sul, agora essa tendência fora contrariada. Durante os séculos XVII e XVIII os artistas italianos e franceses levaram o seu estilo ao norte da Alemanha, e ao resto da Europa (Schulenberg, 2008).

Num memorando de 1730, Johann Sebastian Bach descreve a vida musical germânica da época referindo que achava estranho que se esperasse automaticamente que os músicos germânicos fossem capazes de tocar todos os tipos de música, nomeadamente os vindos de Itália, França, Inglaterra ou Polónia (Johann Christoph Gottschell e Kraemer como citado em Zohn, 2008).

A influência italiana dominava a música de grupo; esta era produzida em grandes quantidades, alguma para a corte, e outra para a classe média emergente nas cidades, escolas de música e sociedades musicais (Kmetz et al., 2001). A influência francesa manifestava-se sobretudo nas suites ou overtures¸ compostas por danças, e na música para teclado. As cortes adotaram o estilo de ópera séria italiana na primeira metade do novo século, a música instrumental brilhou com os modelos italianos para o concerto, sinfonia e sonata revelando cada vez mais a sua independência estilística; e em geral assistiu-se ao início de um movimento de emancipação a partir de cerca de 1720 em que não se recebia apenas a influência das potências francesa e italiana, e do rigoroso contraponto germânico do barroco anterior, mas se produzia pela primeira vez algo germânico original e distinto (Schulenberg, 2008).

Esta investigação e análise documental descritiva tem como objetivo investigar quais as origens e características do Vermischter Geschmack tomando como exemplo a descrição da obra do compositor Georg Philipp Telemann (1681-1767), apresentando-se uma breve análise de um excerto do Concerto em Dó Maior, TWV 51:C1, para flauta de bisel e orquestra.

2. Vermischter Geschmack

Nas primeiras décadas do século XVIII, a mistura de estilos - Vermischter Geschmack - foi altamente cultivada e começou a ser encorajada em tratados e documentos teóricos. Zohn (2008) reporta que Johann Mattheson, Ernst Gottlieb Baron, e Johann David Heinichen, entre outros, observaram que a tendência germânica era para combinar os estilos francês e italiano aproveitando a seriedade de um e o estilo divertido de outro, juntando e aproveitando o contraste da sua variedade (Zohn, 2008).

Nos anos que se seguiram, Telemann tornou-se no representante máximo do Vermischter Geschmack, doravante traduzido por gosto misto germânico, sendo capaz de assimilar os estilos de música nacionais sem comprometer a sua individualidade enquanto compositor (Johann Adolph Scheibe como citado em Zohn, 2008; Paoliello, 2017).

Apesar de nem sempre ter sido dessa opinião, Scheibe reporta que “[a composição] é melhor se a diligente escrita germânica, a cortesia italiana e a paixão francesa forem combinadas” em trios e quartetos (Scheibe como citado em Zohn, 2008, p. 4).

Joachim J. Quantz, no início da década de 1750, designou a utilização eclética dos vários

estilos nacionais como “gosto germânico”:

Se tivermos o discernimento necessário para escolher o melhor dos estilos de diferentes países, o gosto misto, sem pisar os limites da modéstia, pode ser chamado gosto germânico, não só porque foram os germânicos quem primeiro a ele chegaram, mas porque já foi estabelecido em diferentes partes da Alemanha há muitos anos, ainda floresce, e não desapraz nem Itália nem França, nem outras terras (Quantz, 2001, p.332)[1].

Segundo Quantz, no passado, a música germânica estava mais centrada na harmonia - num estilo estrito e fugal - do que na melodia, sendo mais direcionada para o seu uso em meios sacros. Só com a integração de modelos estrangeiros e a mistura de elementos franceses e italianos com os dos seus próprios compositores é que a música germânica começou a ser estimada (Quantz, 2001/1752). Quantz contrapõe o estilo estrito praticado pelos compositores do século XVII aos do novo século e seus contemporâneos de forma crítica, valorizando a procura dos últimos por uma escrita mais livre ou galante e defendendo a consideração pelo uso da melodia numa música tradicionalmente mais contrapontística (Paoliello, 2011).

Steven Zohn (2008) refere que também Bach alude aos estilos nacionais já supramencionados: o italiano, francês, inglês e polaco - e cita o elogio do próprio Telemann ao conde Friedrich Carl von Erbach, músico amador seu conhecido de longa data, na dedicatória da sua publicação Zweytes sieben mal sieben und ein Menuet, onde reflete sobre a sua prática: “[…] combina a vivacidade, melodia e harmonia francesas; a cortesia, invenção e estranhas passagens italianas; e o jocoso britânico e polaco numa mistura cheia de doçura”[2] (Telemann como citado em Zohn, 2008, p.5).

2.1. Estilo Galant (desambiguação)

Galant era um termo francês utilizado no século XVIII para descrever uma outra estética que se manifestava na poesia, na música, e até na comida e nos costumes de etiqueta que estavam na moda. Muitos historiadores adotaram essa expressão - estilo galante - para descrever a música da janela temporal do pós-barroco e pré-classicismo, nomeadamente as décadas que antecederam 1750. Uma peça de música galant não continha o restrito contraponto e harmonias e modelações cromáticas, que cada vez mais representavam o estilo antigo. Estas empregavam antes texturas homofónicas simples, com harmonias diatónicas e melodias agradáveis para cantar (Michaels, 2007). Assim sendo, a maioria das mais recentes árias de ópera italianas e danças francesas já eram galant. As sonatas solo e concertos sem fugas também seguiam essa linha. Atualmente, o termo é sobretudo utilizado para classificar obras do meio do século cuja textura, harmonia, e melodia representam uma simplificação das do barroco. Com recurso a baixos percussivos, com linhas reduzidas e simplificadas; as harmonias rítmicas e figurações harmónicas com funções rítmicas; a texturas simples com apenas uma linha melódica; mudanças harmónicas simples (uma ou duas dentro do compasso e basicamente entre tónica e dominante na peça), o objetivo era chegar a uma elegância sucinta, direta e simples (Schulenberg, 2008).

Cerca da década de 1720 em diante, é costume identificar características galantes no desenvolvimento do gosto misto germânico (Michaels, 2007). Estas eram mais salientes nas canções e peças galantes para teclado de entretenimento privado dos círculos sociais da classe média. A música de câmara para concertos privados ou públicos direcionada a profissionais ou amadores imitou ou combinou os modelos italiano e francês, tal como na Musique de table (1733) de Telemann. A overture-suite francesa e o concerto italiano eram estritamente separados ou por vezes combinados em formas mistas. A trio-sonata e o quarteto, formas tradicionalmente intelectuais, mantiveram-se a representação do verdadeiro contraponto (Quantz citado em Kmetz et al., 2001) mesmo quando a sua linguagem era pontilhada de elementos galantes. A música sacra e a música para órgão também aderiram à tradição barroca, mas tornaram-se cada vez menos importantes nas zonas protestantes na segunda metade do séc. XVIII. Na Alemanha[3] protestante, a música utilizada nas celebrações religiosas percorreu o seu caminho até chegar a um estilo rococó com a estética Empfindsamkeit (sensibilidade). Temos exemplos dessa estética nas Oratórias mais tardias de Telemann e C.P.E. Bach (Kmetz et al., 2001; Michaels, 2007).

Com o aproximar do meio do século, a divisão entre as influências francesa e italiana começou a ser cada vez menos visível e abandonaram-se formas de composição mais complexas, como a de Bach, que, segundo uma critica de Scheibe de 1737 (Scheibe como citado em Wolff, 1999, pp. 337-338) era demasiado “escura” e “pouco natural”. Contudo a tradição do estilo antigo do contraponto não se perdeu totalmente, continuava a ser utilizado na música sacra em Itália e Áustria, Haydn e Mozart ainda fazem uso dele nas suas Missas e outras obras corais, e muitos estudaram as peças de Bach na Alemanha, continuando a aplicar os métodos do mestre na escrita para teclado (Schulenberg, 2008).

3. O Vermischter Geschmack na obra instrumental de Telemann

A primeira metade do século XVIII assistiu a um movimento de mudança que afetou formas e estilos musicais e foi central no desenvolvimento da enorme produção musical de Telemann (Buelow, 2004).

Apesar de ter estudado os grandes compositores germânicos e europeus e ele próprio admitir que os tomou como modelos nos primeiros anos da sua carreira (Zohn, 2008), depressa deixou esses cânones e se colocou numa posição que não era de imitação dos antigos barrocos, mas que também ainda não se categoriza no alto classicismo da segunda metade do século. Vários críticos consideram a música de Telemann como galante ou rococó, ou situam-na até no classicismo inicial, mas essas definições são diminutas quando se referem à vasta carreira de cerca de sessenta anos do compositor e simplificam em demasia a sua complexa individualidade estilística e formal (Buelow, 2004).

Embora tenha nascido e estudado inicialmente no barroco, a sua obra instrumental e vocal incorpora mudanças significativas nos estilos musicais que se verificaram em toda a Europa, e a sua música rapidamente refletiu o impacto da chegada do iluminismo que tantas vezes influenciou os gostos musicais dos públicos, especialmente em Hamburgo, onde trabalhou e viveu durante quarenta anos (Buelow, 1993; 2004).

Quando estudava no Andreanum Gymnasium em Hildesheim (1697-1701) frequentou muitas vezes as feiras, celebrações públicas especiais, e as cortes de Hanover e Brunswick-Wolfenbüttel onde contactou com os estilos francês, italiano e “teatral” (operático), e se familiarizou com vários instrumentos. Aqui tomou as obras de Steffani, Rosenmüller, Corelli, e Caldara como exemplos para a sua futura música sacra e composições instrumentais (Telemann, 1718).

Telemann esteve em contacto com várias cortes de influência claramente francesa como Hanover (no período de Hildesheim entre 1697 e 1701), Dresden e Berlim (no período de Leipzig entre 1701 e 1708), Sorau (no mesmo período), e Eisenach (entre 1708 e 1712). Estas foram particularmente importantes no desenvolvimento do gosto francês, dando-lhe a conhecer o estilo mesmo anos antes da sua viagem a Paris (Telemann como citado em Paoliello, 2017).

Talvez uma das formas onde mais se observam o desenvolvimento do estilo e as influências na música instrumental dos grandes polos francês e italiano, mas também de outras partes da europa, seja a Overture (Schulenberg, 2008). Para Scheibe, esta forma era o epitomo da música francesa na qual Telemann era considerado uma autoridade devido à forma como não só imitava, mas transformava o género (Scheibe como citado em Paoliello, 2017).

Telemann produziu um vasto número de overture-suites, reportório rico no uso do estilo misto germânico, e esteve no centro do seu desenvolvimento tendo observado, desde as últimas décadas do século XVII, o seu distanciamento do arquétipo de Lully (Zohn, 2008). Durante toda a sua carreira, Telemann cultivou este interesse no estilo francês como podemos observar em várias das suas composições (suites, sonatas, concertos, cantatas, óperas), e chegou mesmo a visitar Paris entre 1737 e 1738 (Zohn, 2008).

Em Sorau, atual Polónia, teve a oportunidade única de estudar a música folclórica polaca em primeira mão. O entusiasmo de Telemann pela música folclore polaca terá tido, provavelmente, a sua maior expressão no quarto andamento do concerto em mi menor para traverso e flauta de bisel com a sua evocação da dança polaca e imitação das gaitas de foles (Swack, 1993).

Durante as primeiras duas décadas do século XVIII, a overture-suite foi sendo gradualmente convertida de uma coleção de breves movimentos teatrais (não necessariamente compostas para uma adaptação em palco) numa peça de concerto de maiores dimensões e estilo particular. A prática de escrita bipartida encontrada nas obras de Lully e dos lullistas germânicos, deu lugar à organização típica do lento-rápido-lento, onde a segunda secção se tornou mais rigorosa do ponto de vista contrapontístico, muitas vezes resultando numa fuga. Foi empregue mais frequentemente o uso de instrumentos concertantes, incluindo não só os já habituais trios de oboés ou trios franceses de dois oboés e fagote, mas também flautas de bisel, flautas travessas, trompas e trompetes. O “verdadeiro estilo francês”, como Telemann mais tarde lhe chamou, foi sendo ainda mais dissolvido no gosto misto com misturas inglesas, italianas, polacas e de outros estilos nacionais, especialmente através do uso de formas ritornello e da substituição das airs francesas por árias lentas à italiana (Zohn, 2008).

Além de toda a sua atividade musical, Telemann participou também ativamente no negócio da publicação musical. Publicou quarenta e três coleções impressas por sim mesmo, entre 1725 e 1740, incluindo um ciclo de setenta e duas cantatas sacras, o quinzenal Der getreue Music-Meister, a coleção em três partes Musique de Table em 1733, e os Nouveaux Quatuors (estes publicados em Paris em 1738) que contou com subscritores germânicos e estrangeiros (Sadie, 1998). Para teclas soma uma coleção de vinte fugas curtas; Fugues légères et petits jeux à Clavessin seul, entre 1738-39; Fantaisies pour le Clavessin: 3 Douzaines (1733); VI Ouverturen nebst zween Folgesätzen bey jedweder, französisch, polnisch, oder sonst tändelnd, und Welsch, fürs Clavier verfertiget (1739-49); entre outras (Petzoldt, 1974).

A publicação Tafelmusik, ou Musique de table, de 1733, foi umas das suas coleções mais ambiciosas, e mais vendidas, contando com quase cento e oitenta pré-vendas (Kraemer, 2016). Estas tinham como objetivo serem interpretadas enquanto música de fundo para banquetes, festas, e outros eventos domésticos, portanto tinha que agradar a um grande e diverso número de pessoas. Como é típico na música de Telemann, a flexibilidade de tonalidade é chave, e muitas peças da coleção podem ser tocadas por um variado número de instrumentos. Telemann tinha sensibilidade para perceber o potencial expressivo que se podia explorar. O seu objetivo era dar a cada instrumento o que se lhe adaptava melhor, desde que o músico ficasse contente e o público bem entretido. Mantendo o tema da variedade, comum em toda a sua carreira, cada volume da publicação consiste numa suite-overture¸ um quarteto, um concerto, uma trio-sonata, uma sonata a solo, e uma conclusão para todo o ensemble (Kraemer, 2016).

Uma outra obra que demonstra a influencia italiana em Telemann, publicada pela primeira vez em 1715, foram as Six sonates à violon seul, onde o compositor vai buscar muita inspiração aos solos de Corelli (Op.5), e também às modernas sonatas venezianas de Vivaldi e Albinoni (Swack, 1994).

A mistura de estilos nacionais é clara na última publicação de solos de Telemann em Frankfurt, as Sei suonatine, de 1718. Foi neste mesmo ano que Telemann empregou pela primeira vez o termo gemischter Goût, gosto misto, em elogio da prática musical do músico amador Henrich Bartels, banqueiro e um dos maiores patronos do collegium musicum. A maioria dos andamentos nas Sei suonatine pertence aos tipos de andamentos tradicionais da sonata da chiesa de Corelli, mas Telemann utiliza as suas referências operáticas ao incluir andamentos que imitam o recitativo. Também inclui danças francesas sem título tais como a gavotte, bourrée e minueto, e uma polonesa que representa o uso do estilo polaco na sonata. Mesmo antes do período de Hamburgo onde se desenvolverá ao máximo, já se encontra nestas obras o cerne do gosto misto germânico (Swack, 1994).

Durante uma carreira incrível de mais de setenta anos, Telemann publicou setenta e cinco sonatas e suites a solo, e ainda deixou algumas por publicar em manuscrito. Estas obras aparentam ter sido compostas ao longo de trinta anos, entre cerca de 1710 e 1740, correspondendo aos anos do compositor em Eisenach (ca. 1708-1712), Frankfurt (1712-1721) e o início da sua estadia em Hamburgo (1721-1761). Não se encontram sonatas deste tipo do seu período de estudante em Leipzig (1701-1704) onde se dedicou mais à música sacra e teatral, ou do seu tempo na corte de Sorau enquanto compositor do Conde Erdmann von Promnitz onde compôs mais overtures francesas seguindo o gosto do conde (Swack, 1994).

As sonatas dos Douze solos são especialmente significativas pelas suas combinações dos estilos nacionais no gemischter Goût¸ gosto misto germânico. A publicação demonstra que Telemann na década de 1730 tinha uma tendência para construir grandes coleções enciclopédicas contendo uma grande variedade de tipos de andamentos: os que se baseavam em modelos vocais e andamentos do estilo concertante com a utilização de ritornelos aparecem ao lado de andamentos de sonata mais tradicionais ao estilo italiano ou de andamentos emprestados da suite ou overture francesas (Swack, 1994).

Os Essercizii musici, publicados em Hamburgo, na década de 1730 ou início de 40, são a última publicação de Telemann, e representam o standard da sonata germânica nessa década. Apesar de nesta publicação Telemann não nos fornecer nenhum prólogo ou página de dedicatória, como noutras obras, com explicações sobre a obra e indicações sobre o seu propósito, podemos juntá-la à lista de publicações pedagógicas do autor. Sempre com o objetivo pedagógico, o compositor abastece os seus subscritores de peças que incorporam os estilos nacionais e géneros de peças mais importantes da altura. Tal como outras suas obras, esta é direcionada aos membros de famílias aristocráticas, estudantes e músicos amadores (Volcansek, 2001).

3.1. Andante, quarto andamento do Concerto em Dó Maior, TWV 51:C1

Entre os concertos a solo para sopros escritos em Frankfurt e Hamburgo, entre 1716 e 1725, contam-se dois para flauta de bisel (51:C1 e 51:F1) e sete para flauta. O Concerto em Dó Maior, TWV 51:C1, é um concerto ao estilo italiano para flauta de bisel solo e orquestra e sobrevive num manuscrito em Darmstadt.

Os seus andamentos seguem a estrutura: rápido, rápido, lento, rápido (Allegretto, Allegro, Andante, Tempo di minuetto). O seu Andante em lá menor é reminiscente da Air à l’italien da suite do compositor com a mesma tonalidade. A ornamentação escrita inclui sincopas e alguns cromatismos inesperados. O final binário, a tempo de minuetto, pode ser visto como uma polacca, com vários ritmos pouco usuais e frenéticos, apaixonada, e notas repetidas alla música tradicional polaca que Telemann ouviu nos primeiros anos do século (Lasocki & Rowland-Jones, 1995).

O quarto andamento, intitulado Tempo di minueto, é um exemplo da inclusão de andamentos ao estilo francês e paixão polaca num concerto de influência estrutural maioritariamente italiana.

Tempo di minuetto é uma indicação de tempo muito utilizada como título de andamento no século XVIII, e engloba as mesmas características de um andamento do tipo minueto. Este é um andamento/dança que normalmente se encontra na conclusão de uma obra, como é o caso deste concerto em dó maior (Russell, 2001).

Este tipo de obra teve a sua origem e maior expressão em França no reinado de Luís XIV, sendo que o conjunto de obras mais antigo são os noventa e dois minuetos (assim intitulados) de Lully que aparecem nos seus ballets e óperas entre 1664 e 1687, e em várias das suas overtures que já não teriam como objetivo o acompanhamento da dança (Little, 2001).

Tal como a maioria das danças do século XVII, o minueto era incluído na música francesa para teclas e suites de ensemble, normalmente depois da sarabande no meio de outras danças populares como a bourrée e a gavotte. Este era um tipo de andamento já, cujas características incluem uma clareza rítmica e de fraseado; poucas texturas e ritmos complicados apreciados pelos instrumentistas e compositores do barroco francês; e uma aparente descontração e facilidade aparentes no andamento (Little, 2001).

Enquanto dança social, o minueto foi também muito popular em Inglaterra no séc. XVII, onde apareceu de forma estilizada em obras para teclado de Playford (1689) e na música teatral de Purcell, que intitulou muitas das suas danças como “minueto” ou “tempo di minuetto”.

Nesta época já vários compositores germânicos como Georg Muffat, Pachelbel, e Fischer, escreviam minuetos ao estilo francês, adicionando contraponto e motivos mais complexos. Bach tem vinte e oito minuetos nas suas partitas e suites para teclas, em música de câmara para violino, flauta, ou violoncelo solo ou acompanhados, em suites orquestrais, no concerto Brandeburguês nº1, e usou em várias ocasiões ritmos do minueto nas suas obras vocais. As características que estão sempre presentes são a métrica ternária em tempo moderado; um afeto moderado, sem grandes contrastes, que é íntimo, indolente, despreocupado, ou simplesmente alegre e pacífico; uma estrutura balançada de frases com quatro mais quatro compassos com algumas extensões; e uma harmonia descomplicada (Little, 2001).

Tal como acontece noutras formas de danças barrocas como a allemande, courante ou a giga, o minueto ao estilo italiano era diferente do seu homónimo francês em alguns aspetos: a preferência por tempos mais rápidos e a utilização maioritária das métricas 3/8 e 6/8. As suas frases eram mais longas, por norma (oito compassos em vez de dois ou quatro) e a direção das mesmas era muitas vezes dada por secções sequenciais tanto melódicas como harmónicas. Alguns exemplos deste minueto podem ser encontrados na obra de música de câmara de Corelli, em aberturas de ópera de Alessandro Scarlatti e Händel, em algumas suites para teclas de Händel, obras de Telemann e Bach, e até em alguns compositores franceses como François Couperin, Rameau e Hotteterre. O estilo francês de minueto foi, no entanto, o mais influente no resto da música europeia e o que encontramos neste concerto em análise apresenta características tendencialmente mais francesas (Little, 2001).

Malloch (como citado em Little, 2001), considera que a discordância entre um grande número de tratados e estudos da época sugere que não existiria um tempo fixo para esta dança, antes que este variava de corte para corte ou cidade para cidade, conforme a preferência fosse francesa ou italiana e os gostos dos bailarinos (quando era dançada).

A estética galante ou rococó que se foi desenvolvendo em meados do século XVIII acomodava perfeitamente a elegância contida e complexa da dança, a sua facilidade (relativa a outros tipos de peças), e a simplicidade das suas frases e movimento harmónico tornaram-na um veículo para experiências com grandes estruturas baseadas em blocos harmónicos e tonais contrastantes ao mesmo tempo que aderia a estilos métricos ternários e exibia o contraponto.

O Tempo di minuetto por nós em estudo apresenta uma forma bipartida, dividida por uma repetição - por vezes os minuetos sobretudo franceses (em Hotteterre ou Couperin), aparecem divididos em duas partes distintas e separadas com os títulos de minueto um e minueto dois - e contrapõe novamente passagens com todos os instrumentos, não necessariamente sempre em tutti, contra episódios solísticos (fig. 1).

Source: Transcrição nossa através do programa Sibelius 8. Manuscrito proveniente da Universidade de Darmstadt. https://ks4.imslp.info/files/imglnks/usimg/a/a4/IMSLP247261-PMLP371946-Concerto_C-Dur.pdf

Fig. 1 Tempo di minuetto, Concerto em Dó Maior, TWV 51:C1. Legenda: Compassos 1 a 6, do Tempo di minuetto do Concerto em Dó Maior, TWV 51:C1. 

O andamento está escrito em 3/4, e os temas que vão aparecendo ao longo das duas partes têm quatro compassos.

O primeiro tema é apresentado na flauta e repetido uma oitava abaixo pelo ripieno (corpo da orquestra/tutti); o segundo tema é um diálogo entre a flauta e os violinos com acompanhamento simples do baixo e da viola (c. 8), o terceiro é um tema meloso, com figuras de suspiro sob forma de ligaduras de intervalos de segunda descendente, com a flauta e o primeiro violino com a mesma melodia à distância de terceiras sobre uma nota pedal do baixo (c. 13); e o quarto tema coloca ênfase nos violinos (c.18). Depois desta secção vem um episódio solístico da flauta com figuração harmónica ao estilo italiano, primeiro acompanhada apenas pelo baixo (nos primeiros quatro compassos, c. 23 a 26) e de seguida por toda a orquestra em ritmo homofónico. A partir do compasso 37 voltamos a ouvir o terceiro tema (num episódio dedicado à orquestra) que conclui numa cadência em tutti no compasso 41 em sol maior e desenvolve num diálogo entre a flauta e os violinos para preparar o final da primeira repetição e o início da segunda também na dominante.

A segunda parte do andamento apresenta o primeiro tema na dominante na flauta acompanhada pelo baixo com repetição da orquestra (c. 57) e novamente o mesmo tema na flauta e repetida na orquestra, mas em lá maior (c. 61). O novo tema (c. 68 a 72) introduz um diálogo entre a flauta em arpejos descendentes e a orquestra; no compasso 73 temos mais um episódio solístico intercalado com intervenções da orquestra de um compasso. Antes do episódio solístico (com início no c. 104, o último antes do tutti final de quatro compassos, c.118) repete-se o terceiro tema primeiro da primeira parte sobre um pedal da dominante (c. 89) e depois o mesmo na tonalidade original (c. 94), seguido do quarto tema (c. 99).

Apesar de ser um andamento de origem francesa, os recursos utilizados têm por base o contraponto, do gosto germânico, e figurações italianas sobretudo nos episódios solísticos. Este é um andamento com um tempo rápido, sentido ao compasso, e isso contribui para o estilo apaixonado e elegante do andamento, direcionando-nos de quatro em quatro compassos com um baixo simples, e melodias galantes e ao mesmo tempo alegres e jocosas.

4. Conclusão

Telemann é por vezes descrito como um compositor “de sucesso que escreveu música meramente agradável, com bom gosto, e que apenas oferecia a síntese dos estilos nacionais sem grande complexidade” (Zohn, 2008). Zohn (2008) lança as interrogações sobre como seria se Telemann tivesse escrito obras que fossem mais “Telemannianas” da mesma forma que as de Bach soavam “Bachianas”; ou se Telemann tivesse sido menos católico nos seus gostos, como Händel; talvez assim fosse incluído no grupo dos grandiosos, e diz ele, talvez tivesse sido considerado mais germânico.

A realidade é que Telemann foi considerado pelos seus contemporâneos o principal expoente do Vermischter Geschmack ou gosto misto, que une a elegância da corte francesa, a liberdade e melodia italianas, e o contraponto de tradição luterana. Na sua época, Telemann era conhecido pelo seu domínio deste estilo e era mais afamado que Bach, o que fez com que a sua obra fosse publicada em diversas partes da Europa (Paoliello, 2017). O seu domínio das novas formas nascidas desta união de gostos nacionais - concert-ouvertures, quadri e sonate auf concertenart - conquistou o respeito dos seus contemporâneos. Mattheson, que tem Telemann em alta consideração, diz que “Lully é aclamado; Corelli deixa-se louvar; mas apenas Telemann está elevado acima do louvor” (Mattheson como citado em Paoliello, 2017, p.5).

A mistura de estilos não se resume na obra de Telemann à utilização de mais ferramentas que de repente estavam ao seu dispor. A habilidade do compositor observa-se exatamente na sua capacidade ímpar de unir diferentes elementos resultando numa linguagem própria impregnada de variedade, que apesar disso se mantém acessível e ao mesmo tempo intelectualmente estimulante e desafiadora (Zohn, 2008).

Em investigações futuras, seria oportuno realizar um estudo semelhante com reportório de outros compositores influentes da época (como Quantz ou J.S.Bach) por forma a ampliar o campo de análise e comparar a aplicação do Vermischter Geschmack na escrita de diferentes compositores.

Referências Bibliográficas

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Notas

1[] Tradução nossa.

2[] Tradução nossa.

3[] Designação utilizada neste artigo para a zona germânica da europa.

Recebido: 24 de Março de 2021; Aceito: 25 de Maio de 2021

Correspondent Author: Débora Bessa Severiano, Praceta Calouste Gulbenkian, nº6 2560-291 Torres Vedras, Portugal, bessa.deb@gmail.com

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