1. Introdução
Como designers fomos atempadamente alertados para a importância crucial das ciências sociais na prática projectual. Estabeleceram-se relações interdisciplinares como boa prática do design, que permitiram desenvolver um método processual liberto da mera tentativa / erro2. O estudo historiográfico e crítico do design e.g. é fundamental para a compreensão das decisões tomadas ao nível do exercício projectual, na construção do seu ethos. Em contexto, ele é indissociável de dois factores: a ascensão da profissão de designer dentro da lógica do capitalismo industrial e a ascensão de uma cultura do design (Dilnot, 1989, pp. 213-232). Contudo o actual paradigma de investigação e de promoção de estratégias didácticas e pedagógicas parece cada vez mais responder a uma “encomenda económica” mais tecnicista do que humanista.
Como docentes de design deveríamos igualmente ter despertado para os sinais bem legíveis de desinvestimento teórico junto da geração Z3, consequência de um conjunto de (maus) estímulos imediatistas disseminados pelos hipermédia. A geração Z de alunos é versátil, impaciente, impermanente, pragmática, mas não lê, e como tal não possui ferramentas para construir o seu quadro de referências. O mercado de trabalho deve ser reflectido no ensino criticamente. A formação avançada não deve reduzir-se ao fornecimento de mão-de-obra sob pena da proliferação de uma postura de trabalho acrítica apoiada no “culto do amadorismo”, conceito plasmado por Andrew Keen (2007). O modus vivendi e operandi da actual geração de alunos deve ser tomado em conta na construção dos curricula de modo a prevenir consequências nefastas para a sua formação. Ou seja, perante o actual estado de mutação diária da sociedade tornaram-se obsoletas as antigas fórmulas de ensino baseadas na especialização, que abrem acriticamente campo para uma materialização pragmática e uma praticabilidade imediatista (K. Mohr & E. Mohr, 2017). O encurtamento imposto pelo paradigma pós-bolonha, entre outras perversidades, impôs uma visão híper especializada, pouco versátil e sobretudo pouco holística. Por isso mesmo, e talvez paradoxalmente, devamos agora mais do que nunca afastarmo-nos dessa corrida pela “última moda” e recuperar um quadro teórico e reflexivo tendencialmente desconsiderado, sob pena de transformarmos o Projecto numa prática pouco erudita, ou pior, casuística e servil. Algumas tendências actuais da investigação em design (herdeiras do pós-liberalismo anglo-saxónico) e consequentemente no ensino do design, parecem “demonizar” a relação com as ciências sociais e com a teoria que lhe serve de base. Observe-se o peso dos ECTS que são atribuídos às ciências sociais nos curricula das licenciaturas em design. Glorifica-se uma complexa contudo mal circunscrita gestão procedimental e de acumulação de informação técnica. Este quadro tem contaminado a produção de conhecimento holístico do design, gerando a jusante uma prática profissional pouco reflexiva. Urge como tal repensar e revalorizar o lugar e o corpus da Filosofia, Estética, Sociologia, Antropologia, Psicologia, entre outras, que promova o pensamento em contexto.
2. Metodologias
Como em qualquer investigação teórica em Design, adoptámos uma metodologia de base qualitativa. Uma vez que o presente artigo se encontra num registo ensaístico e crítico, não se adequa o uso de qualquer metodologia quantitativa, não são expectáveis conclusões (até porque segundo Flaubert seria estúpido), nem resultados tangíveis a curto prazo. Pretendemos reflectir, interrogar, desassossegar, provocar e questionar o estado actual do ensino (e investigação) em Design.
A aplicação da Teoria e da História à boa prática do Design (pensamos) não carece de comprovação. No actual contexto social novos fenómenos impõem-se tão rapidamente que, quando assimilados, já caducaram. Os resultados expectáveis a médio e longo prazo deste ensaio atêm-se no espoletar da apropriação de um novo quadro de referências para novas práticas do ensino do design, “regenerando” uma visão efectivamente holística.
O actual quadro de evolução vertiginosa das sociedades coloca demasiadas questões às quais o tempo da investigação aplicada não consegue responder. Não considerámos, portanto, questões de partida, mas questões permanentes. O ponto de interrogação estará por isso subversivamente presente ao longo de todo o ensaio.
Qual o papel do ensino do design num quadro social em mutação acelerada? Qual o papel do docente perante esta impermanência? Que estratégia metodológica, pedagógica e didáctica será mais adequada perante esse quadro? Que objectivos, competências, recursos e até critérios de avaliação deverão ser evocados? Que diagnóstico deve ser aferido às referências do aluno, futuro designer, quando chega ao ensino superior? Que preconceitos e que espectativas traz? Terminada a sua formação que contexto permanecerá actual? A resposta às múltiplas questões que se apresentam deverá contar (esperamos) com os contributos de futuras investigações parcelares.
3. Desenvolvimento
A produção científica no campo do Design deve, mais do que no passado, continuar a ser estudada de modo indissociável da dimensão histórica, social, económica, política e cultural. Para Krippendorff (2005) e Bürdek (1994) a semiótica e a hermenêutica foram as ciências que deram maior importância ao Design no século XX. Em linha com a posição de Victor Margolin (2005) consideramos que a História do Design deverá ser lida como um todo e não como um somatório de contributos. Deveremos por isso entender fenómenos em contexto, contrariando leituras fragmentadas e caducas por áreas disciplinares, umas vezes complementares outras contraditórias. Apoiemo-nos na advertência de Walker (1990) de que o estudo da História do Design deve rejeitar logo à partida essa desvantagem. Do mesmo modo deveremos evitar a persistente lógica do estudo de gerações de designers (como o fez a História da Arte durante demasiado tempo) apoiada num pot-pourri de autorias e de ideias dominantes. Essa atitude tende a centrar o foco exclusivo em períodos, áreas estanques, ou autores, elegendo heróis e objectos gourmet, desconsiderando actores menores, seus sucessos e insucessos (Fallan 2010). Ou seja, virando costas à realidade complexa.
A que contexto nos referimos? Apesar do tiro de partida dado por Papanek, o quadro socio-económico imediatista com que o designer (entre muitos outros profissionais) se debate actualmente, continua a centrar o projecto num quadro de resposta rápida à sociedade de hiperconsumo e à ditadura dos mercados (de bens, produtos, serviços). A sociedade pós crise económica de 2009 ou "altermoderna"4 enfrenta situações nas quais a realidade supera a ficção, ultrapassando as visões distópicas de Orwell ou Huxley. Em muitas áreas também o novíssimo paradigma social pós COVID 19 se assemelha a outra distopia em versão 2.0: uma sociedade “tecnocêntrica” (Chapman, 2005) fomentada pela messiânica desmaterialização "tecno-fetichistas" (Kerckhove, 1995) que nos empurra, e empurrar-nos-á ainda mais, para a "internet das coisas". Ou seja “coisificará” pois reduzirá o objecto à condição de coisa5. Coisa de nada, coisa qualquer. A “transição digital”, apanágio do poder mundial tecnocrata (e do poder em Portugal por inerência ideológica) parece carregada de boas intenções:
“(…) a crise [pandémica] chamou a atenção para as ferramentas de que os governos dispõem para proteger e informar os cidadãos. Este caminho reforça a necessidade de acelerar a transformação do sector público em direcção à digitalização e gestão proactiva.” (Gouveia, 2021, para 2)
Contudo, adoptando expressões eufemisticamente vagas (transição digital; choque tecnológico, etc.) disfarça uma face nefasta que promove a normalização do tele-trabalho como o “novo-trabalho”, uma “nova normalidade”, sem pudor, criando gerações “lowcost”6 e de “uberjobs”7.
O confinamento forçado pela pandemia COVID 19 libertou encargos e aliviou despesas das entidades empregadoras, recentrando-os no teletrabalhador. Pior, aceitando-a como inevitável, abdicou da sua privacidade inaugurando um estado de acrítica intrusão. Para além do visionamento e captação de imagens, a entidade empregadora passou a ter acesso ao interior do domicílio com todas as implicações éticas, morais e práticas que o futuro possa acarretar. A casa deixou de ser um refúgio, alcançando-se o verdadeiro sonho de qualquer informador da Stasi8 na década de oitenta. Devia inquietar-nos como docentes que possamos estar a formar designers acriticamente impreparados para este quadro de escrutínio, censura, ou até perseguição num futuro regime totalitário. Tudo fica registado, é apenas uma questão de oportunidade. Vivemos tempos de apreensão. O quadro actual testa os limites de um itinerário (estratégico?) que parece almejar a total alienação do ser humano. Apoiada nos “bons serviços” prestados pela Internet, a padronização comportamental tornou-se útil aos fenómenos de controlo de massas. Como deve o design posicionar-se perante o que Zuboff denominou como Capitalismo da Vigilância? Impôs-se a ditadura da norma; a aberração comportamental extra-algorítmica; a subserviência à “inteligência artificial”; as teorias conspirativas; a contra-informação; a pós-verdade manipuladora da opinião pública e do sentido de voto; a doutrinação e emergência de grupos radicais (religiosos ou políticos) extremistas; as fakenews (a História devia ter-nos avisado que uma mentira repetida muitas vezes se torna verdade9), mas também a desumanização das relações de proximidade; a estranheza perante a fisicalidade, o toque e a empatia com o seu semelhante. A internet tornou-se a nova caixa-de-ressonância para estratégias de propaganda e manipulação de massas, tal como a tecnologia da rádio ou os planos cinematográficos de Leni Riefenstahl (1902 - 2003) e Serguei Eisenstein (1898 - 1948) serviram respectivamente Hitler e a génese da revolução soviética.
O “não lugar” (Augé, 2005) gerou o “não ser”? A globalização económica criou o lugar de todos e de ninguém. Um melting pot global de cultura nenhuma, em suma a transformação do Übermensch Nietzschiano num Untermensch. O elogio da prática sobre a teoria, da quantidade sobre a qualidade, levou à demonização do imensurável, do poético, do sublime, do transcendente. Perdeu-se a “utilidade do inútil” (Ordine, 2017). Matou-se a especulação mesmo sabendo-se que é dela que partem todas as hipóteses em qualquer ciência. Em suma devastou-se o modo como identificámos e seleccionámos as nossas referências e de como nos relacionávamos com o mundo. Devemos interpretá-los passivamente como sinal do fim do Império Ocidental, ou apenas como um caos gerado pelo inevitável aumento da entropia do sistema? Vários autores tem estabelecido paralelos entre a actualidade e a queda do Império Romano: sintomas como a ascensão do fanatismo religioso; dos líderes populistas; a crise económica; as assimetrias entre ricos e pobres; as guerras disputadas nas franjas do Império que consomem recursos económicos gigantescos em arsenais militares, etc. 10
Qual o lugar do ensino do Design neste contexto? Quais as capacidades e limitações? O Design para este novo “mundo do real”11 deixar-se-á ser arrastado pela corrente, ou proporá novos modos para detectar e resolver problemas? Quais e como? Como se não bastasse, a “sociedade da má informação”12 apropriou-se da palavra Design como soundbite, como “selo de garantia”. Referimo-nos aos equívocos simultaneamente trágicos e risíveis como Food Design, Nail Design, Cake Design (et. al.), em suma, a série de expressões “design-isto” ou “design-aquilo” como lhes chamou Monteiro (2014, p.211). Em suma, tudo novo, tudo “tcham, tcham!”13, rendido ao quadro de profunda e vertiginosa aceleração: “rapidité comme les américans” já dizia o carteiro de Jacques Tati14. Arriscamo-nos a assistir à Sociedade da Informação substituir-se à Sociedade do Conhecimento? Não devemos iludir-nos com a fascinação pelo novo, elogio hedonista de si próprio e de uma equívoca ideia de progresso, enfermada por um positivismo fora de tempo como solução para males anacronicamente criados por si próprio. Urge de facto promover novos modelos e itinerários didácticos / pedagógicos no ensino do design indissociáveis de fenómenos sociais e fundamentos histórico-culturais actualizados. Deverão por isso ancorar-se globalmente num pensamento operativo, mas também poético, abstracto, “inútil”. Para isso o convencional ponto de partida de uma metodologia projectual em design não deve ater-se apenas à revisitação de um somatório de ocorrências prévias e dispersas, mas ao aprofundamento interpretativo dessas respostas em contexto. O suporte para um novo modo de pensar:
“A interpretação é o sentido metodológico da descrição fenomenológica, ou seja, a maneira, a técnica que o designer actuará para descrever o relacionamento que tem com o mundo e, o resultado será a compreensão dessa ligação entre sujeito e contexto” (Soares, L; Aparo, E, 2010, para. 21)
A desmaterialização desvirtuou o artefacto, interface entre o Homem e o meio, como sistematizou Leroi-Gourhan15? A desmaterialização terá recentrado e reduzido o campo da investigação em Design aos territórios do UI/UX, com escassa relação com o mundo físico? Agravando, a sistematização operativa de Moggridge (2006), como sabemos, não é aplicada à maioria dos interfaces. A reacção negativa que temos perante maus interfaces informáticos deve-se sobretudo à ruptura cognitiva e à pouca mimesis com o mundo material. Uma alienação do mundo físico no qual nos movimentamos e com o qual interagimos ao longo de milhares de anos. Este mau desempenho não é alheio aos fenómenos de obsolescência programada do software impostos por actualizações mercantilistas e eufemísticos “melhoramentos”. Trocou-se o tempo produtivo pelo improdutivo numa constante assimilação de novos modus faciendi, progressivamente mais complexos, que nada oferecem de novo. Este é o crescente quadro de entropia do sistema, de alienação desumanizante oferecido pela “clarividente” sociedade da informação raramente posto em causa pelo ensino do Design. Quando tanto se almeja a inclusividade, interfaces como os touchscreens geraram (expectavelmente, diga-se) exclusão daqueles que por patologia ou idade avançada, não consegue com eles interagir. Esta exclusão não se atém na questão operativa de interacção, origina problemas éticos e gera novos estigmas sociais. Serão estas as gerações de novos profissionais que o ensino do design quer formar? Que estratégias pedagógicas se podem adequar perante o quadro que acabámos de caracterizar? Como levar gerações de alunos, criados dentro deste paradigma imediatista e acrítico, a pensar o design para o admirável mundo novo?
4. Remate
Pedagogicamente deveremos estar atentos aos sinais geracionais de cada grupo de alunos. O mito do bom e do barato da geração Z, ou lowcost, tornou-se mais impositivo que nunca. O devastar do modo como a geração baby boomer16, ainda maioritária entre docentes de design, identificava e seleccionava as suas referências, cristalizou a permanência de práticas e metodologias de ensino e investigação? Sem uma rápida intervenção pedagógica e didáctica as gerações nascidas em plena internet caminharão para o culto do amadorismo? O convencionado ponto de partida de uma metodologia projectual do design não deverá ater-se na revisitação de um somatório de fórmulas prévias, mas no aprofundamento interpretativo dessas respostas em contexto, como suporte de intervenção para um novo modo de pensar. A desmaterialização dos suportes convencionais em direcção à virtualização de objectos (ou serviços); a agregação de funções em objectos multivalentes (como os smartphones) e o desaparecimento progressivo dos tradicionais métodos de relação com a matéria física terá que redefinir a didáctica do Design que nos habituamos a adoptar. Naturalmente temos constatado que as actuais gerações de alunos demonstram maior apetência para as áreas de UI/UX que para o mundo físico. Este fascínio tecno-fetichista arrisca a transformação do designer pensante num minion17 de Silicon Valley?
O resultado deste ensaio não tem maior pretensão do que formular interrogações, alertar para o outro lado da cultura dominante, e oferecer pistas, tanto para novas vertentes de investigação, como para novos processos pedagógicos. A investigação teórica em Design não deve (e não pode) ser encerrada numa realidade alternativa. A boa didáctica deverá estabelecer pontes entre a formação do aluno e sua intervenção social como designer, permitindo-o reverter este quadro progressivamente caótico da obsolescência programada de coisas e de ideias. Assim poderemos formar designers, evidentemente dotados de conhecimento técnico, mas sobretudo de um apurado e consubstanciado sentido crítico sobre o mundo que os rodeia.
Ou seja, permitindo-lhes baixar a entropia do sistema.