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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versión impresa ISSN 2184-0458versión On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.1 Braga jun. 2021  Epub 01-Mayo-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3198 

Artigo Temático

Cidade e Performatividade: Rupturas Normativas no Espaço Público Informal - Um Estudo de Caso na Cidade do Recife, Brasil

1 Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil


Resumo

A partir do questionamento da ideia de uma cidade hegemônica e com estruturas totalizantes, este artigo toma os corpos no espaço urbano como um modo de discutir essas estruturas normativas e, por isso, procura investigar como pensar a cidade para as diversas performatividades, ao levar em consideração os corpos além dos determinados normativos. Para tanto, são utilizados como fios condutores de interpretação e construção da investigação os conceitos de performatividade da filósofa Judith Butler (1990/2020) e os de micropolítica e macropolítica dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980/1996), através dos quais se chegou ao entendimento da segmentação do fazer cotidiano. Esses segmentos podem ser caracterizados como linear (os processos históricos), circular (as ocupações do território) e binário (as dualidades sociais). O processo de aplicação em campo dos conceitos estudados foi realizado no Brasil, na cidade do Recife, e a área escolhida foi o entorno do Mercado de São José, localizado no centro histórico, onde existiu, até ao ano de 2019, uma intensa atividade de comércio informal. A investigação estruturou-se em interpretar como se conformam algumas das segmentaridades sociais desse espaço, com o objetivo de caracterizar as relações de apropriação espacial pelos corpos performativos. Diante disso, chegou-se como resultado à enunciação de um conceito para caracterizar a relação entre os corpos e a área observada: os espaços performativos disruptivos. Dessa maneira, este trabalho busca contribuir para a prática do urbanismo, ao propor um olhar mais inclusivo sobre a cidade.

Palavras-chave: cidade; corpos; performatividade; Recife; segmentaridades

Abstract

By questioning the idea of a hegemonic city and with totalizing structures, this article takes the bodies in the urban space as a way to argue the normative structures and, therefore, seeks to investigate the thinking of the city for various performativities, by taking into account bodies beyond certain normatives. To this end, the concepts of performativity of the philosopher Judith Butler (1990/2020) and the concepts of micropolitics and macropolitics of the philosophers Gilles Deleuze and Félix Guattari (1980/1996) are used for the interpretation and construction of the research, through which it was possible to understand the segmentation of the everyday doing. Those segments can be characterized as linear (the historical processes), circular (the territory occupations) and binary (the social dualities). The application process in the field of the concepts studied was carried out in Brazil, in the city of Recife, and the area chosen was the surroundings of the São José market, located in the historical center, where existed an intense informal trade activity until 2019. The investigation was structured in interpreting how some of the social segmentarities of this space conform, with the objective of characterising the relations of spatial appropriation by the performative bodies. Consequently, the enunciation of a concept was reached as a result to characterize the relationship between the bodies and the observed area: the disruptive performative spaces. Therefore, this work seeks to contribute to the practice of urbanism, by proposing a more inclusive look at the city.

Keywords: bodies; city; performativity; Recife; segmentarities

Introdução

Uma forma cômoda de se travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. (Camus, 1947/2017, p. 7)

A partir deste trecho de A Peste, de Albert Camus (1947/2017), várias possibilidades podem surgir sobre como pensar modos para se conhecer uma cidade. Entretanto, uma coisa comum aos momentos da vida trazidos pelo escritor - o trabalho, a morte e o amor - é a corporeidade como categoria indispensável para a existência dos sujeitos urbanos. O corpo, através da sua materialidade e percepção, é o meio capaz de o sujeito absorver a sua experiência na cidade e a performar no seu cotidiano. A relação entre o corpo e a cidade é indispensável na constituição do sujeito urbano, e esse relacionamento funciona de maneira recíproca, porque, ao mesmo tempo que a cidade é vivida através do corpo, o corpo é o responsável por fazer a cidade.

Para pensar a cidade sobre esse viés, foi tomado o conceito de performatividade desenvolvido pela filósofa americana Judith Butler (2015/2019), através do qual aborda o corpo com um olhar político, ao levar em consideração essas marcas deixadas pelas estruturas sociais e culturais, e nos permite pensar a cidade através do corpo. Butler (2015/2019) define o conceito de performatividade como uma representação ontológica executada pelo corpo e o caracteriza como uma maneira de agir na sociedade: “é uma questão de agir, e na ação, reivindicar o poder de que se necessita. Isso é a performatividade como eu a entendo e também é uma maneira de agir a partir da precariedade e contra ela” (p. 65). Por isso, a autora questiona através da performatividade os padrões corporais determinados por uma sociedade regida por um poder central, que procura controlar qualquer tipo de diversidade, seja ela racial, de gênero ou de classe. Aqui, os padrões são compreendidos como uma normatividade determinada pelos poderes existentes na sociedade, que acabam por discriminar ou excluir alguns corpos das estruturas “legítimas” das organizações sociais. Os “poderes” podem ser tanto as estruturas administrativas, quanto as representações corporais determinadas pelas tradições, ima- ginários e consumo.

Esses padrões, atuantes tanto no corpo como na produção da cidade, podem ser abordados a partir do entendimento de micropolítica e macropolítica apresentado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980/1996). Para os autores, “tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica (Deleuze & Guattari, 1980/1996, p. 90). Diante disso, a micropolítica corresponde à porção da política relacionada aos desejos que movem uma sociedade individual e coletivamente. Ela é fluxo e intensidade. Já a macropolítica se relaciona às estruturas totalizadoras e visíveis da política. Ela é o fluxo da micropolítica canalizado e sedimentado como uma grande estrutura social. Segundo os filósofos, a micropolítica e a macropolítica coexistem na sociedade e compõem juntas as diversas estruturas sociais e políticas existentes.

Através da micropolítica e macropolítica é possível mediar uma interpretação da relação entre o corpo performativo e a cidade, considerando um olhar voltado para as normatividades impostas. Por meio dos seus corpos, grupos sociais questionam uma produção de cidade que parte de uma perspectiva totalizante, de um homem ideal; essa cidade ideal “tem um único gênero, raça e sexualidade que regulam tudo, inclusive nosso imaginário” (Moreira & Nisida, 2019). Dessa maneira, atravessadas por esses questionamentos e contexto, buscou-se investigar novas possibilidades de abordagem da cidade, para refletir sobre como pensar a cidade para as diversas performatividades, ao levar em consideração os corpos além dos determinados normativos.

Em um contexto de reformulação das estratégias do pensar a cidade, sejam essas estratégias mais reativas ou propositivas, este texto se coloca como um processo reflexivo do pensar a cidade, a partir dos corpos que a ocupam e das forças políticas normati vas que a atravessam. Uma maneira de olhar para os espaços urbanos através de novas lentes e ajudar a construir uma cidade mais acolhedora. Nesse sentido, em primeiro lugar, são feitos uma construção teórica e um atravessamento dos conceitos-chave para a construção da pesquisa: o corpo performativo, a macropolítica e a micropolítica. Em seguida, é exposta a investigação realizada em um contexto brasileiro, o entorno do Mercado de São José. Por fim, são discutidos os resultados alcançados e as reflexões fruto da nossa discussão e observação na produção do espaço urbano.

Para tanto, o estudo foi aplicado no contexto brasileiro, mais precisamente na quadra do Mercado de São José, na cidade do Recife, Pernambuco. A quadra é cortada por dois bairros, Santo Antônio e São José, e se localiza em uma área histórica da cidade. Até 2019, possuía uma grande circulação de pessoas diariamente, devido, sobretudo, ao seu forte comércio popular e informal. Mas, em 2020, a prefeitura removeu os trabalhadores do comércio informal da área, o que descaracterizou o espaço por um propósito de “ordenamento” e para a criação de vagas de estacionamento. Também vale evidenciar a nossa decisão de não ter investigado o espaço interno do Mercado, ao preferir observar os corpos sem a imposição de um programa arquitetônico de usos, porquanto a pesquisa1 se voltou para as relações entre a performatividade e a cidade, principalmente as relacionadas à apropriação do espaço público pelos trabalhadores do comércio informal.

Cidade, Corpo e Política: As Estruturas Incorporadas na Constituição do Sujeito

Como apontado pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty (1945/2006), o corpo é o meio através do qual o sujeito se relaciona, processa e habita o mundo. Diante disso, uma perspectiva para olhar a relação entre o corpo e a cidade é a leitura realizada pelo sociólogo Richard Sennett (1994/2008), a qual apresenta a construção e a organização das cidades a partir do corpo. O autor aponta como as diversas questões sociais, históricas e políticas que perpassam o corpo refletem na organização do espaço urbano ao longo da história ocidental. Inclusive, Sennett (1994/2008) assinala como a dissolução de uma imagem dominante de corpo no espaço urbano é responsável por possibilitar que múltiplas existências - raciais, sociais e de gênero - possam conviver no mesmo lugar e, assim, provocar “alterações que macularam e subverteram a forma e o espaço urbano” (p. 23).

No contexto brasileiro, através da discussão trazida por Sennett (1994/2008), é possível entender a aversão às ruas das classes sociais mais abastadas, principalmente nas cidades com origens coloniais, e o porquê de a lógica de produção das cidades brasileiras ainda fomentar uma cidade voltada para o espaço privado. A arquiteta e urbanista Lúcia Leitão (2014) mostra as origens desse problema. Segundo Leitão, o início do desenvolvimento das cidades brasileiras com origens coloniais representou uma perda de poder e de controle dos senhores de engenho, elite oligárquica proveniente da agricultura canavieira. Essa perda ocorria diante das características da vida urbana, como o anonimato e a coletividade, “em muitos sentidos incompatíveis com os interesses dos senhores patriarcais do Brasil colônia” (Leitão, 2014, p. 78). Ou seja, estar na cidade significaria, de certo modo, uma maior liberdade dos corpos, principalmente das mulheres, dos trabalhadores livres e dos ex-escravizados, afinal, estariam fora do controle visual do senhor de engenho. Contudo, os costumes e o poder ainda concentrados nas mãos dos donos de engenho foram suficientes para a construção de uma ideia de rua como algo depreciado e atemorizante para mulheres e crianças, sendo esse espaço destinado apenas aos homens. Nos dias de hoje, alguns aspectos dessas ideias ainda habitam o imaginário de muitos moradores das cidades brasileiras.

Um conceito-chave para olhar a corporeidade como algo contextual - em relação à sociedade e ao espaço urbano - é o da performatividade. A performatividade, como tratada pela filósofa Judith Butler (1990/2020), aborda justamente esse entendimento do processo de construção de um corpo atravessado por questões históricas, culturais e sociais e foi escolhido como conceito norteador no processo de investigação deste trabalho. Como forma de entender o processo de afetação do corpo pela cidade, e da cidade pelo corpo, foram tomados os conceitos de micropolítica e macropolítica. Por isso, segue-se agora para o entendimento do que é a performatividade em Butler e os conceitos de macropolítica e micropolítica trazidos por Deleuze e Guattari (1990/2020).

Performatividade e Sua Condição Política

A palavra “performatividade” foi usada pela primeira vez pelo filósofo da linguagem J. L. Austin, em 1955, para designar verbos que exprimem ações através de atos (Butler, 2015/ 2019). O verbo jurar, por exemplo, um locutor quando o diz na primeira pessoa, ele também está fazendo o ato. Judith Butler (2015/2019) estabelece uma relação entre a performatividade de Austin e o processo de construção da corporeidade. Para a filósofa, a ação de nomear algo transfere para a “coisa” diversos significados e características. Por exemplo, quando um bebê nasce, e o médico - ou alguém - declara que se trata de uma menina ou de um menino, automaticamente diversos aspectos do nosso imaginário são transpostos para aquele ser humano. Entre esses aspectos está como o corpo representa o gênero feminino ou masculino através da sua gesticulação. Assim, a categorização de algo através da nomeação é responsável por imprimir marcas performativas na sua corporeidade. Butler (1990/2020) constrói a sua definição do conceito de performatividade a partir dessa conexão entre a linguagem e o corpo, mas é igualmente influenciada pela teoria feminista e existencialista de Simone de Beauvoir e a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty.

Simone de Beauvoir (1949) contribui para o conceito de performatividade, principalmente, através das suas ideias discutidas no livro Le Deuxième Sexe: Les Faits et les Mythes, trabalho no qual a sua célebre frase foi publicada: “ninguém nasce mulher: torna-se uma”. A partir da distinção entre sexo e gênero, Beauvoir vê o gênero como algo construído socialmente. No entanto, a Beauvoir (como citada em Butler 1990/ 2020) entende a sua construção como uma “compulsão cultural a fazê-lo” (Butler, 1990/2020, p. 29). Por isso, Butler (1990/2020) aponta algumas ressalvas, como a necessidade de conceber um corpo não mais como um meio ou passivo. Faz-se importante lembrar a existência das possibilidades de rupturas performativas, na questão do gênero e em outras dimensões. Segundo Butler (2015/2019), essas rupturas estão presentes, principalmente, nos grupos reunidos com vidas marcadas “pelas formas induzidas de condi ção precária” (p. 17), ou seja, qualquer corpo não legitimado pelas estruturas de poder atuantes.

Já os aspectos da movimentação corporal no conceito de performatividade são oriundos, em grande parte, da filosofia da percepção desenvolvida por Merleau-Ponty (1945/2006). O filósofo é o responsável por introduzir a dimensão corpórea na fenomenologia, a partir de uma busca pela essência da percepção, na qual defende que o corpo é uma unidade e, como tal, processa o mundo de maneira total, através de todo o ser. Assim, o corpo é o instrumento pelo qual o ser habita o mundo e constrói o seu ponto de vista sobre ele. Ao habitar o mundo, o corpo se relaciona com os objetos existentes nele e é o responsável por produzir pontos de vista sobre esses objetos de acordo com os seus contextos.

Partindo dessas construções teórico-conceituais, pode-se chegar de forma objetiva a uma definição do corpo performativo como uma repetição estilizada do gesto (da ação), e essa repetição é o que garante às pessoas uma certa individualidade corpórea, a qual pode ser atualizada. Além disso, é importante acrescentar a concepção do corpo performativo como a expressão do externo incorporado, já que, mesmo a pessoa possuindo suas particularidades, há uma estrutura política incorporada que se transforma em símbolo social através da performatividade. É nessa trajetória de pensamento que identificamos uma concepção de performatividade, elaborada a partir do contraponto entre as noções de agência e reprodução. Enquanto a ideia de agência remete à possibilidade de tomada de consciência, de capacidade para a ação, da autonomia moral e política do sujeito, a ideia de reprodução traz consigo o paradoxo da subordinação desse mesmo sujeito às relações de poder, considerando a influência das forças políticas exteriores na performatividade. E um dos principais aspectos da performatividade é o seu caráter político, porque as estruturas externas incorporadas são carregadas de censuras, preconceitos e normas. Por isso, o performativo pode ter uma postura transformadora e questionadora da realidade.

Apesar deste trabalho tomar um conceito de performativo oriundo dos estudos sobre gênero, pretende-se promover a possibilidade da sua expansão para diversos campos da vida social. Afinal, “embora o gênero não possa funcionar como paradigma para todas as formas de existência que lutam contra a construção normativa do humano, ele pode nos oferecer um ponto de partida para pensar sobre poder, atuação e resistência” (Butler, 2015/2019, p. 45). Segue-se agora para uma possibilidade de interpretação das estruturas políticas que atravessam o corpo e como essas estruturas podem conformar um modelo para interpretar a cidade, a partir de um olhar que acolha as performatividades.

A Micropolítica e Macropolítica: Uma Leitura Para as Composições da Performatividade

Existem diversas maneiras de entender como se conformam os modos de vida nas sociedades, entre elas, está o olhar trazido por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980/1996) através da micropolítica e macropolítica. Em um contexto pós-estruturalista, debruçando-se numa interpretação dos modos de vida, esses autores buscavam questionar a padronização e exaltar a multiplicidade das práticas sociais. Para isso, os filósofos começam com uma visão fragmentada da conformação social: a vida composta por diversos segmentos e essa segmentaridade como uma característica presente em todos os tipos de sociedade, desde as ditas primitivas - sem a presença de um estado - até às contemporâneas. As segmentaridades são entendidas como os “segmentos do fazer” da vida cotidiana. Por exemplo, “como se trabalha, como se ama e como se morre” (Camus, 1947/2017, p. 7).

Na regência das configurações dos modos de vida, os autores identificam três tipos de segmentaridade: binária, circular e linear. A segmentaridade binária refere-se aos grandes

dualismos sociais, como o homem e a mulher, o velho e o jovem, o branco e o negro, o burguês e o proletário, entre outros. A segmentaridade circular funciona como zonas que podem ser associadas tanto ao espaço, como em “minhas ocupações, as ocupações do meu bairro, da minha cidade, do meu país, do mundo...” (Deleuze & Guattari, 1980/1996, p. 77), quanto às zonas de ação do cotidiano, por exemplo, uma pessoa circula entre zonas familiares, profissionais, sociais, educacionais. Por último, a segmentaridade linear funciona como segmentos de linha que representam um episódio ou um processo, os quais podem ser históricos, políticos e sociais e representar fatos relevantes para um país ou em uma trajetória pessoal. É importante destacar que essas formas da segmentaridade não excluem ou competem uma com a outra, ao contrário, elas coexistem.

Desse modo, vale destacar como as segmentaridades são diferentes em sociedades distintas. Deleuze e Guattari (1980/1996) discutem sobre essas diferentes manifestações de segmentaridade ao contrapor as sociedades primitivas àquelas que possuem um estado (Figura 1). Nas sociedades primitivas, por exemplo, a segmentaridade pode ser caracterizada, de uma maneira geral, como flexível, pois, apesar de apresentar composições binárias, ela provém da multiplicidade; seus círculos não são concêntricos e suas linhas são expressão da liberdade. Já nas sociedades modernas - com a presença de um estado -, a segmentaridade é interpretada como dura, porquanto suas composições binárias se originam de uma máquina de binarização, os seus círculos têm um centro de poder e suas linhas são sobrecodificadas. O governo funciona como uma máquina de ressonância dos estilos de vida. Assim, os autores afirmam que as sociedades primitivas estão em constante transfor mação, enquanto as sociedades modernas possuem estruturas menos maleáveis e mais consolidadas.

Créditos. Lígia Dias

Figura 1: Esquema Para Representar as Segmentaridades nas Sociedades Primitiva e Moderna  

As segmentaridades com características mais duras resultam em processos macropolíticos, pois as suas estruturas políticas são mais consolidadas, legitimadas e visíveis no meio social. A macropolítica é a responsável pela constituição do indivíduo através de unidades, como no caso das oposições binárias, e por reduzir a multiplicidade em totalizações. Em contraposição, a micropolítica é a parcela invisível da política, porque são os desejos e vontades que movem os sujeitos na sociedade. Ela é intensidade, ao invés de unidade. Por isso, a micropolítica está relacionada às segmentaridades com características flexíveis. É importante salientar a necessidade de não fazer juízo de valor entre a micropolítica e a macropolítica, pois tanto uma como a outra, são partes essenciais para a consolidação de qualquer processo de desejo e transformação.

O projeto da cidade e as performatividades que o ocupam não estão desassociados da macropolítica e micropolítica. O arquiteto e urbanista Igor Guatelli (2012) comenta sobre como as estruturas rígidas de ordenamento de um lugar servem ao propósito de controle da performance social, porquanto, normalmente, a concepção projetual propõe um espaço correto e “regido por prescrições programáticas convencionais e pré-determinações de usos” (p. 16). Segundo Guatelli (2012), isso é o produto de um programa de discurso funcionalista, “um ideário foi criado e, com ele, a formulação de um novo receituário do comportamento social” (p. 30). No entanto, existem as brechas possíveis nesse sistema enrijecido, as quais o autor chama de o entre. É possível associar o entre aos aspectos micropolíticos, ao que foge do controle das totalizações, porque o entre seria o espaço indeterminado, aberto a novas significações e intervenções, “trata-se de considerar o projeto não como fim, mas como um meio” (Guatelli, 2012, p. 41).

Os entres encontrados na cidade sobrevivem através da presença corporal afetada por aquele espaço. Ocupar um espaço afeta e faz parte da construção performativa do sujeito, uma vez que os espaços urbanos são carregados de significados históricos e sociais e são reflexos do sistema vigente. Além disso, o corpo performativo é político e, consequentemente, pode ser compreendido através das segmentaridades, as quais podem coexistir entre o corpo e a cidade. As rupturas normativas da performatividade são expressões micropolíticas que escapam às totalizações e, muitas vezes, entram em confronto com as estruturas sociais responsáveis por produzir homogeneizações.

Assim, para investigar as relações de apropriação do espaço público pelas diversas performatividades, este artigo se baseia na caracterização de algumas das segmentaridades que existiam no entorno do Mercado de São José, no centro histórico da cidade do Recife, antes da remoção dos trabalhadores do comércio informal pela prefeitura. Para tanto, por meio da segmentaridade linear, foi feita uma caracterização histórica dos usuários e da legislação da área. Em relação à segmentaridade circular, foram observadas as formas de ocupação do espaço público pelos corpos. E, por fim, através da segmentaridade binária, foram identificadas as dualidades que tangem o corpo, o espaço público e a legislação.

Aplicação em Campo: As Ocupações Informais no Entorno do Mercado de São José, no Recife

O bairro de São José é uma das ocupações iniciais da cidade do Recife, com características históricas e uma área comercial e popular. Por isso, investigar as performatividades desse espaço público foi sobretudo olhar para os trabalhadores do comércio informal e seus clientes, os quais eram os principais ocupantes da região. Dessa maneira, segue-se para uma observação baseada nas segmentaridades do espaço e das performatividades que o ocupam. Para isso, além dos conceitos e autores já trazidos no texto, o olhar do sociólogo Pierre Sansot (1971/2004) foi importante para a observação da relação dos corpos com o espaço, principalmente por tratar da influência da intimidade na apropriação espacial.

Segmentaridade Linear

A partir de alguns dos processos que compõem a segmentaridade linear do entorno do Mercado de São José, no Recife (Figura 2), buscou-se contextualizar a história da formação do lugar; caracterizar alguns grupos de usuários da área; e trazer algumas legislações atuantes. Com essas informações, começamos a entender como se constituem as estruturas de ocupação do comércio informal que existiam no espaço e as performatividades que as conformavam e por elas eram conformadas.

Créditos. Editado por Dias e Leite (2021)

Figura 2: Área de Aplicação da Pesquisa  

O bairro de São José é uma das primeiras áreas ocupadas da cidade do Recife. O seu processo de ocupação começa na primeira metade do século XVII com a invasão holandesa. A antiga ilha de Antônio Vaz, onde atualmente se localizam os bairros de São José e Santo Antônio, é escolhida para ser o lugar no qual se levantaria o centro da ocupação holandesa (Figura 3). Essa escolha acontece pela existência de um déficit habitacional para a população menos abastada, principalmente os funcionários da Companhia das Índias Ocidentais, empresa holandesa de mercadores, e para facilitar “a comunicação com o resto do continente” (Menezes, 2015, p. 81).

Créditos. Editado por Dias e Leite (2021)

Figura 3: Mapa da Antiga Ilha Antônio de Vaz, Atuais Bairros de Santo Antônio e São José 

A ocupação da ilha foi planejada pelo arquiteto holandês Pieter Post com um plano urbanístico, em 1639. O plano previa a construção de duas pontes, que conectam a ilha de Antônio de Vaz e a do Recife - núcleo portuário e ocupação inicial -, e os usos residencial, comercial e institucional. Na porção norte da ilha - atual bairro de Santo Antônio -, foram implementados os usos institucional e comercial, enquanto que na parte sul - atual bairro de São José -, prevaleceu o uso residencial, o qual se destinava a uma população mais pobre (Menezes, 2015).

No século XIX, os bairros do Recife, Santo Antônio e São José já apresentavam uma ocupação densa. Inicia-se, então, um processo de expansão e de modernização dos bairros coloniais. Para tanto, a atuação urbanística buscava a instalação de um conjunto de equipamentos nos bairros do Recife, Santo Antônio e São José com o intuito de consolidar uma imagem de centro da cidade. Entre esses equipamentos estava o Mercado de São José (1875), que foi instalado onde já havia uma feira de rua, e foi feito em arquitetura de ferro. A partir do século XX, as camadas mais ricas da população passaram a fazer compras nos novos supermercados nos subúrbios, e a feira e o Mercado de São José continuaram a ser utilizados por uma população menos abastada.

Atualmente, a área continua extremamente comercial e, até 2019, as ruas entre a quadra do Mercado eram ocupadas predominantemente por corpos de clientes e trabalhadores do comércio informal, o que ainda adicionava à atmosfera local a coexistência entre o formal e o informal (Figuras 4 e 5). Esses corpos construíam uma linguagem da rua, expressa ao longo da história, e das configurações dos fluxos políticos que ali ope raram - regidos tanto pelas legislações municipais e federais, como pelas lógicas das ocupações informais. Desse modo, os comerciantes e trabalhadores, misturados com os usuários atraídos pelas mercadorias, participaram da construção de uma narrativa histórico-cultural do bairro, determinada por práticas coletivas, experiências e memórias do lugar.

Créditos. Lígia Dias

Figura 4: Feira no Entorno do Mercado de São José 

Créditos. Lígia Dias

Figura 5: Feira no Entorno do Mercado de São José  

Como discutido por Merleau-Ponty (1945/2006), a linguagem pode ser gestual, e é assim a configuração da linguagem da rua discutida nesta pesquisa. Os usuários performam o seu papel de acordo com o lugar em que estão, no caso, a quadra do Mercado de São José. Afinal, fora de casa, “não somos mais maridos, esposas ou filhos, mas os homens e as mulheres que falam forte, como respiram, andam e digerem” (Sansot, 1971/2004, p. 266). Na rua, os corpos não estão submetidos a uma estrutura familiar e podem se libertar de alguns desses vínculos. Esse entendimento converge com a discussão trazida por Butler (2015/2019) sobre o corpo nos espaços públicos e privados. Para a autora, o corpo do espaço privado é passivo, enquanto que no espaço público ele possui a capacidade de ação e transformação política por meio da performatividade.

A partir da contextualização histórica da área e da observação realizada em campo, foram identificados alguns grupos predominantes de usuários. São eles: os trabalhadores do comércio informal, os clientes e os transeuntes da área. Os trabalhadores do co- mércio informal - ocupantes diários - possuíam uma maior intimidade com o espaço, a qual acabava por produzir performatividades mais relaxadas e ágeis na hora de agir. Os trabalhadores do comércio informal ditavam o ritmo da área e os horários de maior intensidade de utilização do espaço. Segundo Sansot (1971/2004), o conhecimento íntimo da rua provoca uma sensação de posse do espaço, porque o sujeito passa a ter uma atitude mais autoritária em relação aos acontecimentos do espaço.

Os clientes precisavam de acompanhar o ritmo e adaptar-se ao jeito dos trabalhadores do comércio informal. Os clientes que possuíam uma maior familiaridade com o lugar conseguiam interagir de maneira mais harmônica, inclusive incorporavam em suas performatividades o ritmo dos trabalhadores do comércio informal no seu caminhar e gesticular. Diferentemente, os visitantes esporádicos da área se movimentavam com mais calma, principalmente os turistas que, segundo Sansot (1971/2004), possuem “um ar de dominados” (p. 265) pelo espaço; falta a familiaridade para se sentirem confortáveis. Já os transeuntes eram as pessoas que circulavam sem interagir com o comércio à sua volta. Utilizavam a área como uma passagem para os seus percursos pessoais e, por isso, normalmente, não carregavam sacolas e nem possuíam uma postura ou o olhar atento às mercadorias ao seu redor.

Outro aspecto importante, segundo uma perspectiva das segmentaridades lineares, são algumas leis estabelecidas pelo estado em nível municipal e federal e atuantes na área, pois essas legislações se desdobram também como uma maneira de controle para os aspectos da atuação do corpo. Uma das imposições mais abrangentes em termos de espaço aos bairros de Santo Antônio e São José é a divisão da cidade em regiões político administrativas (RPA). Os bairros de Santo Antônio e São José pertencem à RPA 1, que acolhe todo o núcleo da formação inicial da cidade. Além disso, esses bairros são uma zona especial de preservação do patrimônio histórico e cultural, com o objetivo de preservar tanto alguns edifícios representativos dos séculos XVIII ao XX, como o “traçado primitivo da trama urbana em certos trechos” (Lei n.º 16.176/96, 1996). É importante apontar que o edifício do Mercado de São José é tombado em nível federal, desde o seu centenário, em 1973, por conservar a sua estrutura de ferro e ser o edifício mais antigo pré-fabricado do Brasil (Figura 6).

Créditos. Lígia Dias

Figura 6: Mercado de São José  

Há também outras legislações2 importantes para serem apontadas aqui, por acrescentarem questões na discussão sobre as camadas do normativo. Dentre essas leis, as municipais tratam, principalmente, das questões relacionadas aos limites entre o passeio público e as edificações e as obrigações do proprietário do imóvel com os cuidados de manutenção da calçada. Já a normativa federal, recomendada pela lei municipal como modelo para projeto, debruça-se e pormenoriza mais os detalhes relacionados ao desenho do passeio, ao orientar para o desenho universal3 (ABNT, 2015).

Segmentaridade Circular

Numa leitura da área segundo algumas segmentaridades circulares, pudemos compreender algumas lógicas de ocupação do espaço pelos seus usuários. Como visto, um dos grupos de usuários predominantes era o dos trabalhadores do comércio informal, responsáveis por ocupar o espaço de maneira mais fluída e menos normatizada. Por isso, entender as lógicas de ocupação do entorno do Mercado de São José foi para nós perceber o embate e a coexistência entre as intervenções formais e informais construídas por meio do corpo performativo.

A localização histórica da feira no bairro impulsionou a criação do Mercado de São José, ainda no século XIX. Consequentemente, nos dias de hoje, o Mercado funciona como uma centralidade do comércio popular do centro do Recife e balizou as instalações das barracas dos trabalhadores do comércio informal, as quais ocupavam principalmente os limites do edifício do Mercado, mas também os limites da praça Dom Vital, as ruas que cercam a quadra e as ruas que levam à quadra do mercado. Assim, apesar de as barracas do comércio informal não serem legalizadas, elas estavam instaladas a partir de um centro de atração da estrutura formal da cidade, o mercado de São José, ou seja, segundo uma lógica concêntrica de ocupação, relacionando-se a uma estrutura macropolítica (Figura 7).

Créditos. Editado por Dias e Leite (2021)

Figura 7 Manchas de Ocupação do Comércio Informal até 2019 de Acordo Com a Sua Densidade 

Mesmo com uma conformação da segmentaridade circular de forma mais dura em relação a uma visão macro da área, vale relembrar como as diversas segmentaridades sempre coexistem e isso não é diferente na área estudada. Ao direcionar o olhar para uma escala menor - o recorte propriamente dito da nossa observação na cidade -, foi possível perceber diversos círculos de maior densidade com centralidades distintas, aproximando-se mais de uma organização com a lógica micropolítica. Os trabalhadores do comércio informal ocupavam os entres existentes no espaço formal: áreas abertas a novas possibilidades de acordo com a apropriação feita pela população. Essas áreas são regulamentadas pelo poder estatal, porém a ocupação das barracas sobressaia às forças normativas, até o momento da sua remoção completa.

Uma maneira de olhar para a ocupação dos entres no entorno do mercado pelos trabalhadores do comércio informal é partir da constituição de suas performatividades. A ocupação espacial dos entres pelos trabalhadores do comércio informal é possível graças a uma performatividade coletiva. A partir de Hannah Arendt, Butler (2015/ 2019) fala sobre o poder da coletividade de criar no espaço público uma localização. Para Butler (2015/ 2019), essa localização é realizada por uma performatividade que reivindica os seus direitos: “as reivindicações da ação corporal, do gesto, do movimento, da congregação, da persistência e da exposição à possível violência” (p. 84). Além disso, a performatividade como uma coletividade acontece no entre corpos, “um espaço que constitui o hiato entre o meu próprio corpo e o do outro. Na realidade, a ação emerge do entre, uma figura espacial para uma ação que tanto vincula quanto diferencia” (Butler, 2015/ 2019, p. 86). Dessa maneira, a ocupação dos entre-lugares na área estudada reflete também uma relação da constituição performativa do grupo dos trabalhadores do comércio informal.

Em sua maioria, a ocupação das barracas do comércio informal nos entres da área estudada estava estabelecida em limites espaciais e, assim, tangenciava os imóveis públicos e privados da área - os quais em sua maioria são lojas - e a praça Dom Vital. Apesar de a ocupação se comportar de maneira rizomática em relação à espacialidade, pois se localizavam nos entre-lugares, as barracas possuíam uma organização relativamente rígida no tocante à distribuição dos itens comercializados, porquanto foi possível fragmentar a área de acordo com os tipos de mercadoria vendidos nas concentrações mais densas de barracas. São eles: produtos diversos; panelas, produtos em couro e roupas; hortaliças, legumes e frutas; e flores e ervas (Figura 8).

Créditos. Editado por Dias e Leite (2021)

Figura 8: Os Vários Círculos de Ocupação na Área  

As segmentaridades do tipo circular que existiam na área estudada mostram como coexistem as diversas maneiras de se conformar de uma segmentaridade. Elas sempre se arranjam e compõem as peculiaridades de cada organização social. No caso aqui analisado, inicialmente, tem-se uma organização concêntrica, o Mercado de São José é tomado como o centro de ocupação e atração pelos trabalhadores e usuários da área. Em seguida, os trabalhadores do comércio informal, a partir de uma lógica descentralizada e oriunda de suas constituições performativas, ocupam os espaços livres e limítrofes aos equipamentos públicos e lojas, os entres. No entanto, a maneira como esses trabalhadores estruturam e localizam as suas barracas é orientada pelo tipo de mercadoria comercializada, sendo que cada tipo de mercadoria funciona como um centro de atração de ocupação. Dessa maneira, a Figura 9 procura sintetizar, através de um esquema gráfico, as coexistências entre as estruturas micropolíticas (descentralizadas) e macropolíticas (um centro) na ocupação espacial da área. Vale reforçar como as diversas conformações das segmentaridades funcionam conjuntamente e perpassam os vários aspectos da sociedade, inclusive, as estruturas da cidade e a sua influência nas performatividades dos seus usuários.

Créditos. Lígia Dias

Figura 9: Esquema Para Representar a Conformação da Segmentaridade Circular na Área de Estudo 

Segmentaridade Binária

A partir do entendimento das dualidades existentes nas segmentaridades binárias, busca-se caracterizar aspectos da relação entre o corpo e a área de estudo, para interpretar as relações de apropriação do espaço urbano pelos corpos performativos. Para isso, serão relacionadas a performatividade, as estruturas espaciais e as legislações, como as de ordenamento e do controle do espaço urbano. O principal instrumento para a caracterização dessa segmentaridade foi o levantamento fotográfico do espaço e a criação de esquemas gráficos, como exemplificado na Figura 10. Desse modo, o processo de caracterização da segmentaridade binária acontece, inicialmente, a partir dos fragmentos espaciais identificados na área por meio da segmentaridade circular (Figura 8). Em seguida, os usuários da área são identificados em trabalhadores do comércio informal, clientes e transeuntes. O objetivo é evidenciar a relação dos corpos com as estruturas espaciais existentes e observá-los através das normas atuantes.

Créditos. Lígia Dias

Figura 10: Modelo de Leitura Utilizado nas Fotos Durante a Pesquisa 

A rua das Calçadas, localizada a oeste do Mercado de São José, é ocupada principalmente por lojas e é muito frequentada pelos usuários da região, pois, além da oferta de produtos, é uma das principais ruas de ligação do Mercado de São José com os pontos de ônibus e os estacionamentos próximos. Em quase toda a sua extensão, a rua das Calçadas era ocupada por barracas do comércio informal. A partir da leitura das fotos, percebeu-se como as barracas eram móveis e compostas por materiais improvisados, como lonas, tábuas, guarda-sóis e carros de mão, ocupando o espaço limiar entre a calçada e a rua. Além disso, dividiam espaço com alguns quiosques instalados pela prefeitura, nos quais os comerciantes fizeram ampliações que adentram o passeio da calçada. Essa ocupação das barracas se adensava nas proximidades do mercado e deixava os corpos mais próximos. Os trabalhadores do comércio informal permaneciam escorados em suas barracas, manuseavam produtos e interagiam com os clientes que passavam atentos às mercadorias expostas. Já os transeuntes tinham um caminhar mais desatento ao ambiente, conforme já referido.

Diferentemente da rua das Calçadas, as ocupações informais destinadas a vender panelas, roupas e produtos em couro possuíam uma estrutura mais ampla e uma semiformalidade, devido à existência de uma coberta fixa em estrutura metálica insta- lada pela prefeitura. Essa coberta ficava em uma calçada mais larga, que foi ocupada pelos trabalhadores do comércio informal. No entanto, os materiais utilizados por eles para estruturar o espaço interno eram os mesmos utilizados para erguer as barracas: lonas, guarda-sóis, tábuas, entre outros. Por conta do espaço mais amplo e da estrutura fixa da coberta, os comerciantes informais possuíam uma performatividade menos resguardada nessa área e passavam grande parte do tempo sentados, com exceção da hora de interagir com os clientes. Os clientes podiam adentrar o espaço e manusear os produtos, além da possibilidade de experimentá-los.

A área de hortaliças, legumes e frutas tinha a maior densidade de barracas e estava localizada no entorno do edifício do Mercado de São José e nos limites da praça Dom Vital. Ela funcionava de segunda a sábado e influenciava bastante o ritmo e a intensidade de utilização da área pelos transeuntes. As barracas possuíam características rudimentares, pois eram feitas de materiais improvisados, como também foi visto nas outras áreas, além de variarem bastante de tamanho de uma para outra. Por conta da grande densidade de barracas, o percurso na área funcionava como um labirinto, no qual os corpos dos clientes se perdiam entre as mercadorias. Os trabalhadores do comércio informal e clientes interagiam com os produtos e entre si. Além disso, a praça Dom Vital era amplamente utilizada no fim da tarde por trabalhadores homens como um momento de descanso e interação entre os pares antes do retorno para casa.

Por último, tinha-se a área destinada a vender flores e ervas, a qual era uma sequência de quiosques fixos instalados pela prefeitura. As fachadas dos quiosques vol tadas para o mercado funcionavam como uma continuidade das barracas com hortaliças, legumes e frutas, inclusive, complementando os produtos vendidos. Já as fachadas opostas são pouco utilizadas e estão de frente para edifícios com lojas no piso térreo. Dessa maneira, os corpos desse espaço acabam por serem os mesmos que utilizavam a área de hortaliças, legumes e verduras. Inclusive, os clientes chegam até os quiosques através do labirinto criado por essas barracas.

Resultados e Conclusões

A partir da aplicação em campo, foi possível constatar alguns aspectos discutidos no início deste artigo a respeito da leitura da cidade e dos corpos performativos que a ocupam enquanto atuações políticas. Inicialmente, vale pontuar como a relação entre a cidade e as performatividades limiares a uma normatividade não é pacífica e acaba por construir traços estruturais nos corpos performativos que refletem na apropriação do espaço. Por exemplo, de acordo com a estrutura político-jurídica brasileira, o que não está conforme a legislação pode ser considerado ilegal. Mas a estrutura político-jurídica reflete e legitima uma estrutura social desigualitária, pois a ilegalidade é uma maneira de invisibilizar uma camada da população, através do atravancamento do acesso aos direitos básicos. No recorte estudado, a invisibilização acontecia principalmente com o trabalhador informal, pois eles corriam o risco de remoção e apreensão das suas mercadorias a qualquer momento.

Por isso, mesmo praticando uma atividade não legalizada, o trabalhador informal busca uma adequação das suas intervenções no espaço a uma estrutura de organização normativa (alinhamento com ruas, calçadas e lojas, respeitando a circulação de pedestres e carros). No entanto, existe uma grande dificuldade de assimilação dos trabalha- dores do comércio informal pelas estruturas normativas de gestão do espaço urbano, o que acaba por provocar embates com a polícia. Uma maneira de olhar para esses con flitos é a partir do entendimento de espaços de aparecimento de Hannah Arendt (1958, como citada em Butler, 2015/2019), os espaços “onde o homem existe não apenas como as outras coisas vivas ou inanimadas, mas assume uma aparência explícita” (p. 82). Nesses espaços, o poder público sente-se no direito de invadi-los, tanto sua estrutura espacial como os corpos presentes, com o objetivo de normatizá-los e higienizá-los. Por exemplo, na área estudada, é recorrente o confronto dos trabalhadores do comércio informal com a prefeitura, através da utilização da força policial. Podemos ver a ação do poder público como uma maneira de neutralizar a força da ação do corpo performativo. Além disso, é possível observar essa situação para além das intervenções informais na quadra do Mercado de São José, a prática de homogeneização dos espaços da cidade parte de uma lógica de remoção e demolição de tudo o que não for considerado norma- tizado - ou regulamentado -, e isso, mais uma vez, diz respeito não só às estruturas espaciais, mas também aos corpos.

Outro ponto percebido é como o corpo performativo cria a partir do que vive. As intervenções espaciais realizadas pelos trabalhadores do comércio informal são constituídas de elementos adaptados, como tábuas, lonas, caixotes, entre outros, e, em sua maioria, possuem uma estrutura móvel. Essas características são semelhantes às outras estruturas informais que atravessam a vida das camadas mais pobres da sociedade brasileira. Por exemplo, as casas mais pobres são feitas também com materiais improvisados e locais ocupados ilegalmente. Dessa forma, apropriar-se de uma área da cidade e, através de uma intervenção espacial informal, possibilitar o seu estar na cidade é algo frequente em várias dimensões performativas dessas pessoas. É importante comentar as diferentes apropriações do espaço percebidas entre os homens e as mulheres, principalmente na praça Dom Vital, um lugar onde o estar é recreativo. No final do dia, a praça acomoda uma grande quantidade de usuários. Entretanto, a discrepância entre a quantidade de homens e mulheres é bem evidente. A performatividade construída histórica e socialmente nas mulheres da cidade do Recife é perpassada pela domesticidade, como exposto inicial- mente através das ideias de Leitão (2014). Dessa forma, ocupar corporalmente espaços públicos dominados pelos homens ainda se mostra um grande desafio performativo.

A partir dessa experimentação de análise empírica do entorno do Mercado de São José, chegamos a um “conceito síntese” sobre como se conformam os corpos e o espaço: os espaços performativos disruptivos. Tal conceito propõe um modo de ser do espaço

- uma possibilidade espacial - e toma como indispensável a presença do corpo per- formativo como produtor desse espaço. O termo disruptivo corresponde a um adjetivo oriundo do verbo romper, que pode significar interromper o curso regular, perturbar, atravessar, mas também significa dar começo a, penetrar, brotar. Assim, caracterizar o espaço do entorno do Mercado de São José e as performatividades que o fazem disruptivo significa reconhecer uma ruptura com a estrutura formal da cidade, tal como a origem de algo indispensável ao espaço formal. Por isso, o conceito de espaços performativos disruptivos é algo indissociável também dos corpos e suas performatividades, pois são eles que fazem o espaço e o significam através das suas vivências cotidianas.

Conclui-se que o olhar lançado para a área de estudo, através das segmentaridades, possibilita uma interpretação do espaço em várias dimensões e evidencia como a cidade pode e deve ser pensada para múltiplas performatividades, ao levar em consideração a estrutura espacial e os corpos considerados para além de suas medidas e pro- porções; corpos performativos carregados de estruturas sociais, culturais e históricas. Pois, como visto, os corpos performativos são uma categoria indispensável na formação dos espaços urbanos.

Contudo, o estado ainda tem uma grande dificuldade em pensar a cidade para os usuários que a habitam, investir e se planejar para as micropolíticas das ruas, como ficou registrado com a remoção realizada pela prefeitura do Recife dos trabalhadores do comércio informal do entorno do Mercado de São José. A prefeitura os colocou em um galpão a três quadras da antiga localização. Além de o galpão não ter sido suficiente para todos os trabalhadores removidos, a feira que precede a instalação do mercado, foi completamente descaracterizada e transformada em um estacionamento “desordenado”. Por isso, sugere-se aqui um caminho para se produzir uma reflexão sobre a cons trução de cidades mais acolhedoras. Apesar de esboçar caminhos sobre como pensar a cidade para todas as normatividades, pesquisas futuras poderiam contribuir sobre como instrumentalizar essa abordagem para que situações como a remoção dos trabalhado- res do comércio informal no entorno do Mercado de São José, que fere a imagem do centro do Recife, não se repitam.

Referências

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1 Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do mestrado no Programa de Desenvolvimento Urbano, na Universidade Fede- ral de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre e foi intitulada Performatividade e Cidade: Rupturas Normativas nos Espaços Limiares ao Mercado de São José (Dias, 2020).

2 As leis utilizadas em nível municipal são a Lei n.º 16.292/97 (1997) e suas atualizações: Lei n.º 16.890/03 (2003) e Decreto n.º 20.604/04 (2004) e, em nível federal, a Associação Brasileira de Norma Técnica (ABNT) estabelece a Norma Técnica (NBR) 9050 (ABNT, 2015).

3 O desenho universal foi desenvolvido para que projetos de produtos e ambientes possam ser utilizados por todos, ao considerar um corpo com medidas padrões

Recebido: 28 de Janeiro de 2021; Aceito: 31 de Março de 2021

Lígia Dias possui graduação em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco e é mestre em desenvolvimento urbano pela mesma universidade. Tem interesse e atua nas áreas de espaço público e corporeidades. Email: ligia.diass@gmail.com Morada: Rua Maria Jaboatão, 70/ 502, Várzea, Recife - PE, Brasil. CEP: 50740-360

Julieta Leite é doutora em sociologia pela Universidade René Descartes/Sorbonne (2010), é arquiteta e urbanista e mestre em desenvolvimento urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). Atualmente é professora do Curso de Arquitetura e Ur- banismo e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universida- de Federal de Pernambuco, membro do NusArq - Núcleo de Estudos da Subjetividade na Arquitetura, grupo de pesquisa registrado no CNPq, Conselho Nacional de Desenvol- vimento Científico e Tecnológico. Tem experiência na área de arquitetura e urbanismo, com ênfase em teoria e projeto de arquitetura, urbanismo e paisagismo, atuando princi- palmente nos seguintes temas: espaço público, paisagem, imaginário e usos sociais das tecnologias digitais no espaço urbano. Email: julieta.leite@ufpe.br Morada: Rua Deputado Cunha Rabelo, 110/403, Várzea, Recife - PE, Brasil CEP: 50740-400

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