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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.1 Braga jun. 2021  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3428 

Resenha

Recensão do livro A Cidade em Todas as Suas Formas

1Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal


La Rocca, F. (2018). A cidade em todas as suas formas (A. A. Ramos, Trad.). Editora Sulina. (Trabalho original publicado em 2013)

A obra A Cidade em Todas as Suas Formas da autoria do sociólogo Fábio La Rocca, publicada em 2018 pela Editora Sulina, no Brasil, é a tradução para língua portuguesa da obra original publicada em 2013, pela CNRS Éditions, sob o mesmo título.

Com inúmeros trabalhos publicados nas temáticas de sociologia do imaginário, comunicação e média, sociologia visual, cidades e espaços urbanos, neste livro, dividido em quatro capítulos, Fábio La Rocca presenteia os leitores, ao longo das páginas, com um passeio apaixonado pelo universo citadino, sendo, assim, capaz de suscitar reflexões acuradas e atualizadas sobre as infinitas possibilidades urbanas em constante metamorfose. Frequentemente resgatando obras de Simmel, Heidegger, Baudrillard, Maffesoli, entre outros, é-nos fomentado um desassossego: afinal, é necessário aprender a pensar com os olhos as ambiências urbanas.

Com o intuito de elaborar uma flânerie literária pelos capítulos, passamos a registar abaixo algumas impressões e reflexões que a obra despertou.

Deambular por Ambiências Urbanas Numa Climatologia Atual

Numa primeira paragem, La Rocca apresenta, em forma de pergunta, uma síntese das próximas páginas. “De que maneira olhar a cidade?” (La Rocca, 2013/2018, p. 17). Haveria, perguntámos, uma maneira mais correta de ver o espaço urbano? Reconhecendo essa impossibilidade, é proposto pensar, então, em novas maneiras de perceber, com preender, sentir e viver a(s) cidade(s). Para isso, é necessário deambular por seus caminhos e experienciar sua “pele” arquitetónica, suas formas, estilos, identidades e fragmentos. Até que a urbe, como Calvino (1972/1990) refere, responda a uma pergunta nossa.

Nessa climatologia contemporânea, compreende-se a mudança de paradigma urbano que o La Rocca evoca. As cidades lineares, oriundas do racionalismo estrutural à Le Corbusier cedem espaço, como que numa ecdise, às cidades pós-modernas de Robert Venturi e Denise Scott-Brown, que preveem a explosão de formas, situações abertas e uma estética da diversidade.

Nessa deambulação urbana, forma e modalidades da cidade física são interpretadas ao lado da sensibilidade da experiência estética dos diferentes sujeitos responsáveis por dar sentido ao lugar. Esse encontro profícuo entre espaço e socialidade, resgatado sob a análise heideggeriana do “ser-cidade”, é elucidado como “um processo de elaboração simbólico do espaço que emerge nas práticas da vida quotidiana” (La Rocca, 2013/2018, p. 20).

As cidades são compreendidas, dessa maneira, como uma poética sensível que reflete seu espírito pós-moderno, seja (a) através da cidade-corpo arquitetónica com formas sinuosas, ícone de beleza que espacializa o imaginário e funciona como um medium ao realizar o transporte de narrativas polissêmicas; (b) a partir da cidade-cyborg caótica, espetáculo gigante, resgatada pelo autor na metáfora blade runnerização; ou (c) na compreensão dos “superlugares” - neologismo associado à ideia de não-lugar em Marc Augé (1992/2016), em obra publicada no ano de 1992 - de atração psicofísica que se espalham pelas metrópoles, alterando e se configurando como espaços magnéticos para consumo não apenas de objetos, mas principalmente de desejos, pulsões e sonhos.

Imaginário(s) Urbano(s)

No segundo capítulo, intitulado “Formas do Imaginário Urbano”, a cidade reafirma-se enquanto um grande laboratório de investigação do social ao se tornar uma personagem cinematográfica. Objeto de numerosas análises nos últimos anos, o cinema foi visto por Marc Ferro (1977/1992), na década de 70 do século XX, como aquele que oferecia uma contra-análise da sociedade. No seguimento dessa premissa, observa-se que a magia desse medium seria a de contribuir na produção e propagação de um imaginário social e de mapas mentais. Na esteira dessa ideia, valendo-se de inúmeras referências, La Rocca depreende que uma das possibilidades de imaginários urbanos está intrinsecamente relacionada com o mundo das imagens no cinema. Em suas palavras: “o cinema se apresenta como a produção de uma cultura urbana capaz de nos mostrar e de nos fazer enxergar a vastidão das formas da paisagem urbana que, consequentemente, se tornam paisagens cinematográficas” (La Rocca, 2013/2018, p. 81). Assim, é na visualidade do cinema que conseguimos experimentar e verificar a complexidade da(s) forma(s) urbana(s), numa nova cartografia mental criada individualmente em cada um(a) da audiência.

Essa análise caminha na direção de uma fenomenologia da percepção, proposta por Merleau-Ponty no ano de 1945, como bem refere o autor. O cinema realiza, nas considerações de La Rocca, um convite à reflexão da relação individual dos sujeitos com o es paço e redesenha, dessa maneira, uma “geografia íntima” da cidade. Entretanto, nessa intimidade haveria espaço para enxergar-se em comunidade?

Tecendo considerações sobre a cidade coletiva, ou melhor, a cidade dionísica (Maffesoli, 2003) em que nos embebedamos e flanamos (Baudelaire, 1976, como citado em La Rocca, 2013/2018), La Rocca traz uma outra sugestão de imaginário urbano: a hype city. Nesse ponto, é considerada uma cartografia urbana do divertimento, do “sensacionalismo dos prazeres”, da “religação tribal”. Diversos episódios festivos da city tornam-se medium da “excitação nervosa mobilizando todos os sentidos. Uma mobilização total e sinestésica das energias que acompanha a ideologia do divertimento” (La Rocca, 2013/2018, p. 109).

Independentemente de como e onde, a partir desse ponto é possível interpretar a cidade em “um processo contínuo de transformações e de transfigurações dos seus próprios espaços” (La Rocca, 2013/2018, p. 125). O autor desestrutura e reestrutura a urbe a partir da narração coletiva de situações infinitas que acontecem no quotidiano. Comunicação e comunidade. Num dinamismo existencial, pedaços de vida, lugares de socialidade e espaços (sensíveis) de emoções concebem e significam, num processo ritualístico originado pelos sujeitos, seguindo a linha de James Carey (1992), aquilo que hoje conhecemos como a realidade simbólica da/na cidade. São as práticas coletivas que “conferem sentido, valores e significações ao espaço” (La Rocca, 2013/2018, p. 135). Não há cidade sem seus habitantes.

Ver e Pensar com os Olhos

No terceiro ponto, há uma crescente solicitação visual oriunda da proliferação da imagem nas cidades que, por sua vez, experienciam um continuum elaborar quotidiano de experiências e possibilidades. As formas urbanas são, então, consideradas como um polígono de sinais. “Nós nos vemos numa posição de relação com essa solicitação visual como nunca antes vista, uma solicitação apta a exercer um poder de fascinação, de atração, mas também de repulsão” (La Rocca, 2013/2018, p. 158). Martins (2011), na obra Crise no Castelo da Cultura: Das Estrelas Para os Ecrãs, já atestava que a “imagem constitui a própria forma da nossa cultura” (p. 77).

Nesse percurso guiado por inúmeros stimuli visuais pelas cidades, entretanto, podemos adotar a atitude blasé simmeliana como forma de uma certa proteção ou realizar uma flânerie visual seja nas deambulações diárias ou nos entre-caminhos para o devir incontrolável. Em transportes ou ao ar livre, sentados no interior de um café, por exemplo, é necessário (re)aprender a ver a cidade por trás desse vidro-tela.

Nessa travessia urbana da climatologia pós-moderna, sem certezas e promessas, “aparece então uma constelação comunicacional, que é bem o sinal de uma espacialização estética a partir da qual um percurso do imaginário urbano é acionado” (La Rocca, 2013/2018, p. 165). Há espaço, então, para (a) tocar (com) o olhar através da publicida- de exterior, corpo social, forma de comunicação e expressão cultural que contribui para desenhar um espaço urbano - e inibir ou mesmo impedir outros (Pires, 2007) -; e

(b) para manifestar um “ser-no-mundo” a partir dos graffiti, interpretados por La Rocca (2013/2018) como códigos visuais e linguísticos, tatuagens na “pele” urbana, “ícones que produzem um imaginário visual que se incrusta nos interstícios urbanos, e que tornam as ruas similares a galerias de arte a céu aberto” (p. 211).

Navegando por Cidades Híbridas

Após percorrer a gramática visual urbana que se configura como uma “metáfora emocional e ao mesmo tempo simbólica” (La Rocca, 2013/2018, p. 211), no quarto capítulo, é apresentada a tecnópolis. Ao iniciar este percurso, La Rocca nos provoca com a pergunta do arquitecto Cedric Price, que remonta a década de 60 do século XX: “se a tecnologia é a resposta, qual seria a questão?” (La Rocca, 2013/2018, p. 213).

Ao pensar as metrópoles cada vez mais permeadas pelo tecnodigital, invariavelmente novas formas de viver e habitar esses espaços despoletam no quotidiano. Essa fusão urbana, onde a “technè entra em fusão com o bios” (La Rocca, 2013/2018, p. 217), é vista a partir dos tópicos interconexões mediáticas, espacialidades tecnodigitais e second city.

Na climatologia contemporânea, a vida e presença humana na urbe - sempre on ou available - é registada e partilhada num imprinting digital tribal; ampliada e “orientada” - e algumas vezes possibilitada - pela presença tecnológica, em que um exemplo possível são as modulações digitais de deambulação digital como Google Maps, Google Earth, Drive & Listen, entre outros.

Seria essa a despedida do flâneur/flâneuse que circula pelas galerias e ruas inebriado pelas ambiências mil?

Em consonância com as ideias de Leite (2006), compreende-se, a metamorfose da personagem baudelairiana. Afinal, nessa nova concepção de espaço, ou melhor, nessa second city, onde se potencializam as capacidades de comunicação e armazenamento de informação - o ciberespaço - há espaço para a ciberflânerie. Na pós-moderna “arquitetura de bits”, há espaço para um “ser-cidade” reconfigurado ontologicamente, nutrido e habitado de maneira simbiótica, interativa e cada vez mais híbrida.

O passeio chega ao seu fim quando as páginas deixam de surgir, mas segue como um valioso contributo epistémico em nossa flânerie do conhecimento sobre a(s) cidade(s) em todas as suas formas.

Agradecimentos

Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020

Referências

Augé, M. (1992/2016). Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade (M. S. Pereira, Trad.). Livraria Letra Livre. [ Links ]

Calvino, I. (1990). Cidades invisíveis (D. Mainardi, Trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1972) [ Links ]

Carey, J. (1992). A cultural approach of communication. In J. Carey (Ed.), Communication as culture. Essays on media and society (pp. 13-36). Routledge. [ Links ]

Ferro, M. (1992). Cinema e história (F. Nascimento, Trad.). Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1977) [ Links ]

La Rocca, F. (2018). A cidade em todas as suas formas (A. A. Ramos, Trad.). Editora Sulina. (Trabalho original publicado em 2013) [ Links ]

Leite, J. (2006). Da cidade real à cidade digital: A flânerie como uma experiência espacial na metrópole do século XIX e no ciberespaço do século XXI. Famecos, 13(30), 99-105. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2006.30.3380 [ Links ]

Maffesoli, M. (2003). O eterno instante. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas (R. Almeida & A. Dias, Trad.). Instituto Piaget. [ Links ]

Martins, M. L. (2011). Crise no castelo da cultura: Das estrelas para os ecrãs. Grácio Editor. [ Links ]

Pires, H. (2007). Gritos na paisagem do nosso interior: A publicidade outdoors e a experiência sensível, nos percursos do quotidiano: à deriva por entre lugares imaginários (Tese de Doutoramento, Universidade do Minho). RepositóriUM. http://hdl.handle.net/1822/7100Links ]

Recebido: 11 de Maio de 2021; Aceito: 14 de Junho de 2021

Thatiana Veronez é doutoranda em ciências da comunicação na Universidade do Minho. É investigadora da Passeio - Plataforma de Arte e Cultura Urbana do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS). Os seus interesses de investigação incluem as temáticas da comunicação cultural, com especial interesse em questões dos estudos urbanos e arte visual urbana, cultura visual televisiva, e estudos de género e sexualidade. Email: b12277@ics.uminho.pt Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga

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