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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

Print version ISSN 2184-0458On-line version ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.9 no.1 Braga June 2022  Epub May 01, 2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3527 

Artigos Temáticos

Corpo Estendido Versus Corpo Intercultural: Reflexões Sobre o Uso dos Meios de Comunicação e a Interculturalidade

1Centro de Comunicação e Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil


Resumo

Esse artigo busca refletir sobre a relação entre a extensão da percepção, prevista pela teoria dos meios de Marshall McLuhan (1964/2016), e a organização de uma sociedade intercultural, baseada nos estudos de autoras como Maria Aparecida Ferrari (2015), Lisette Weissmann (2018) e Natália Ramos (2013). Partindo do conceito de extensão, como afirma McLuhan, de que os meios de comunicação são capazes de ampliar o alcance do próprio sistema nervoso, pretende-se pensar nessa extensão da percepção como uma extensão virtualizada do próprio corpo humano. Tomando essa premissa, busca-se entender quais as consequências desse fenômeno em relação à constituição de uma cultura globalizada. Ou seja, busca-se responder à seguinte questão: basta o corpo ser estendido virtualmente pelos meios digitais para se constituir uma sociedade globalizada e ética, ou seria necessária uma estratégia de comunicação intercultural para que isso ocorra? Dessa forma, parte-se da hipótese de que não basta o corpo estar estendido virtualmente pelos meios de comunicação para se organizar como uma cultura globalizada, mas sim que seria necessária uma estratégia de comunicação intercultural para desenvolver uma cultura globalizada, onde as trocas de informação sejam equilibradas, e para que se desenvolva uma relação ética entre as diferentes culturas. Essa reflexão tem o propósito de evitar que a relação globalizada entre as culturas se transforme em mais uma maneira de imposição de modelos culturais etnocêntricos. Por isso, acredita-se que é preciso desenvolver uma sociedade globalizada que respeite as diferentes culturas, mais do que um corpo expandido pelos meios de comunicação. Dessa forma, torna-se necessário desenvolver um corpo intercultural, para que seja possível resgatar a alteridade da sua falência, bem como, a própria sociedade.

Palavras-chave: meios de comunicação; extensão; interculturalidade

Abstract

This article seeks to reflect on the relationship between the extension of perception, predicted by Marshall McLuhan’s media theory (1964/2016), and the organization of an intercultural society, based on the studies of authors such as Maria Aparecida Ferrari (2015), Lisette Weissmann (2018) and Natalia Ramos (2013). Starting from the concept of extension, as stated by McLuhan, that the media can expand the reach of the nervous system itself, it is intended to think of this extension of perception as a virtualized extension of the human body itself. Taking this premise, we seek to understand the consequences of this phenomenon in the constitution of a globalized culture. In other words, it seeks to answer the following question: is it enough for the body to be extended virtually by digital media to constitute a globalized and ethical society, or would an intercultural communication strategy be necessary for this to occur? Thus, it starts from the hypothesis that it is not enough for the body to be virtually extended by the media to organize itself as a globalized culture, but that an intercultural communication strategy would be necessary to develop a globalized culture, where exchanges information are balanced, and to develop an ethical relationship between different cultures. This reflection intends to prevent the globalized relationship between cultures from becoming another way of imposing ethnocentric cultural models. Therefore, it is believed that it is necessary to develop a globalized society that respects different cultures more than a body expanded by the media. In this way, it becomes necessary to develop an intercultural body so that it is possible to rescue otherness and society from its disappearance.

Keywords: media; extension; interculturality

1. Introdução

O desenvolvimento de lentes possibilitou a revelação de dimensões antes desconhecidas pela humanidade: um micromundo e um macro mundo. Os telescópios revelaram aos olhos dos astrônomos a organização das órbitas dos planetas: o macro mundo. Os microscópios revelaram o universo dos microrganismos - bactérias, protozoários, entre outros - o que revolucionou a medicina e o tratamento e prevenção de doenças. Os meios de comunicação têm esse potencial: além de transmissores de informações, para Marshall McLuhan (1964/2016), eles são extensões da percepção humana, extensões do próprio sistema nervoso. Além disso, para o autor canadense, os meios, assim como a informação, alteram comportamento e consciência, tanto da sociedade, como dos indivíduos. Logo, os meios são informação pura, são mensagens.

Durante as idades mecânicas projetamos nossos corpos no espaço. Hoje, depois de mais de um século de tecnologia elétrica, projetamos nosso próprio sistema nervoso central num abraço global, abolindo tempo e espaço (pelo menos naquilo que concerne ao nosso planeta). Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensões do homem: a simulação tecnológica da consciência, pela qual o processo criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a toda a sociedade humana, tal como já se fez com nossos sentidos e nossos nervos através dos diversos meios e veículos. (McLuhan, 1964/2016, p. 17)

Essa visão diferenciada que McLuhan (1964/2016) tem sobre os meios de comunicação revolucionou as teorias da comunicação, inaugurando uma nova linha de pesquisa, a teoria dos meios. Partindo do entendimento de que os meios, mais do que transmissores, são extensões humanas, pretende-se recomendar a necessidade do estudo da relação entre o uso dos meios de comunicação e a visão da interculturalidade na formação de uma sociedade, para que se desenvolva o respeito pela multiplicidade de culturas que compõem os diferentes grupos humanos.

Entende-se, aqui, que a extensão dos sentidos humanos se desdobra como uma extensão do próprio corpo humano do indivíduo, e, consequentemente, do corpo social de uma comunidade, logo, a extensão promovida pelos meios acaba por estender o corpo do indivíduo, bem como, o corpo da própria sociedade.

Mediante essa reflexão inicial, este artigo busca observar a relação entre a extensão da percepção humana, prevista pela teoria dos meios de McLuhan (1964/2016), e a organização das relações interculturais num ambiente de comunicação globalizada e mediada pela utilização dos meios de comunicação digitais, pela internet e pelas redes sociais. Partindo do conceito de extensão, que prevê, como afirma o autor, que os meios de comunicação são capazes de ampliar o alcance do próprio sistema nervoso humano, pretende-se pensar na extensão da percepção como uma extensão virtualizada do corpo humano do indivíduo e da própria sociedade.

Se para o entendimento da relação entre o uso dos meios de comunicação e as transformações sociais, serão utilizados conceitos das teorias dos meios de McLuhan (1964/2016), para a análise da comunicação intercultural e a organização de uma sociedade global, serão utilizados os estudos de autoras como Maria Aparecida Ferrari (2015), Lisette Weissmann (2018) e Natália Ramos (2013).

Tomando essa premissa, a de que o uso dos meios de comunicação, principalmente os meios digitais, produz como efeito nos seres humanos uma extensão da percep ção, bem como do próprio corpo virtualizado, busca-se entender quais as consequên cias desse fenômeno. No entanto, como se trata de um assunto muito amplo, neste artigo, o estudo da relação dos efeitos do uso dos meios digitais e a extensão do corpo virtualizado estará focado na questão da necessidade de uma estratégia de comunicação intercultural, para o desenvolvimento eficiente dessa extensão dos sentidos pelos meios digitais, e a constituição de uma cultura global. Ou seja, busca-se responder à seguinte questão: basta o corpo ser estendido virtualmente pelos meios digitais para se constituir uma sociedade globalizada e ética, ou seria necessária uma estratégia de comunicação intercultural para que isso ocorra?

Dessa forma, para este artigo, parte-se da hipótese de que não basta o corpo estar estendido virtualmente pelos meios de comunicação digitais para se organizar, eficientemente, uma cultura globalizada, mas sim que será necessária uma estratégia de comunicação intercultural para desenvolver uma cultura globalizada, onde as trocas de informação sejam equilibradas, e para que se desenvolva uma relação ética entre as diferentes culturas.

No mundo aberto e plural atual, com a globalização e os novos meios e tecnologias de informação e comunicação, com os média, a internet, as facilidades de deslocação e os meios de transporte rápidos, a diversidade cultural, o Outro, as minorias étnicas têm um outro estatuto e imagem. A diversidade cultural e o Outro não estão longínquos, mas estão mais próximos e presentes no quotidiano, coabitam conosco nos espaços públicos, nas instituições, e reclamam respeito e direitos. (Ramos, 2013, p. 348)

Essa ação visa evitar que a relação globalizada entre as culturas, que os meios de comunicação digitais estão mediando, se transforme em mais uma maneira de imposição de modelos culturais hegemônicos e etnocêntricos, como já ocorreu anteriormente nos processos civilizatórios que foram produzidos, seja outrora pela colonização, seja mais recentemente pelo uso dos meios de comunicação de massa, como ocorreu no século XX. Por tudo isto, acredita-se que é preciso desenvolver uma sociedade globalizada que respeite as diferentes culturas. Mais do que um corpo expandido pelos meios de comunicação, é preciso desenvolver um corpo intercultural, para que seja possível resgatar a alteridade da sua falência, como descreve Byung-Chul Han (2010/2015), bem como evitar a fragmentação e a polarização da sociedade, como descreve Norval Baitello (2015).

2. Corpo Estendido ou a Extensão Através dos Meios

A atual polarização e fragmentação da sociedade, mediada pelo uso dos meios de comunicação digitais, e perceptível, principalmente, nos debates truculentos que ocorrem nas redes sociais, parece ser contraditória em relação à visão positiva, e quiçá utópica da unificação de uma aldeia global, preconizada pela teoria dos meios de McLuhan (1964/2016).

McLuhan (1964/2016) acreditava que a partir da extensão da percepção que os meios de comunicação produzem na constituição sensitiva humana, a sociedade global se aproximaria e desenvolveria relações coletivas que se assemelhariam à organização social de uma tribo, criando, enfim, uma sociedade global de interesses comuns e coletivos, ou seja, uma tribo globalizada: a aldeia global. Esse fenômeno o pesquisador denominava “tribalização”.

A aldeia global, é uma consequência da extensão da percepção humana e das alterações que produzem no comportamento humano. A partir da invenção dos meios elétricos houve um aumento do contato entre as culturas, e essa ampliação produz um efeito de trocas de informações e, consequentemente, uma uniformização das culturas, fenômeno que o autor acredita que vai produzir a aldeia global. Termo que parece antagônico, pois se refere ao contato global de culturas, que se aproximam convivendo de maneira mais próxima, como as relações dos indivíduos que compõem uma pequena tribo. Por isso, para McLuhan (1996), os novos meios de comunicação elétricos, posteriormente, os meios de comunicação em massa, são retribalizantes. A partir dessa conclusão, pode-se estender esse fenômeno de retribalização através dos meios de comunicação digital. Um exemplo que se pode dar desse fenômeno nas novas mídias digitais são os sites de relacionamento, como o Facebook, Twitter etc., onde os indivíduos se juntam em comunidades por interesses comuns, e não somente por questões de proximidade espacial, legal ou nacional. (Dugnani, 2018, p. 6)

A tribalização (ou a retribalização) se caracteriza por esse processo de aproximação de culturas diferentes, distribuídas em um espaço, e que se fundiriam pela mediação, ou seja, pelo uso dos meios de comunicação. Resumindo, o simples desenvolvimento e uso de novos meios levaria à criação de grupos humanos com interesses coletivos. Essa visão, diria funcionalista, de McLuhan (1964/2016) parece questionável, perante acontecimentos cada vez mais comuns de pulverização de culturas, ao invés de sua mistura, como afirma Baitello (2015). A utopia de uma aldeia global parece estar sendo substituída por uma refeudalização de comunidades virtualizadas, como acena Graham Murdock (2018). A unificação está sendo substituída por uma fragmentação, uma polarização, e isso nega a visão de McLuhan (1964/2016). Parece que a globalização potencializada pelo desenvolvimento tecnológico de novos meios com alcance global (como os meios elétricos, os meios de comunicação de massa e os meios digitais) esbarrou numa resistência desglobalizante, refletida na ideologia protecionista e fragmentária da organização política e social na contemporaneidade (Dugnani, 2018).

Por causa desses indícios protecionistas e de fechamento das frontei- ras, que têm sido apresentados, mais frequentemente, pelas propostas políticas das nações, este artigo investiga o movimento paradoxal dessas políticas, em relação ao movimento contrário dos meios de comunicação digital e a internet, que tendem a pressionar as populações para ampliação dos contatos, cada vez mais globalizados, dado ao alto potencial de alcance e extensão da percepção que esses meios são capazes de produzir nas relações humanas. Por causa dessa questão, parece surgir uma pergunta: será possível que o aparente movimento contrário à globalização, ou desglobalizante, poderá resistir à pressão globalizante dos meios de comunicação? (Dugnani, 2018, p. 2)

Mas o que McLuhan (1964/2016) não levou em consideração para desenvolver seu conceito de aldeia global?

Talvez o pesquisador tenha colocado muita confiança no desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação, se esquecendo de uma peça fundamental: o ser humano.

Os processos paradoxais de globalização e de fragmentação que ocorrem na sociedade na hipermodernidade (Lipovetsky & Serroy, 2014/2015; Rosa, 2005/2019) são mediados, até mesmo potencializados pelo advento, principalmente, dos meios digitais. Esse fato não pode ser negado. No entanto, qual o motivo para esse efeito tão contraditório: o de alto potencial de unificação, mas com um efeito vigoroso de fragmentação?

Para este artigo, a resposta para essa pergunta é que não basta o desenvolvimento tecnológico para criar uma sociedade global, a qual se caracterize por relações éticas de respeito das diferenças. Torna-se fundamental, para que isso ocorra, que os seres humanos desenvolvam uma postura e uma comunicação intercultural, para que seja possível chegar, um dia, a uma globalização justa, ou, quem sabe, à idealizada aldeia global de McLuhan (1964/2016).

Sendo assim, não basta que os meios de comunicação estendam virtualmente a percepção humana, ou seja, prolonguem o sistema nervoso humano, como afirma McLuhan (1964/2016). Torna-se fundamental o desenvolvimento de estratégias de comunicação para que o contato e a troca de informação entre diferentes culturas, mediadas pelos meios digitais (pela internet, pelas redes sociais), possam desenvolver uma consciência ética do uso dos meios e o respeito pela multiplicidade cultural das diversas comunidades que se espalham pelo mundo. Sem isso, toda globalização se manterá injusta, como afirma Milton Santos (2001), e a mistura de culturas se manterá como um processo multicultural, como afirma Weissmann (2018), ao invés de intercultural. Ou seja, ao invés das culturas se misturarem de maneira equilibrada, de forma intercultural, irá se manter a mesma dinâmica histórica e multicultural de sobreposição de culturas por uma visão etnocêntrica.

Enfim, a extensão dos meios de comunicação, que levaria a um processo de criação de uma aldeia global, segundo McLuhan (1964/2016), só será possível, na visão deste artigo, se o processo for desenvolvido por uma estratégia de comunicação intercultural, pois, senão, estará fadado a repetir os mesmos equívocos cometidos pela humanidade em processos como a colonização na Idade Moderna, ou o imperialismo na contemporaneidade.

Não basta estender os sentidos e a percepção humana, é preciso desenvolver estratégias que levem as diferentes culturas a se conhecer, para depois se compreenderem, e, por fim, aprenderem a respeitar-se. Ou seja, não basta apenas um corpo estendido, é preciso um corpo intercultural para criar uma sociedade globalizada e ética, uma verdadeira aldeia global.

3. Corpo Intercultural: Desafios e Possibilidades

A afirmação deste artigo, de que não é preciso apenas um corpo estendido, mas um corpo intercultural para o desenvolvimento de relações mais éticas e equilibradas no processo de globalizacão, é apoiada na constatação da fragmentação produzida pelos meios de comunicação digitais, como afirma Baitello (2015), e percebida, também, no desenvolvimento da sociedade hipermoderna. Afinal, na contemporaneidade hipermoderna observa-se a multiplicação das relações polarizadas percebidas, tanto nos contatos virtualizados nas redes sociais e nos meios digitais (tema desse artigo), quanto no contato físico, devido ao aumento dos movimentos migratórios e ao contato globalizado de diferentes culturas. “Na atualidade, segundo dados das Nações Unidas, uma, em cada trinta e cinco pessoas, é migrante internacional, constatando-se que, perto de 200 milhões de pessoas, vivem, hoje, fora dos seus países de origem, migrando essencial mente para as cidades” (Ramos, 2009, p. 10).

Por causa dessa constatação, muitos pesquisadores e instituições políticas estão se debruçando sobre o problema em busca de soluções. Ramos (2013) destaca em seu texto diversas entidades e países que tem desenvolvido projetos para analisar as relações culturais em seus territórios, entre eles: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Conselho da Europa, Comissão Europeia e Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural.

A diversidade intercultural e a gestão da(s) interculturalidade(s) são objeto de preocupação de vários organismos internacionais, nomeadamente a UNESCO, a OCDE, o Conselho da Europa e a Comissão Europeia, e nacionais tais como o ACIDI (Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural), os quais têm desenvolvido projetos e iniciativas variados, tendo em vista a promoção do diálogo intercultural, constituindo um dos campos mais importantes da contemporaneidade nos diversos domínios científicos e interventivos. Exemplo destas iniciativas foi a promoção pela Comissão Europeia e pelo Conselho da Europa, em 1997, do Ano Europeu contra o Racismo e a Xenofobia e, em 2008, do Ano Europeu do Diálogo Intercultural e do Projeto Europeu Cidades Interculturais. (Ramos, 2013, p. 345)

Pode-se observar essa preocupação, por exemplo, nos estudos realizados pela Professora Natália Ramos, do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da Universidade Aberta de Portugal: “Interculturalidade(s) e Mobilidade(s) no Espaço Europeu: Viver e Comunicar Entre Culturas” (Ramos, 2013) e “Diversidade Cultural, Educação e Comunicação Intercultural − Políticas e Estratégias de Promoção do Diálogo Intercultural” (Ramos, 2009).

O aumento da globalização, dos fluxos migratórios e da multiculturalidade faz com que os Estados e as diferentes instâncias sociais sejam confrontadas com uma grande heterogeneidade linguística e cultural dos seus utentes, profissionais e cidadãos, o que exige destas a adoção de práticas, de estratégias e de políticas adequadas para atender a essa nova realidade social, cultural, educacional, comunicacional e política. ( … ) Os fluxos migratórios têm vindo a aumentar atingindo todos os continentes e os di ferentes setores da vida pública, prevendo-se que, em 2050, as migrações internacionais atinjam os 230 milhões. O número de migrantes internacionais quase triplicou desde 1970. Em relação à União Europeia (UE), o número de migrantes provenientes de países extra europeus aumentou 75% desde 1980. É válido assinalar que, perto de 9% de migrantes do mun do, são refugiados 16 milhões de pessoas (PNUD, 2004). Só em 2005, os fluxos migratórios nos países da OCDE aumentaram 11% relativamente a 2004. Nesses países, os fluxos de estudantes estrangeiros também aumentaram mais de 40% desde 2000, assim como os fluxos de trabalhadores qualificados (OCDE, 2007). (Ramos, 2009, pp. 10-11)

Ramos (2009, 2013) apresenta em seus estudos dados sobre esse fenômeno de globalização física através das migrações, propõe a necessidade do desenvolvimento de novos métodos para encarar o problema, bem como apresenta estratégias desenvolvidas na Europa para buscar soluções para essa questão, que, como analisado por este artigo, se apresenta tanto pelo contato físico dos movimentos migratórios como pelos contatos virtualizados e globalizantes dos meios digitais, principalmente, pelo uso da internet e das redes sociais. Nesse sentido, concordando com Ramos (2013), é preciso desenvolver estratégias e métodos para desenvolver, pela comunicação, a interculturalidade.

Estas problemáticas implicam um novo reposicionamento metodológico e epistemológico, um novo paradigma ao nível da investigação, da formação e da intervenção no domínio das relações interculturais. A(s) interculturalidade(s) vêm colocar numerosas questões às práticas, estratégias e políticas relativas à gestão da interculturalidade e da comunicação, em particular da comunicação intercultural, bem como à gestão das interações entre o Eu e o Outro, à negociação dos processos psicossociais inerentes aos contactos interculturais e à negociação das identidades e dos conflitos. (Ramos, 2013, p. 344)

Porém, antes de apresentar projetos e estratégias que estão sendo utilizadas para resolver o problema criado pelo contato globalizado entre culturas, torna-se fundamental definir o que se entende por interculturalidade, e, para isso, é importante diferenciar, concordando com Ferrari (2015) e Weissmann (2018), dois conceitos: “multiculturalismo” e “interculturalidade”.

Essa necessidade de diferenciar multiculturalismo da interculturalidade, assunto frequente entre pesquisadores do tema, se faz premente, pois eles se caracterizam por duas posturas diferentes e contraditórias, que afetarão o desenvolvimento das relações entre diferentes culturas. Enquanto o multiculturalismo se baseia na questão da diferença, reconhecendo e classificando as múltiplas identidades culturais; a interculturalidade parte e se orienta de maneira inversa, pela questão da igualdade. Ou seja, não privilegia a classificação das diferenças como o primeiro, mas enfatiza a necessidade de contato e troca de informações entre as culturas, para formação de uma síntese cultural que possa refletir e mediar, de maneira ética e equilibrada, o contato entre diferentes comunidades, principalmente num ambiente globalizado, como se apresenta na hipermodernidade. Por isso, neste artigo, privilegia-se uma visão intercultural, em detrimento de uma postura multicultural.

Segundo Lívia Barbosa e Letícia Veloso (2007), o multiculturalismo e a interculturalidade são dois conceitos que merecem ser diferenciados um do outro. De acordo com as autoras, a noção de multiculturalismo vai além das políticas identitárias, pois trata das questões da diferença e da identidade sob a rubrica do “reconhecimento” da diferença. Esse conceito inclui não só identidades pessoais, mas também temas mais abrangentes, como as políticas multiculturais, os dilemas éticos relacionados à diversidade cultural e étnica, os conflitos interculturais e a questão da integração (individual e social) a novas comunidades políticas multiculturais e transnacionais. Também enfatiza a coexistência de vários diferentes no interior de um mesmo espaço e ao mesmo tempo, sem a necessidade de interação, com uma interação limitada ao mínimo necessário para a operação da vida cotidiana ou, ainda, circunscrita à dimensão pública e jurídica. Rodrigo Alsina (1997) entende por multiculturalismo a coexistência de distintas culturas em um mesmo espaço real, midiático ou virtual. O multiculturalismo marcaria o estado, a situação de uma sociedade plural a partir do ponto de vista de comunidades culturais em identidades diferentes. ( … ) Já o conceito de interculturalidade, segundo Barbosa e Veloso (2007) enfatiza o oposto: que a “comunicação” entre os diferentes que habitam em um mesmo espaço ao mesmo tempo se dá pela necessidade do estabelecimento de uma base comunicacional comum, a partir de sua mútua compreensão a respeito do que, naquele determinado contexto, deve ser o centro da comunicação. (Ferrari, 2015, pp. 51-52)

Partindo tanto do conceito de interculturalidade como de uma visão intercultural, agora é possível reafirmar, através de exemplos de estratégias de comunicação intercultural apresentados por Ramos (2013), a questão deste artigo: de que não basta, para criar uma comunidade globalizada, apenas uma extensão tecnológica produzida pelos meios, como preconizava McLuhan (1964/2016), mas que é preciso desenvolver uma consciência intercultural para que possa surgir uma globalização equilibrada e baseada no respeito entre as diferentes culturas. Ou seja, não basta um corpo estendido, é preciso um corpo intercultural.

Como exemplo, Ramos (2013) destaca o projeto Cidades Interculturais que visa analisar a questão da imigração e da diversidade cultural em países europeus e busca gerir esse fenômeno, para desenvolver estratégias que façam da diversidade cultural, não um problema, mas um fator de produção de riquezas e bem-estar coletivo para toda a comunidade.

O Projeto Europeu Cidades Interculturais tem como objetivo analisar o impacto da diversidade cultural e das migrações nas cidades europeias, onde mais de 20 países contam, pelo menos, com 5% de habitantes que nasceram no estrangeiro, e elaborar estratégias e políticas suscetíveis de ajudar as cidades a fazer da diversidade um fator de desenvolvimento, de enriquecimento e de bem-estar para todos. Este projeto visa a gestão da diversidade cultural nas zonas urbanas, de modo a fazer-se da cidade um espaço aberto e plural e um lugar privilegiado de diálogo intercultural. (Ramos, 2013, p. 345)

Para que isso ocorra, Ramos (2013) ainda enfatiza que é necessário desenvolver um novo “paradigma intercultural” (p. 352), o qual norteará a direção das pesquisas sobre interculturalidade, baseadas em questões como a heterogeneidade, pluralidade, descontinuidade, multiplicidade, complexidade, intervenção, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade na pesquisa. Esse novo paradigma buscará oferecer um reposicionamento das pesquisas, no sentido ético, além de se constituir por novas epistemes e métodos. Essa configuração deverá partir de três vertentes estruturantes: conceitual, metodológico e ético.

A globalização e a mobilidade das populações proporcionam o contacto de grande diversidade de culturas e identidades, vêm colocar desafios às populações autóctones e migrantes e às relações interculturais e exigir um novo paradigma na pesquisa e intervenção que denominámos de Paradigma Intercultural. Este paradigma vem introduzir a pluralidade, a heterogeneidade, a descontinuidade, a complexidade e a multi/interdisciplinaridade na pesquisa, formação e intervenção, implicando um novo reposicionamento metodológico, epistemológico e ético, assente em três vertentes estruturantes:

Conceptual - As diferenças culturais são definidas não como elementos objetivos com caráter estático, mas como entidades dinâmicas e interativas, que se dão sentido mútuo. A abordagem intercultural constitui uma outra forma de analisar a diversidade cultural, não a partir das culturas consideradas como entidades independentes e homogéneas, mas a partir de processos e de interações;

Metodológica - A abordagem intercultural define-se como global, multidimensional e interdisciplinar, de modo a dar conta das dinâmicas e da complexidade dos fenómenos sociais e a fim de evitar os processos de categorização. Trata-se, para o investigador/educador/interveniente, de adquirir familiaridade com o universo social e cultural sobre o qual trabalha, de compreender as representações que o animam e de se interrogar de forma reflexiva não só sobre a cultura do outro, mas, também, e em primeiro lugar, sobre a sua própria cultura;

Ética - A perspetiva intercultural tem como objetivo o conhecimento das culturas, mas, sobretudo, a relação entre elas e o Outro, implicando uma atitude de descentração (Piaget,1970). Envolve uma reflexão sobre a forma de respeitar a diversidade individual, social e cultural, de conciliar o universal e o particular, o global e o local, de adaptação à complexidade estrutural duma sociedade e à sua conflitualidade. Ramos, 2013, p. 352

Finalmente, Ramos (2013) ainda observa que para constituir esse novo “paradigma intercultural” será necessário desenvolver três competências: individuais, interculturais e de cidadania.

- Competências individuais que permitam interações sociais harmonio sas entre os indivíduos e as culturas e que promovam uma atitude de descentração, a qual permitirá flexibilizar e relativizar princípios, modelos e competências apresentados como únicos e universais e evitar muitos comportamentos de intolerância e discriminação;

- competências interculturais, sobretudo linguísticas, comunicacionais e pedagógicas, que facilitem, por um lado, a comunicação intercultural e a consciencialização cultural e, por outro, que promovam práticas e intervenções interculturalmente competentes e inclusivas, bem como profissionais e cidadãos culturalmente sensíveis e implicados.

- competências de cidadania, que tornem possível o funcionamento democrático das sociedades e das instituições. (Ramos, 2013, pp. 252-253)

Observando essas três competências, é possível destacar que a primeira (competências individuais) está vinculada ao desenvolvimento de relações harmoniosas entre os indivíduos. A segunda (competências interculturais) está ligada a questões do uso da linguagem, dos meios, dos processos de comunicação e da área de educação, em seu sentido pedagógico, ou seja, de desenvolvimento de estratégias de ensino. Já a terceira (competências de cidadania) tem uma tarefa relacionada às questões éticas e políticas, pois envolvem, além do indivíduo, as instituições sociais, para que seja possível desenvolver os novos paradigmas, necessários para constituir uma sociedade intercultural. Uma sociedade que possa organizar-se como uma cultura que respeita as diferenças e complexidades das mais diversas comunidades que compõem a população mundial. Essa sociedade organizada globalmente, que respeita as diferentes culturas, e que compõe as diferentes comunidades humanas, é o que representa o corpo intercultural, e essa é a direção que se espera que as diferentes comunidades tomem, mediadas pelos meios de comunicação: a do desenvolvimento de relações interculturais.

Assim, será possível criar uma sociedade baseada na visão da interculturalidade, desenvolvendo um corpo intercultural. No entanto, se os grupos humanos ou indivíduos apenas deixarem estender seus sentidos pelos meios de comunicação, sem refletir sobre os outros e a multiplicidade cultural, o processo de fragmentação na sociedade, o enfraquecimento da alteridade - denunciado por Byung-Chul Han (2010/2015) -, e as polarizações deverão se multiplicar, podendo levar ao colapso nossa concepção de coletividade e sociedade. Por isso, é de fundamental importância o desenvolvimento de estudos que relacionem o uso dos meios de comunicação com as ideias e conceitos da interculturalidade, pois, assim, será possível buscar uma solução para um problema que cada vez mais produz incompreensão, preconceito e violência.

4. Considerações Finais

Para finalizar esse debate, é preciso destacar que a questão deste artigo sobre a relação entre um corpo estendido e um corpo intercultural foi confirmada, pois torna-se evidente que apenas uma extensão tecnológica da percepção humana (um corpo estendido), como apresentada por McLuhan (1964/2016), e mediada pelos meios de comunicação, não basta para criar uma comunidade globalizada, onde todas as diferentes culturas, que compõem a organização humana mundial, possam conviver de maneira equilibrada e ética. Sendo assim, reafirma-se a necessidade de desenvolver uma consciência intercultural (corpo intercultural) para que possa surgir uma globalização equilibrada e baseada no respeito entre as diferentes culturas. Ou seja, não basta um corpo estendido, é preciso um corpo intercultural.

Com isso, seja para desenvolver uma globalização justa, como destacou Milton Santos (2001), ou uma aldeia global, como indicou McLuhan (1964/2016), é preciso, não somente um desenvolvimento tecnológico, mas sim um desenvolvimento humano. Dessa forma, torna-se fundamental criar estratégias e competências que propiciem e potencializem o processo de aproximação entre culturas, principalmente, porque esse fato é inevitável, pois, com toda certeza, o advento de novos meios de comunicação sempre terá como efeito a aproximação e a mistura de diferentes culturas. Afinal, o advento de novos meios de comunicação sempre amplia o alcance da troca de informações, bem como estende a percepção humana para além dos limites biológicos dos sentidos.

Por isso, em paralelo com o desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação, para desenvolver uma globalização equilibrada, e que respeite a diversidade de culturas espalhadas pelo mundo, torna-se essencial a análise dos processos de comunicação entre culturas, e o desenvolvimento de estratégias que possibilitem que esses contatos se deem, não de maneira violenta ou preconceituosa, mas de uma forma ética e que demonstre respeito à multiplicidade cultural humana. Sendo assim, os estudos de comunicação devem se reunir aos estudos de interculturalidade, para criar um caminho onde as diferentes culturas possam se relacionar, respeitando suas diferenças e somando esforços para produzir bem-estar, e, por que não, riqueza para a população humana. Com essa ação, espera-se que as relações entre as comunidades humanas possam reverter o processo instaurado de fragmentação, de polarização, de preconceito entre as diferentes culturas, criando um trajeto seguro, justo e igualitário, em direção à construção de uma comunidade global, que possa conviver de maneira coletiva, como uma tribo, da maneira como McLuhan (1964/2016) projetou: uma aldeia global.

Agradecimentos

Agradeço à Universidade Presbiteriana Mackenzie, à direção, à coordenação de pesquisa e toda a equipe do Centro de Comunicação e Letras pelo apoio à pesquisa

Referências

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Recebido: 02 de Agosto de 2021; Aceito: 04 de Janeiro de 2022

Patricio Dugnani é doutor e mestre em comunicação e semiótica (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e bacharel em artes plásticas (Universidade Estadual Paulista). É professor nas áreas de comunicação e artes da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor de artes do Colégio Giordano Bruno. É pesquisador do grupo de pesquisa Observatório da Imagem e no grupo de pesquisa Linguagem, Sociedade e Identidade: Estudos Sobre a Mídia, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É autor e ilustrador dos livros: A Herança Simbólica na Azulejaria Barroca (2012), O Livro dos Labirintos (2004), Ovelhas e Lobos (2002), Beleléu (2003/Programa Nacional do Livro e do Material Didático 2004), O Seu Lugar (2005/Programa Nacional do Livro e do Material Didático 2006), Um Mundo Melhor (2006), Beleléu e os Números (2009), Beleléu e as Cores (2010), Beleléu e as Formas (2011), Beleléu e as Palavras (2014). É pesquisador e autor de artigos científicos das áreas de comunicação, sociologia aplicada, artes e semiótica. Email: patricio@mackenzie.br Morada: Alameda das Caneleiras, 524. Cep: 06670110. Transurb - Condomínio Vila Verde - Itapevi - SP - Brasil

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