SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número1As Potencialidades do Kamishibai Plurilingue na Educação Para a Diversidade CulturalA “Cidade Amiga do Idoso” Acidental: Expetativa Pública e Experiência Subjetiva em São Paulo índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.9 no.1 Braga jun. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3756 

Artigos Temáticos

O Filme Ilha da Cova da Moura, os Média e a Permanência dos Racismos na Sociedade

1Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal


Resumo

Para além da escola, do discurso político e dos produtos culturais, os média têm um papel central no processo de aprendizagem dos jovens e na (re)construção de representações recíprocas. A televisão, os média sociais e o cinema são centrais na difusão e reificação de determinadas representações sociais. Neste artigo, exploramos a narrativa do filme Ilha da Cova da Moura de Rui Simões (2010), cruzando os testemunhos das personagens com os resultados da entrevista ao realizador. Este filme explora três temas centrais: (a) a importância do associativismo e da mobilização coletiva no bairro; (b) a ideia de pertença e a agência na comunidade; e (c) o preconceito e discriminação racial vivenciados por habitantes do bairro. A intenção do realizador com este filme é desconstruir os estereótipos associados ao bairro. Argumentamos que este e outros filmes podem constituir instrumentos importantes para uma literacia mediática multidimensional e multicultural. Importa criar espaços, ao longo do processo educativo de crianças e jovens, nos quais os lugares comuns do racismo possam ser discutidos e contestados. Neste contexto, as artes, e especificamente o cinema, têm um papel primordial.

Palavras-chave: racismos; média; cinema; Ilha da Cova da Moura

Abstract

Beyond school, political discourse, and cultural products, the media play a central role in young people’s learning process and in the (re)construction of reciprocal representations’. Television, social media, and cinema are pivotal in the diffusion and reification of certain social representations. In this article the narrative of the film Ilha da Cova da Moura (Island of Cova da Moura) by Rui Simões (2010) will be explored, comparing the characters’ testimonies with the outcomes of the interview with the director. This film explores three central themes: (a) the importance of membership and collective mobilisation in the neighbourhood; (b) the idea of belonging to and agency in the community; and (c) prejudice and racial discrimination experienced by inhabitants of the neighbourhood. In this film, the director aims to deconstruct stereotypes attached to the neighbourhood. We argue that this and other films can be important tools for multidimensional and multicultural media literacy. It is important to create spaces during the children’s and young people’s educational process where commonplaces about racism can be discussed and contested. The arts, specifically cinema, play a key role in this process.

Keywords: racism; media; cinema; Ilha da Cova da Moura

1. Introdução

Propomos, neste trabalho, fazer uma análise temática (Braun & Clarke, 2006) da narrativa do filme Ilha da Cova da Moura, de Rui Simões (2010), cruzando estes dados com os resultados da entrevista ao realizador que teve lugar em Lisboa, em 2013. Partimos da premissa de que o cinema pode gerar possibilidades de contestação e debate em torno de representações estereotipadas da realidade, desempenhando um papel importante na transformação de imaginários racistas e xenófobos.

Ilha da Cova da Moura (2010) é desenvolvido segundo uma perspetiva que procura compreender o lado positivo do bairro. Mostra-nos a vida na Cova da Moura segundo um conjunto de recortes do dia a dia das pessoas desta comunidade. O realizador segue o dia a dia dos habitantes do bairro, entrevistando jovens e adultos, mulheres e homens, e mostrando várias realidades deste lugar. Retrata cenas do dia e da noite, da festa e do trabalho, da rua e da casa, apresentando também representações dos habitantes sobre as relações no bairro e fora dele e as experiências de racismo vivenciadas.

O realizador do documentário em análise, Rui Simões, tendo terminado os estudos secundários, deixou o país em 1966, evitando o serviço militar e a mobilização para a guerra colonial, com a qual não concordava. Fixou-se em Paris e depois em Bruxelas, onde frequentou a École Ouvriére Supérieure e um curso de história na Universidade Livre de Bruxelas. Em 1970, foi aluno no curso de Realização de Cinema e Televisão do Institut des Arts de Diffusion (Bruxelas). Fez o seu primeiro filme nesse instituto, trabalhando ainda como fotógrafo de cena em grandes produções de cinema e como projecionista numa sala de cinema. Regressou a Portugal depois da revolução dos cra vos. Trabalhou para a firma Animatógrafo de António da Cunha Telles como diretor de produção. Exerceu funções pedagógicas em cursos de formação de várias instituições. É responsável pela produtora Realficção (Lisboa), onde também desenvolve atividades pedagógicas audiovisuais e multimédia.

O realizador refere, em entrevista presencial (Lisboa, 2013), que a motivação para a realização deste documentário surgiu porque sentia que havia uma injustiça muito grande no tratamento da imprensa em relação ao bairro da Cova da Moura. Para o realizador, a Cova da Moura é um exemplo de muitos. O autor quer salientar que há muitas “Covas da Moura” no nosso país e no mundo inteiro. Achou injusta a forma como a imprensa representava o bairro, constantemente associado à violência e ao tráfico de droga. Como afirma Rui Simões:

um dia acontece uma história aqui perto numa praia, em Carcavelos, que é o célebre arrastão onde vem nas primeiras páginas dos jornais, nas revistas em todo o lado que um grupo de Blacks (negros) da Cova da Moura tinha roubado a praia toda, pronto! E uns tempos depois prova-se que isso foi falso, que é uma notícia falsa, é escandaloso isto e eu fiquei chocadíssimo.

Como foi provado posteriormente, as pessoas a correr pela praia estavam sobressaltadas por uma intervenção policial. O “arrastão”, que nunca existiu, foi de alguma forma criado pelos discursos de instituições policiais, mediáticas e políticas (Varela, 2021), demonstrando o papel destas estruturas na reificação do racismo.

O realizador não conhecia o bairro, procurou conhecer e perceber o que se passava. Pretendia, ainda, compreender porque razões é que a “imprensa vai atrás de uma notícia falsa, funciona em parangonas de jornais, acusa, é racista, começa a ser racista, começa a atacar de uma maneira uma comunidade!” (R. Simões, entrevista presencial, Lisboa, 2013). Com este objetivo em mente, Rui Simões pediu que o apresentassem à comunidade do bairro e decidiu fazer um documentário sobre as pessoas que lá viviam. Como é referido na sinopse do filme Ilha da Cova da Moura (2010), o realizador tenta explorar, não tanto a violência e insegurança tantas vezes conotada ao lugar, mas antes as razões da persistência destas perceções. Analisando o dia a dia dos seus moradores, o realizador procura, assim, estudar a cultura cabo-verdiana nas suas diversas manifestações e a forma como a exclusão social é perpetuada de geração em geração.

Para além deste filme, Rui Simões realiza quase na mesma altura Kolá San Jon É Festa di Kau Berdi (Kolá San Jon É Festa de Cabo Verde; 2011), com habitantes do bairro da Cova da Moura, cabo-verdianos na sua maioria, um filme sobre uma festa tradicional do seu arquipélago de origem, um ritual característico das festas juninas. Este documentário acompanha um grupo de residentes do bairro numa viagem a Cabo Verde para festejarem as festas de S. João.

2. Discriminação Racial e Média

O racismo transformou-se consideravelmente ao longo do tempo, e é grande a distância entre as suas expressões clássicas, que pretendem assentar na ciência, e as suas formas contemporâneas, que se referem cada vez mais à ideia de diferença e de incompatibilidade entre culturas (Wieviorka, 2002). O racismo consiste em caracterizar um grupo humano por “atributos naturais, associados por seu turno a características intelectuais e morais que valem para cada indivíduo que releva desse conjunto e, a partir daí, em instaurar eventualmente práticas de inferiorização e de exclusão” (Wieviorka, 2002, p. 11). De facto, “todas as culturas constroem categorias para conhecer, classificar e pensar o ‘Outro’” (Casa-Nova, 2008, p. 150), não sendo esse o problema. “O problema reside na construção de categorias para inferiorizar esse ‘Outro’” (Casa-Nova, 2008, p. 150).

Para Brah (1996), na Europa, não lidamos apenas com um mas com vários ra- cismos. Há uma variedade de racismos, centrados na cor da pele, dirigidos a grupos definidos como não-brancos. Por sua vez, o conceito de imigrante tornou-se o nome por excelência para “raça”. Ser imigrante constitui a principal característica que permite a classificação dos indivíduos numa tipologia racista (Balibar & Wallerstein, 1991, p. 32).

Pettigrew e Meertens (1995) e Pettigrew et al. (1998) distinguem entre racismo flagrante e racismo subtil. Os autores apresentam um modelo multidimensional de preconceito flagrante e subtil. O preconceito flagrante é “quente, fechado e direto” (Pettigrew & Meertens, 1995, p. 58) e tem dois componentes: ameaça e rejeição, e oposição ao contacto íntimo com o outro grupo. O preconceito subtil, que é “frio, distante e indireto” (Pettigrew & Meertens, 1995, p. 58), tem três componentes: a defesa dos valores tradicionais, o exagero das diferenças culturais e a negação de emoções positivas. Com base num estudo com 4.000 entrevistados, de quatro países da Europa Ocidental, os autores categorizaram os participantes usando as suas pontuações em medidas de flagrantes e subtis, tendo verificado uma maior adesão ao racismo subtil do que ao racismo flagrante, o que poderá estar relacionado com o facto de o racismo flagrante ser percebido como anti-normativo, mas não o racismo subtil.

Apesar da sua condenação pelos normativos legais e sociais, os racismos flagrante e subtil persistem nas nossas sociedades. Muito do comportamento discriminatório quotidiano, quer ao nível institucional quer ao nível inter-individual, é marcado por formas mais veladas e sofisticadas de racismo, muitas vezes impercetível, que aparentemente não violam a norma anti-racista. O facto de a hierarquização racial ter desaparecido legalmente do discurso público não significa o fim do racismo. Enfatizam-se as diferenças culturais, já que o argumento da desigualdade e da hierarquização racial é atualmente contra-normativo (Cabecinhas, 2008).

Não obstante as diferenças que existam entre as teorias sobre o racismo, comum a todas elas é a afirmação de que as novas expressões do racismo são disfarçadas e indiretas, e se caracterizam pela intenção de não ferir a norma da igualdade e de não ameaçar o autoconceito de pessoa igualitária dos atores sociais (Lima & Vala, 2004). Não se quer significar com isto que as formas mais tradicionais e abertas de racismo deixaram de existir ou perderam importância. Numa sociedade formalmente antirracista, persistem novas formas de expressão do racismo que procuram conviver com a norma antirracista. Estas

novas expressões de racismo, mais veladas e hipócritas, são tão ou mais danosas e nefastas do que as expressões mais abertas e flagrantes, uma vez que, por serem mais difíceis de ser identificadas, são também mais difíceis de ser combatidas. (Lima & Vala, 2004, p. 408)

Mas comum a todas estas formas mais veladas de expressão do racismo é também a sua capacidade de transformação em expressões violentas (Lima & Vala, 2004), como nos têm dado conta, recentemente, os meios de comunicação, tendo algumas destas manifestações gerado um conjunto de movimentos sociais antirracistas, com impacto internacional.

Alguns estudos recentes vieram corroborar investigações anteriores e evidenciar os impactos do racismo nas políticas de imigração. Ramos et al. (2019) demonstram que as pessoas estão mais dispostas a admitir que algumas culturas são muito melhores que outras do que a admitir que alguns grupos nascem mais inteligentes e mais aptos a trabalhar do que outros. Em mais de metade dos países onde foi realizado o estudo, incluindo Portugal, 30% ou mais dos entrevistados acreditam na superioridade natural de alguns grupos humanos.

Embora a luta contra a discriminação racial seja considerada como uma prioridade por diversos organismos internacionais e nacionais, nos últimos anos temos vindo a assistir a uma intensificação dos discursos de ódio racial na esfera pública e ao erguer de muros em diversos países europeus (Cabecinhas & Macedo, 2019). A esta realidade, junta-se o facto de vários estudos de receção constatarem que persistem estereótipos negativos sobre os imigrantes africanos e os seus descendentes na sociedade portuguesa, indicando que o passado colonial continua a influenciar o imaginário e as identidades sociais dos jovens (Macedo, 2017; Pereira et al., 2019). Se no contexto europeu têm sido constantes as denúncias de racismo flagrante, relacionadas por exemplo com a intervenção das forças de segurança, recentemente este debate tem ganhado centralidade em Portugal, embora já sejam antigas as denúncias de diversas associações e organizações antirracistas (Maeso, 2021). A classificação dos bairros “está intimamente relacionada com a representação dos jovens afrodescendentes/negros e Roma/ciganos como tendo ‘natural aversão à autoridade’” (Maeso, 2021, p. 121). Estas representações, veiculadas pelos média, em particular, assentam, de forma geral, na criminalização da população negra (Varela, 2021).

3. O Alto da Cova da Moura nos Média

O bairro do Alto da Cova da Moura está situado na periferia de Lisboa, aproximadamente a 15 km da capital, com fácil acesso a transportes públicos, localizando-se administrativamente nas freguesias da Buraca e da Damaia, no município da Amadora (Beja-Horta, 2008). O processo de formação e consolidação do bairro do Alto da Cova da Moura poderá ser dividido em quatro fases distintas. A primeira data da década de 1940 até 1974 e corresponde ao início da formação do bairro. A segunda fase abarca o período entre 1974 e 1977. Esta fase constitui o início de um novo processo de desen volvimento caracterizado por fluxos de imigrantes e repatriados portugueses oriundos das ex-colónias, assim como pela emergência de novos processos de construção e urbanização do bairro. Os relatos que documentam a origem e desenvolvimento do bairro por cabo-verdianos, portugueses, são-tomenses, angolanos e guineenses, oriundos das ex-colónias ou do interior rural de Portugal, são reveladores de um contexto colonial que se prolonga para além das independências africanas (Jorge & Carolino, 2019).

O terceiro período decorre entre 1977 e 1989, e coincide com o primeiro boom populacional, levando à consolidação do bairro. Esta fase foi igualmente caracterizada pela criação de organizações migrantes populares. Finalmente, a última fase inicia-se em 1989 e prolonga-se até ao presente. Durante este período, destaca-se a grande aceleração de novos fluxos de imigrantes, muitos destes em situação irregular, assim como a construção de “representações oficiais dominantes” sobre o bairro como um “problema urbano” (Beja-Horta, 2008, p. 184). Como refere Beja-Horta (2008), “os moradores tal como a população autóctone a residir no bairro acionaram redes sociais de amizade e solidariedade, reproduziram e reconfiguraram novas práticas culturais” (p. 202), debatendo-se quer com os problemas sociais e políticos do seu país de origem, quer com o trabalho árduo para melhorarem as suas condições de vida no país de acolhimento.

O bairro do Alto da Cova da Moura ocupa uma área de 18 hectares com 1.617 habitações, e cerca de 6.000 habitantes, a maioria cabo-verdianos e seus descendentes mas também portugueses retornados das ex-colónias, angolanos, guineenses, são-tomenses, moçambicanos, brasileiros e oriundos de países de leste. 45% tem menos de 25 anos. (Ilha da Cova da Moura, 01:17:43)

Ao longo do tempo, os atores desenvolveram várias estratégias com o objetivo de assegurar o direito a permanecer num espaço da cidade cada vez mais central e, por isso mesmo, desejável do ponto de vista imobiliário, onde foram desenvolvendo formas de relação, identificação e pertença próprias (Jorge & Carolino, 2019).

As organizações antirracistas em Portugal têm denunciado a brutalidade policial, assim como a violência e o assédio de organizações de extrema-direita e neonazis desde finais dos anos 1980 (Maeso, 2021). Nas sociedades atuais, os diferentes média são contextos importantes de produção, reprodução e transformação de ideologias. Aquilo que produzem são representações do mundo, imagens, quadros de compreensão do mundo à nossa volta.

A construção simbólica dos bairros periféricos, pelos média, pelos discursos oficiais e pela opinião pública, em geral, tem vindo a veicular uma imagem negativa e estigmatizante destes lugares e dos seus residentes (Beja-Horta, 2008). Cova da Moura é um dos bairros mais estigmatizados de Portugal. “Um falso imaginário associa-o à ‘droga’ e ‘armas’, aos ‘criminosos’ e ‘jovens delinquentes’, resultado de um processo de rotulação construído pelos media e instituições políticas” (Raposo & Varela, 2016, p. 5). Estes discursos são corresponsáveis por criar um imaginário de transgressão, incivilidade e anomia sobre esses territórios, sendo lugares racialmente conotados (Raposo & Varela, 2016).

Esta mediatização de espaços urbanos como o Alto da Cova da Moura, associando-os a comportamentos desviantes, tem um profundo impacto nos processos de exclusão desta propulação. O bairro é, muitas vezes, reduzido a uma construção imaginária estereotipada que se torna hegemónica e é difundida e amplificada mediaticamente, na qual os seus habitantes, sobretudo os jovens, são vistos como seres potencialmente ameaçadores para a ordem social vigente. Os estereótipos constituem imagens mentais que se interpõem, sob a forma de enviesamento, entre o indivíduo e a realidade. São imagens generalizadas e exageradas que negligenciam a variabilidade dos membros dos outros grupos, negando a sua individualidade (Cabecinhas, 2002, 2004; Lippmann, 1922/1961).

Por outro lado, os seus habitantes veem o bairro como um espaço em que prevalece a informalidade, a convivência, o acolhimento, o estar na rua, associados a uma vivência de algo que se atribui a um modo de ser africano ou cabo-verdiano (Santos, 2014).

Num estudo desenvolvido por Carmo (2018), o autor refere que

a maior parte (54%) dos inquiridos afirma ter sido vítima de discriminação por viver no Alto da Cova da Moura, sendo a procura de emprego (71%), o relacionamento com a polícia (68%) e a frequência de estabelecimentos comerciais (56%), os contextos discriminatórios mais referenciados. Igualmente relevante é o fato de “pobreza e desemprego” terem sido considerados um dos principais problemas do bairro por 88% dos inquiridos, referindo 58% às condições de habitação, 40% à estigmatização e à imagem e 39% à insegurança e à criminalidade. (p. 591)

O associativismo local tem tido um papel central na reivindicação do direito à regularização da situação fundiária, à reabilitação do bairro, à prestação de serviços sociais, à necessidade de uma política de segurança e à construção de uma imagem positiva do bairro (Beja-Horta, 2008). As ações coletivas levadas a cabo pelo movimento associativo da Cova da Moura encontram-se ancoradas no reforço da identidade sócio-espacial e na capacidade para desenvolver estratégias conjuntas de mobilização e de reivindicação. Por exemplo, em fevereiro de 2015, jovens deste bairro foram alvo de violência policial e várias representações foram veiculadas na imprensa nacional e internacional. Esse acontecimento levou moradores da Cova da Moura a organizar uma mobilização contra a violência policial e o racismo, que contou com a solidariedade de outros bairros e amplos setores da sociedade civil (Raposo & Varela, 2016).

O processo de racialização destes bairros tem sido sustentado por imagens disseminadas pelos média há décadas, de transgressão e marginalidade, influenciando as representações da sociedade sobre os seus moradores. Para Raposo e Varela (2016), este imaginário foi suportado por inúmeras notícias de jornal e televisão “através da equação pobreza-negritude-violência-bairros e produziu uma interpretação caricatural desses territórios” (p. 10), que urge desconstruir e contestar. Os média possuem um papel fundamental no processo de construção dos eventos violentos e dos conflitos e na atribuição de estigmas a espaços e a populações que neles habitam. Os órgãos de comunicação social participam na “coconstrução dos conflitos e dos eventos violentos, amplificando-os e fornecendo uma visibilidade aos autores” (Malheiros et al., 2007, p. 36). Os média, para além de ampliar um fenómeno violento, podem deformá-lo, por exemplo, através do modo como são captadas as imagens, da seleção de entrevistados a incluir na peça e do modo como são selecionados e apresentados os depoimentos recolhidos. Mesmo quando se verifica a preocupação em dar uma imagem positiva dos imigrantes, ao fazê-lo, jornalistas, cineastas, jogam com estereótipos e conceitos naturalizados no senso comum. Por vezes procuram desmontá-los, em outros momentos envolvem-se nos estereótipos que veiculam, mesmo sem se aperceberem (Costa, 2010). Neste artigo, encaramos o racismo enquanto fenómeno social, enraizado nas socieda des e na sua memória coletiva, muitas vezes aprendido e reproduzido de forma inconsciente ou naturalizada.

4. Análise1

O documentário Ilha da Cova da Moura (2010) explora três temas centrais: (a) o trabalho desenvolvido pela Associação Cultural Moinho da Juventude e o apoio que vem dando à comunidade que vive no bairro; (b) a ideia de pertença ao bairro e a agência associadas ao investimento, à liberdade e identificação com os aspetos culturais e sociais da comunidade; e (c) os testemunhos sobre a violência, preconceito e discriminação vivenciados por habitantes do bairro.

4.1. O Moinho da Juventude, o Associativismo e a Construção do Espaço Social

Em termos de organizações de residentes, o Moinho da Juventude e o Clube Social e Desportivo da Cova da Moura são associações consideradas centrais na comunidade. Oferecem serviços legais e culturais, económicos e apoio social, em particular a famílias vulneráveis. O Moinho da Juventude garante as refeições/jantar a crianças cujos pais chegam tarde do trabalho e em muitos casos têm dois trabalhos. Estas associações preveem espaços de socialização, organização social, reinterpretação de tradições e mediação entre o país de origem e o país recetor (Casimiro, 2014). Esta associação teve, ao longo do tempo, um papel vital no processo de socialização, de reforço de laços culturais, de afirmação identitária, de solidariedade e práticas de entreajuda. Esta e outras organizações constituem espaços privilegiados de mobilização social e política visando a defesa dos interesses dos seus membros.

No filme, a deslocação do realizador pelo bairro é orientada por um jovem de 25 anos que é animador e mediador intercultural no Moinho da Juventude. O percurso é realizado de carro, enquanto o jovem refere que a Cova da Moura fica, como uma ilha, no meio da Damaia, Buraca, Alfragide. Para este jovem, a associação é o “coração da Cova da Moura” (00:10:09), contribuindo há décadas para que a comunidade tenha melhores condições de vida. Neste percurso, refere ainda que o bairro é constituído por “muitos cabo-verdianos e muitos portugueses retornados” (00:26:04). No entanto, acrescenta que há pessoas que não vivem no bairro, mas que vão lá conviver com eles.

A diretora da associação menciona que as mães iam de madrugada vender peixe na ribeira e que as crianças ficavam sós, porque elas só voltavam por volta das 13 h/15 h e que os mais velhos tomavam conta dos mais novos. Atualmente, a associação prepara refeições diárias para mais de 400 pessoas, que são distribuídas por toda a Cova da Moura, incluindo creches familiares. A diretora da associação refere, ainda, que investiram sempre na cultura, tendo criado uma biblioteca, um grupo de batuque, o grupo Kola San Jon, realçando que houve muito trabalho dos membros da comunidade neste processo.

As entrevistas aos membros da comunidade, de várias gerações, indicam o envolvimento e a dedicação ao bairro.

Muita gente... Por acaso não tenho vergonha, mas muita gente tem vergonha de dizer que mora na Cova da Moura, porque eles dizem logo, mas onde? naquele... onde apareceu? O meu marido comprou aqui a um senhor que estava a começar aqui a fazer a casa, mas depois desistiu, então comprámos o tijolo que tinha e coiso, e assim foi... Começamos! Era trabalhar de manhã para comer à noite. Eu trabalhava a dias. E ele ia fazendo uns biscates também para conseguirmos. Nem havia água, não havia nada, nem luz, foi tudo trabalhado mesmo à mão, os meus filhos mesmo pequeninos, éramos todos... Pronto... Iam trabalhar, e as casas eram feitas à noite, a bem dizer. Então no verão, era depois do trabalho, trabalhar até ver. Foi muito difícil, muito mesmo. É por isso que a gente tem muito amor a isto. (00:12:18)

Nós é que carregávamos o material, quando vinha na carrinha. E quando se fala, em o Bairro ir a baixo, faz-me imensa confusão, porque foi muito trabalho, muitos anos.

Muita dedicação também dos nossos pais e...

Dedicação, e dedicação a 100% porque eles iam trabalhar de dia e depois à noite quando chegavam em casa jantava-se e ia-se fazendo qualquer coisita. (00:14:22)

Desde o seu início, os membros fundadores da comissão de moradores do bairro desafiaram as “características incapacitantes de uma política de identidade que fixava os residentes e a comunidade em representações hegemónicas de ilegalidade” (BejaHorta, 2006, p. 275). Ao mesmo tempo que pressionavam os agentes estatais locais para melhores serviços, mobilizavam mão-de-obra local na promoção de campanhas de angariação de fundos para subsidiar os custos de construção de infra-estruturas (Beja-Horta, 2006, p. 275).

A entreajuda e o associativismo têm tido um papel central na reivindicação de vários direitos e as ações coletivas, levadas a cabo pelos movimentos que nascem no bairro, estão ancoradas no reforço da identidade sócio-espacial e na capacidade para desenvolver estratégias conjuntas de mobilização e intervenção (Beja-Horta, 2008). Tendo como principais objetivos a valorização da diferença cultural e a integração social das comunidades migrantes e étnicas na sociedade portuguesa, o Moinho da Juventude teve um papel central neste processo.

4.2. Agência e Pertença

Para além do envolvimento da população na construção do bairro, é realçada também a liberdade nas práticas culturais e sociais. Uma das moradoras refere que nos prédios não podem cozinhar usando lenha, moer o milho, fazer festas. Para esta jovem, uma pessoa que vem de Cabo Verde para o bairro pensa que ainda está em Cabo Verde. Segundo esta personagem, os mais velhos que visitam o bairro dizem “ei pah, aqui parece que estás em Cabo Verde porque aqui há muitas coisas, desde comida, desde festa, desde tradição, temos aqui muita coisa que é idêntica a Cabo Verde” (01:07:36). Para a jovem “lá fora” não é igual, e “lá fora” podem ter música a altas horas, não podem estar sempre a fazer festas, não podem estar a pisar o milho de Cabo Verde, não podem estar a fazer milho grelhado na rua, na brasa, não podem cozinhar na lenha. Considera que devem respeitar quando se encontram a viver “lá fora”, mas que se sente mais à vontade no bairro (01:07:48).

A informalidade, a convivência, o acolhimento, o estar na rua são constantemente referidos pelas personagens do filme (Santos, 2014). Os vários testemunhos de habitantes do bairro indicam a liberdade, a união e o apoio que sentem na sua comunidade. Embora alguns pudessem viver noutro local, referem que se sentem bem ali e não se veem a viver noutro sítio. Num dos testemunhos, António, polícia, refere que poucas pessoas no bairro conhecem a sua profissão. Diz que há imensa gente a viver em bairros vizinhos que se arrepende de ter saído da Cova da Moura e que ele ainda vive lá. Quando interrogado sobre as razões para residir no bairro, pergunta:

Então, por que é que eu hei de sair? Não tenho complicações com os meus vizinhos, não me chateio com ninguém, se quiser andar descalço na rua, ninguém há de estranhar por que é que eu estou descalço na rua, então, eu não me vejo noutro sítio. (Cenas cortadas, António Pedro, 00:01:25)

São recorrentes no documentário as imagens de festas, de convívios, do apoio em momentos de dor, por exemplo, no caso de um funeral onde vários membros da comunidade se reúnem e partilham uma refeição. A participação do grupo Kola San Jon e a festa que a comunidade organiza também contribuem para a integração e envolvimento dos habitantes nas atividades culturais e lúdicas do bairro. Para o realizador, esta comunidade criou a própria ilha, o seu próprio espaço, à semelhança do que acontece com as comunidades de imigrantes que procuram criar redes, unir-se e entreajudar-se nos países de destino.

4.3. Estereótipos Sociais e Racismo

A terceira temática presente no filme prende-se com a violência, o preconceito e a discriminação. O documentário inicia precisamente com uma notícia de confrontos entre agentes da polícia e habitantes do bairro. As imagens de carros da polícias e agentes a patrulharem as ruas do bairro são constantes, bem como as críticas aos agentes policiais. Percebe-se a preocupação do realizador em dar uma imagem positiva dos moradores do bairro, embora as imagens recorrentes da polícia possam contribuir precisamen te para reificar determinados estereótipos e conceitos naturalizados no senso comum. Procurando desmontar estereótipos, os realizadores podem acabar por se envolver nos estereótipos que veiculam, mesmo sem se aperceberem (Costa, 2010).

Um dos habitantes refere que a sua casa foi invadida pela polícia por engano. O seu testemunho revela que as representações negativas dos agentes sobre a população do bairro contribuem para que os seus habitantes sejam vistos como um corpo homogéneo, adotando atitudes mais automáticas em relação à população. Trata-se do efeito de homogeneidade do exogrupo, ou a tendência para perceber o grupo dos outros como mais homogéneo do que o grupo de pertença (Cabecinhas, 2002). Este efeito contribui para a discriminação social e a continuidade de representações que assentam, de forma geral, na criminalização da população negra (Varela, 2021). Embora persistam formas mais veladas de expressão do racismo na sociedade atual, a sua capacidade de transformação em expressões violentas (Lima & Vala, 2004) é visível nos testemunhos e experiências dos personagens entrevistados por Rui Simões.

O realizador entrevista também um casal de “retornados” de Angola, que quando regressaram não tinham onde viver e fizeram ali uma casa. Referem que naquela altura construíam barracas na Cova da Moura. O casal fala do preconceito que existe em torno do bairro e de como o filho mais novo sofreu com isso. Mencionam que a Cova da Moura tem “má fama”, mas que é a sua casa, não a trocando por um espaço em outro local.

Ao longo do documentário é narrada também a história de um casal muito jovem. Os jovens contam que os pais dela não aceitaram a relação, e referem o preconceito e o racismo de que o rapaz foi alvo. Para além do fenótipo, o facto de ser da Cova da Moura contribui para a discriminação com base em estereótipos sociais que associam este bairro ao crime. De facto, nos média, os grupos minoritários aparecem frequentemente associados aos problemas da criminalidade e violência urbanas, ao desemprego, ao tráfico de drogas, à economia subterrânea, à insegurança, aos custos sociais e, mais recentemente, ao terrorismo (Marques, 2007). A generalização dos preconceitos, a discriminação sistemática nas várias áreas da vida social, a violência da linguagem ou a segregação residencial são, na perspetiva de Marques (2007), fenómenos de maior extensão, inscritos no próprio funcionamento da sociedade. O jovem salienta que “paga o justo pelo pecador” (00:29:12). No final do filme, a jovem tem um bebé e vê-se a felicidade e emoção do pai, a par com a tristeza pelo facto de a avó materna da criança não se querer relacionar com o novo membro da família.

A nossa primeira reação quando tivemos a certeza que ela estava grávida foi avisar. A primeira reação da mãe, é assim, eu não me orgulho de dizer isto mas vou dizer, é assim, vira-se e diz-me, “filhos de macacos” ela não aceita assim, eu não quero que ela aceite o meu filho. Porque é assim, se ela quiser abdicar da neta, o problema é dela, agora é assim, eu dos meus filhos não vou abdicar. (00:28:25)

“Basicamente, é tudo preconceito do ‘ai ele é preto, ai ele é da Cova da Moura, é bandido, marginal, e essas coisas’” (00:29:04).

Em entrevista, Simões (entrevista presencial, Lisboa, 2013) refere que, embora o filme tenha sido construído para o espetador, procurando assim suscitar o envolvimento deste, o facto de se tratar de uma edição em DVD, permite maior liberdade ao realizador. Há um conjunto de imagens e testemunhos que não integram o corpo do filme, mas que o realizador considera centrais para compreendermos a realidade em análise. Um dos testemunhos é o de António, personagem já referida, que acredita que a criminalidade à qual são associados está em todo o lado e que as pessoas não reparam. Para o polícia, enquanto no bairro há de facto criminalidade, não se compara “com a quantidade camuflada que existe lá fora” (Cenas cortadas, António Pedro, 00:02:07).

E é isso que eu acredito que acontece no meu bairro. Como o meu bairro é diferente, chama mais a atenção. Sempre foi e sempre será. Quando a onda bate na rocha quem se lixa é o mexilhão e mais mexilhão que nós não há. Somos os diferentes, somos aqueles que moram naquele bairro, somos de um país diferente, temos uma cultura diferente, então somos constantemente observados, é isso que acontece. (Cenas cortadas, António Pedro, 00:02:41)

De facto, para além do testemunho deste jovem, há vários intervenientes no documentário que abordam esta questão racial referindo, por exemplo, que “português preto não existe” (00:27:12) na mente da população maioritária. Os jovens portugueses negros são por isso vistos como imigrantes. Estas representações, associadas àquelas relacionadas com o que os média veiculam sobre o bairro, contribuem para aprofundar a situação de desigualdade e discriminação social das gerações mais jovens. O “falso imaginário” (Raposo & Varela, 2016), construído em torno da Cova da Moura, resultado de um processo de rotulação construído pelos média e outras instituições, é corresponsável por transformar este bairro num espaço racialmente conotado (Raposo & Varela, 2016).

Se eu estou agora ali em baixo e zango-me na rua com um branco, a primeira coisa que ele me diz é “vai para a tua terra”, portanto não sei se sou bem portuguesa. O meu pai tem um ditado que ele diz e nós acreditamos muito nisso: “que português preto não existe”. E eu acredito muito nisso, porque se eu fosse portuguesa não me mandavam para a minha terra, não é? Se eu sou de cá. (00:27:12)

Os excertos acima apresentados, relativos aos testemunhos de jovens que vivem no bairro, evidenciam o valor por estes atribuídos à sua pertença social, em particular a sua pertença àquele espaço geográfico e sociocultural. A sua identidade social é construída por comparação com o exogrupo, salientando que o seu grupo social não julga negativamente os seus comportamentos.

Apesar da sua condenação pelos normativos legais e sociais, os racismos flagran- te e subtil persistem nas nossas sociedades (Cabecinhas, 2008; Pettigrew & Meertens, 1995; Pettigrew et al., 1998), como podemos aferir pelos testemunhos das personagens em Ilha da Cova da Moura (2010). As representações negativas sobre a população do bairro contribuem ainda para que os seus habitantes sejam vistos como um corpo ho- mogéneo e não na sua individualidade (Cabecinhas, 2007).

5. Considerações Finais

Neste artigo, procurámos discutir a permanência e coexistência dos racismos flagrante e subtil na sociedade (Cabecinhas, 2008). O facto de vários estudos de receção constatarem que persistem estereótipos negativos sobre os imigrantes africanos e os seus descendentes na sociedade portuguesa também indica que o passado colonial continua a influenciar o imaginário e as identidades sociais dos jovens (Macedo, 2017; Pereira et al., 2019).

Partindo da análise temática do filme Ilha da Cova da Moura (2010), de Rui Simões, e cruzando estes dados com os resultados de uma entrevista ao realizador, explorámos três temas centrais: as reflexões sobre o associativismo, o Moinho da Juventude e a construção do espaço social; o sentimento de agência e pertença ao bairro; e os estereótipos sociais e expressões de racismo vivenciados pelas personagens do filme.

Sendo um dos bairros mais estigmatizados de Portugal, ao longo do tempo, os habitantes desenvolveram várias estratégias com o objetivo de assegurar o direito a permanecer neste espaço da cidade, onde foram construindo formas de relação, identificação e pertença (Jorge & Carolino, 2019), procurando contestar o “falso imaginário” que o associa à criminalidade (Raposo & Varela, 2016). A mediatização do Alto da Cova da Moura, associando-o a comportamentos desviantes, teve e continua a ter um profundo impacto nos processos de exclusão desta população. O bairro é, muitas vezes, reduzido a uma construção imaginária estereotipada que se torna hegemónica e é difundida e amplificada mediaticamente. O associativismo local tem tido um papel central na des construção de representações negativas sobre o bairro (Beja-Horta, 2008), mas também na reivindicação de vários direitos e em ações coletivas de mediação, mobilização e intervenção. A mediação associativa pode facilitar os movimentos de colaboração, promovendo a ação por indivíduos com interesses e necessidades similares, procurando encontrar soluções para as problemáticas que vão encontrando no bairro.

Embora a intenção do realizador com este filme seja desconstruir estereótipos, a recorrência de imagens de polícias a patrulhar o bairro pode contribuir para reificar estereótipos e conceitos naturalizados no senso comum. Como referimos inicialmente, apesar de procurarem desconstruir estereótipos, os realizadores podem acabar por se envolver nos estereótipos que veiculam, mesmo sem se aperceberem (Costa, 2010).

As representações negativas sobre a população do bairro contribuem, ainda, para que os seus habitantes sejam vistos como um corpo homogéneo e não na sua individualidade (Cabecinhas, 2007). Os testemunhos, ao longo do filme, levam-nos a considerar que a identidade social dos personagens é (re)construída por comparação com o exo- grupo. A ideia de que o seu grupo social compreende e não julga negativamente os seus comportamentos e de que os seus membros, de algum modo, são interdependentes é central nos testemunhos do filme.

Este e outros filmes podem constituir instrumentos importantes para uma literacia mediática multidimensional e multicultural entre os diversos utilizadores, consumidores, produtores de todas as idades, níveis sociais e culturais. Para desafiar o modo como o racismo molda o pensamento e a ação, não se pode simplesmente reagir a premissas racistas, mas torna-se imperativo apostar na criação de estruturas e momentos, nos quais os lugares comuns do racismo possam ser discutidos e contestados. Neste contexto, a escola e o cinema têm um papel primordial.

De facto, apesar de o cinema constituir um meio de comunicação presente no quotidiano dos jovens, observa-se uma lacuna na investigação sobre o papel do filme no processo de desconstrução crítica de visões dos jovens sobre si e sobre o mundo. Os estudos mostram que os jovens atribuem ao cinema um papel central no seu processo de ensino-aprendizagem (Macedo, 2016; Macedo et al., 2021; Pereira et al., 2019). Filmes que desafiam os regimes de pensamento predominantes, quer em contexto de sala de aula quer na interação diária com os média, permitem o questionamento de memórias, imaginários e conhecimentos, e chamam a atenção para acontecimentos e injustiças silenciados, desconstruindo estereótipos.

Agradecimentos

Este artigo é financiado no âmbito da “Knowledge for Development Initiative”, pela Rede Aga Khan para o Desenvolvimento e pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, IP (nº 333162622) no contexto do projeto Memories, Cultures and Identities: How the Past Weights on the Present-Day Intercultural Relations in Mozambique and Portugal?. A tradução deste trabalho é financiada por fundos nacionais através da FCT- Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

Referências

Balibar, E., & Wallerstein, I. (1991). Race, nation, class. Ambiguous identities. Verso. [ Links ]

Beja-Horta, A. P. (2006). Places of resistance. City, 10(3), 269-285. https://doi.org/10.1080/13604810600980580 [ Links ]

Beja-Horta, A. P. (2008). A construção da alteridade. Nacionalidade, políticas de imigração e acção colectiva migrante na sociedade portuguesa pós-colonial. Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia. [ Links ]

Brah, A. (1996). Cartographies of diáspora. Contesting identities. Routledge. [ Links ]

Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa [ Links ]

Cabecinhas, R. (2002). Racismo e etnicidade em Portugal: Uma análise psicossociológica da homogeneização das minorias (Tese de doutoramento, Universidade do Minho). RepositóriUM. http://hdl.handle.net/1822/25Links ]

Cabecinhas, R. (2004). Representações sociais, relações intergrupais e cognição social. Paidéia, 14(28), 125-137. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2004000200003 [ Links ]

Cabecinhas, R. (2007). Preto e branco: A naturalização da discriminação racial. Campo das Letras. http://hdl.handle.net/1822/37335Links ]

Cabecinhas, R. (2008). Racismo e xenofobia: A actualidade de uma velha questão. Comunicación y Cidadania, 2, 163-182. http://hdl.handle.net/1822/9639Links ]

Cabecinhas, R., & Macedo, I. (2019). (Anti)racismo, ciência e educação: Teorias, políticas e práticas. Medi@ ções, 7(2), 16-36. http://mediacoes.ese.ips.pt/index.php/mediacoesonline/article/view/242Links ]

Carmo, A. (2018). Cidadania em espaços (sub)urbanos: O Teatro do Oprimido no Alto da Cova da Moura e no Vale da Amoreira. Revista Sociedade e Estado, 33(2), 581-603. https://doi.org/10.1590/s0102-699220183302015 [ Links ]

Casa-Nova, M. J. (2008). Um olhar sobre os relatos. In M. J. Casa-Nova & P. Palmeira (Eds.), Minorias. 10 anos de combate à exploração do trabalho infantil em Portugal (pp. 147-152). Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social. [ Links ]

Casimiro, E. M. V. (2014). Cape Verdeans in Cova da Moura, Portugal, an ethno-historical account of their destinies and legacies (Tese de doutoramento, Amsterdam Institute for Social Science Research). UvA- DARE. https://hdl.handle.net/11245/1.404840Links ]

Costa, A. (2010). A criação da categoria imigrantes em Portugal na revista Visão. Jornalistas entre estereótipos e audiências. ACIDI, Presidência do Conselho de Ministros. https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/179891/Tese33WEB.pdf/45ac9b98-5445-4396-bbde-ea6eca2d599cLinks ]

Jorge, S., & Carolino, J. (2019). Um lugar em produção: O caso da Cova da Moura. Forum Sociológico, (34), 19-30. http://journals.openedition.org/sociologico/4980Links ]

Lima, M. E. O., & Vala, J. (2004). As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, 9(3), 401-411. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000300002 [ Links ]

Lippmann, W. (1961). Public opinion. Free Press. (Trabalho original publicado em 1922) [ Links ]

Macedo, I. (2016). Os jovens e o cinema português: A (des)colonização do imaginário? Comunicação e Sociedade, 29, 271-289. https://doi.org/10.17231/comsoc.29(2016).2420 [ Links ]

Macedo, I. (2017). Migrações, memória cultural e representações identitárias: A literacia fílmica na promoção do diálogo intercultural (Tese de doutoramento, Universidade do Minho). RepositóriUM. http://hdl.handle.net/1822/48712Links ]

Macedo, I., Cabecinhas, R., & Balbé, A. (2021). Cinema, interculturalidade e transformação social. In Caderno MICAR - Contributos para a 8ª edição da Mostra Internacional de Cinema Anti-racista (pp. 11-16). SOS Racismo. http://hdl.handle.net/1822/74369Links ]

Maeso, S. R. (2021). Brutalidade policial e racismo em Portugal: As respostas do direito penal e contraordenacional. In S. R. Maeso (Ed.), O estado do racismo em Portugal: Racismo antinegro e anticiganismo no direito e nas políticas públicas (pp. 91-124). Tinta da China. [ Links ]

Malheiros, J. M., Mendes, M., Barbosa, C., Silva, S. B., Schiltz, A., & Vala, F. (2007). Espaços e expressões de conflito e tensão entre autóctones, minorias migrantes e não migrantes na área metropolitana de Lisboa. Observatório da Imigração. [ Links ]

Marques, F. (2007). Do “não racismo” aos dois racismos dos portugueses. Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural. http://hdl.handle.net/10400.1/1915Links ]

Pereira, A. C., Macedo, I., & Cabecinhas, R. (2019). Lisboa africana no cinema: Conversas em sala de aula sobre Li Ké Terra e Cavalo Dinheiro. Revista Lusófona de Estudos Culturais, 6(1), 115-135. https://doi.org/10.21814/rlec.383 [ Links ]

Pettigrew, T. F., Jackson, J. S., Brika, J. B., Lemaine, G., Meertens, R. W., Wagner, U., & Zick, A. (1998). Outgroup prejudice in western Europe. European Review of Social Psychology, 8(1), 241-273. https://doi.org/10.1080/14792779843000009 [ Links ]

Pettigrew, T. F., & Meertens, R. W. (1995). Subtle and blatant prejudice in western Europe. European Journal of Social Psychology, 25(1), 57-75. https://doi.org/10.1002/ejsp.2420250106 [ Links ]

Ramos, A., Pereira, C. R., & Vala, J. (2019). The impact of biological and cultural racisms on attitudes towards immigrants and immigration public policies. Journal of Ethnic and Migration Studies, 46(3), 574-592 https://doi.org/10.1080/1369183X.2018.1550153 [ Links ]

Raposo, O., & Varela, P. (2016). Faces do racismo nas periferias de Lisboa. Uma reflexão sobre a segregação e a violência policial na Cova da Moura. In Portugal, território de territórios. Atas do IX Congresso Português de Sociologia (1-14). Universidade do Algarve. http://hdl.handle.net/10316/87147Links ]

Santos, M. P. N. dos. (2014). As novas dinâmicas da sustentabilidade urbana em territórios de pobreza e exclusão social: O caso da Cova da Moura. Revista Invi, 81(29), 115-155. https://doi.org/10.4067/S0718-83582014000200004 [ Links ]

Varela, P. (2021). Racismo e os órgãos de comunicação social: Do suposto “arrastão” à brutalidade policial na esquadra de Alfragide. In S. R. Maeso (Ed.), O estado do racismo em Portugal: Racismo antinegro e anticiganismo no direito e nas políticas públicas (pp. 241-265). Tinta da China. [ Links ]

Wieviorka, M. (2002). O racismo, uma introdução. Fenda Edições. [ Links ]

1Uma análise inicial deste filme pode ser encontrada em Macedo (2017).

Recebido: 31 de Dezembro de 2021; Aceito: 15 de Fevereiro de 2022

Isabel Macedo é doutorada em estudos culturais pela Universidade do Minho e Universidade de Aveiro, na área da comunicação e cultura. A sua tese de doutoramento intitula-se Migrações, Memória Cultural e Representações Identitárias: A Literacia Fílmica na Promoção do Diálogo Intercultural. É investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade e integra várias associações nacionais e internacionais na área da comunicação, da educação e da cultura visual. É diretora-adjunta da revista Vista. Coeditou a revista Comunicação e Sociedade, volume 34, dedicada ao tema ciências da comuni cação e estudos lusófonos, e a Vista, número 2, intitulada Memória Cultural, Imagem, Arquivo. Alguns dos seus principais trabalhos são: “Representations of Dictatorship in Portuguese Cinema” (Representações da Ditadura no Cinema Português; 2017), em coautoria; “Interwoven Migration Narratives: Identity and Social Representations in the Lusophone World” (Narrativas de Migração Interligadas: Identidade e Representações Sociais no Mundo Lusófono; 2016), em coautoria; e “Os Jovens e o Cinema Português: A (Des)Colonização do Imaginário?” (2016). Email: isabel.macedo@ics.uminho.pt Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons